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Ricardo Vieira

Fundamentos de
Bioquímica
Textos
Textos didáticos
didáticos

Belém-Pará
2003
Apresentação
A bioquímica é, sem dúvida, uma das ciências mais fascinantes porque desmonta o ser vivo
em seus componentes básicos e tenta explicar o funcionamento ordenado das reações químicas que
tornam possível a vida, freqüentemente adjetivada como milagre ou fenômeno. Entretanto, o
processo químico muito bem organizado que estabelece toda a existência da vida em nosso planeta,
tem sido desvendado, continuamente, por cientistas do mundo inteiro. Muito já se sabe, porém o
desconhecido é a essência do conhecimento humano e a luta para desvendá-lo advém da natureza
desbravadora da humanidade, que não se furta com explicações empíricas e procura a razão dos
fatos ao invés de eternizá-los mitos.
Os capítulos que se seguem representam a organização de informações básicas para o
aprendizado de Bioquímica Humana, resultado do conteúdo das aulas que ministro há pouco mais
de uma década. Como tal, possuem um caráter estritamente didático, não dispensando, de forma
alguma, a consulta às referências bibliográficas sugeridas ao final de cada capítulo e outras,
existentes na literatura especializada.
Entretanto, não se tratam de “apostilas” repletas de dicas e “macetes” que tornam o ensino
estereotipado. Pelo contrário, é um trabalho realizado com carinho e atenção para facilitar o
aprendizado em bioquímica nos cursos de Farmácia, Medicina, Biologia, Biomedicina, Nutrição,
Enfermagem, Odontologia e áreas afins.
O formato eletrônico em arquivos PDF é uma alternativa econômica e prática de acesso aos
meus textos originais, contornando dificuldades editoriais próprias de nossa região. Acima de tudo,
este E-book (livro eletrônico) corresponde a um protótipo para uma futura publicação em formato
tradicional e, como todo material didático, estes textos estão em constante atualização, sendo a sua
opinião (informando falhas, sugerindo mudanças etc.) de extrema valia para a realização de um
trabalho cada vez mais completo, possibilitando um retorno positivo para o processo ensino-
aprendizagem.

Prof. Ricardo Vieira


Universidade Federal do Pará
Centro de Ciências Biológicas
Laboratório de Genética Humana e Médica
Av. Augusto Corrêa no 1 – Guamá
Belém - Pará - CEP: 66.075-900
Fone/Fax: (091) 211-1929
E-mail: jrvieira@ufpa.br
HomePage: http://www.fundamentosdebioquimica.hpg.com.br

Belém-Pará
2003
À Georgete,
minha companheira e cúmplice.

A meus pais,
Benedito e Scila Vieira, meus mestres.

A meus alunos,
meus inspiradores.
Capítulo 1
O que estuda a Bioquímica?
O
estudo da Bioquímica infere ais. Sobre este aspecto, veja o que dizem Al-
um conceito nato de que exis- berts, B. et al. (1997).
te uma química da vida, ou
"Evidências geológicas sugerem que houve mais de
então que há vida pela química. Antes que um um bilhão de anos de intervalo entre o aparecimen-
conceito filosófico ou religioso, a vida, aqui, to das cianobatérias (primeiros organismos a libe-
deve ser tratada como o resultado da maximi- rar oxigênio como parte do seu metabolismo) e o
zação de fatores físicos e químicos presentes período em que grandes concentrações de oxigênio
em um sistema aberto extremamente frágil: a começaram a se acumular na atmosfera. Esse in-
tervalo tão grande deveu-se, sobretudo, à grande
célula. Neste microscópico tubo de ensaio quantidade de ferro solúvel existente nos oceanos,
estão os componentes necessários para que o que reagia com o oxigênio do ar para formar e-
ser vivo complete o clássico ciclo da vida, ou normes depósitos de óxido de ferro."
seja, nascer, crescer, reproduzir e morrer, Certamente, este processo lento de libe-
tudo resultado de um processo natural de de- ração de oxigênio como um dejeto indesejável
senvolvimento de reações químicas típicas dos primeiros habitantes de nosso planeta, foi
com reagentes, produtos e catalisadores que, responsável pelo surgimento de um outro orga-
quanto melhor as condições ótimas de reação, nismo adaptado em consumir este oxigênio
melhor a eficácia com que serão executadas. como comburente de moléculas orgânicas libe-
Do ponto de vista químico, os seres rando, assim, a energia térmica tão necessária
vivos são constituídos de elementos bastante para a manutenção da vida.
simples e comuns em todo o universo: carbo- Mas, descrever o processo complexo
no, hidrogênio, nitrogênio e oxigênio (bases que é a vida não é tarefa tão simples quanto
dos compostos orgânicos), além de uma infi- possa parecer. Na verdade desde que o universo
nidade de outros elementos presentes em surgiu há cerca de 20 bilhões de anos, a vida na
quantidades relativamente menores, mas de Terra tem apresentado mecanismos ímpares de
funções imprescindíveis ao funcionamento reprodução e desenvolvimento que muitas ve-
celular (p.ex.: ferro, enxofre, cálcio, sódio, zes são únicos na natureza e desafiam os con-
potássio, cloro, cobalto, magnésio etc.) ceitos bioquímicos como por exemplo os seres
O agrupamento desses elementos, em que habitam as fossas abissais vulcânicas do
moléculas com funções distintas, foi um pas- Pacífico, que sobrevivem à temperaturas supe-
so longo e decisivo para a afirmação do pro- riores a 120oC; ou os vírus, que não possuem
cesso de vida em nosso planeta. O processo estrutura celular sendo formados, basicamente,
de obtenção de energia através da glicose na apenas por proteínas e ácidos nucléicos.
ausência de oxigênio, por exemplo, é um pro- Um fato comum a todos os seres vivos,
cesso tão organizado que ele é exatamente o porém, é a presença de macromoléculas exclu-
mesmo em todos os seres vivos, diferindo sivas dos seres vivos (carboidratos, lipídios,
somente na forma como o produto final é pro- proteínas, vitaminas e ácidos nucléicos) deno-
cessado, sendo que a maioria dos seres vivos minadas de biomoléculas. Desta forma, a quí-
prossegue com o metabolismo aeróbio, porém mica da vida está atrelada a composição básica
todos os seres vivos, sem exceção, realizam o de todo ser vivo, uma vez que todos possuem
metabolismo anaeróbio de degradação da gli- pelo menos dois tipos de biomoléculas, como
cose. no caso dos vírus.
Existe uma relação direta entre a produ- Lavosier e Priestly (final do século
ção de oxigênio pelas cianofíceas e o surgi- XVIII), Pasteur, Liebig, Berzelius e Bernard
mento dos seres multicelulares levando a (século XIX) foram pioneiros na pesquisa de
incrível diversidade de espécies dos dias atu- qual seria a composição dos seres vivos, sendo
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 1 - O que Estuda a Bioquímica? 2

o termo bioquímica introduzido em 1903 Monera e Protista) possuem mecanismos pró-


pelo químico alemão Carl Neuberg. Inicial- prios de organização celular, de acordo com sua
mente, esta nova ciência era denominada relação com o meio ambiente (as plantas são
química fisiológica ou então química biológi- autótrofas, por exemplo) ou entre si (os Mone-
ca, tendo a Alemanha, em 1877, publicado a ras e Protistas são unicelulares), ainda havendo
primeira revista oficial desta nova disciplina distinção quanto à organização das organelas
(Zeitschrift für Physiologisce Chemile) e, em celulares (os moneras são procariotas, e portan-
1906, a revista norte-americana Journal of to, ao contrário dos demais, não possuem ne-
Biological Chemistry consagrou-se como im- nhuma estrutura intracelular de membrana).
portante divulgadora das novas descobertas Apesar das diferenças, contudo, todos os seres
no campo da bioquímica, sendo editada até vivos apresentam uma dinâmica bioquímica
hoje. celular muitíssimo parecida, evidenciando o
Após 1920, os Estados Unidos tiveram sucesso evolutivo dos processos experimenta-
uma participação decisiva para o crescimento dos nos bilhões de anos de aperfeiçoamento. As
desta nova ciência com a descoberta, isola- vias metabólicas celulares constituem um ema-
mento, síntese e descrição do mecanismo de ranhado de reações químicas que se superpõem,
regulação biológica de incontáveis compostos mas, maravilhosamente, não se atropelam e sim
bioquímicos com a utilização de isótopos ra- se completam formando um complexo e preciso
diativos como marcadores. Desde 1950, a ciclo químico de consumo de reagentes (em
bioquímica têm-se tornado, cada vez mais, bioquímica denominado de substratos) e for-
uma das ciências que mais crescem no campo mação de produtos, como em uma reação quí-
do conhecimento humano tendo papel decisi- mica qualquer. A forma de regulação destas
vo na elucidação do mecanismo fisiológico e reações levam a uma intricada mecânica meta-
patológico de regulação de vários compostos bólica tendo ao centro a degradação (catabo-
bioquímicos de fundamental importância para lismo) e síntese (anabolismo) de biomoléculas,
a saúde do ser humano. Atualmente, os méto- Os vírus traduzem um capítulo à parte
dos de diagnóstico e tratamento da maioria no estudo da bioquímica por apresentarem me-
das doenças, são estudados a partir de uma canismos únicos de reprodução e desenvolvi-
base bioquímica, revelando as causas, as con- mento. Possuem apenas dois tipos de biomolé-
seqüências e maneiras de se evitar o início ou culas, proteínas e ácido nucléico (DNA ou
a propagação das mais diversas patologias. RNA), necessitando do ambiente celular para
Neste capítulo, serão apresentadas as seu desenvolvimento, podendo permanecer
principais moléculas envolvidas no processo cristalizados por milhares de anos em estado de
da vida, introduzindo o estudo dos fundamen- inércia quando fora do meio biológico. Alguns
tos de bioquímicas que será efetuado nos ca- vírus mais complexos, possuem carboidratos e
pítulos posteriores. lipídios em sua composição oriundos da mem-
brana do hospedeiro durante o processo lítico.
A Natureza das Biomoléculas
Água
As biomoléculas possuem caracterís-
ticas químicas comuns às demais moléculas É o composto químico mais abundante
da natureza. Porém, quando associadas em (de 60 a 85% do peso total da maioria dos teci-
um sistema biológico, possuem uma dinâmica dos) sendo o solvente adequado para os com-
própria de regulação e síntese, que proporcio- postos minerais e bioquímicos (Figura 1-1).
nam as características de cada ser vivo. O Apesar de não ser uma biomolécula verdadeira
ambiente ideal para que ocorram estas reações (existe em grande quantidade livre na natureza,
é a célula, com uma série de organelas especi- independente, até, da existência organismos
alizadas nas mais variadas funções bioquími- vivos - existe água na lua e livre no vácuo do
cas. espaço), graças à sua polaridade, a água conse-
A princípio, os seres vivos dos cinco gue dissolver a maioria das biomoléculas (ex-
reinos da natureza (Animalia, Plantae, Fungi, ceção às gorduras) criando uma capa de solva-
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Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 1 - O que Estuda a Bioquímica? 3

tação ao redor delas, induzida por pontes de metabólicos, baseiam-se na composição plas-
hidrogênio. Entretanto, a água também parti- mática (a parte líquida do sangue).
cipa ativamente em reações bioquímicas (p. O sangue exerce um importante papel
ex.: hidrólise, condensação) o que a torna um no estudo da bioquímica, uma vez que possui
dos componentes químicos mais importantes funções chaves na manutenção dos processos
para a vida. De fato, o simples achado de água fisiológicos. É indispensável pelo transporte de
na forma líquida permite a inferência de exis- nutrientes, metabólitos, produtos de excreção,
tência de formas de vida (pelo menos como gases respiratórios, hormônios e de células e
nós a concebemos) seja no mais árido e quen- moléculas de defesa. Em animais de grande
te deserto, nos gélidos e secos pólos da Terra porte, é indispensável como dissipador do calor
ou nas mais profundas, escuras e ferventes produzido pela alta taxa metabólica celular,
fossas abissais do Pacífico (e, quem sabe, em impedindo que as células entrem em colapso
outros planetas do nosso sistema solar). químico em virtude do aumento da temperatura
ambiente. A capacidade de coagulação é uma
importante propriedade sangüínea que garante
o fluxo constante do sangue nos vasos, evitando
perdas por hemorragia.
A maioria dos seres multicelulares pos-
sui sangue ou algum tipo de líquido com função
correlata (p.ex.: a hemolinfa de insetos), sendo
que mamíferos e aves possuem um sistema de
manutenção da temperatura corpórea extrema-
mente eficaz ("sangue quente"), o que não per-
mite modificações bruscas na temperatura de
reação bioquímica. Os demais animais de "san-
gue frio" não conseguem evitar as trocas de
temperatura com o meio ambiente e a tempera-
tura interna varia consideralvelmente, levando a
um metabolismo energético diversificado dos
Figura 1-1: A molécula da água possui polaridade de "sangue quente". Entretanto, vários peixes
devido à diferença de carga entre os átomos de hidro- velozes (p.ex.: tubarão, salmão) possuem me-
gênio e o de oxigênio que, por ser mais eletronegativo,
favorece a criação de uma nuvem eletrônica em torno
canismos particulares de aquecimento constante
de seu núcleo, induzindo a uma carga formal positiva do sangue para manter uma temperatura cons-
para os átomos de hidrogênio. Esta polaridade permite tante para suas as altas atividades metabólicas
o surgimento de pontes de hidrogênio o que torna a de predadores, o que os torna verdadeiros pei-
água um soluto perfeito para a maioria das biomolécu- xes de "sangue quente".
las. (Adaptado de Lehninger, A.L et al., 1995).
A água, ainda, é importante na manu-
tenção do equilíbrio químico celular mantendo
Em organismos multicelulares, a água
as concentrações de H+ e demais eletrólitos
distribui-se em dois ambientes: líquido intra-
dentro de faixas estreitas evitando variações
celular (LIC) e líquido extracelular (LEC)
letais de pH e osmolaridade. É claro que esta
que, por sua vez, compõe-se do líquido intra-
manutenção só é possível graças a um comple-
vascular (plasma sangüíneo) e líquido inters-
xo processo bioquímico e fisiológico envolven-
ticial nos seres mais complexos, como é o
do hormônios (p.ex.: aldosterona, cortisol),
caso do ser humano, objeto central de nosso
órgãos especializados (p.ex.: rins, pulmões,
estudo. O sangue é o mais importante com-
adrenais) e um sistema fisiológico de tampões
partimento líquido do organismo e serve de
bioquímicos (p.ex.: Hb/HbO2; H2CO3/HCO3-).
base para o estudo do metabolismo de vários
Em organismos marinhos, a água é a
compostos bioquímicos. Freqüentemente, os
responsável pelo fornecimento do oxigênio e
valores médios da concentração das biomolé-
dispersão de excrementos, como o CO2 e com-
culas em um indivíduo, para efeito de estudos
postos nitrogenados, que favorecem a matéria

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prima para o fitoplâncton produz carboidra-


tos, aminoácidos (e outros nutrientes) e o O2,
essenciais para a manutenção do equilíbrio
ecológico da Terra.

Proteínas
São as biomoléculas mais abundantes,
possuindo inúmeras funções, dentre elas a
indispensável função catalisadora exercida
pelas enzimas, sem a qual não seria possível a
maioria das reações celulares (apesar de al-
gumas moléculas de RNA possuírem ação
catalítica idêntica a enzimas).
São formadas por aminoácidos ligados
por ligações químicas extremamente fortes
entre seus grupamentos funcionais amino
Figura 1-3: A estrutura tridimensional da mioglobina,
(NH2) e ácido carboxílico (COOH), as liga- proteína especializada em liberar o O2 que transporta,
ções peptídicas (Figura 1-2). somente em baixa pO2 o que traduz sua importância no
metabolismo muscular. (Adaptado de Campbel, M.K., 1995)

α-aminoácidos
NH2 R De fato, essa propriedade de assumir
formas variadas proporciona um papel impor-
H - C - CO O H H -N - C - H tante na estereoquímica celular, onde as reações
são quase todas enzimáticas e ocorrem com
R CO O H uma especificidade da enzima ao substrato ga-
rantida pela forma tridimensional final das pro-
Extremidade teínas. Quaisquer modificações nesta estrutura
amino-terminal Ligações
peptídicas modificará a afinidade da enzima pelo substrato
NH2 R e isso será utilizado pela célula para regular a
ação enzimática.
As proteínas normalmente abastecem e
H - C - CO N - C - H
suprem as necessidades corpóreas de aminoáci-
dos e do nitrogênio neles contido. Toda proteí-
R H CO O H
na presente na dieta de seres humanos é digeri-
da e entra na circulação como aminoácidos
Extremidade individualizados ou mesmo como dipeptídeos
carboxila-terminal
(compostos por dois aminoácidos), indo ao
Figura 1-2: A ligação peptídica entre dois aminoáci- fígado que inicia seu processo metabólico.
dos é extremamente rígida e não gira, porém pode doar Os animais são capazes de sintetizar
ou receber prótons quando em meio básico ou ácido.
somente 10 dos 20 aminoácidos necessários
Outras ligações ocorrem entre o res-
para a síntese protéica (os aminoácidos deno-
tante da cadeia carbonada dos aminoácidos,
minados não-essenciais: glicina, alanina, seri-
como ligações covalentes entre os grupamen-
na, prolina, cisteína, ácido aspártico, ácido glu-
tos -SH de dois aminoácidos cisteína, for-
tâmico, asparagina, glutamina e tirosina), e os
mando uma ponte dissulfeto, pontes de hidro-
outros 10 são incapazes de serem sintetizados e
gênio entre grupamentos polares da cadeia
devem estar presente na alimentação (os ami-
carbonada, ou até ligações fracas do tipo de
noácidos essenciais: treonina. lisina, metioni-
van der Waals, mas que garantem uma incrí-
na, arginina, valina, fenilalanina, leucina, trip-
vel estabilidade e conformação tridimensional
tofano, isoleucina e histidina).
única às proteínas, relacionada diretamente
com sua função (Figura 1-3).
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Alguns aminoácidos podem ser sinte- ponde a uma pequena fração do poderio bioló-
tizados no organismo mas a uma taxa que o gico das proteínas que são, sem dúvida nenhu-
torna essencial na alimentação, como é o caso ma, as biomoléculas de maior número de fun-
da arginina que é utilizada quase que inte- ções em um organismo vivo. A função energé-
gralmente na síntese da uréia e da histidina tica é prioridade de duas outras moléculas: os
que é produzida em quantidade insuficiente carboidratos e os lipídios.
para a síntese protéica, porém tornam-se qua-
se que desnecessários na dieta de adultos, Carboidratos
quando o crescimento (e, portanto, a fase de
maior síntese de proteínas estruturais) chega São os principais substratos energéticos
ao fim. Em contrapartida, os aminoácidos da célula, através da degradação da glicose por
ditos não-essenciais cisteína e tirosina são via anaeróbia e aeróbia (Figura 1-4). Popular-
sintetizados a partir dos aminoácidos essenci- mente são chamados de açúcares em virtude do
ais metionina e fenilalanina, o que os torna, seu mais conhecido representante, a sacarose,
de cera maneira, dependentes da presença formada por um molécula de glicose e outra de
desses aminoácidos essenciais. frutose com sabor doce característico. O amido
No fígado, os aminoácidos absorvidos (um polímero linear ou ramificado de glicose),
no processo digestivo são convertidos nas entretanto, é a forma de carboidrato mais co-
proteínas plamáticas: 1) albumina (função de mum na alimentação, representando cerca de
transporte); 2) α1-globulina (glicoproteínas e 90% dos carboidratos da dieta. Em mamíferos,
lipoproteínas de alta densidade); 3) α2- a lactose (formada por glicose e galactose) é
globulinas (haptoglobinas, transportadoras de importante fonte energética presente no leite,
hemoglobina que saem das hemácias); 4) β- apesar da maioria dos mamíferos utilizarem o
globulinas (transferrina, lipoproteínas de bai- leite como única fonte de alimento somente em
xa densidade) e 5) fatores da coagulação san- seus primeiros períodos de vida (em ratos al-
güínea (fibrinogênio e protrombina). No guns dias, em humanos cerca de um ano).
plasma sangüíneo encontra-se, ainda, uma
infinidade de proteínas produzidas em outros
locais do organismo, como é o caso das γ-
globulinas (os anticorpos) que são sintetizadas
por linfócitos e outras proteínas teciduais.
Alguns aminoácidos são convertidos,
no fígado, em bases nitrogenadas (para a sín-
tese de ácidos nucléicos) e outros produtos
nitrogenados. Em vários tecidos, possuem
funções das mais diversas, como base de sín-
tese de hormônios e neurotransmissores.
A parte nitrogenada dos aminoácidos Figura 1-4: A molécula de glicose (uma hexose - car-
metabolizada no fígado de mamíferos, anfí- boidrato de seis carbonos) em sua forma cíclica.
bios adultos, e tartarugas é convertida em
uréia e excretada pelos rins. Aves, répteis, De qualquer forma, os carboidratos são
insetos e invertebrados terrestres excretam o as principais biomoléculas energéticas, uma vez
nitrogênio protéico como ácido úrico, enquan- o metabolismo glicolítico anaeróbio é via co-
to que peixes, invertebrados aquáticos, anfí- mum de todos os seres vivos (à exceção dos
bios na forma larvária excretam na forma de vírus por não terem estrutura celular, sendo
amônia (crocodilos sintetizam, também, amô- considerados por muitos autores como formas
nia e tartarugas uréia a partir do nitrogênio intermediárias entre seres vivos e partículas
protéico). químicas de transmissão de infecções, assim
A cadeia carbonada dos aminoácidos é como os príons, estes compostos apenas de
convertida em intermediários do metabolismo proteínas).
energético celular, porém esta função corres-
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Há a necessidade de ingestão mínima aumenta a incidência de cáries dentárias em


de cerca de 50 - 100 g de carboidratos por dia virtude da destruição da dentina pelo ácido lác-
para garantir o suprimento de glicose sangüí- tico ou etanol (produto final do metabolismo
nea (glicemia) que, por sua vez, nutrirá os anaeróbio de bactérias e fungos). Da mesma
tecidos, permanecendo a glicemia normal em forma, uma ingestão aumentada de carboidratos
torno de 70 - 110 mg/dl. A hipoglicemia ca- pode proporcionar distúrbios intestinais com as
racteriza-se por vários sinais e sintomas como bactérias produzindo grande quantidade de ga-
tonturas, fraqueza muscular, suor firo, irritabi- ses, com comprometimentos patológicos diver-
lidade, fome, palpitação, dor de cabeça, sono- sos.
lência, convulsão, podendo atingir o coma e a A carência de carboidratos na alimenta-
morte. A hiperglicemia quase sempre é um ção, por sua vez induz ao consumo aumentado
achado patológico laboratorial, sendo difícil a das gorduras e proteínas musculares para a pro-
percepção de sinais e sintomas clínico diretos, dução de energia, características o que é co-
sendo observada, principalmente, em patolo- mumente utilizado em dietas de programas de
gias específicas como o diabetes mellitus, redução de peso corpóreo. Deve-se levar em
caracterizada pela ausência ou produção insu- consideração, entretanto, que a utilização em
ficiente de insulina (ou de seus receptores excesso de lipídios (principalmente) e proteínas
celulares). para a produção de energia, poderá trazer in-
As principais fontes de carboidratos convenientes fisiológicos, com a produção de
são os vegetais produtores de amido como dejetos metabólicos danosos ao organismo
reserva energética (p.ex.: milho, mandioca, quando em grande quantidade, como é o caso
beterraba, arroz e todos os cereais), seguido dos corpos cetônicos que induzem a queda do
dos produtores de sacarose (cana-de-açúcar, pH e da destruição da camada mielínica dos
beterraba). As frutas contêm grande quantida- neurônios.
de de frutose, além de outros carboidratos; o
leite e seus derivados, contêm a lactose. Lipídios
Os alimentos de origem animal (fora o
leite e seus derivados) contêm muito pouco A gorduras, como são conhecidas popu-
teor de carboidratos, reservando-se ao fígado larmente, são a principal fonte de armazena-
e aos músculos as principais fontes em virtude mento energético, podendo manter alguns tipos
de serem sede da síntese de glicogênio (polí- de células vivas por vários anos (p.ex.: semen-
mero de glicose bem mais ramificado que o tes oleaginosas).
amido, sintetizado, também por fungos e al- Os lipídios fornecem significativa quan-
guns protozoários). Entretanto, após o abate tidade de energia (quase o dobro dos carboidra-
do animal, as reservas de glicogênio rapida- tos), porém não é esta a sua função primária na
mente se esgotam em virtude da continuidade alimentação, uma vez que a absorção intestinal
do metabolismo celular mesmo após a morte dos lipídios se dá pela linfa e não pela corrente
fisiológica. Assim sendo, a quantidade de sangüínea como os demais nutrientes. Desta
glicogênio presente na alimentação humana é forma, os lipídios energéticos (ácidos graxos na
quase inexistente, estando presente, portanto, forma de triglicerídeos - Figura 1-5) são capta-
somente na dieta de animais carnívoros que dos pelos tecido adiposo lá ficando armazenado
devoram suas presas imediatamente após o até que haja necessidade energética (como no
abate. caso de dietas hipoglicídicas ou no paciente
Os carboidratos podem ser convertidos diabético o qual não consegue produzir energia
em gorduras quando há a ingestão de quanti- através da glicose, uma vez que ela não penetra
dades excessivas às necessidades energéticas na célula). Por esta razão, os ácidos graxos não
podendo levar a patologias associadas ao ex- são tão bem aproveitados para o metabolismo
cesso de alimentação (obesidade, aterosclero- energético como a glicose que, apesar de menos
se coronária etc.). Uma má-higiene dentária calórica, é bem mais rapidamente degradada
proporciona a utilização dos carboidratos pe- pelas células.
los microorganismos presentes na boca o que

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o que corresponde a uma redundância, uma vez


que nenhum óleo de origem vegetal contém
colesterol, mas leva as pessoas a relacionarem
a ausência colesterol com uma melhor qualida-
de do óleo, o que não é verdade (a qualidade de
Ácido esteárico (18:0)
um óleo vegetal está em uma maior quantidade
de ácidos graxos poli-insaturados, menos caló-
ricos).

Figura 1-5: Os lipídios energéticos. O ácido esteárico


possui 18 carbonos sem nenhuma dupla ligação (satu-
rado); o carbono 1 é denominado alfa (α) e contém o
grupamento funcional (COOH); o segundo denomina-
se β e o último carbono (18) é denominado ômega-1
(ω), sendo o carbono 17 denominado ω-2, o 16 de ω-3 Figura 1-6: A molécula de colesterol está presente
e assim sucessivamente. exclusivamente em gorduras animais. Quimicamente, é
um álcool de cadeia longa, mas que é classificado como
lipídio em virtude de sua insolubilidade na água.
Além de conferir um sabor caracterís-
tico aos alimentos e de proporcionar uma sen- O excesso de lipídios da alimentação
sação de saciedade, a dieta lipídica veicula as induz a uma rápida deposição dos triglicerídeos
vitaminas lipossolúveis e supre o organismo nos adipócitos e a saturação do fígado na de-
dos ácidos graxos essenciais poli-insaturados gradação do colesterol. A não realização de
que o ser humano é incapaz de sintetizar, co- exercícios físicos para compensar uma ingestão
mo o ácido linoléico (ω-6); linoléico (ω-6 e aumentada de lipídios, pode refletir-se em so-
9); aracdônico (20:4). brepeso e até a obesidade, principalmente
Os ácidos graxos saturados (presente quando a alimentação ocorre em períodos de
nas moléculas de triglicerídeos) fornecem baixa atividade física (como à noite, antes do
energia quando as fontes de carboidratos se sono).
esgotam, sendo bem mais calóricos que os
insaturados. O excesso da utilização dos lipí-
dios para o metabolismo energético fornece
Ácidos Nucléicos
uma quantidade de um composto energético
alternativo, os corpos cetônicos, que suprem Os ácidos desoxirribunucléico (DNA)
músculos e neurônios na falta de glicose (neu- (Figura 1-7) e ribonucléico (RNA) são as molé-
rônios só consomem glicose e corpos cetôni- culas informacionais, através das quais são sin-
cos como combustível energético), porém tetizadas todas as proteínas do organismo. O
trazem complicações clínicas quando produ- processo de replicação (síntese do DNA) é rea-
zidas em excesso (como a degeneração da lizado de forma extremamente cuidadosa para
bainha mielínica de proteção dos neurônios e que não resulte em erros na seqüência de DNA
a queda do pH plasmático). do genoma das células filhas e, consequente-
O colesterol (Figura 1-6) é encontrado mente, erros na produção de proteínas, uma vez
exclusivamente em gorduras animais, sendo a que durante o ciclo de vida de uma célula, há a
gema do ovo a principal fonte, mas não possui síntese de RNAm (mensageiro) a partir de um
função energética e acumula-se nos vasos molde da molécula de DNA. Este processo
sangüíneos quando a ingestão diária supera a (transcrição) está intimamente atrelado à sínte-
quantidade de 1g. Atualmente, o Ministério se de proteínas (tradução), onde o RNAm é
de Saúde tem proibido a divulgação do rótulo processado de maneira tal a se encaixar nos
“não contém colesterol” que comumente RNA dos ribossomos (RNAr) e favorecer a
eram colocados em frascos de óleos vegetais, adição de aminoácidos que chegam transporta-
dos pelos RNA transportadores (RNAt).
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identificação individual tal como uma "impres-


são digital de DNA").
Dentro das seqüências codificadoras dos
genes (os éxons) existem outras que não codifi-
cam absolutamente nada (os íntrons), mas que
podem possuir funções de regulação da expres-
são do gene bem como informações que são
utilizadas no estudo da evolução molecular que
permite relacionar a caracterização de espécies,
gêneros e grupos filogenéticos bem definidos,
estabelecendo os caminhos evolutivos que as
espécies atuais devem ter percorrido, o que faz
de seu estudo uma poderosa ferramenta da pa-
leontologia, antropologia ou qualquer ramo da
biologia evolutiva.
A tecnologia da manipulação da molé-
cula de DNA (p.ex.: síntese in vitro , reações de
Figura 1-7: A descoberta da estrutura de dupla héli- hibridização) tem sido utilizada com grandes
ce em espiral da molécula de DNA em 1953 por Wat- vantagens no diagnóstico de doenças metabóli-
son e Crick, trouxe informações importantíssimas para
desvendar o papel dos ácidos nucléicos para o metabo-
cas de cunho genético e doenças infecciosas
lismo de todos os seres vivos. (pela identificação de DNA de microorganis-
mos em amostras biológicas). Entretanto, os
Tanto o RNAr quanto o RNAt (assim custos e da mão-de-obra altamente qualificada
como os RNAm), são sintetizados a partir de para sua execução, ainda restringem a maioria
uma ou mais seqüências de nucleotídeos de das técnicas à laboratórios de pesquisa. Contu-
DNA (unidade de polimerização dos ácidos do, há um futuro bastante promissor para esta
nucléicos, formados por uma pentose, uma próxima década na popularização dos métodos
base nitrogenada e um grupamento fosfato). diagnósticos por biologia molecular.
Estas seqüências que codificam uma informa-
ção (proteínas ou moléculas de RNA) são Vitaminas
demoninadas de genes, as unidades básicas
das característas genéticas. Fazem parte de um grupo de biomolécu-
O cromossomo é formado por uma las não sintetizadas pelo ser humano e que pre-
única molécula de DNA superenovelada e que cisam estar presentes em pequeníssimas con-
possui um tamanho enorme, perto das propor- centrações na célula para que ocorram várias
ções microscópicas da célula. Se uníssemos reações celulares indispensáveis para a vida, (a
todos os 23 pares de cromossomos do ser hu- maioria funcionando como co-fatores enzimáti-
mano, por exemplo, teríamos uma molécula cos), o que garante o elo indispensável entre os
de cerca de 1,5m (imagine tudo isso enovela- animais e vegetais na cadeia alimentar, uma vez
do dentro do núcleo celular!). Entretanto, a- que são produzidas por vegetais, bactérias, fun-
penas cerca de 95% de todo esse DNA cor- gos e animais, tornando-se indispensáveis na
respondes a genes (regiões codificadoras de alimentação.
informação). A grande maioria do DNA cons- Quimicamente, as vitaminas são difíceis
titui-se de regiões que não codificam nenhu- de serem classificadas, uma vez que pertencem
ma informação (síntese de proteínas ou às mais variadas classes químicas (p.ex.: a vi-
RNA), mas possui função de espaçamento tamina A é um terpeno, a B1 é uma amina, a C
entre os genes (possibilitando um enovela- um ácido carboxílico). De uma maneira geral,
mento ordenado do cromossomo) além de classificamos as vitaminas, quanto às caracte-
conter regiões de controle da expressão gêni- rísticas de solubilidade, como hidrossolúveis
ca e zonas de DNA repetitivo (utilizadas na (B1, B2, B6, B12, C, biotina, ácido fólico, áci-
do pantotênico) e lipossolúveis (A, D, E, e K).
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 1 - O que Estuda a Bioquímica? 9

São requeridas na dieta em quantida- tos (somente a vitamina C pode atingir níveis
des mínimas, sendo chamadas de oligoele- de hipervitaminose por ingestão das fontes ali-
mentos (do grego oligos= pouco) juntamente mentares).
com alguns minerais. A maioria delas possui O uso indiscriminado de vitaminas co-
baixa resistência ao calor o que faz com seja mo medicamento por pessoas leigas que acredi-
necessário ingerir os alimentos que as contêm tam serem "elementos milagrosos e energéti-
crus, pois a cocção destruiria as vitaminas (as cas" é uma preocupação constante dos profis-
vitaminas lipossolúveis são as menos termo- sionais de saúde, atualmente, uma vez que tra-
lábeis). ta-se de moléculas altamente especializadas e
Entretanto, apesar do conceito geral de sua ação tóxica pode trazer a lesões graves para
que vitaminas são indispensáveis na dieta, o sistema biológico se não for administrada
nem sempre isso é verdade. Algumas não são com perícia e precaução.
necessárias na dieta de todos os animais, em
virtude de serem sintetizadas no organismo Minerais
(p.ex.: somente os primatas, alguns roedores e
pássaros não sintetizam a vitamina C). Outras São compostos de origem inorgânica
são sintetizadas por microrganismos da flora necessários para uma série de funções bioquí-
intestinal normal, sendo absorvidas indepen- micas importantes como, por exemplo, co-
dente da ingestão de fontes alimentícias (Vi- fatores de reações enzimáticas (Mg++, K+), fato-
tamina B12 e K). A vitamina K pode ser obti- res da coagulação (Ca++), regulação do equilí-
da pela conversão de um derivado do coleste- brio hidro-eletrolítico e ácido básico (Na+, K+,
rol após a ação da radiação ultravioleta solar e Cl-), elementos estruturais (Ca++, P-3, F-), trans-
é considerada por alguns autores mais um porte (Fe++) e muitas outras funções.
hormônio do que uma vitamina. As necessidades de minerais para as
Outra característica marcante das vi- funções fisiológicas podem ser divididas, arbi-
taminas é o fato de que a sua ausência especí- trariamente, em dois grupos: os macromine-
fica na alimentação causa uma doença caren- rais necessários em quantidades acima de 100
cial própria (p.ex.: o escorbuto na carência de mg/dia (cálcio, fósforo, sódio, potássio, clore-
vitamina C; o béri-béri na carência de B1). tos, magnésio) e microminerais necessários
Contudo, esta propriedade não é evidenciada em quantidades abaixo de 100 mg/dia (cobalto,
muito facilmente, pois em um estado de des- iodo, ferro, flúor, crômio).
nutrição, há a culminância de várias carências De maneira diferente aos demais nutri-
vitamínicas levando a um quadro sintomato- entes, os minerais possuem um processo de
lógico complexo e não apenas o aparecimento absorção intestinal incompleto, ou seja enquan-
de uma doença carencial específica. to todos os carboidratos, lipídios e proteínas
A maioria das vitaminas são cofatores ingeridos devem ser absorvidos (senão haverá
de reações enzimáticas (o que justifica em si proliferação bacteriana e, consequentemente,
sua necessidade em pequena quantidade, já distúrbios digestivos) os minerais possuem um
que as reações enzimáticas são recicláveis) e a limiar próprio para cada um deles (p.ex.: o Na+
sua inexistência na célula torna inviável o é de cerca de 180 mEq/l) acima do qual não há
processo de vida. Interessantemente, a admi- a passagem do mineral para a veia porta-
nistração de vitaminas em dosagens acima das hepática (que comunica o intestino e o fígado) e
necessidades diárias são utilizadas na terapêu- o excesso é excretado pelas fezes.
tica para corrigir sintomas que nem sempre Desta maneira, há um controle digestivo
tem correlação direta com sua ação biológica importante da concetração plasmática dos mi-
(p. ex.: a vitamina B6 é utilizada no tratamen- nerais. Contudo, quaisquer distúrbios digestivos
to de enjôos). Esta conduta terapêutica só (p.ex.: parasitários, inflamatórios, medicamen-
pode ser realizada sob prescrição médica, uma tos) podem alterar a absorção dos minerais le-
vez que altas dosagens de vitaminas podem vando a sua depleção e também de água, uma
ser tóxicas e só são possíveis com a adminis- vez que haverá distúrbio no balança hidro-
tração de vitaminas na forma de medicamen-

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 1 - O que Estuda a Bioquímica? 10

eletrolítico, levando a diarréias e a conseqüen- celular ou extracelular. Os peroxiomas são


te desidratação, que muitas vezes é fatal. importantes para desdobrar os radicais livres
formados pelo oxigênio evitando assim o enve-
A célula: o tubo de ensaio da vida lhecimento e a morte celular. Os lisossomas,
por sua vez, contêm enzimas hidrolíticas que
É a unidade morfo-fisiológica dos se- degradam alimentos ou a própria célula (apop-
res vivos, possuindo estruturas como as mito- tose = morte celular programada) sendo
côndrias (em todos os seres vivos, com exce- importante para determinar o tempo de vida útil
ção dos procariotas) e glioxiomas (vegetais e de uma célula.
uns poucos protistas) que são a sede da pro- As células eucariotas possuem um nú-
dução de energia da célula (Figura 1-8). cleo organizado que regula as atividades de
Nas células das folhas dos vegetais reprodução e síntese protéicas (através do
existem os cloroplastos, estruturas semelhan- DNA). A maioria das reações bioquímicas o-
tes às mitocôndrias responsáveis pela fotos- correm no citosol, que mantém relação com o
síntese (Figura 1-9). Existe uma semelhança meio externo e com as organelas através de um
estrutural muito grande entre mitocôdrias e sistema de membranas lipídico-protéico, idên-
cloroplastos, apesar das funções diametral- tico à membrana plasmática.
mente opostas (produção de energia a partir Os procariotas não possuem sistema de
de biomoléculas e captação de energia para a membrana intracelular organizado, não possu-
produção de biomoléculas, respectivamente). indo as organelas que apresentam esta estrutura
Acredita-se que tais organelas eram organis- (p.ex.: núcleo, mitocôndrias). Possuem (assim
mos independentes, em um passado evoluti- como os vegetais) uma parede celular extre-
vo muito distante, mas que criaram uma rela- mamente resistente formada de polissacárides.
ção simbiótica com algumas células primiti- Compreender os mecanismos que levam
vas gerando as atuais células vegetais e ani- à interação das biomoléculas com o sistema
mais atuais. celular, seja na síntese, metabolismo ou degra-
De fato, a existência de DNA comple- dação, é função da Bioquímica. Utilizando-se
tamente diferente do núcleo, qualifica essas de conceitos interdisciplinares (Biologia, Histo-
organelas como candidatas às primeiras estru- logia, Fisiologia etc.), a Bioquímica procura
turas vivas auto-suficientes, no sentido ener- explicar o funcionamento da célula a partir de
gético, a surgirem na história da vida na Ter- um ângulo molecular, possibilitando, inclusive,
ra. a manipulação in vitro de condições exclusivas
das células vivas, podendo recriar o processo da
química da vida com o advento da engenharia
genética. Estamos vivendo tempos de mudan-
ças extremamente importantes no pensar cientí-
fico acerca de questões vitais para a perpetua-
ção de nossa espécie - ameaçada de extinção
pela superpopulação e destruição desgovernada
do ecossistema. A compreensão dos mecanis-
mos básicos de manutenção da vida no ambien-
te celular, é indispensável para o profissional da
área de saúde e ciências biológicas para que
Figura 1-8: A mitocôndria é a sede das reações ener- possa se posicionar em assuntos vitais e, inclu-
géticas em eucariotas. sive, éticos dentro do exercício de sua profis-
são.
Os ribossomos são formados por Na Figura 1-9 representa as principais
RNAr e são a sede da síntese protéica, libe- organelas de uma célula eucariota.
rando-as para o retículo endoplasmático e,
posteriormente, aparelho de Golgi onde as
proteínas poderão ser liberadas para o uso

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 1 - O que Estuda a Bioquímica? 11
• 1993 - Richard J. Roberts e Phylip A. Sharp pela descoberta de
split-genes.
• 1993 - QUÍMICA: Kary B. Mullins pela invenção do método da
PCR (Polymerase Chain Reaction - Reação em Cadeia da Polime-
rase) para a síntese in vitro de DNA e Michael Smith pelo estudo
em proteínas mutagênicas.
• 1992 - MEDICINA: Edmond H. Fisher e Edwin G. Krebs pela
descoberta da fosforilação reversível de proteínas.
• 1991 - MEDICINA: Erwin Neher e Bert Sakmann pela descoberta
das proteínas canais de íons celulares.
• 1989 - QUÍMICA: Sidney Altman e Thomas Cech pela descober-
ta de RNA com propriedade catalítica.
• 1988 - QUÍMICA: Johann Deisenhofer, Robert Huber e Harmut
Chel pela determinação da estrutura tri-dimensional do centro da
reação fotossintética.
• 1985- MEDICINA: Michael S. Brown e Joseph L. Goldstein pela
descoberta da regulação do metabolismo do colesterol.
• 1984 - MEDICINA: Niels K. Jerne, Georges J. F. Köhler e César
Milstein pela descoberta do controle do sistema imune.
• 1982 - MEDICINA: Sune K. Bergström, Bengt I. Samueksson e
Jonh R. Vane pela descoberta das prostaglandinas.
• 1982 - QUÍMICA: Aaron Klug pelo dewsenvolvimento de técni-
Figura 1-9 - Representação esquemática de uma célula cas de microscopia eletrônica por cristalografia para elucidar inte-
eucariota. rações proteínas/ácidos nucléicos.
• 1980 - QUÍMICA: Paul Berg pelos estudos de DNA recombinate
e Walter Gilbert e Frederik Sanger por seus estudos de sequenci-
amento de DNA.
• 1978 - MEDICINA: Werner Arber, Daniel Nathans e Hamilton O.
Curiosidades Smith pela descoberta das enzimas de restrição.
• 1978 - QUÍMICA: Peter D. Mitchel pela formulação da teoria
quimiosmótica para a síntese do ATP.
O estudo da bioquímica já rendeu 63 • 1977 - Roger Guillemin, Andrew V. Schally e Rosalyn Yalow
pela descoberta da produção de hormônios peptídeos cerebrais.
ganhadores do Prêmio Nobel de Química e • 1975 - QUÍMICA: Jonh Warcup Conforth e Vladimir Prelog pelo
Medicina, a mais importante premiação cien- estudo da estereoquímica de reações enzimáticas.
tífica, instituída desde 1901. Dentre eles, está • 1972 - MEDICINA: Gerald M. Edelman e Rodney R. Porter pela
descoberta da estrutura protéica dos anticorpos.
um dos únicos cientistas que ganhou duas • 1972 - QUÍMICA: Christian B. Anfinsen, Stanford Moore e
vezes o prêmio Nobel: é Frederick Sanger que William H. Stein pelos estudos na enzima ribonuclease.
• 1971 - MEDICINA: Earl W. Jr. Sutherland pela descorberta do
em 1958 descobriu a estrutura da insulina e mecanismo de ação dos hormônios.
em 1980 desenvolveu técnicas de seqüencia- • 1971 - QUÍMICA: Gerhard Herzberg pelo estudo da estrutura
eletrônica e geométrica dos radicais livres.
mento de DNA. Linus Pauling também ga- • 1970 - QUÍMICA: Luis F. Leloir por estudos na biossíntese de
nhou dois prêmios: em 1954 por seus estudos carboidratos
• 1968 - MEDICINA: Robert W. Holley, Har Gobind Khorana e
com ligações químicas de biomoléculas e em Marshall W. Nirenberg pela interpretação do código genético e a
1962 o prêmio Nobel da Paz. Neste seleto síntese protéica.
• 1964 - QUÍMICA: Dorothy Crowfoot Hodgkin pela criação de
clube de ganhadores de mais de um prêmio técnicas de Raios-X para estabelecer a estrutura de compostos bi-
Nobel consta, ainda, Marie S. Curie em 1911 oquímicos.
• 1964 - MEDICINA: Konrad Bloch e Feodor Lynen pela
ganhou o Nobel de Química e em 1903 o de descoberta do mecanismo e regulação do metabolismo do
Física. colesterol e ácidos graxos.
A seguir, a listagem completa dos ga- • 1962 - MEDICINA: Francis Harry Compton Crick, James Dewey
Watson e Maurice Hugh Frederick Wilks pela descoberta da es-
nhadores do Prêmio Nobel de Química e Me- trutura do DNA.
dicina com estudos bioquímicos. • 1962 - QUÍMICA: Max Ferdinand Perutz e John Cowdery Ken-
drew pelo estudo da estrutura de proteínas globulares.
• 1961 - QUÍMICA: Melvin Calvin pelo esclarecimento da fotos-
• 2000 - MEDICINA: Arvid Carlsson, Paul Greengard e Eric R
síntese.
Kandel pelos estudos na transdução de sinais no sistema nervo-
so. • 1958 - QUÍMICA: Frederick Sanger pela determinação da estru-
tura da insulina
• 1999 - MEDICINA: Günter Blobel por descobrir que proteínas
possuem sinais que regem sua localização e transporte celular. • 1959 - MEDICINA: Severo Ochoa e Arthur Kornberg pela des-
coberta da biosíntese de DNA e RNA.
• 1998 - MEDICINA: Robert F. Furchgott, Louis J. Ignarro e
Ferid Umrad pela descoberta da síntese de ácido nítrico no or- • 1957 - QUÍMICA: Alexander R. Todd pelo trabalho com nucleo-
ganismo e sua função no sistema cardiovascular. tídeos e co-enzimas.
• 1997 - MEDICINA: Stanley B. Prusiner pela descoberta dos • 1955 - MEDICINA: Axel Hugo Theodor Theorell pela descoberta
príons, novo modelo biológico de infecção de origem protéica. da natureza oxidativa de enzimas.
• 1997 - QUÍMICA: Paul B. Boyer e Jonh E. Walker pela eluci- • 1955 - QUÍMICA: Vincent Du Vigneaud pela síntese de hormô-
dação do mecanismo enzimático da síntese do ATP e Jens C. nios polipetídeos.
Skou pela descoberta da enzima responsável pela síntese do • 1953 - MEDICINA: Hans Adolf Krebs e Fritz Albert Lipmann
ATP. pela descoberta do ciclo do ácido cítico e do papel da coenzima-
• 1994 - MEDICINA: Alfred G. Gilman e Martin Rodbell pela A.
descoberta das proteínas-G.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 1 - O que Estuda a Bioquímica? 12
• 1954 - QUÍMICA: Linus Carl Pauling pelo estudo nas ligações Para testar seus conhecimentos
químicas de biomoléculas.
• 1950 - MEDICINA: Edward Calvin Kendal, Tadeus Reichstein 1. O que estuda a Bioquímica?
e Philip Showalter pela descoberta dos hormônios da córtex a- 2. Qual a composição química dos seres vivos? Que
drenal. são biomoléculas?
• 1943 - MEDICINA: Henrik Carl Dam e Edward Adelbert 3. Quais as funções das biomoléculas?
Doisy pela descoberta da Vitamina K.
• 1948 - QUÍMICA: Arne Wilhelm Kaurin Tiselius pela pesquisa
4. Quantos aminoácidos são verdadeiramente essenci-
em eletroforese de proteínas plasmáticas. ais e não-essenciais? Justifique sua resposta.
• 1947 - QUÍMICA: Robert Robinson pelo estudo de bioquímica 5. Qual o destino dos aminoácidos no metabolismo
vegetal. hepático?
• 1947 - MEDICINA: Carls Ferdinand Cori, Gerty Theresa Cori 6. Organize um quadro com as formas de excreção do
e Bernardo Alberto Houssay pela pesquisa no metabolismo do
glicogênio e da glicose. nitrogênio protéico nas diversas classes de animais.
• 1946 - QUÍMICA: James Batcheller Sumner, Jonh Howard 7. Comente sobre a importância da lactose como fonte
Northrop e Wendell Meredith Stanley pelos estudos em enzi- de energia em mamíferos?
mas. 8. O que é hiper e hipoglicemia?
• 1939 - QUÍMICA: Adolf Friedrich Johann Buternandt pelo
estudo dos hormônios sexuais e Leopold Ruzicka pelo estudo
9. Porque há redução do peso corpóreo quando restrin-
de terpenos e polimetilenos. ge-se o consumo de carboidrato?
• 1938 - QUÍMICA: Richard Khun pela pesquisa com carotenói- 10. Porque um paciente diabético assemelha-se a um
des e vitaminas. paciente em jejum prolongado, no que diz respeito
• 1937 - MEDICINA: Albert Szent-Györgyi Von Nagyrapolt ao metabolismo energético?
pela descoberta do metabolismo energético celular.
11. Quais dos ganhadores (ou seus trabalhos) do Prêmio
• 1936 - MEDICINA: Hallert Dale e Otto Loewi pela descoberta
da trasnmissão química do impulso nervoso.
Nobel de Química e Medicina que trabalharam com
• 1937 - QUÍMICA: Walter Norman Haworth e Paul Karrern modelos bioquímicos, você já tinha ouvido falar?
pelo trabalho com carboidratos, carotenóides, vitaminas A, B2 Qual a molécula que mais prêmios deu a seus pes-
e C. quisadores?
• 1931 - MEDICINA: Otto Heinrich Warburg pela descoberta da
natureza da ação das enzimas respiratórias.
• 1930 - QUÍMICA: Hans Fisher pela pesquisa dos grupamentos
metálicos da hemoglobina e clorofila.
• 1929 - QUÍMICA: Arthur Harden, Hans Karl August Von Para navegar na Internet
Euler-Chelpin pelo estudo das enzimas fermentadoras de açú-
car. HomePage do Prof. Ricardo Vieira:
• 1929 - MEDICINA: Christiaan Eijkman e Frederick Gowlans http://www.fundamentosdebioquimica.hpg.com.br
Hopkins pelo estudo com vitaminas.
• 1928 - QUÍMICA: Adolf Otto Reinhold Windaus pelo estudo The World Wide Web Virtual Library: Biosciences:
de vitaminas. http://golgi.harvard.edu/biopages/all.html
• 1927 QUÍMICA: Heinrich Otto Wieland pelo estudo da
constituição dos ácidos biliares.
• 1923 - MEDICINA: Frederick Grant e John James Richard Revista Brasileira de Análises Clínicas:
Macleod pela descoberta da insulina. http://www.terravista.pt/aguaalto/1207/boyle.html
• 1922 - MEDICINA: Archibald Vivian Hilll e Otto Fritz Meye-
rhof por estudos do metabolismo muscular AllChemy Web- Química e Ciências afins:
• 1915 - QUÍMICA: Richard Martin Willstätter pela pesquisa
com clorofila.
http://allchemy.iq.usp.br/
• 1910 - MEDICINA: Albrecht Kossel por seu trabalho em
bioquímica celular com proteínas e substâncias nucléicas. The Nobel Prize Oficial Site:
• 1907 QUÍMICA: Eduard Buchner pela descoberta da fermenta- http://www.nobel.se/
ção celular.
• 1902 - QUÍMICA: Hermann Emil Fisher pela pesquisa em
síntese de carboidratos e purinas.
A Brief History of Biochemistry:
• 1901 - QUÍMICA: Jacobus Henricus Van't Hoff pela lei de http://www.wwc.edu/academics/departments/chemistry/courses
pressão osmótica. /chem431/lectures/introlect.html

Biomania:
http://www.biomania.com.br/mapasite/map.htm

Biochemistry On-Line:
http://www.biochemist.com/home.htm

Bioquímica y Biología Molecular en la Red:


http://www.yi.com/home/PerdigueroEusebio/bioquimica.html

Science: http://intl.sciencemag.org/

Nature: http://www.nature.com/

Ricardo Vieira
Capítulo 2
Bioquímica dos Alimentos
A evolução das espécies sempre se Acontece que os compostos alimenta-
apoiou em novas maneiras de se obter energia res são sintetizados em tamanha quantidade
das mais variadas fontes para assim melhor que esses seres se viram obrigados a armaze-
aproveitar as matérias primas que a natureza nar parte de dele e excretar o excesso junto
oferece aos seres vivos. Seres mais sofistica- com oxigênio (sem dúvida, um “lixo de luxo”
dos na forma de obter energia, têm-se mostra- deste processo metabólico). Entretanto, o apa-
do superiores nesta escala evolutiva e seus recimento de oxigênio livre na atmosfera de-
descendentes impõem-se na pirâmide evoluti- morou cerca de um bilhão de anos desde o
va. aparecimento dos primeiros organismos fotos-
Um grupo numeroso de seres vivos sintéticos, as cianobactérias, como pode ob-
especializou-se em captar a energia luminosa e servar nos registros geológicos.
convertê-la em energia química para sintetizar Somente após esse longo período outro
algumas moléculas energéticas: são os autó- grupo de seres vivos, especializou-se em obter
trofos. As matérias-primas bases para essa a energia necessária para suas reações orgâni-
síntese de alimentos eram compostos abundan- cas alimentando-se dos nutrientes produzidos
tes na atmosfera primitiva, como o gás carbô- pelos organismos autótrofos e o O2 da atmos-
nico (CO2), amônia (NH3), água (H2O). Com a fera: são os heterótrofos. As formas primitivas
ajuda de energia proveniente das radiações eram, entretanto, unicelulares, sendo necessá-
luminosas do sol, por fotossíntese, começou- rio mais um bilhão de anos para a organização
se a acumular um composto até então escasso em seres multicelulares mais complexos (Figu-
na atmosfera: o oxigênio (O2) que era expelido ra 2-1).
pelos organismos fotossintéticos como dejeto
metabólico.

Figura 2-1 - A idade da terra é estimada em cerca de 4,5 bilhões de anos, sendo proposto que por volta do primeiro bi-
lhão tenha surgido as primeiras células fotossintéticas autótrofas. No entanto, o O2 atmosférico necessário para o surgi-
mento dos autótrofos só torna-se disponível cerca de 2 bilhões de anos depois, devido à absorção do oxigênio produzido
pelo ferro da superfície da terra, fato comprovado pela existência de enormes depósitos de óxido de ferro nos sedimen-
tos mais antigos do planeta. Os seres muticelulares demoraram cerca de 3 bilhões para surgirem, o que mostra a dificul-
dade da organização celular parcialmente possibilitada pelo metabolismo aeróbio. (Adaptado de Biologia Molecular da
Célula - Albert B. et al., p.16, 1997.)
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 2 - Alimentos 14
Desta forma, começa-se a desenhar a Forma-se, então, um elo importante
complexa rede de relacionamento ecológico entre os seres vivos, construindo a complexa
entre produtores e consumidores, havendo teia alimentar que faz com que a Terra funcio-
total harmonia entre eles, uma vez que os ne como um gigantesco ser vivo e prossiga,
compostos nitrogenados produtos da degrada- lentamente, seus passos evolutivos.
ção dos heterótrofos eliminados para o meio O relacionamento entre consumidores e
(amônia, uréia, nitritos, nitratos) juntamente produtores está ligado à disponibilização de
com o CO2 produto das oxidações biológicas, carbono o oxigênio para os processos metabó-
passam a ser a principal fonte de matéria- licos, enquanto que os decompositores forne-
prima para a fotossíntese. cem, principalmente, o nitrogênio reciclado
Uma série de organismos especializou- dos tecidos mortos e dejetos, apesar de o ciclo
se em reciclar os dejetos metabólicos desses dos nitrogênio, carbono e oxigênio ser comum
organismos (p.ex.: fezes e urina), assim como para todos os seres vivos, de certa forma (Fi-
os seus corpos após a sua morte: os decompo- gura 2-2).
sitores)

Figura 2-2: O ciclo do carbono entre produtores (vegetal), consumidores (animal) e decompositores (fungos e bactérias).
Consumidores e produtores trocam entre si, principalmente, carbono e oxigênio enquanto que os decompositores reciclam o
nitrogênio.
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 2 - Alimentos 15
O ser humano, objeto de nosso estudo, (Vioult & Juliet); “Substâncias, em geral natu-
posiciona-se no topo desta teia alimentar, che- rais e complexas, que associadas às de outros
gando a mudar o ecossistema em prol de sua alimentos em proporções convenientes, são
sobrevivência, na procura da matéria-prima capazes de assegurar o ciclo regular da vida
para suas reações metabólicas. A despeito da de um indivíduo e persistência da espécie a
discussão ecológica, o conhecimento da estru- qual ele pertence” (Randon & Simonnet); “As
tura e funcionamento do corpo humano é ne- matérias, qualquer que seja a natureza, que
cessário para poder adaptar-se melhor às ad- servem habitualmente ou podem servir à nu-
versidades impostas pela evolução e, como trição” (Littré); “Substâncias necessárias à
tem feito, impor sua soberania entre as espé- manutenção dos fenômenos do organismo sa-
cies, sob o preço, infelizmente, da devastação dio e à reparação de partes que se faz cons-
do ambiente e a extinção de várias espécies. tantemente” (Claude Bernard); “Substância
Desta forma, o ato de obter substratos que, incorporada ou não ao organismo, nele
para as reações orgânicas básicas que ocorrem exerce função de nutrição” (Escudero).
no interior das células do organismo, em suma, Entretanto, o termo alimento possui
constitui o ato da alimentação. Basicamente, significado bastante complexo que ultrapassa
os nutrientes de origem alimentar são forneci- os limites da bioquímica devendo ser estudado
dos pelos carboidratos (açúcares), lipídios com um caráter multidisciplinar, uma vez que
(gorduras) e proteínas e possuem função pri- envolve a química, biologia, agronomia, vete-
mordial a produção de energia celular. Entre- rinária, nutrição, além das ciências da saúde.
tanto, essa concepção, puramente energética, Desta forma, a abordagem a ser realizada neste
pode cometer alguns equívocos uma vez que capítulo, diz respeito ao estudo da composição
muitas outras moléculas são requeridas para o química dos alimentos e da forma como é a-
funcionamento celular ou mesmo para propor- presentado para o metabolismo humano. Den-
cionar a absorção adequada dos nutrientes e tro deste ponto de vista, a digestão dos ali-
não estão envolvidas diretamente no processo mentos será abordada neste capítulo por se
de produção de energia. tratar de uma fase fisiológica adaptada às pro-
Assim sendo água, eletrólitos e vita- priedades dos alimentos. Nos capítulos corres-
minas, que não possuem uma função energéti- pondentes aos estudos de cada biomolécula,
ca direta, são alimentos indispensáveis para o serão abordadas peculiaridades de cada pro-
ser humano; precisam estar presentes na dieta cesso digestivo de interesse para o metabolis-
para suprir as necessidades diárias do orga- mo da biomolécula em questão.
nismo nas reações orgânicas uma vez que não
são sintetizados pelo organismo (a água pro- Classificação dos alimentos
duzida nas reações orgânicas supre apenas
cerca de 5% das necessidades diárias do ser Do ponto de vista biológico, os alimen-
humano). tos se agrupam em três classes:
De maneira semelhante, as fibras vege- a) Energéticos: são os que fornecem substra-
tais, que não possuem digestão intestinal não tos para a manutenção da temperatura cor-
sendo absorvidas, são indispensáveis na ali- pórea, liberando energia térmica necessária
mentação por manter a forma do bolo fecal, para as reações bioquímicas. São os carboi-
facilitando a absorção dos demais alimentos. dratos, lipídios e proteínas. Os carboidratos
Somente algumas bactérias e protozoários, são os alimentos energéticos por excelência,
presentes no sistema digestivo de ruminantes e pois são diretamente produzidos na fotos-
cupins, conseguem digerir as fibras vegetais síntese dos autótrofos e degradados em to-
(feitas, principalmente, de celulose) sendo, dos os organismos vivos, sem exceção, a
nestes animais, a principal fonte energética. partir de enzimas específicas. Os lipídios e
O conceito clássico de alimento varia as proteínas, apesar de possuírem poder e-
de acordo com o ponto de vista, como, por nergético superior ou igual aos carboidratos
exemplo: “A matéria prima para a fabricação (Tabela 2-1), têm funções outras no orga-
dos materiais de renovação do organismo” nismo, possuindo digestão e absorção len-
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 2 - Alimentos 16
tas, sendo utilizados secundariamente como cionando a concentração exata dos substra-
produtores de energia. tos (água), bem como agentes estabilizado-
Tabela 2-1: Calor de combustão e energia disponíveis res de várias enzimas ou mesmo regulando
nas fontes de alimentos mais importantes. a quantidade de água intracelular ou a exci-
tabilidade da membrana (minerais). Apesar
Calor de Combus- Oxidação de não serem digeridas ou absorvidas, as fi-
tão in vitro humana (in
(bomba calorimé- vivo) em bras vegetais desempenham função impor-
trica) em kcal/g kcal/g tante no processo digestivo, como será visto
Proteínas 5,4 4,1 (*) ainda neste capítulo.
Lipídios 9,3 9,3
Carboidratos 4,1 4,1
Etanol 7,1 7,1
Necessidade de alimentos
( )
* Oxidação das proteínas corrigidas pela perda dos
aminoácidos excretados na urina. O organismo requer nutrientes suficien-
Fonte: Harper, 1994, p. 608. tes para proporcionar energia livre correspon-
dente às necessidades diárias. A manutenção
A capacidade energética dos alimentos dá- do peso corporal constante é o melhor indica-
se devido ao alto calor de combustão das li- dor de que existe energia suficiente na dieta e
gações C-C (cerca de 54 kcal). No capítulo cada grupo alimentar fornece energia própria à
3 sobre Bioenergética, serão abordados te- sua composição química, com as necessidades
mas relativos ao poder calórico das biomo- individuais de energia dependendo de vários
léculas. fatores próprios do alimento e outros fatores
inerentes de quem se alimenta.
b) Plásticos ou estruturais: atuam no cresci- A ingestão dos nutrientes deve ser feita
mento, desenvolvimento e reparação de te- de forma balanceada de modo a permitir a ab-
cidos lesados, mantendo a forma ou prote- sorção sem carências ou excessos, pois caso
gendo o corpo. Novamente, proteínas, lipí- isso não seja observado, sobrevêm a desnutri-
dios e carboidratos são os principais repre- ção e a obesidade, respectivamente, que são
sentantes, estando presentes na membrana distúrbios patológicos oriundos da alimentação
celular e região intersticial. Em vegetais, o inadequada seja qualitativa ou quantitativa-
carboidrato celulose (um polímero de glico- mente.
se) representa o principal composto da pa- A desnutrição constitui-se um grave
rede celular que garante a forma da célula distúrbio alimentício inerente a ingestão de
vegetal, mesmo em períodos de excesso ou quantidades insuficientes para manter o meta-
escassez de água. O depósito cumulativo de bolismo basal. As substâncias de reserva são
celulose em algumas árvores apresenta re- rapidamente esgotadas e os subprodutos meta-
sistência comparada aos metais resistentes bólicos acarretam vários distúrbios que podem
como o ferro. A quitina é um polímero deixar seqüelas graves, apesar de, na maioria
muitíssimo parecido com a celulose (a ex- dos casos, o restabelecimento da dieta normal,
ceção de um grupamento -OH substituído promove a volta às condições de normalidade
por um NH2 no C2) e que confere extrema metabólica do indivíduo.
resistência ao exoesqueleto dos artrópodes. São comuns doenças nutricionais em
A água e os sais minerais representam os crianças (principalmente por um fator social,
componentes da alimentação que não são típico de países do terceiro mundo) e em adul-
exclusivos de organismos vivos, mais pos- tos em processo de emagrecimento espontâneo
suem funções estruturais importantíssimas. realizado por meio de dietas que levam em
consideração simplesmente a privação da ali-
c) Reguladores: aceleram os processos orgâ- mentação calórica.
nicos, sendo indispensáveis ao ser humano. Na ocorrência de desnutrição calórica
São as vitaminas, água, sais minerais e fi- associada a carência de proteínas, estabele-
bras vegetais. Favorecem a dinâmica celular cem-se as síndromes de má-nutrição conheci-
como catalisadores (vitaminas) ou propor- das como kwashiakor e marasmo.
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 2 - Alimentos 17
O kwashiakor é caracterizado por e- massa corporal mais rapidamente do que o
dema (devido a baixa quantidade de proteínas tempo que levou para perdê-la, e em quantida-
no sangue o que leva à retenção de água nos de, freqüentemente, superior àquela observada
tecidos), lesões na pele, despigmentação do antes da dieta.
cabelo, anorexia, hepatomegalia. É conse- Em adultos, o aumento da massa gor-
qüência ingestão inadequada de proteínas, durosa se dá pelo aumento do volume dos adi-
mesmo com quantidade suficiente de calorias. pócitos, o que torna o esvaziamento brusco, no
O marasmo caracteriza-se pela ausência de caso das dietas exageradas, um fator de flaci-
edema, para no crescimento e perda muscular dez para o tecido adiposo que fica propício a
extrema e é resultante de uma deficiência caló- ser reposto em seu volume quando termina a
rica prolongada com uma alimentação protéica dieta.
adequada. Freqüentemente, uma síndrome Desta forma, para o controle da obesi-
desnutricional resultante da combinação dessas dade (exceto para as formas geneticamente
duas doenças leva o indivíduo à morte. determinadas) o controle da massa corporal só
A obesidade, por outro lado, corres- é possível por um programa de reeducação
ponde a uma doença dos maus hábitos alimen- alimentar aliado a incorporação de hábitos de
tares, onde o excesso de lipídios e carboidratos atividades físicas para “queimar” o excesso de
(que se convertem em lipídios no fígado, como alimentos calóricos ingeridos diariamente.
veremos em capítulos posteriores) leva a um Na figura 3-1 está apresentada a fórmu-
acúmulo de lipídios nos adipócitos acima dos la de cálculo do índice de massa corporal
níveis normais de massa corpórea para o indi- (IMC) e as faixas de limite inferior e superior
víduo. Este acúmulo promove a duplicação do do peso ideal para um indivíduo, levando em
número de adipócitos favorecendo o aumento consideração sua altura e peso.
da massa corpórea além nos limites normais
para o indivíduo. Isso se dá devido ao tipo de
tecido adiposo existente nas primeiras fases da peso (kg)
IMC =
vida, o tecido adiposo multilocular ou verme- [altura (m)]2
lho, que desaparece rapidamente podendo ≤ 18,5 = subpeso 18,5 – 24,9 = normal
permanecer, entretanto, até a adolescência. 25 – 29,9 = sobrepeso >30,0 – 39,9 = obeso
Já no início da maturação sexual, entre- ≥ 40 = obeso grave (obesidade mórbida)
tanto, há somente o tecido adiposo do tipo
unilocular ou amarelo, que não mais se dupli- Limite inferior de peso: 20 x [altura (m)]2
Limite superior de peso: 25 x [altura (m)]2
ca, mas aumenta de tamanho até 100 vezes
levando a um aumento no volume do tecido Figura 2-3 - Fórmula de cálculo de índice de massa
adiposo sem, no entanto, o aumento no núme- corpórea (IMC) e limites de peso a partir do peso e
ro de células. altura de um indivíduo.
Um fato interessante é observado (Fonte: software Biobrás para consultas médicas -
quando um pré-adolescente obeso é submetido http://www.biobras.com.br)
a dieta hipocalórica e perde uma quantidade
significativa de massa corporal em um curto Alguns tipos de câncer estão intima-
período. Nestes casos, é observado o esvazia- mente relacionados com o tipo de dieta, como
mento progressivo das reservas de lipídios dos o câncer de esôfago, estômago, intestino gros-
adipócitos, sendo este estímulo desencadeante so, mama, pulmão e próstata. Aparecem, ge-
do processo de divisão celular o que faz com ralmente, entre os 70 e 80 anos sendo que 15%
que haja um número maior de adipócitos após têm sobrevida de 5 anos.
o término da dieta, apesar de conterem menos Outros fatores ambientais e genéticos
lipídios do que anteriormente. Entretanto, esse influenciam na gênese desses tipos de câncer,
número duplicado de adipócitos permite uma porém é observado que em países onde a inci-
maior absorção de lipídios quando o indivíduo dência de um tipo de câncer é baixa observa-se
retorna às condições alimentícias normais an- que os imigrantes para países onde a incidên-
terior à dieta, fazendo com que aumente a cia do câncer á alta, passam a ter um aumento
na incidência da doença, o que sugere a rela-
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 2 - Alimentos 18
ção do surgimento da doença com fatores cul- Balanceamento de alimentos
turais do país, como é o caso dos tipos de ali-
mentação. Para manter o equilíbrio do peso corpó-
A cárie dentária é um exemplo típico reo, uma dieta balanceada deve conter alimen-
de doença causada pelo acúmulo de alimentos tos de origem animal e vegetal composta dos
na cavidade bucal, nos espaços interdentários, vários tipos de biomoléculas, disposto de for-
que possibilita às bactérias e fungos da flora ma balanceada para suprir as necessidades
oral e àquelas presente na alimentação, prolife- energéticas do indivíduo.
rem e produzir produtos abrasivos (p.ex.: ácido Os carboidratos e lipídios são primari-
láctico, etanol, aminas) que destroem progres- amente calóricos, devendo ser distribuído com
sivamente a dentina dando origem à cárie. As parcimônia na alimentação. As proteínas pos-
proteínas são utilizadas pelas bactérias para suem alto valor biológico quando possuem
produzir uma matriz viscosa que se fixa aos grande variedade de aminoácidos. As vitami-
dentes (placa bacteriana) que permite a prolife- nas e minerais são requisitadas em pequenas
ração de microorganismos para a produção dos quantidades diárias. A água tem um volume
produtos abrasivos. diário de acordo com a perda por evaporação,
Muitas outras doenças estão relaciona- urina e fezes. Os alimentos disponíveis para o
das a distúrbios alimentares, dentre elas desta- ser humano são agrupados, de forma didática,
cam-se: em cinco grupos:
• Úlceras: relacionada com fatores alimenta-
• Grupo I - Leite e derivados: ricos em
res, genéticos e psicológicos. proteínas de alto valor biológico, grande
• Obstrução pilórica: por contração de uma
quantidade de cálcio, vitaminas A, D, E e
úlcera, processo tumoral ou anomalia con- do complexo B.
gênita e é caracterizada por vômitos, dis- • Grupo II - Carnes, ovos, peixes e maris-
tensão abdominal e acidose metabólica por cos - ricos em proteínas de alto valor bio-
perda de ácido clorídrico; lógico, ferro, vitamina A e do complexo B.
• Síndrome de Zollinger-Ellison: úlcera
• Grupo III- Gorduras e óleos.
péptica causada por um tumor pancreático; • Grupo IV - Cereais e derivados, legumes
• Anorexia: distúrbio nervoso que induz a
secos e produtos açucarados : ricos em
fobia de ganhar peso. carboidratos de carbono, proteínas de ori-
• Bulimia: relacionada com compulsão para
gem vegetal (baixo valor biológico), ferro,
comer forçando o paciente a estimular o vitamina B1 e fibras.
vômito para poder comer mais. • Grupo V - Hortaliças e frutos: ricos em
• Anemia perniciosa: acloridria e atrofia
vitaminas, minerais e fibras, com quanti-
gástrica promovem a incapacidade de se- dades variáveis de carboidratos.
cretar o fator intrínseco de absorção da vi-
tamina B12, fato comum em indivíduos Para distribuir os vários grupos de ali-
anorexígenos. mentos dentre as refeições diárias, pode-se
• Síndromes de má-absorção: devido a le-
estabelecer porções correspondentes a uma
sões na mucosa gastrointestinal que pode xícara de chá (cerca de 200 ml).
ser causada por microorganismos presentes • Grupo I: 2 a 3 porções
nos alimentos; • Grupo II: 1 a 2 porções
• Esteatorréia: falha na digestão ou absor-
• Grupo III: 2 a 3 porções
ção dos lipídios; • Grupo IV: 5 a 7 porções
• Diarréia: produção excessiva de matéria
• Grupo V: 5 a 7 porções
fecal por excesso de água nas fezes.
A orientação nutricional, entretanto,
depende de avaliação clínica de doenças que
podem ter complicações com a alimentação de
certos grupos de alimentos (p.ex.: hipercoles-
terolemia, diabetes mellitus).
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Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 2 - Alimentos 19

Necessidades calóricas aumenta-se o gasto energético para que o


organismo mantenha-se em temperatura es-
A energia gasta por um indivíduo de- tável (35 - 37oC) o mesmo acontecendo
pende, principalmente dos seguintes fatores: quando a temperatura ambiente está acima
da temperatura corporal, sendo que o ser
a) Taxa basal metabólica: é a quantidade de humano resiste bem mais a variações de
energia necessária para a manutenção das temperatura para menos do que para mais,
funções fisiológicas básicas sob condições uma vez que o calor passa a ser quase insu-
padronizadas. Para se estabelecer os valores portável a partir de 35oC em virtude de as
basais, o indivíduo deve estar em repouso, trocas calóricas com o meio ambiente se
acordado, num ambiente de temperatura a- tornarem mais difíceis. Entretanto, há regis-
dequada e as medidas devem ser feitas pelo tro de seres humanos que resistem a inver-
menos 12 horas após a última refeição. Esta nos com temperaturas de até –50oC, o que é
taxa é proporcional ao peso corpóreo e à á- compreensível pela existência de moléculas
rea corporal (quanto maior a área corporal, energéticas disponíveis para mantê-lo aque-
maior a perda de calor); nos homens e nos cido, além de aparatos de proteção, é claro.
jovens é maior que nas mulheres e idosos
em virtude de suas atividades metabólicas As atividades metabólicas diárias vari-
serem diferentes (há uma diminuição média am de acordo com a atividade física exercida
de 2% na taxa basal metabólica por cada 10 pelo indivíduo e seu IMC, tendo, portanto,
anos de vida, com o tecido muscular substi- cada indivíduo uma necessidade calórica dife-
tuído por gordura e água). Outras atividades rente. Na Tabela 2-2 podem ser observados
metabólicas indicam gasto de energia au- valores gerais propostos pela Sociedade Euro-
mentado, como o caso de atividade mental e péia de Cardiologia de acordo com o tipo de
doenças (principalmente com febre). atividade física diária.

Tabela 2-2: Necessidades calóricas diárias, de acordo


b) Efeito termogênico: os alimentos possuem com o tipo de atividade física.
uma taxa de, aproximadamente, 5 a 10% de ATIVIDADE NECESSIDADES
energia total fornecida que é gasta para ser FÍSICA CALÓRICAS DIÁRIAS
digerida, o que vai variar de alimento para Sedentária/Repouso 30 kcal /Kg de peso desejável (*)
alimento, dependendo de sua digestibilida- Ligeira/moderada 35 kcal /Kg de peso desejável
de. Desta forma, uma determinada quanti- Intensa 45-55 kcal /Kg de peso desejável
( )
dade de um alimento pode ter um rendi- * Peso desejável de acordo com o índice de massa
mento energético final menor do que a corpórea (IMC).
Fonte: Sociedade Européia de Cardiologia.
mesma quantidade de um outro alimento
que possua uma digestibilidade melhor. Ou- As necessidades de atletas ou de pesso-
tro fator que influencia neste poder termo- as que praticam atividade física intensa variam
gênico é o metabolismo da biomolécula, o grandemente de acordo com o tipo de ativida-
que faz com que uma alimentação superca- de física (Tabela 2-3). Caso não se observe o
lórica seja convertida em massa gordurosa nível de energia gasta, o indivíduo corre o ris-
que se deposita nos adipócitos e não é, ver- co de perder peso ou ter hipotrofia muscular.
dadeiramente, convertida em energia, a me- Tais atividades físicas, contudo, são ampla-
nos que o indivíduo realize exercícios físi- mente utilizadas em programa de perda de
cos além de sua quantidade normal. peso associados à dieta correspondente ao peso
ideal do indivíduo. Deve-se ter o cuidado de
c) Atividade física: é a maior variável, quanto observar o progresso da perda de peso e dosar
maior a atividade física, maior será a ener- os exercícios e dieta quando atingido o peso
gia gasta pelo indivíduo. ideal.
d) Temperatura ambiente: quanto a tempera-
tura está abaixo da temperatura corporal,
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 2 - Alimentos 20
Tabela 2-3: Consumo aproximado de energia (em kilo- físicas de deslocamento. Para maiores conside-
calorias) em cerca de uma hora de atividade esportiva. rações acerca do poder energético dos alimen-
Atividade Esportiva Energia Gasta tos, veja o capítulo 9 sobre Bionergética.
(kcal/hora)
Bicicleta ergométrica 250
Passeio de bicicleta 290 Necessidades de fibras
Caminhada 300
Tênis de mesa 300 Um dado importante na alimentação é a
Ginástica aeróbica 350
presença de fibras vegetais mesmo que, classi-
Ciclismo 490
Tênis 500 camente, não sejam consideradas alimento, já
Voleibol 500 que não são absorvidas no trato gastrintestinal
Halterofilismo 500 não possuindo, portanto, função na bioquímica
Handebol 520 intracelular. Entende-se por fibras todos os
Balé 550 constituintes das paredes celulares dos vege-
Basquetebol 600 tais que não podem ser digeridos pelas enzi-
Remo 600
Futebol 650
mas animais (p.ex.: celulose, hemicelulose,
Natação 650 lignina, gomas, pectinas e pentosanos). Nos
Judô 800 herbívoros, tais como os ruminantes, as fibras
Boxe 800 (significativamente a celulose) são as princi-
Corrida de 12 km 900 pais fontes de energia, após serem digeridas
Fonte: Sociedade Européia de Cardiologia. por microrganismos (bactérias e protozoários)
existentes no trato digestivo desses animais.
Na Tabela 2-4, pode-se observar que as No homem, dietas com alto conteúdo
necessidades energéticas variam dentre os se- de fibras exercem efeitos benéficos por auxili-
xos. Assim como as mulheres grávidas, as ar na retenção de água durante a passagem do
crianças lactentes possuem uma necessidade alimento através do intestino e ainda produ-
calórica maiores que os adultos levando-se em zindo maiores quantidades de fezes macias,
consideração as relações de IMC, bem como facilitando o trânsito intestinal e o processo
as necessidades diárias de proteínas variam de digestivo como um todo. Uma alta quantidade
cerca de 0,8g/kg de peso corporal/dia em adul- de fibras na dieta está associada com incidên-
tos e 2,0g em crianças. cias reduzidas de diverticuloses, câncer de
cólon, doenças cardiovasculares e diabetes
Tabela 2-4: Necessidades calóricas diárias recomenda-
mellitus.
das para homens e mulheres.
As fibras mais insolúveis, tais como a
Categoria Idade Peso Energia neces-
(anos) (Kg) sária (kcal) celulose e a lignina, encontradas no grão de
Homens 23 - 50 70 2.300 - 3.100 trigo, são benéficas com respeito à função do
Mulheres 23 - 50 55 1.600 - 2.400 cólon, enquanto as fibras mais solúveis encon-
Grávidas - - + 300 tradas nos legumes e frutas (p.ex.: gomas e
Lactentes - - + 500 pectinas) diminuem o colesterol plasmático,
Fonte: Harper, 1994, p.608 possivelmente pela ligação com o colesterol e
sais biliares da dieta. As fibras solúveis tam-
Observe que a quantidade de energia de bém esvaziam o estômago lentamente e deste
um homem adulto de peso e alturas médias, modo atenuam o aumento da glicose e, conse-
pode atingir cerca de 3.100 kcal, o que corres- quentemente, a secreção de insulina, sendo
ponde a um aporte energético enorme. Para este esse efeito benéfico aos diabéticos e às
efeito de comparação, a queima de um grama pessoas que estão de regime alimentar porque
de gasolina produz 11,5 kcal, o que significa diminui o efeito da queda brusca no nível de
que teríamos que gastar cerca de 269g (cerca glicose sangüínea, que estimula o apetite. as
de 300 ml) de gasolina diariamente para gerar principais fontes de fibras são os cereais (prin-
este calor, o que mostra a "economia" de nossa cipalmente o trigo, a aveia e o arroz integral),
alimentação diária e quão caro é manter um amêndoa, coco, castanha-do-pará, feijão, espi-
automóvel para substituir nossas atividades
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Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 2 - Alimentos 21
nafre, amora, uva, banana, bagaço de laranja Tabela 2-5: Relação dos aditivos alimentares e seus
etc. respectivos conceitos.
Um excesso de fibras, entretanto, deve Função Aditivo Conceito
ser evitado pois se ligam com micronutrientes Agentes de mantêm firmes ou cro-
firmeza cantes frutas e hortaliças
(Zn++ e vitaminas lipossolúveis, por exemplo)
ou fortalecem géis.
evitando sua absorção. Desta forma, a ingesta Agentes de aumentam do volume
diária está restrita a cerca de 25 – 30g, modifi- corpo sem modificar o valor
cando-se para mais, de acordo com a sua utili- energético.
zação como terapia, devendo-se, sempre, ser Antiespuman- evitam a formação de
observado a reposição vitamínica necessária tes espuma.
Antiumectan- diminuem as proprieda-
para evitar doenças carenciais. tes des de absorção de água.
Tecnologia Emulsifican- permitem a mistura de
Alimentos industrializados de
fabricação
tes fases insolúveis entre si.
Espessantes aumentam a viscosidade.
Espumantes favorecem a formação ou
Uma característica da alimentação hu- manutenção de fase ga-
mana é que há imensa manipulação antes do sosa.
consumo, com o uso de agrotóxicos, conser- Estabilizantes mantêm estáveis emul-
vantes químicos, extração de gorduras, adição sões.
de nutrientes etc. Gelificantes conferem a textura de
gel.
O processo de industrialização visa, ba-
Seqüestrantes formam complexos quí-
sicamente, conservar as propriedades nutricio- micos com íons metáli-
nais e organolépticas dos alimentos por um cos, inativando-os.
período bastante prolongado, o que, freqüen- Fermentos aumentam o volume com
temente, promove a perda de vários nutrientes. químicos a liberam gás.
As vitaminas, por exemplo, são quase que to- Glaceantes dão aparência brilhante.
Melhoradores melhoram o processo
talmente destruídas pelo calor, outras são foto- de farinha técnico de produção de
lábeis e muitas não resistem ao congelamento, farinhas.
o que faz com que seja necessário adicioná-las Antioxidantes retardam a oxidação dos
após durante a industrialização dos alimentos. alimentos.
Os aditivos alimentares são, portanto, Conservado- retardam a ação de mi-
Conservante res croorganismos
substâncias naturais ou sintéticas, adicionadas
Umectantes protegem contra a desi-
aos alimentos com o fim de os conservar, pro- dratação.
cessar, intensificar o sabor ou melhorar o as- Reguladores controlam a variação de
pecto, largamente utilizado pela indústria ali- de acidez pH.
mentar e uma constante na dieta humana. Os Acidulantes aumentam a acidez e/ou
principais são os conservantes, antioxidantes, Modificação conferem sabor ácido.
das caracte- Edulcorantes conferem sabor adocica-
corantes, intensificadores de sabor, edulcoran- rísticas sen- do.
tes, reguladores de acidez, emulsionantes, es- soriais Estabilizantes mantêm a coloração.
tabilizadores e espessantes. Na Tabela 2-5 de cor
encontram-se relacionados as classes de aditi- Corantes conferem, intensificam
vos e seus respectivos conceitos e na Tabela 2- ou restauram a coloração
6 os principais aditivos alimentares. natural.
Aromatizan- conferem ou reforçam
Durante o processo tecnológico, são u- tes aromas e/ou sabor.
tilizados compostos químicos que devem ser Realçadores ressaltam o sabor e/ou
totalmente eliminados do produto final, ou de aroma aroma.
permanecer como traços. São denominados de Fonte: Resoluções do MERCOSUL.
coadjuvantes de tecnologia de fabricação e
correspondem a clarificantes, coagulantes, Em todos os países, existe uma legisla-
antimicrobianos, floculantes, inibidores enzi- ção extremamente exigente que limita a quan-
máticos, catalisadores, detergentes, resinas etc. tidade de aditivos no alimento industrializado

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 2 - Alimentos 22
devido à existência de efeitos tóxicos severos • Bioflavonóides: frutas, vinho tinto, chá,
devido ao consumo exagerado. café.
Os edulcorantes sacarina (400x mais
doce que a sacarose) e o ciclamato (30x mais Alguns antioxidantes sintéticos como o
doce que a sacarose) chegaram a ser proibidos BHA (OH-anisol-butilado), o BHT (OH-
em 1970 nos EUA devido a estudos que indi- tolueno butilado), o TBHQ (OH-quinona buti-
cavam propriedades carcinogênicas, sendo lada) e os derivados do ácido gálico apresen-
readmitidos na década seguinte em níveis se- tam efeitos tóxicos e mutagênicos quando em
guros de ingestão diária aceitável (IDA). O doses altas em estudos em in vivo, sendo re-
aspartame (180x mais doce que a sacarose), comendado baixos valores para a IDA.
apesar de não apresentar efeitos tóxicos ou Conservantes como o ácido benzóico
mutagênicos, seus metabólitos (ácido aspárti- e sulfitos possuem largo uso na industrializa-
co, fenilalanina e metanol) podem apresentar ção de alimentos e somente em altas concen-
efeitos colaterais quando consumido em ex- trações podem induzir a reações alérgicas ou
cesso. A fenilalanina produzida contra-indica o destruição celular da mucosa intestinal. Da
uso desse adoçante em pacientes com o erro mesma forma, os aromatizantes naturais são
inato do metabolismo conhecido como fenilce- preferíveis aos sintéticos.
tonúria, uma vez que não podem metabolizar O benefício trazido para a sociedade
esse aminoácido tendo complicações neuroló- com o advento da industrialização dos alimen-
gicas severas. Em indivíduos normais, entre- tos é inegável, porém o cuidado com o uso
tanto, a observação da IDA DE 40mg/kg não indiscriminado de produtos tóxicos, mesmo
possui quaisquer efeitos colaterais. em baixas quantidades, pode trazer problemas
Os antioxidantes, em particular, pos- em longo prazo por efeito cumulativo, o que
suem uma função intracelular importante de- favorece a idéia de manter-se na dieta diária
vido a muitos compostos que possuem poder uma grande quantidade de produtos frescos ou
oxidante podem promover alterações irreversí- de confecção caseira.
veis em biomoléculas (p.ex.: ácidos graxos,
DNA, enzimas) de função essencial à vida o Tabela 2-6: Principais funções de aditivos em alimen-
que possibilita o aparecimento de doenças co- tos
mo o câncer, aterosclerose etc. Para tal, as Função Aditivos Alimentos
células têm a capacidade de produzir compos- Conservação ácido propiônico, pão, queijos, mar-
benzoatos, BHA, garinas, óleos, ge-
tos antioxidantes que neutralizam a ação dano-
BHT, nitrito de léias, picles, carnes
sa desses produtos tóxicos sódio, ácido cítri- processadas.
Freqüentemente, entretanto, há a neces- co.
sidade obtê-los de fontes alimentícias para Tecnologia alginatos, lecitina, misturas para bolo,
garantir um estado de saturação plasmática que de fabricação pectina, metil- balas, molhos para
impeça ou retarde o desenvolvimento de certas celulose, goma- saladas, maionese,
guar, citrato de leite de coco, sorve-
doenças (não confundir este alimentos, com os sódio, polissorba- tes, queijos proces-
antioxidantes utilizados como conservantes de tos, polifosfatos. sados.
alimentos). Modificação aspartame, sacari- sorvetes, iogurtes,
As principais biomoléculas presentes das caracte- na, baunilha, β- balas, pós para
nos alimentos com esta propriedade são: rísticas senso- caroteno, gelatinas, refrige-
riais glutamato de rantes, sopas.
• Vitamina C: frutas e legumes (citrinos,
sódio, eritrosina.
morangos, pimentos etc.).
Fonte: Toledo, MCF., 1999 In: Fundamentos de Toxi-
• Beta-caroteno (precursor da Vitamina cologia, pág.409.
A): frutas e vegetais de cores fortes (ce-
nouras, abóbora, alperces, legumes de fo-
lha verde etc.).
• Vitamina E: óleos vegetais, oleaginosas,
gérmen de trigo, sementes.
• Selênio: peixe e mariscos.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 2 - Alimentos 23

Digestão e absorção meio de comunicação celular, há problemas


graves para a manutenção da vida, podendo
A forma de introduzir o alimento no levar à lesões irreversíveis ou até a morte
organismo é por via oral, sendo admitido, em (p.ex.: a produção de corpos cetônicos em ex-
determinadas situações patológicas, a alimen- cesso pelas células de pacientes diabéticos; a
tação parenteral, por via endovenosa. Este excreção de hidrogênios em demasia durante a
padrão é reservado aos animais de organização fadiga muscular).
celular complexa onde a existência de um tubo O alimento contém os mais variados
digestivo com entrada (boca) e saída (ânus) é tipos de compostos macromoleculares que
bastante freqüente tanto em invertebrados precisam ser processados até um tamanho ade-
quanto nos vertebrados. Bactérias, fungos e quado para a sua absorção e aproveitamento
protozoários obtêm os alimentos do meio por pelo organismo. A maioria dos alimentos sofre
difusão direta através de processo seletivo e- um processo enzimático no trato digestivo,
xercido pela membrana celular que possui pa- sendo que a sede de maior ação digestiva e
pel decisivo também na excreção dos produtos absorção ocorre no intestino delgado. Aliado a
inservíveis à célula (p.ex.: CO2, NH3 etc.). essa ação enzimática, a ação mecânica exerci-
Não obstante, os seres unicelulares da pelos músculos lisos do estômago e intesti-
também possuem certa semelhança a este mo- no, promove a homogeneização do bolo ali-
delo, uma vez que vários protozoários possu- mentar, facilitando a ação enzimática. Em ca-
em uma entrada diferenciada. Os processos de pítulos posteriores, serão abordados os aspec-
fagocitose e pinocitose e os vacúlos digestivos tos mais específicos deste processo, cabendo,
são formas primitivas desses organismos uni- agora, apenas uma abordagem introdutória do
celulares realizarem a degradação de alimentos assunto.
em moléculas mais simples adequadas ao me- Na boca ocorre o início do processo di-
tabolismo intracelular. O fato de os organis- gestivo com a amilase salivar (ptialina ou
mos unicelulares liberarem seus catabólitos α(1Æ4) glicosidase) degradando o amido e o
diretamente para o meio extracelular leva a glicogênio, quando presente (uma vez que
uma saturação do meio ambiente em que cres- desaparece rapidamente dos alimentos após o
cem modificando as propriedades químicas do abate dos animais). Este processo é incompleto
meio podendo torná-lo insuportável para a devido o pouco tempo que o alimento passa na
manutenção da vida. É o que acontece em um boca e a amilase ser incapaz de quebrar as
meio de cultura de bactérias in vivo onde a ligações α (1Æ6) existentes entre as moléculas
produção de ácidos (principalmente o láctico) de glicose. No estômago, a ação do HCl inati-
leva à morte das bactérias, caso não haja a va a amilase salivar, havendo o término da
renovação do meio de cultura. digestão no intestino delgado, sob a ação das
Os organismos multicelulares não po- enzimas do suco pancreático, pela ação da
dem “livrar-se” de seus catabólitos da mesma amilase pancreática. Os demais carboidratos
maneira, uma vez que a morte das células vi- serão degradados por enzimas específicas (as
zinhas compromete a vida o organismo como dissacaridases e oligossacaridases) presentes
um todo. Desta forma, surge a organização de no suco entérico liberado pelas células de
um complexo sistema de digestão, transporte Brunner e Liberkühn, no intestino delgado. Na
de nutrientes e excreção realizados em tubos verdade, devemos considerar a digestão na
celulares (veias, artérias, vasos linfáticos, vias boca apenas como uma possibilidade e não
respiratórias, tubo digestivo) e órgãos anexos como um fato pois seriam necessários cerca de
especializados (estômago, fígado, rins, cora- seis minutos para digerir um grama de amido
ção, pulmões) trabalhando integrados de ma- na boca, o que tornaria a alimentação um pro-
neira a preservar o equilíbrio da composição cesso extremamente lento.
do meio extracelular dos tecidos (líquido in- As proteínas começam a ser digeridas
tersticial) e, por conseguinte, do meio intrace- no estômago através de um processo químico-
lular, evitando a morte celular. Em certas con- corrosivo no estômago pela ação do HCl gás-
dições patológicas onde se perde este eficaz trico e também enzimático pela pepsina gástri-
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 2 - Alimentos 24
ca e da renina (importantes em lactentes por Um resumo das ações digestivas pode
promover a coagulação das proteínas do leite ser observado na Tabela 2-5.
na presença de Ca++). No Intestino delgado, as
enzimas proteolíticas do suco pancreático con- Para ter uma visão geral do processo de
tinuam a digestão através de endopeptidases absorção dos nutrientes, observe os itens abai-
(quebram as ligações peptídicas do meio da xo:
molécula em ligações específicas: tripsina, Carboidratos:
quimotripsina e elastase) e exopeptidades • são absorvidos somente na forma de mo-
(quebram as extremidades das moléculas: car- nossacarídeos;
boxipeptidases). No suco entérico, há o térmi- • glicose, galactose e frutose são absorvidos
no da digestão das proteínas com a ação de mediante mecanismos específicos de
uma exopeptidase que quebra a partir da ex- transporte ativo (contra gradiente de con-
tremidade aminoterninal, a aminopeptidase. centração, com gasto de ATP);
Os lipídios são digeridos enzimatica- • há absorção preferencial de glicose pelas
mente no intestino pela lipase pancreática, células intestinais;
após um processo de emulsificação pela bile. • são drenados pelo sistema porta hepático;
Uma lipase lingual é secretada pelas células da • após a absorção, o fígado libera parte da
base da língua porém não faz parte da saliva, glicose para a corrente sangüínea e promo-
sendo deglutida para o estômago onde é inati- ve a conversão da glicose em excesso em
vada, não possuindo, portanto, função digesti- glicogênio;
va importante. Desta forma, a lipase gástrica • a glicose sangüínea corresponde ao princi-
descrita por alguns autores também não possui pal carboidrato circulante. Alguns outros
ação digestiva significativa (provavelmente monossacarídeos são identificado em
corresponde à própria lipase lingual e não uma quantidades muito pequenas, sendo resul-
enzima produzida pelo estômago). Assim sen- tantes de reações tautoméricas espontâneas
do, a ação digestiva do estômago sobre os lipí- da molécula da glicose.
dios resume-se à ação peristáltica sobre o bolo
alimentar, formando uma mistura homogênea Proteínas:
rica em gorduras. O colesterol não sofre de- • são absorvidos na forma de dipeptídeos e
gradação em sua estrutura básica, sendo ape- de aminoácidos;
nas separado das lipoproteínas que os transpor- • os dipeptídeos são absorvidos mais rapi-
tam ou de outros ácidos graxos ao qual estejam damente que os aminoácidos, devido à e-
esterificados. Somente os tri-acil-gliceróis e os xistência de mecanismos especiais de
demais lipídios esterificados, sofrerão ação da transporte;
lipase pancreática, com a liberação dos ácidos • na superfície da mucosa intestinal se loca-
graxos constituintes, glicerol e outros compos- liza um grande número de mecanismos es-
tos que façam parte da composição lipídica. pecíficos de absorção para vinte diferentes
Os ácidos nucléicos não possuem gran- aminoácidos;
de importância na alimentação, uma vez que • são drenados pelo sistema porta hepático;
são bio-sintetizados. No estômago há a separa- • fígado procede a síntese das inúmeras pro-
ção das nucleoproteínas, havendo a digestão teínas plasmáticas a partir dos aminoácidos
por ribonucleases e desoxirribonucleases do absorvidos na alimentação. Os aminoáci-
suco pancreática e de nucleosidases e fosfata- dos não-essenciais são sintetizados pelo fí-
ses do suco entérico. O interessante é que há gado, o que faz com que o excesso da ali-
um processo de excreção, como ácido úrico, mentação seja convertido a uréia (pela reti-
de parte das bases nitrogenadas adenina e gua- rada do grupamento amino) e haja o apro-
nina presentes na alimentação, ainda na muco- veitamento da cadeia carbonada em pro-
sa intestinal. As demais bases são absorvidas cessos metabólicos como a neoglicogênese
na forma de nucleotídeos e são degradados no ou o metabolismo energético.
fígado em suas formas catabólicas.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 2 - Alimentos 25
Tabela 2-5: Resumo das ações digestivas dos prin- • os ácidos graxos de cadeia curta não são
cipais materiais alimentícios. reesterificados, ingressando rapidamente
Material Ação digestiva Produto final na circulação porta, fixando-se à albumina;
alimentício
Amido e gli- amilase salivar e maltose + gli-
• as vitaminas lipossolúveis (A, D, E e K)
cogênio pancreática cose são absorvidas juntamente com os lipídios,
Dissacarídeos dissacaridases enté- monossacarí- sendo que sua absorção depende de uma
ricas deos absorção lipídica normal. A absorção da
Monossacarí- nenhuma - vitamina K é modificada pela ingestão e
deos metabolismo do cálcio.
Proteínas 1. ácido clorídrico e 1. polipeptí-
pepsina gástrica deos grandes
2. tripsina, quimo- 2. polipeptí- Água e eletrólitos:
tripsina e carboxi- deos, dipeptí- • a água tem absorção maior na mucosa do
peptidades pancreá- deos e intestino grosso;
ticas aminoácidos. • sódio é absorvido por mecanismo de trans-
3. aminopeptidase 3. aminoácidos.
entérica
porte ativo ligado a absorção de aminoáci-
Tri-acil- emulsão com bile, ácidos graxos e dos, bicarbonato e glicose;
gliceróis hidrólise pela lipase glicerol • transporte do cálcio está relacionado com a
(triglicerídeos) lingual (gástrica) e vitamina D e o hormônio paratireóide,
pancreática (*) sendo regulado por uma proteína fixadora
Colesterol separação das lipo- - de cálcio nas células intestinais;
proteínas de trans-
porte. Sua molécu- • ferro é absorvido após ser reduzido pelo
la, porém, não sofre ácido clorídrico gástrico sendo transporta-
processo digestivo do pelas células da mucosa intestinal antes
Ácidos nu- nucleases pancreá- nucleosídeos de se ligarem às proteínas transportadoras
cléicos ticas e entéricas plasmáticas. Há um limiar para o transpor-
(*) A ação da lipase pancreática é a mais importante, te na mucosa, sendo que há um limite de
com a lipase lingual exercendo sua função apenas no
estômago (= lipase gástrica) e com baixa atividade de-
saturação pela mucosa intestinal.
vido ao pH extremamente ácido (<2,0) do suco gástrico.
Ácidos graxos: Ácidos nucléicos:
• após a digestão, as micelas são absorvidas • são absorvidos na forma de nucleotídeos a
pela mucosa intestinal indo a parte corres- nível intestinal, sendo que grande parte das
pondente aos ácidos biliares para a circula- purinas (adenina e guanina) é convertida
ção porta hepática; em ácido úrico ainda na mucosa intestinal
• os ácidos graxos e os monoglicerídeos são e excretado pelas fezes;
absorvidos pela célula intestinal por difu- • ácido úrico presente no sangue correspon-
são; de ao decorrente da degradação das purinas
• os ácidos graxos de cadeia longa (acima de no fígado. Quando há um defeito hereditá-
16 carbonos) são reesterificados (num pro- rio com hiperatividade da síntese de ácido
cesso denominado síntese "de novo") para úrico, caracteriza-se uma doença genética
formar novos tri-acil-gliceróis, que se fi- muito comum conhecida como gota.
xam a apoliproteínas dando origem aos
quilomícrons;
• essas lipoproteínas (quilomícrons) são dre-
nados para o sistema linfático e transpor-
tadas para o duto torácico;
• uma vez que não vão ao fígado, há a depo-
sição dos tri-acil-gliceróis reesterificados
nos adipócitos só sendo degradados no
processo metabólico energético quando
houver a carência de carboidratos ou o
aumento da necessidade energética;
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 2 - Alimentos 26
EXERCÍCIOS
1. Qual a relação ecológica entre produtores, Gastro-Intestinal Research FoundationGIRF):
http://homepage.interaccess.com/~ring/girf/girf.html
consumidores e decompositores? O que is-
so diz respeito ao estudo dos alimentos? Vitaminas e Minerais:
2. Comente sobre a classificação dos alimen- http://www.cyber-north.com/vitamins/
tos do ponto de vista biológico.
3. Discuta a necessidade diária de alimentos
em relação aparecimento de doenças nutri-
cionais.
4. Qual a importância do Índice de Massa
Corpórea (IMC) no estudo de patologias
nutricionais?
5. Comente sobre doenças além da desnutri-
ção e obesidade que podem estar relacio-
nadas com os alimentos.
6. Conceitue taxa basal metabólica e efeito
termogênico dos alimentos.
7. Faça um levantamento de sua alimentação
diária média e relacione com sua atividade
física e IMC.
8. Qual a importância das fibras na alimenta-
ção?
9. Qual a importância do estudo da composi-
ção dos alimentos industrializados para a
manutenção da saúde humana?
10. Faça um resumo das principais ações de
digestão e absorção dos alimentos.

Para navegar na Internet


Fundamentos de Bioquímica:
http://www.fundamentosdebioquimica.hpg.com.br

Tecnologia de Alimentos:
http://www.cetec.rmg.br/cetec/alimento/alimento.html

UNICAMP - Saúde e Vida On Line -


http://www.nib.unicamp.br/svol

Sociedade Portuguesa de Cardiologia


http://www.spc.pt/publico/principal.htm

Biobrás:
http://www.biobras.com.br

Digestive Desease Center:


http://www.niddk.nih.gov/DigestiveDocs.html

Dispepsia:
http://www.geocities.com/HotSprings/5591/

Am I the Only One Left? (about vitamins):


http://www.suite29.com/combs

Diarrhea:
http://regina.ism.ca/trakker/Medical/TravDiar.htm
Ricardo Vieira
Capítulo 3
Ácidos Nucléicos
N o auge dos estudos citológico,
em 1889, Johann Frederick
Miesher isolou do núcleo celu-
lar uma substância de caráter ácido não-
demonstrou a existência de um "princípio
transformante" em cepas de Dipoplococcus
pneumoniae responsável pela pneumonia ex-
perimental em camundongos (Figura 3-1) e de
protéica e apresentando fósforo em sua com- Avery, MacLeod e McCarty em 1944, que
posição, ao qual denominou nucleína. Este demonstraram que o DNA era este princípio,
ácido do núcleo (ácido nucléico) é que garan- através de experimentos onde o princípio
tia a propriedade de coloração por corantes transformante era destruído pela ação enzimas
básicos ao núcleo e que hoje se sabe tratar do que destroem o DNA.
ácido desoxirribonucléico (DNA) e do ácido
ribonucléico (RNA), apesar deste último ter
sido isolado, primariamente, no citoplasma
nas formas de RNA mensageiro (RNAm),
transportador (RNAt) e ribossômico (RNAr).
Com a invenção de um corante especí-
fico para DNA, Robert Feugen, em 1920,
proporcionou a descoberta que o DNA locali-
za-se nos cromossomos durante a divisão ce-
lular. Os cromossomos já haviam sido descri-
tos como fundamentais para o processo de
reprodução celular desde 1879 por Fleming,
entretanto nunca relacionados como portado-
res dos elementos responsáveis pelos caracte- Figura 3-1 - Experimento de Griffth (1928). cColô-
res hereditários, os genes. Na verdade Men- nias lisas (S) de D. pneumoniae induzem a morte d de
um camundongo por pneumonia, enquanto que colô-
del, em 1865, estabelecera os princípios uni- nias rugosas (R) não o fazem e. Quando submetido ao
versais da hereditariedade, porém seu trabalho calor, colônias R tornam-se inertes f, porém quando
permaneceu obscuro até de Vries, Correns & misturas a colônias S mortas pelo calor, transformam-
Tschermnan em 1900 redescobrirem o traba- se em letais g.
lho de Mendel e relacioná-lo com os achados
mais recentes da então recém-criada ciência, a Entretanto, foi somente em 1952 que
genética. O curioso é que em 1859, Charles os experimentos de Alfred Hershey e Martha
Darwin (seis anos antes de Mendel) já havia Chase identificaram o DNA como o respon-
revolucionado o pensamento ocidental com a sável pelas características genéticas de bacte-
formulação de seus princípios sobre a evolu- riófagos (Figura 3-2), sendo este conceito
ção, mas provavelmente não deve ter reco- hoje tido como quase que universal para
nhecido nos trabalhos de Mendel o compo- todos os seres vivos, já que H. Fraenkel-
nente essencial para a transmissão dos carac- Conrat & R. Williams em 1955 identificaram
teres selecionados pela natureza e que garan- os vírus do tabaco como possuidor somente
tiam a perpetuação da espécie. de RNA (os retrovírus), achado fundamental
De uma maneira geral, até 1952 não para impedir que o dogma científico de que o
havia consenso entre os cientistas sobre a ver- DNA é a único molécula guardiã dos caracte-
dadeira natureza química dos genes, com mui- res genéticos dos seres vivos.
tos acreditando tratar-se de proteínas altamen- Isto torna-se bem mais evidente com
te especializadas. Isto começou a ser esclare- os estudos de Stanley Prusiner e colaborado-
cido após os estudos de Griffth em 1928 que res sobre os PRIONS (Proteinaceous Infecti-
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 3: Ácidos Nucléicos 28
ous Particle) que são moléculas protéicas que sultados de trabalhos de Edwin Chargaff
se multiplicam independente de controle ge- (composição percentual idêntica de Adenina e
nético do DNA ou RNA como os vírus, mas Timina, Citosina e Guanina no DNA e dife-
são responsáveis por doenças infecciosas gra- rente no RNA), Linus Carl Pauling (estrutura
ves, como a observada entre tribos africanas molecular e comprimento de ligação de bases
praticantes do canibalismo e da encefalite nitrogenadas) e de Rosalind Franklin e Mau-
espongiforme bovina que acometeu o gado rice Wilkins (difração de raios-X mostrando a
europeu do fim deste século conhecido como natureza de dupla fita do DNA). O modelo
a doença da "vaca louca". favorece conclusões sobre o mecanismo como
o DNA se duplica e, ainda mais, como coor-
dena a síntese protéica a partir da síntese de
RNA a partir de um molde de DNA e a com-
binação de três nucleotídeos (códon) para a
decodificação deste código genético nos ri-
bossomos.

Figura 3-2 - No experimento de Hershey e Chase


(1952), vírus bacteriófagos foram cultivados em meio
contendo enxofre e fósforo radioativos (35S e 32P),
marcando-se as proteínas e o DNA, respectivamente.
Após a infecção desses bacteriófagos em bactérias
Escherichia. coli observou-se que o 35S (portanto, as
proteínas) não penetrava nas bactérias e somente o 32P
(o DNA) penetrava e induzia a replicação do vírus.
Figura 3-3 – Os PRIONS possuem estrutura primária
As proteínas priônicas são pelo produ- idêntica, mas terciária diferente em relações às proteí-
zidas pelo próprio organismo, mas em uma nas priônicas celulares. Mecanismos de interação pro-
configuração espacial inerte e que se modifi- teína-proteína ainda não totalmente esclarecidos pro-
movem a replicação de novas proteínas com a
cam quando em contato com proteínas idênti- configuração espacial causadora de danos celulares.
cas quanto à composição, mas de configura-
ção espacial diferente e que são ingeridas na Desde então, um ramo novo do estudo
alimentação principalmente de alimentos genético deve início, com a era da biologia
oriundos de tecidos da mesma espécie (p.ex.: molecular inaugurando técnicas sofisticadas
em rituais canibalescos ou em animais do estudo do DNA que favorecem desde a
alimentados com ração feita com restos de descoberta da base genética de várias doen-
animais da própria espécie). A interação entre ças, bem como o seu diagnóstico e o trata-
essas proteínas permite a formação de novas mento, como essa terapia gênica e uma ciên-
proteínas independente de um distúrbio cia nova, a farmacogenética, sendo o caminho
genético, gerando alterações celulares graves, mais espetacular vislumbrado para a medicina
principalmente no tecido nervoso (Figura 3- no século XXI. A despeito dos aspectos éticos
3). Em 1953, o mundo científico teve seus que envolvem a pesquisa com o DNA, expe-
horizontes redirecionados com a publicação rimentos com a clonagem de seres vivos já
do trabalho de Watson & Crick sobre a estru- permitem a manipulação dos genes para o
tura do DNA. Neste artigo extremamente melhoramento da agricultura e rebanho, sendo
simples, os dois jovens cientistas, ainda estu- que é apenas uma questão de tempo a mani-
dantes de pós-graduação da Universidade de pulação de genes humanos com fins de trata-
Cambridge na Inglaterra, propuseram a famo- mento das mais variadas doenças.
sa estrutura de cadeia em dupla hélice para a
molécula de DNA, a partir da análise dos re-
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 3: Ácidos Nucléicos 29

Nucleotídeos
Todas as células dos seres vivos pos-
suem DNA e RNA, com exceção dos vírus
que não são organismos celulares e possuem
DNA ou RNA em sua composição, nunca os
dois ao mesmo tempo (os PRIONS ainda
precisam ter melhor caracterizada sua relação
com os seres vivos, mas não possuem ácidos
nucléicos em sua composição, sendo somente
proteínas)
O DNA difere do RNA em vários as-
pectos que vão desde a composição molecu-
lar, forma estrutural, até a função e mecanis-
mo de síntese, possuindo, entretanto, várias
semelhanças que os torna moléculas irmãs e
de extrema importância para o estudo da bio-
química celular, por serem responsáveis por
Figura 3-4: Estrutura molecular da adenosina-tri-
todas as características da célula e as molécu- fosfato (ATP), um nucleotídeo. A base nitrogenada
las alvo da evolução. liga-se ao C1' e o fosfato no C5' da pentose.
Quimicamente, os ácidos nucléicos
são polímeros de nucleotídeos unidos por
ligações do tipo fosfo-di-éster, formando uma
molécula polimérica.
Nucleotídeos são as unidades básicas
dos ácidos nucléicos e são formados, sempre,
por uma molécula de pentose a qual se liga a
uma molécula de base nitrogenada e uma
molécula de fosfato em pontos específicos e
de maneira covalente, adquirindo forma estru-
tural helicoidal própria e característica do tipo Figura 3-5 - As pentoses presentes nos ácidos nucléicos
de molécula. Embora façam parte da compo- são a ribose (no RNA) e a desoxirribose (no DNA) que
possui uma -OH a menos no C2'.
sição dos ácidos nucléicos, os nucleotídeos
são encontrados na forma livre dentro da célu- As bases nitrogenadas presentes nos
la, sendo responsáveis por funções não rela- ácidos nucléicos são de dois tipos: as bases
cionadas diretamente com a reprodução celu- púricas, purínicas ou, simplesmente, puri-
lar, como é o caso do ATP (Figura 3-4). A nas e as bases pirimídicas, pirimidinicas ou
união das bases nitrogenadas à pentose, so- pirimidinas (Figura 3-6), com todas elas li-
mente, forma um nucleosídeo, ou seja, um gando-se à molécula de pentose no C1', sendo
nucleotídeo desprovido e fosfato. que nas purinas o ponto de ligação é o nitro-
A pentose (monossacarídeo de 5 car- gênio na posição 9 (N9) e nas pirimidinas é o
bonos) pode ser a ribose (no RNA) ou a de- N1. Presentes tanto no DNA quanto no RNA,
soxirribose (no DNA) ambas em sua forma encontram-se a adenina, citosina e a guanina,
cíclica pentagonal de furanose. Em um nucle- com a timina sendo própria do DNA e a uraci-
otídeo, convenciona-se identificar os carbonos la do RNA. Esta exclusão de bases nitrogena-
da pentose acrescentando o apóstrofo para das dá-se devido à impossibilidade da timina
diferencia-lo dos carbonos da base nitrogena- no RNA e uracila no DNA parearem forman-
da, desta forma o C1', C2', C3' e C5' estão do uma perfeita hélice.
aptos realizar ligações químicas através das
hidroxilas (-OH) livres nestes carbonos, com
exceção da desoxirribose que não possui hi-
droxila no C2' (Figura 3-5).
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 3: Ácidos Nucléicos 30
tura final do DNA e RNA ocorre entre a hi-
droxila do C3' de um nucleotídeo com o
fosfato hidroxila do C5' do outro nucleotídeo,
de forma que sempre o C5' do primeiro
nucleotídeo terá um fosfato livre, enquanto
que o último nucleotídeo adicionado terá
sempre -OH livre no C3'. Esta uniformidade
na configuração da cadeia polimérica de
nucleotídeos, tanto de DNA quanto de RNA,
confere uma direção à molécula onde é
convencionado que o primeiro nucleotídeo de
uma determinada seqüência é o que tem a
extremidade 5' livre, enquanto que o último
terá a extremidade 3' livre.
Como todas as moléculas de ácidos
nucléicos são formadas por nucleotídeos po-
limerizados e como somente a base nitroge-
nada podem variar, o fosfato e a pentose não
são descritos em representações simplificadas
das seqüências de RNA e DNA (Figura 3-8).
A molécula de DNA, por ser em dupla fita,
Figura 3-6 - As bases nitrogenadas que fazem parte da possui as duas cadeias orientadas em sentido
composição dos ácidos nucléicos. As bases purínicas antiparalelo, ou seja, uma cadeia está no sen-
ligam-se ao C1' da pentose através do N na posição 9,
enquanto que as bases pirimidínicas ligam-se em C1’
tido 5'Æ 3', enquanto que a outra está no sen-
pelo N1. tido 3'Æ 5'. A molécula de RNA, em fita
Entretanto, é comum observar modifi- simples, possui somente orientação 5'Æ3'.
cações na estrutura molecular das bases nitro- Detalhes da estrutura de DNA e RNA serão
genadas após o processo de síntese do DNA abordados a seguir.
ou do RNA já haverem sido concluído, o que
pode levar, ocasionalmente, à presença de Estrutura molecular do DNA
uma pseudotimina no RNA quando há a meti-
lação no C5 da uracila e de pseudo-uracila no Quando Watson & Crick formularam
DNA por demetilação da timina (compare as sa teoria sobre a estrutura do DNA, confec-
diferenças da estrutura dessas bases nitroge- cionaram modelos em madeira das moléculas,
nadas na Figura 3-6). Essas modificações po- obedecendo a proporção entre o comprimento
dem ter função na estrutura da molécula (co- de ligação das bases nitrogenadas e da deso-
mo é o caso da pseudotimina que caracteriza xirribose. Em uma espécie de jogo de tentati-
uma das regiões do RNAt) ou ter reflexos va e erro, observaram que a única combinação
negativos para a vida da célula (como no caso possível para garantir a estabilidade de um
da metilação de timina em regiões codificado- modelo em dupla hélice revelava duas carac-
ras de proteínas na molécula de DNA). terísticas que viriam a ser fundamentais para a
A ligação entre os nucleotídeos ocorre, compreensão da química e biologia do DNA:
portanto, através de ligações covalentes ex- as duas cadeias são antiparalelas (opostas
tremamente fortes tendo um grupamento fos- entre si) e estão unidas por pontes de hidrogê-
fato como ligante, as ligações fosfo-di-éster nio.
(Figura 3-7). Essas ligações garantem um Estas observações permitem algumas
"esqueleto" covalente rígido para a molécula conclusões importantes, como o fato que as
de ácido nucléico e que só é clivado sob ação pontes de hidrogênio são bem mais fracas do
de enzimas hidrolíticas digestivas denomina- que a ligação covalente do esqueleto pentose-
das de nucleases (DNase e RNase). fosfato, fazendo delas o alvo do processo de
A ligação entre as moléculas de nucle- divisão celular, uma vez que a molécula de
otídeos que permite a polimerização e a estru- DNA pode ser quebrada em dois moldes (uma
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 3: Ácidos Nucléicos 31
paralela a outra) e depois ser reconstruído em através de duas pontes de hidrogênio, enquan-
duas novas moléculas idênticas. Este processo to que citosina lia-se somente com guanina
de duplicação do DNA é a chave da compre- através de três pontes de hidrogênio. Qualquer
ensão dos processos de divisão celular vitais outro tipo de ligação entre bases nitrogenadas
para a ciência, que até então não podiam ser é impossível e traria instabilidade estrutural à
compreendidos. A construção de uma cadeia molécula (Figuras 3-9 e 3-10).
polimérica de DNA requer que as duas cadei-
as alinhem-se de forma que as bases nitroge-
nadas adenina só podem ligar-se à timina,

Figura 3-7 - Direção da polimeri-


zação orientada no sentido 5'Æ 3''
de um dímero de RNA. Observe
como o primeiro nucleotídeo
sempre terá a extremidade 5' livre
e o último à extremidade 3'. A
ligação do tipo fosfo-di-éster é
extremamente rígida e confere
alta estabilidade à cadeia polime-
rizada de ácidos nucléicos.

Seqüência de DNA
5’-AAGTCCGTGCTGCGTGCGTGATGAATG-3’
3’-TTCAGGCACGACGCACGCACTACTTAC-5’

Seqüência de RNA
5’-UUAGGGCAUUGUACAUCCCUUAAACCU-3’

Figura 3-8 - Representação simplificada de uma seqüência de DNA e de RNA (oligonucleotídeo). Observe que a orien-
tação das duas cadeias de nucleotídeos do DNA é oposta entre si.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 3: Ácidos Nucléicos 32
(Figuras 3-11). As seqüências de DNA onde
há muitas ligações entre guanina e citosina
(GC) são mais resistentes, devido ao maior
número de pontes de hidrogênio formadas.
A direção do eixo da dupla hélice é
para a direita e em cada volta há cerca de
10pb (pb). Em conseqüência a esta conforma-
ção, há uma cavidade maior e uma outra me-
nor na forma de um sulco na superfície da
molécula, locais importantes de ligação com
proteínas estabilizadoras ou de outras envol-
vidas na regulação da replicação do DNA.

Figura 3-9 - O pareamento das bases nitrogenadas ocorre com


duas pontes de hidrogênio entre a adenina e timina, e com três
pontes de hidrogênio entre guanina e citosina, o que faz com
que os pontos contendo ligações GC representem mais resis-
tência para a seqüência de DNA.

Com essa característica química, res-


ponde-se a extrema fidelidade na duplicação
da molécula de DNA durante a divisão celu-
lar, o que garante seu papel como controlador
da expressão gênica. Os genes, portanto, são Figura 3-10 - Organização da cadeia de DNA em fita
compostos de DNA e mantêm-se estáveis dupla, mostrando o sentido antiparalelo 5'Æ 3' e 3'Æ
5'. As pontes de hidrogênio ocorrem entre adenina e
durante o processo de duplicação do DNA, timina ou entre guanina e citosina (sempre uma purina
um processo denominado de replicação. A e uma pirimidina) garantindo o tamanho constante da
mutação em qualquer um desses nucleotí- cadeia.
deos, leva à desordem na tradução do código
genético, permitindo modificações celulares O modelo molecular descrito por Wat-
que serão mantidas ou excluídas por seleção son & Crick corresponde ao mais abundante
natural. tipo de DNA encontrado nas células, j=hoje
Todas essas considerações são possí- denominado de B-DNA. A forma A-DNA é
veis a partir do momento que se conclui a mais condensada, observada em meio extre-
estrutura helicoidal do DNA mamente hipertônico e possui mais de 10pb
A forma estrutural final da molécula por volta completa da dupla hélice.
de DNA é representada por uma dupla hélice A forma Z-DNA está relacionada,
em espiral comparada a uma escada em espi- com a regulação da expressão gênica e que
ral, onde o corrimão da escada representa a apresenta a configuração em zig-zag com giro
pentose unida pela ligação fosfo-di-éster, en- da hélice para esquerda, ao contrário das de-
quanto que os degraus correspondem às bases mais formas de DNA que apresenta o giro
nitrogenadas unidas por pontes de hidrogênio para a direita.
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 3: Ácidos Nucléicos 33
dupla hélice em cadeia circular. Os parvoví-
rus (p.ex.: da parvovirose canina) possuem
seu genoma na forma de uma cadeia simples
monofilamentar de DNA, enquanto que al-
guns vírus podem apresentar cadeia híbridas
DNA/RNA (p.ex.: o vírus da hepatite B). Os
retrovírus (p.ex.: o vírus do HIV) possuem em
seu genoma somente o RNA.
Quanto maior o número de genes,
maior é o tamanho da cadeia de DNA, o que
faz com que o DNA dos eucariotas possuam
uma estrutura molecular complexa que permi-
ta a compressão dos genes dentro do núcleo
celular de forma organizada. A organização
do DNA em procariotas e em mitocôndrias e
cloroplastos possuem uma organização mais
simples.

O genoma eucarioto
A molécula de DNA contém as se-
qüências responsáveis pela síntese das proteí-
Figura 3-11- Estrutura do DNA, segundo Watson &
Crick (1953). Uma volta completa possui cerca de
nas e dos RNA ribossômico e transportador
3,4nm e 10 pb; à distância entre as fitas é de cerca de que, junto com o RNA mensageiro (também
2,0nm. A cavidade maior e menor são sítios de ligação sintetizado a partir do DNA) são essenciais
a proteínas estabilizadoras e da replicação. para a síntese protéica. Quanto mais comple-
xo o organismo, mais adaptações bioquímicas
Uma forma de DNA obtido por síntese ele possui o que corresponde a necessidade de
in vitro é a C-DNA, na qual todas as seqüên- mais genes para expressar as características
cias são codificadoras, ao contrário das de- genéticas. A molécula de DNA torna-se cada
mais formas que há regiões não codificadoras vez maior e tende a se enovelar para ser con-
mesmo dentro das seqüências gênicas. tida dentro do núcleo celular.
Em virtude das moléculas de DNA Na forma linear as duas fitas são livres
serem extremamente grandes, a unidade de para rotação sobre seu próprio eixo o que fa-
medida é o kb (kilobase, ou seja, 1000 pb) vorece a um emaranhado de DNA que é visí-
que corresponde a 6,6 x 105 de peso molecu- vel ao microscópio óptico como a cromatina
lar e 340 nm de comprimento. Algumas espé- nuclear. Quando mais condensada a coloração
cies contêm moléculas simples de DNA, de da cromatina, mais compactado o DNA,
tamanho diminuto, como a bactéria E.coli (4 x quanto mais frouxa a coloração, menos denso
106 pb e 1,4 mm de comprimento). Supõe-se é o emaranhado molecular.
que o genoma (conjunto de genes) humano Proteínas da classe das histonas de-
possua cerca de 4,5 x 106 kb e 1,5m de com- sempenham papel fundamental na organiza-
primento distribuídos em 23 pares de cromos- ção dos cromossomos, promovendo o enove-
somos. lamento da molécula de DNA em torno de
Apesar de a grande maioria dos seres quatro tipos de histonas (H2A, H2B, H3 e
vivos possuírem a molécula de DNA em du- H4) repetidas duas vezes, formando um octâ-
pla fita e linear, o genoma dos seres vivos mero onde a molécula de DNA se enrola cer-
pode apresentar-se na forma de monofilamen- ca de duas vezes e meia (146pb) por sobre o
to e em cadeia circular. Os plasmídeos e cro- octâmero de histonas, formando uma estrutura
mossomos bacterianos, o DNA de cloroplas- na dimensão de 6 x 11nm denominada nucle-
tos e mitocôndrias e o DNA dos papovarírus osomo. Cada nucleossomo é afastado de outro
(p.ex.: vírus do herpes), possuem forma de através de um dímero de histonas H1 os quais
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 3: Ácidos Nucléicos 34
vão se agrupando formando um bloco com- antes da migração para as células filhas), ge-
pacto de cerca de 30 nucleossomos, afastados rando o aspecto característico em forma de X.
entre si por proteínas estabilizadoras que se Esses cromossomos metafásicos são
ligam em seqüências específicas da cadeia do fotografados e, a partir do padrão de bandas
DNA formando uma estrutura solenóide e que apresentam, são agrupados, par a par,
estas organizam-se nos filamentos de croma- formando uma espécie de mapa cromossômi-
tina (Figura 3-12). co, denominado de cariótipo (Figura 3-14).
As histonas são proteínas existentes Desta forma, os estudo do número de
em todos os eucariotas e o gene que as codifi- cromossomos e as regiões onde estão locali-
ca possui uma seqüência muito semelhante zados os genes, permite a detecção de inúme-
em todos os seres vivos, o que demonstra que ras doenças de origem genética, como a tri-
ela é uma das proteínas mais conservadas somia do cromossomo 23 (síndrome de
durante a evolução, dada sua importância para Down) ou a presença de translocações de re-
a estabilização do DNA. giões de um cromossomo para outro (p.ex.: a
Os blocos de nucleossomos compac- transferência de parte do cromossomo 9 para
tam-se nos cromossomos, que não podem ser o 22 na leucemia linfóide aguda – o cromos-
vistos em uma observação microscópica de somo Filadélfia).
uma célula que não esteja em divisão celular,
por um motivo bem simples: durante o perío-
do de atividade da célula, os genes devem
estar desenrolados ao máximo para facilitar a
síntese de RNAm para a iniciar a síntese pro-
téica, o que necessita que os cromossomos
estejam na forma desespiralizada.
No entanto, quando se inicia o proces-
so de divisão celular, após a duplicação da
molécula de DNA, é necessário que cada no-
va molécula migre para as células filhas, o
que é permitido graças à compactação máxi-
ma dos cromossomos, uma vez que somente
as enzimas da divisão celular estão ativas e
não há a necessidade da síntese de todas as
proteínas que normalmente existem na célula.
Na observação dos cromossomos du-
rante a divisão celular, através de técnicas de
coloração especiais (métodos citogenéticos),
pode-se observar que há áreas mais densas e
outras mais frouxas de cromatina, denomina-
das de heterocromatina e eucromatina, res-
pectivamente (Figura 3-13). Cada região de
heterocromatina corresponde a uma área de
menor atividade gênica e as de eucromatina a
de maior concentração de genes ativos.
O método de coloração de cromossomos mais
antigo e ainda usualmente utilizado basea-se
no corante de Giemsa que, após técnica de
coloração e descoloração seletiva, pode-se
estabelecer um padrão de bandas coradas (he-
terocromatina) e descoradas (eucromatina) Figura 3-12 – Enovelamento da molécula de DNA sobre as
dos cromossomos estudados em células cujo moléculas de histona, formando os nucleossomos e, poste-
riormente, os cromossomos.
processo de divisão celular foi interrompido
na metáfase (após a duplicação do DNA e
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 3: Ácidos Nucléicos 35

Anatomia do gene
O gene é uma seqüência de DNA que
contém o código genético para a síntese de
proteínas (a partir do RNAm), RNAt e RNAr.
Entretanto, como pudemos estudar anterior-
mente, o estudo citogenético evidencia áreas
no cromossomo onde não há atividade gênica,
o que significa dizer que nem todas as regiões
da molécula do DNA contêm informações
que codificam a síntese protéica. Isto é típico
do genoma eucariótico, que, devido a enorme
quantidade de gene, tem que enovelar tre-
mendamente impossibilitando que todas as
regiões do DNA estejam disponíveis para a
função codificadora.
Realmente, as regiões não codificado-
ras foram denominadas, primariamente, de
espaços intergênicos, DNA espaçador e até o
absurdo nome de “DNA-lixo” evidenciando a
idéia de que havia regiões entre os genes que
seriam simples espaços destinados a ficar
enovelado sem conter genes.
Figura 3-13 – Representação de cromossomo metafá-
sico corado pelo Giemsa revelando um padrão de ban- Entretanto, com o advento de técnicas
das (bandas G) que individualizam cada cromossomo e de análise da composição molecular do DNA
permite uma análise do papel dos cromossomos na foi descoberto que os genes não são compos-
biologia celular. tos de seqüências codificadoras contínuas,
mas que havia regiões não codificadoras den-
tro do próprio gene. E ainda mais, tanto as
regiões não codificadoras entre os genes
quanto às de dentro do gene possuíam função
na regulação da expressão do gene, funcio-
nando não como uma região simplesmente
espaçadora, mas também reguladora.
Dentro do gene, a região que contém
as seqüências codificadoras, são denominadas
éxons e as não codificadoras são denomina-
das íntrons (Figura 3-15).
Como a fita de DNA é dupla, apenas
uma delas é responsável pelo código genético,
que é “lido” no sentido 5’ Æ 3’, a direção em
que a enzima DNA polimerase, responsável
pela síntese do DNA. Desta forma, a fita
complementar pode codificar uma outra pro-
teína, pois possui direcionamento contrário e
seqüência nucleotídica diferente.
As células procarióticas possuem ge-
noma mais compacto, sem regiões não codifi-
Figura 3-14 – O cariótipo humano revela 23 pares de
cadoras, e a leitura se faz em ambas as fitas
cromossomos agrupados de acordo com os padrões de
bandas apresentados nas colorações citogenéticas. como uma maneira de melhorar a economia
da célula, o que faz com o genoma seja mais
prático e funcional. Os DNA mitocondrial e
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 3: Ácidos Nucléicos 36
dos plasmídeos também são organizados sem Cerca de 35pb antes do início do gene há uma
íntrons ou regiões não codificadoras. seqüência do tipo TTGACA e na posição de
Esta característica, de não haver regi- 10pb antes do gene há a seqüência TATAAT
ões codificadoras, entretanto, implica em di- que são o ponto de acoplamento da RNA po-
zer que qualquer mutação que ocorra em um limerase para o início da síntese do RNAm
genoma procarioto já provoca uma mudança que dará origem, futuramente, à proteína, co-
na seqüência de leitura de um gene, o que mo será descrito posteriormente. Essas se-
pode configurar-se como alteração genética qüências são as mesmas para todos os tipos de
importante. genes.
Em contrapartida, a existência de ex- Na região flanqueadora 3’ (ou downs-
tensas áreas não codificadoras no genoma tream – “rio abaixo”), logo após o término do
humano (cerca de 90% do DNA total), favo- gene, existe uma região rica em GC, seguida
rece uma certa proteção contra essas muta- de outra rica em AT, que vão possuir papel
ções, o que, de fato, é observado na alta taxa fundamental para que a RNA polimerase en-
de variabilidade dessas áreas não codificado- cerre a síntese do RNAm correspondente à-
ras em relação às regiões dos éxons. quele gene, conforme será mostrado posteri-
Essa grande variabilidade existente ormente, ainda neste capítulo.
nas regiões não codificadoras são, em sua Fazendo parte, ainda, do complexo de
maioria, repetições de seqüências de DNA regulação da expressão do gene, encontramos
que são denominadas de DNA satélite. Essas regiões muito afastadas do início do gene que
regiões apresentam uma seqüência de DNA exercem ação reguladora de sua expressão,
de mais de 100pb que se repetem em tandem denominadas de enhancers (estimuladores).
(uma atrás da outra). Outras regiões com cer-
ca de 3 a 5pb são denominadas de minissaté- A molécula de RNA
lites e aquelas com apenas 2pb repetidos são
denominadas de microssatélites. O número Existem três tipos básicos de RNA:
de repetições de certas regiões satélite varia mensageiro (RNAm), transportador (RNAt) e
tanto de indivíduo para indivíduo que consti- ribossômico (RNAr).
tuem uma “impressão digital molecular” e são A forma estrutural do RNA é de uma
utilizadas para caracterizar o DNA de vítimas fita simples em espiral que se arranja, na
de crimes, na investigação de paternidade e maioria das vezes, formando pregas entre si,
em outros casos de medicina forense. em virtude de pontes de hidrogênio ocorridas
Os genes são flanqueados por regiões entre as bases nitrogenadas dos nucleotídeos
que sinalizam para a enzima RNA polimerase da própria cadeia. Estas pregas dão a confor-
onde deve iniciar a sua expressão, na extre- mação e um grampo de cabelo (hairpins) às
midade 5’ (freqüentemente denominada regi- regiões onde elas ocorrem e são estruturas
ão upstream, em referência à expressão ingle- características das moléculas de RNAt e
sa “rio acima”). RNAr (Figura 3-16).

Figura 3-15 – Esquema de um gene eucariota. As zonas amarelas correspondem às regiões flanqueadoras que contêm as
regiões promotoras -35 e –10 (na extremidade 5’) e a região de terminação com os sítios GC e AT (na extremidade 3’).
As regiões codificadoras (éxons) e as não codificadoras estão representadas em verde e vermelho, respectivamente.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 3: Ácidos Nucléicos 37
A molécula de RNAm não possui tais O RNAt (transportador) realiza o
grampos, devido a necessidade estar linear transporte dos aminoácidos para a síntese
para ser “lida” pelos ribossomos durante a protéica mediada pelo RNAm. Existem 20
síntese protéica. Na verdade, a formação de tipos de RNAt (um para cada aminoácido),
tais grampos na molécula de RNAm ocorre possuindo quatro domínios comuns: 1) o pon-
como mecanismo favorecedor da edição da to de ligação com o aminoácido que transpor-
molécula após a transcrição direta do gene. ta, sempre a seqüência ACC na extremidade
3’; 2) a alça D, com a presença do nucleotí-
deo diidrouridina (formado por hidroxilação
da uracila); 3) a alça T com a presença de
timina formada por metilação da uracila (ch-
mada de ribotimidina); e 4) a alça do anticó-
don, que possui a seqüência que se ligará ao
RNAm no ribossomo durante a síntese protéi-
ca (Figura 3-17). Na molécula de RNAt é
observada a presença de outras bases modifi-
cadas como a pseudouridina (Ψ) e, algumas
vezes, um mesmo tipo de RNAt pode apre-
sentar ou C ou G em áreas em que não há
formação de pregas, representado na estrutura
Figura 3-16 – Modelo de formação das pregas entre os simplesmente como uma pirimidina (Y).
nucleotídeos de uma molécula de RNA, assumindo O RNAr (ribossômico) faz parte da
conformação que lembra um grampo de cabelo. composição molecular dos ribossomos, local
da síntese protéica, aonde se acopla o RNAm
O RNAm é responsável pelo código e, posteriormente, os aminoácidos. Possui
genético para a síntese protéica, estabelecido uma estrutura extremamente pregueada onde
entre ele e o DNA, sendo que a seqüência de se revelam domínios responsáveis pela estru-
3 nucleotídeos do DNA corresponde a se- tura tridimensional final dos ribossomos (Fi-
qüência de 3 nucleotídeos do RNAm (códon) gura 3-18).
que, por sua vez, corresponde a um aminoáci-
do específico no processo de síntese protéica.
O seu processo de síntese é denominado
transcrição e é um dos processos mais im-
portantes para a manutenção das característi-
cas celulares, uma vez que qualquer erro que
haja pode ocorrer em erro na tradução do co-
digo genético e o conseqüente erro na síntese
protéica. A molécula de RNAm é a forma
citoplasmática, porém imediatamente após a
transcrição, o RNA que foi copiado direta-
mente do DNA possui ainda as informações
dos íntrons, que não correspondem à nenhuma
informação genética. Este RNA é denomina-
do RNA heterogêneo nuclear (RNAhn) e é
submetido a um processo de retirada da se-
qüência correspondente aos íntrons denomi- Figura 3-17 – Modelo esquemático de uma molécula
do RNAt para o aminoácido fenilalanina. A extremida-
nado splicing (junção), além da adição de de 3' (ACC) é responsável pelo transporte do aminoá-
uma seqüência de cerca de 100 a 200 nucleo- cido. A alça do anticódon contém a seqüência com-
tídeos de adenina, denominado de cauda po- plementar ao RNAm (códon) durante a síntese protéi-
li-A, que será um importante regulador do ca. Em algumas regiões da molécula, há o pareamento
processo de controle da tradução protéica, intramolecular das bases, formando as pregas de fila-
mento em dupla hélice.
como será abordado posteriormente.
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 3: Ácidos Nucléicos 38
metilguanosina, N-isopenteniladenina, dii-
drouridina e ribotimidina.

Figura 3-18 – Representação esquemática de uma


molécula de RNAr 16s de E. coli e seus quatro domí-
nios. Notar os hairpins freqüentes em toda a molécula.
Figura 3-19 – Representação esquemática da confor-
mação tridimensional de um ribossomo eucariota.
Os ribossomos são compostos por
duas subunidades de RNAr que diferem de
Uma classe de RNA existente somente
acordo com o coeficiente de sedimentação
em eucariotas é o pequeno RNA nuclear ou
obtido por ultracentrifugação (S). Em ribos-
snRNA (small nuclear RNA). Possui em tor-
somos eucariotas, é uma organela de 80S,
no de 200 nucleotídeos (10S) e estão ligados a
composto pelas subunidades 40S e 60S liga-
proteínas, formando as pequenas partículas de
dos à 33 e 49 proteínas, respectivamente. O
ribonucleoproteínas nucleares ou snRNP
cromossomo procariota é menos complexo,
(small nuclear ribonuceloprotein particles)
possuindo duas subunidades de 30S e 50S
que possuem a função na liberação do RNAm
ligados a 21 e 31 proteínas, respectivamente,
do núcleo para o citoplasma.
constituindo uma unidade de 70S (Figura 3-
19).
No RNAr de procariotas existem se-
qüências específicas onde o RNAm se fixa DNA extra genômico
(seqüências de Shine-Dalgarno) e a partir da
qual são adicionados os aminoácidos oriundos A principal forma de DNA que não faz parte
dos RNAt. Entretanto, os eucariotas não pos- da composição normal do genoma de um ser
suem tais seqüências, devendo haver um me- vivo, corresponde ao DNA mitocondrial e
canismo de leitura apropriado para identificar DNA dos cloroplastos em eucariotas e o
o ponto de início da síntese protéica. DNA de plasmídios em bactérias. Uma espé-
É comum vários ribossomos organiza- cie peculiar de DNA é o DNA viral, que pos-
rem-se em fileira (polissomos) sintetizando sui características próprias, podendo ser em
várias moléculas de proteína a partir de uma fita simples dupla ou ainda híbrida com RNA.
única molécula de RNAm, sendo que os po- As moléculas de DNA mitocondrial e
lissomos de eucariotas são bemmenores que dos cloroplastos são fechadas, circulares, em
os procariotas. Há a existência, também, de cadeia super-helicoidal em sua maioria. Em
várias bases nitrogenadas modificadas, como algumas plantas, fungos e protozoários o
a pseudourindina, 4-tiourinina, inosina, 1- DNA mitocondrial é linear. São tão semelhan-

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 3: Ácidos Nucléicos 39
tes em forma e função, que se acredita que tem a resistência a antibióticos. São passados
são evolucionariamente relacionados. de uma bactéria a outra através do processo
O DNA mitocondrial varia enorme- de conjugação bacteriana, onde uma bacteria-
mente de tamanho: em animais são relativa- na emite uma espécie de “tubo” para a outra
mente pequenos (menos que 20kb), em leve- bactéria, transferindo seu plasmídio.
duras são um pouco maiores (cerca de 80kb) e Os plasmídios são utilizados larga-
em plantas superiores são muito grandes (cen- mente em experimentos laboratoriais, como
tenas a milhares de kb). Apesar de haver pou- vetores de pesquisas que manipulam o DNA
cas regiões não codificadoras, quanto maior a do plasmídio para aceitarem seqüências de
molécula de DNA mitocondrial, maior a pre- DNA de outros organismos. Desta forma, as
sença de zonas não codificadoras. bactérias que “aceitam” esse plasmídio modi-
Intrigantemente, DNA mitocondrial é ficado podem duplicar o fragmento de DNA
mais semelhante ao DNA de bactérias, do que inserido artificialmente o duplica-lo muitas
com o DNA do núcleo da própria célula, o vezes fazendo com que um organismo que
que leva à especulação que os eucariotas ori- antes não possuía determinada seqüência de
ginariamente não possuíam mitocôndrias e, DNA (a bactéria) passe a expressar um novo
portanto, não sintetizavam ATP em larga es- genótipo. Esses experimentos são denomina-
cala. Em determinado momento da evolução dos de clonagem bacteriana e foram desen-
celular, houve uma relação simbiótica com volvidos na década de 80, junto com a mani-
bactérias que possuíam as enzimas necessá- pulação do genoma viral, sendo os primeiros
rias para esta função, convertendo-se nas mi- e bem sucedidos experimentos de engenharia
tocôndrias, hoje uma organela essencial para genética que deram início a uma era de gran-
os eucariotas, fazendo parte da bagagem des avanços na ciência, mas também de gran-
genética da célula. des preocupações éticas que vão desde à pa-
A estrutura das mitocôndrias oferecem tente de seqüências de DNA até a clonagem
sérios problemas para a tradução do DNA de seres humanos.
mitocondrial, havendo ribossomos mitocon-
driais que se ligam ao RNAm de maneira não
usual, possuindo um código genético próprio,
diferente do genoma nuclear. EXERCÍCIOS
Um fato importante par o estudo do 1. O que são PRIONS?
DNA mitocondrial, é que durante a penetra- 2. Descreva a anatomia do gene eucarioto.
ção do espermatozóide no óvulo, para a for- 3. Quais as principais características estrutu-
mação do zigoto, a região da cauda é perdida rais das moléculas de DNA e RNA?
e, com ela, a porção que contém as mitocôn- 4. No que consiste o DNA extra-genômico e
drias, responsáveis pela geração da energia qual a sua importância para os estudos de
necessária para a movimentação dos esperma- biologia molecular?
tozóides, desta forma, a herança mitocondrial
é, predominantemente, materna. REFERÊNCIAS DA INTERNET
Possuindo uma taxa evolutiva cerca de
10 vezes maior que o genoma nuclear, o DNA Departamento de Bioquímica Médica da UFRJ
mitocondrial (assim com os íntrons) possui http://www.bioqmed.ufrj.br/sonda/
alta variabilidade entre as espécies, fazendo
Index of Genes on Human Chromossomes
com seja alvo de estudos que estabelecem a http://wehih.wehi.edu.au/gdbreports/
distância evolutiva entre as espécies, ajustan-
do uma espécie de relógio molecular e escla- Laboratório Genomic de Análise de DNA
recendo relacionamentos filogenéticos que os http://www.genomic.com.br/
métodos tradicionais de observação morfoló-
gica ou de divergência bioquímica não são DNA na investigação criminal
capazes de diferenciar. http://www.laboratoriopasteur.com.br/
O DNA de plasmídios de bactérias é
circular e pequeno e codifica genes que garan-
Ricardo Vieira
Capítulo 4
Aminoácidos e Proteínas
A
s proteínas são as moléculas A união entre dois aminoácidos, forma
orgânicas mais abundantes um dipeptídeo, assim como três unem-se
nas células e correspondem a formando um tripeptídeo e assim sucessiva-
cerca de 50% ou mais de seu mente, sendo que a união de vários aminoáci-
peso seco. São encontradas em todas as partes dos irá dar origem a uma cadeia polipeptídi-
de todas as células, tendo funções fundamen- ca. Algumas proteínas são formadas de ape-
tais na lógica celular. Em virtude desta impor- nas uma cadeia polipeptídica, enquanto outras
tância qualitativa e quantitativa, as proteínas são formadas por três, quatro ou mais. O que
têm sido largamente estudadas e seus segre- as diferencia umas das outras é a seqüência
dos desvendados, no que diz respeito à sua em que estarão dispostos os aminoácidos,
síntese ou aproveitamento metabólico. aliados a estrutura tridimensional assumida
As proteínas são macromoléculas de pela molécula.
alto peso molecular, polímeros de compostos São conhecidos 20 aminoácidos (Ala-
orgânicos simples, os α-aminoácidos. Nas nina, Arginina, Aspartato, Asparagina, Cisteí-
moléculas protéicas os aminoácidos se ligam na, Fenilalanina, Glicina, Glutamato, Gluta-
covalentemente, formando longas cadeias não mina, Histidina, Isoleucina, Leucina, Lisina,
ramificadas, através de ligações peptídicas Metinonina, Prolina, Serina, Tirosina, Treo-
envolvendo o radical amino (-NH2) de um nina, Triptofano e Valina) encontrados nas
aminoácido e o radical ácido (-COOH) de um moléculas de proteínas, com sua síntese con-
outro, havendo a liberação de uma molécula trolada por mecanismos genéticos, envolven-
de água durante a reação (Figura 4-1). do a replicação do DNA e transcrição do
RNA.
A metade dos aminoácidos é sintetiza-
da pelo organismo e vai suprir as necessida-
des celulares; aqueles que não são sintetiza-
dos precisam estar presentes na dieta e são
chamados de aminoácidos essenciais e os
aminoácidos não-essenciais aqueles que são
sintetizados no organismo.
A função energética dos aminoácidos
não é, certamente a sua principal função, uma
vez que carboidratos e lipídios são melhores
aproveitados no metabolismo energético. En-
tretanto, os aminoácidos são importantes fon-
tes de energia durante o exercício físico inten-
so e de longa duração fornecendo substrato
Figura 7-1: A ligação peptídica ocorre entre o para a neoglicogênese (aminoácidos glicogê-
grupamento -COOH de um aminoácido com o gru- nicos). Alguns aminoácidos, fornecem subs-
pamento -NH2 de outro. O primeiro aminoácido da tratos para a síntese de acetil-CoA que é a-
cadeia peptídica é aquele que possui o grupamento
amino-terminal e o último, o que possui o livre o proveitada no ciclo de Krebs, mas não podem
grupamento carboxila-terminal. O grupamento R ser convertidos em glicose (aminoácidos
sempre ocupa posição oposta ao próximo, devido ao cetogênicos). Outros conseguem fornecer
Cα ser assimétrico, o que vai contribuir para a for- substratos para ambas as vias (aminoácidos
ma tridimensional da proteína. ceto-glicogênicos). Em estados carenciais
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 4: Aminoácidos e Proteínas 41

nutricionais, muitas vezes são os aminoácidos • Cadeia alifática hidrocarbonada: alani-


dos músculos de das proteínas plasmáticas na, leucina, isoleucina, valina e prolina;
que fornecem a energia necessária para a ma- • Anel aromático: fenilalanina e triptofano;
nutenção da vida. Na Tabela 4-1 pode-se ob- • Enxofre: metionina.
servar vários exemplos desta multifuncionali- • Hidrogênio: glicina.
dade. A alanina representa o aminoácido
mais solúvel deste grupo e a prolina é, na rea-
Tabela 4-1: Exemplos das principais funções protéi- lidade, um iminoácido onde o grupamento R
cas.
é um substituinte do aminogrupo.
Proteína Função
Hemoglobina, mioglobina Transporte de gases respi-
A glicina é o aminoácido mais simples
ratórios em virtude de possuir como R apenas um á-
Imunoglobulinas Defesa orgânica (anticor- tomo de hidrogênio (apolar). Algumas vezes é
pos) classificado como polar, pois o grupamento
Insulina, Glucagon, A- Hormônios funcional lhe confere certa solubilidade.
CHT, GH b) Aminoácidos com grupamento R
Angiotensina Polipeptídio responsável
pela regulação do metabo- polar não-carregado: possuem grupamentos
lismo hídrico hidrofílicos na cadeia carbonada que não se
Receptores celulares Comunicação celular ionizam, porém conferem maior solubilidade
Miosina, Actina Contração muscular ao aminoácido. São eles:
Tubulina Citoesqueleto (divisão • Hidroxila: serina, treonina e tirosina;
célula)
Ovoalbunina (do ovo),
• Grupo Amida: asparagina e glutamina;
zeína (do milho), caseína Reserva energética • Sulfidrila: cisteína;
(do leite) A cisteína e a tirosina tem os grupa-
Albumina Humana Transporte plasmático de mentos R mais polares, sendo portanto os
compostos endógenos e mais solúveis desta classe. A cisteína, fre-
exógenos
qüentemente, ocorre nas proteínas em sua
Queratina (unhas), colá-
geno (tecido conjuntivo), Estrutural forma oxidada, a cistina, na qual a sulfidrila
elastina (tendões), fibroína (-SH) estão unidas formando pontes dissulfe-
(teia de aranha) to (S-S) que são ligações covalentes impor-
Hexoquinase, DNApoli- tantes na estabilização da molécula protéica.
merase, tripsina, lípase, Enzimas
A asparagina e a glutamina são amidas
amilase
do ácido aspártico e do ácido glutâmico, res-
pectivamente.
O grupamento funcional (amino e áci- c) Aminoácidos com grupamento R
do) é constante em todos os aminoácidos, polar carregado positivamente (básicos):
variando a composição da cadeia carbonada, lisina, arginina e histidina; todos possuem
denominada de grupamento R (Figura 7-1). grupamento R de 6 carbonos e a carga positi-
Esta grande variabilidade proporciona arran- va localiza-se em um átomo de nitrogênio do
jos incontáveis entre as cadeias peptídicas em R.
sua estrutura tridimensional bem como na d) Aminoácidos com grupamento R
função da proteína, uma vez que os diferentes polar carregado negativamente (ácidos):
aminoácidos possuem diferentes propriedades ácido aspártico e ácido glutâmico. São citados
químicas que, em conjunto, serão responsá- como aspartato e glutamato em virtude de se
veis pela função da proteína. ionizarem em pH fisiológico adquirindo carga
O estudo da composição e polaridade
do grupamento R permite agrupar os aminoá- negativa no grupamento carboxila (-COO-).
cidos em quatro classes distintas: Na Figura 4-2 estão representados
a) Aminoácidos com grupamento R todos os aminoácidos e na Tabela 4-2 estão
apolar ou hidrofóbico: são os menos solú- agrupadas as principais características dos
veis, devido à ausência de grupamentos hidro- aminoácidos utilizadas em sua classificação.
fílicos no grupamento R. São eles:
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 4: Aminoácidos e Proteínas 42

Figura 4-2 - Os aminoácidos presentes nas proteínas agrupados de acordo com a polaridade do grupamento R. A)
apolares com R = cadeia hidrocarbonada; B) apolares com R = anel aromático; C) apolar com R contendo S; D)
apolar com R = H; E) polar não carregado com R contendo OH; F) polar não carregado com R = amida; G) polar
não carregado com SH; H) polar carregado positivamente (bases); I) polares carregados negativamente (ácidos).

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 4: Aminoácidos e Proteínas 43

Tabela 4-2 - Principais características dos aminoácidos relacionadas com suas funções.
Grupamento R
Aminoácidos Símbolo Ceto- Glico- Essen- Não- Polar
gênico gênico cial essen- Não- Carregado Apolar
cial carregado (-) (+)
Alanina Ala (A) X X X
Arginina (1) Arg (R) X X X
Aspartato Asp (B) X X X
Asparagina Asn (N) X X X
Cisteína Cys (C) X X X
Fenilalanina Phe (F) X X X
Glicina (2) Gly (G) X X X
Glutamato Glu (Z) X X X
Glutamina Gln (Q) X X X
Histidina His (H) X X X
(3)
Isoleucina Ile (I) X X X X
Leucina Leu (L) X X X
Lisina Lys (K) X X X
Metionina Met (M) X X X
Prolina Pro (P) X X X
Serina Ser (S) X X X
Tirosina (4) Tyr (Y) X X X
Treonina (3) Thr (T) X X X X
Triptofano (3) Trp (W) X X X X
Valina Val (V) X X X
(1)
A arginina é produzida no hepatócito, porém consumida em grande escala na síntese da uréia, o que faz com
que seja classificada como essencial (pelo menos em crianças).
(2
) O R é um hidrogênio, o que faz com que o aminoácido, como um todo, possua certa polaridade devido ao
grupamento funcional, uma vez que o grupamento R é muito pequeno.
(3)
Aminoácido glicocetogênicos.
(4) A tirosina é sintetizada no ser humano a partir da fenilalanina, um aminoácido essencial

Aminoácidos raros e não- Outros aminoácidos têm ocorrência re-


lativamente rara e são isolados em alguns
codificados tipos de proteínas. Esses aminoácidos raros
são derivados de outros aminoácidos que se
Além de serem os blocos constituintes modificaram, quimicamente, para favorecer
das proteínas, existem vários aminoácidos que uma determinada função bioquímica da prote-
não estão presentes em nenhuma molécula de ína. Por exemplo: 4-hidroxi-prolina (deriva-
proteínas (aminoácidos não-codificados), do da prolina, encontrado em abundancia na
como, por exemplo: citrulina e ornitina (in- proteína estrutural colágeno), 5-hidroxi-
termediários do ciclo da uréia); homocisteína lisina (derivado da lisina, presente, também,
e homosserina (intermediários do metabo- no colágeno), desmosina e iso-desmosina (na
lismo dos aminoácidos); ácido γ-amino- proteína estrutural elastina, resultantes da
butírico (GABA, um neurotransmissor); ca- união de quatro moléculas de lisina com os
navanina, ácido djenkóiko e β- grupamentos R formando um anel que permi-
cianoalanina (aminoácidos tóxicos existentes te a elasticidade característica da proteína).
em alguns fungos); γ-carboxi-glutamato Os aminoácidos não se armazenam, ou
(formado por carboxilação do glutamato); pelo menos não possuem tecido destinado
fosfo-aminoácidos (formados por fosforila- somente para esse fim. Desta forma, a maioria
ção da hidroxila da serina e treonina ou no deles é destinada para a síntese de proteínas e
grupo fenólico da tirosina). o excesso proveniente da alimentação, se não
é degradado no metabolismo energético, é
destinado para a síntese de várias moléculas
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 4: Aminoácidos e Proteínas 44

importantes para o organismo como as puri- É o caso da fenilcetonúria onde a


nas e pirimidinas (aspartato e glutamina); deficiência da enzima fenilalanina-hidroxilase
esfingolipídios (serina); histamina (histidi- (ou de co-fatores) induz a um aumento da
na); tiroxina, melanina, dopamina e epine- fenilalanina no sangue e o aumento de sua
frina (tirosina); serotonina, melatonina e excreção urinária, levando a distúrbios neuro-
NAD+ (triptofano); purinas e porfirinas (gli- lógicos severos.
cina). Esta doença metabólica é identificada
ainda em crianças recém-nascidas pela dosa-
Erros inatos do metabolismo gem da fenilalanina no sangue (teste do pezi-
nho).
Na ausência das enzimas responsáveis A fenilalanina é o percussor da síntese
pela degradação de aminoácidos, há o seu de tirosina e outras doenças estão envolvidas
acúmulo no sangue com a excreção urinária e, em decorrência de deficiência no metabolis-
conjuntamente, o aparecimento de sintomato- mo da tirosina, como o albinismo decorrente
logia características de diversas síndromes de falha na síntese de melanina (pigmento
genéticas conhecidas como erros inatos do escuro da pele e pêlos), a tirosinose, o creti-
metabolismo. Essas alterações são devidas a nisno e a alcaptonúria.
erros genéticos na expressão ou controle das Na Figura 4-3 estão esquematizados
enzimas envolvidas no metabolismo de ami- os passos metabólicos envolvidos nessas do-
noácidos e são potencializadas quando há enças e que serão melhores definidos em ca-
aumento da ingestão de aminoácidos. pítulos posteriores, durante o estudo do meta-
bolismo das proteínas.

Figura 4-3 - Defeito na síntese ou controle das enzimas das vias metabólicas de aminoácidos podem levar a doenças
conhecidas como erros inatos do metabolismo. As setas pontilhadas indicam a existência de mais de um passo metabóli-
co. As enzimas deficientes são: 1) fenilalanina-hidroxilase (ou co-fatores como a 5,6,7,8-tetraidropterina); 2) via de sínte-
se do hormônio tiroidiano tiroxina ; 3) tirosinase; 4) homogentisato-dioxigenase; 5) via de síntese da melanina nos mela-
nócitos.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 4: Aminoácidos e Proteínas 45

Propriedades ácido-básicas dos Para melhor entender esses conceitos,


considere que se realizássemos uma titulação
aminoácidos de um ácido por uma base, teríamos, inicial-
mente, um pH ácido que iria aumentando
Os grupamentos amino e ácido, encon- proporcionalmente ao acréscimo de base (Fi-
tram-se na forma ionizada quando em solu- gura 4-4).
ção. Dependendo do pH, o grupamento amino
com carga positiva (forma catiônica) ou o
grupamento ácido com carga negativa (forma
aniônica), podem predominar. Porém, em
determinado pH (pH isoelétrico), haverá so-
mente uma forma dipolar (ou seja, positiva e
negativa ao mesmo tempo), onde será obser-
vada uma neutralidade elétrica na molécula.
Estes íons dipolares, são também cha-
mados de zwitterions (expressão alemã que
ao pé da letra significaria algo como "íons
hermafroditas"), predominam no pH isoe-
létrico (pHi). A forma catiônica predominará
em pH abaixo do pHi, enquanto que a forma
aniônica predominará em pH acima do pHi,
uma vez que abaixo ou acima do pHi haverá
deficiência ou excesso de H+ na solução, res-
pectivamente, o que varia a carga elétrica pois
o grupamento COO- receberá H+ e o NH3+
doará ser H+.
O valor do pHi varia de acordo com o
aminoácido e corresponde a um valor que Figura 4-4 - Em uma titulação convencional de
serve como identificador e classificador dos um ácido por uma base, a adição de base modifica
aminoácidos de acordo com a variação do pH o pH ácido original para básico passando pelo pH
neutro 7,0.
(Tabela 4-3). É um valor experimental deter-
minado, conhecendo-se a constante de disso- Esse aumento proporcional no valor o
ciação das reações químicas de igualdade de pH se dá porque cada molécula de base adi-
concentração entre as formas catiônicas com a cionada neutraliza uma de ácido (formando
forma dipolar (pK1) que ocorre em pH ácido água e o sal correspondente) até o valor de
e entre a forma aniônica com a forma dipolar equivalência entre a quantidade de bases e
(pK2) que ocorre em pH básico. O valor mé- ácidos, onde o pH é neutro (pH=7,0). É um
dio entre essas duas constantes, corresponde valor tênue, pois qualquer quantidade de base
ao pHi, que é um dado específico para cada adicionada a mais eleva o pH para a faixa
aminoácido, quando submetido a uma titula- alcalina.
ção: No entanto, se esta mesma titulação
fosse realizada com a adição de um aminoáci-
pK1 + pK2 do no meio a ser titulado, um gráfico repre-
pHi =
2 sentando a elevação do pH demonstraria duas
zonas de estabilização (uma em pH ácido e
Os valores de pK1 e pK2 correspon- outra em pH básico) indicando que há duas
dem aos valores de pH onde o aminoácido zonas de equilíbrio químico, onde não há a
funciona como um tampão durante uma curva variação do pH mesmo com a adição da base
de titulação. no meio ácido (Figura 4-5). Essas regiões
demonstram que os aminoácidos são respon-

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 4: Aminoácidos e Proteínas 46

sáveis por uma função tamponante (evitam Se relacionarmos em um gráfico o pH


variações bruscas de pH). em função dos equivalentes de uma base adi-
Uma solução tampão corresponde a cionada a uma solução ácida de um aminoáci-
uma solução em equilíbrio entre um ácido do, observaremos os pontos fundamentais no
fraco e sua base conjugada. No caso do ami- comportamento ácido-básico dos aminoácidos
noácido a forma ácida corresponde àquela que (Figura 4-6).
doa H+ (forma catiônica) e a base àquela que
recebe o H+ (forma aniônica). Como dentro
de uma molécula de aminoácido a perda e
ganho de H+ é um fenômeno interno, a forma
dipolar corresponde à base conjugada ou ao
ácido fraco, dependendo do pH.
Como a forma dipolar é a que ocorre
no pHi, toda vez que o pH cai abaixo do valor
do pHi (acidificação do meio), o aminoácido
recebe o H+ adicionado através da extremida-
de COO- tornando-se um cátion. Quando o
pH eleva-se acima do valor do pHi (alcalini-
zação do meio), o aminoácido torna-se um Figura 4-6 - A curva de titulação da glicina. O pHi
ânion devido à doação do H+ pelo grupamen- (somente formas dipolar isoelétricas) corresponde à
to NH3+ (Figura 4-5). média entre os valores de pK1 ([dipolar] = [catiônica])
e pK2 ([dipolar] = [aniônica]).

No início da titulação, teoricamente,


só existe a forma catiônica em virtude de o
aminoácido funcionar como um receptor de
prótons, ou seja, como uma base. Ao adicio-
nar uma base (OH-) ao sistema, começa a
haver a neutralização com o aparecimento da
forma dipolar até um determinado ponto em
haverá igualdade de concentração entre as
duas formas, entrando o sistema em equilí-
brio, correspondente ao pK1.
Prosseguindo a titulação, com o au-
mento do pH em virtude do aumento gradual
da concentração de base, começará a predo-
minar a forma dipolar com a queda propor-
cional da forma catiônica até um ponto onde
só haverá a forma dipolar. Neste ponto, o pH
corresponderá ao pH isoelétrico (pHi) onde o
sistema se apresentará eletricamente neutro.
Ao se adicionar mais base, há o apare-
cimento da forma aniônica até um determina-
do ponto em que haverá igualdade na concen-
Figura 4-5 - As três formas carregadas dos aminoáci- tração entre a forma dipolar e a aniônica, en-
dos. A forma dipolar corresponde àquela que contém um trando o sistema, novamente, em equilíbrio
pólo positivo em NH3+ e outro negativo em COO- (a agora entre a forma dipolar e a forma aniôni-
carga final é neutra) e corresponde à única forma exis- ca, correspondente ao pK2.
tente no pHi. A forma catiônica está presente em qual-
quer valor de pH abaixo do pHi, enquanto que a aniôni- Adicionando mais base, haverá a pre-
ca é típica do aumento do valor do pH acima do valor do dominância da forma aniônica até o pH 14
pHi. onde, teoricamente, só haverá a forma catiô-
nica.
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 4: Aminoácidos e Proteínas 47

Na Tabela 4-3, podemos observar os pKn + pK(n + 1)


valores do pHi dos 20 aminoácidos codifica- pHi =
2
dos e os valores de pK1 e pK2.
Alguns aminoácidos apresentam um
Onde n é o número de grupos básicos
terceiro platô de estabilidade em sua curva de
(+) existentes na molécula. Assim, todos os
titulação (pK3) que correspondente a um ter-
aminoácidos possuem n = 1 devido ao gru-
ceiro momento de equilíbrio durante a titula-
pamento NH3+, com exceção dos aminoácidos
ção, induzido pelo grupamento R (o pK3 é
básicos arginina, histidina e lisina que possu-
freqüentemente denominado de pKR).
em n = 2, pois o R possui um N+ (ver fórmula
Observa-se, porém, que somente nos
estrutural na Figura 4-2).
aminoácidos de grupamento R carregado po-
Essas informações acerca da proprie-
sitivamente (arginina, histidina e lisina)
dade ácido-básica dos aminoácidos são fun-
possuem o pHi resultante entre a média do
damentais para a compreensão da função das
pK2 e o pK3, sendo o valor do pK1 sem valor
proteínas como um tampão intracelular e,
para a determinação do pHi. Especialmente
também, dos métodos de identificação dos
nesses aminoácidos, o valor do pHi estará
aminoácidos e de separação das proteínas que
sempre na faixa básica o que não acontece
se baseiam na capacidade de aminoácidos e
com os demais aminoácidos de R polar.
proteínas mudarem de carga elétrica de acor-
Tabela 4-2: Valores de pK e pHi de aminoácidos a
do com o pH do meio.
25oC. Desta forma, se tivermos uma solução
Aminoácido pK1 pK2 pK3 pHi contendo uma mistura de três aminoácidos
(pKR) como a alanina, arginina e aspartato, basta
Alanina 2,34 9,69 - 6,00 variar o pH do meio nos valores de seu pHi
Arginina * ( )
2,17 9,04 12,48 10,76 (ver Tabela 4-2) que obteríamos a mudança
Asparagina 2,02 8,80 - 5,41 de carga de forma diferente. Ajustando-se o
Aspartato 1,88 3,65 9,60 2,77 pH desta mistura primeiramente para 2,77
Cisteína 1,96 8,18 10,28 5,07 somente o aspartato assumiria 100% de forma
Fenilalanina 1,83 9,13 - 5,48
dipolar e não seria atraído, portanto pelo
Glicina 2,34 9,60 - 5,97
Glutamato 2,19 4,25 9,67 3,22
campo eletromagnético, enquanto que os de-
Glutamina 2,17 9,13 - 5,65 mais aminoácidos assumiriam carga elétrica
Histidina (*) 1,82 6,0 9,17 7,59 positiva pois o pH 2,77 está abaixo do valor
Isoleucina 2,36 9,68 - 6,02 de seus pHi. Da mesma forma pode-se identi-
Leucina 2,36 9,60 - 5,98 ficar os demais aminoácidos sabendo-se o seu
Lisina (*) 2,18 8,95 10,53 9.74 pHi.
Metionina 2,28 9,21 - 5,74 Vários métodos de purificação, sepa-
Prolina 1,99 10,60 - 6,30 ração, identificação e dosagem de aminoáci-
Serina 2,21 9,15 - 5,68
dos e proteínas utilizam essa propriedade áci-
Tirosina 2,20 9,11 10,07 5,66
Treonina 2,63 10,43 - 6,53
do-básica como fundamento do método (co-
Triptofano 2,38 9,39 - 5,89 mo será abordado no capítulo sobre instru-
Valina 2,32 9,62 - 5,96 mentação laboratorial).
( )
* Os aminoácidos básicos possuem valor de pHi cor-
respondente à média entre o pK1 e o pK3 (pKR) sendo
os únicos com pHi na faixa básica de pH. (Adaptado
Estrutura das proteínas
de VIEIRA, 1991, p.47).
Devido à característica anfótera dos
Levando em consideração que o PK3 aminoácidos (podem ser cátions ou ânions) e
influencia somente na determinação do pHi a capacidade de modificação da carga elétrica
de aminoácidos básicos, a fórmula que define do grupamento R observada em vários ami-
com mais precisão o valor do pHi é: noácidos (Tabela 4-2) as proteínas terão con-
formação estrutural bastante diversificada

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 4: Aminoácidos e Proteínas 48

uma vez que os aminoácidos se relacionarão Esta flexibilidade da molécula protéi-


entre si de maneira variada. ca dada pelo Cα, confere uma grande versati-
Entretanto, quando há a ligação peptí- lidade à proteína, o que faz de sua estrutura
dica, os grupamentos amino e ácido fundem- tridimensional o ponto chave para sua função.
se formando uma ligação covalente extrema- Desta forma, a perda da configuração espacial
mente rígida devido a um rearranjo entre os modifica completamente sua função, podendo
elétrons da ligação peptídica, formando uma até significar a destruição da proteína.
dupla ligação e polarizando a ligação peptídi- Entretanto, esta flexibilidade é limita-
ca (Figura 4-6). da pela existência de interações químicas en-
tre as cadeias peptídicas e entre os grupamen-
tos R dos resíduos de aminoácidos, seja in-
termolecular ou com outros compostos quími-
cos alheios à composição original da proteína.
Cada tipo de proteína possui uma con-
figuração tridimensional peculiar que é de-
terminada pela seqüência de aminoácidos e
pelo grau de inclinação entre as ligações quí-
micas (proporcionada pelos arranjos intermo-
leculares), que proporcionará pelo menos três
níveis distintos de conformação estrutural:
1) Estrutura primária: diz respeito à
seqüência de aminoácidos, dada pela seqüên-
cia de nucleotídeos da molécula de DNA res-
ponsável por sua síntese. Esta seqüência deve
ser fundamentalmente mantida, sob o peso de
a proteína perder sua função, como é o caso
da presença de valina ao invés de glutamato
no sexto aminoácido da cadeia polipeptídica
Figura 4-6 - Propriedades das ligações peptídicas em um
tetrapeptídio. A) Esquema didático das ligações peptídicas; da hemoglobina, que causa a doença genética
as setas indicam que os elétrons da dupla ligação são atraídos denominada de anemia falciforme. A ausên-
pelo oxigênio da carboxila. B) Ligações peptídicas em equi- cia ou acréscimo de aminoácidos à estrutura
líbrio de ressonância; a ligação dupla agora formada entre C primária das proteínas, também pode ser res-
e N dão rigidez à ligação e as setas indicam o ponto flexível ponsável por modificação em sua eficácia
(Cα). C) Representação do plano tridimensional das ligações
peptídicas; as setas indicam as pontes de hidrogênio que
funcional.
estabilizam a estrutura.
2) Estrutura secundária: relaciona a
A flexibilidade dada pelo Cα é devido forma que a cadeia polipeptídica assume no
ao fato de ele ser assimétrico (ligado a quatro espaço, que pode ser de α-hélice ou β-folha
grupos diferentes: NH3+, COO-, H e R) o que pregueada. A conformação em α-hélice é
lhe garante livre rotação em seu eixo, for- conferida através do ângulo de torção que os
mando isômeros ópticos (ver Figura 7-1). Os resíduos de aminoácidos apresentam na liga-
aminoácidos levógiros (L-aminoácidos) são os ção peptídica, estabilizada por pontes de hi-
únicos isômeros presentes nas proteínas dos drogênio entre o oxigênio do grupamento
seres vivos o que faz com que os dextrógiros carboxila de um Cα e o H do grupamento
(D-aminoácidos) não sejam aproveitados du- amino do outro aminoácido (Figura 4-7).
rante o processo metabólico. Esta preferência
não tem uma explicação química evidente, o
que pode ser explicado, dentro de um contex-
to evolucionário, como uma seleção ao acaso
de um aminoácido em detrimento ao outro
durante o processo de evolução das espécies.
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 4: Aminoácidos e Proteínas 49

Figura 4-8 – A forma de β-folha pregueada ocorre


entre duas cadeias peptídicas dentro da molécula
protéica, resultante entre pontes de hidrogênio entre
Figura 4-7 - A forma de α-hélice é possível graças à elas, resultando em um dobramento entre os amino-
formação de pontes de hidrogênio entre os grupamen- ácidos sobre si formando um ângulo característico
tos funcionais dos aminoácidos da ligação peptídica e que lembra as folhas pregueadas dos formulários
ao posicionamento contrário dos grupamentos R. contínuos para computadores.

A forma de β-folha pregueada é possível


graças a pontes de hidrogênio que ocorrem
entre duas partes da cadeias polipeptídicas
(Figura 4-8) dentro da molécula protéica.
Uma proteína pode apresentar os dois tipos de
organização secundária dentro de sua molécu-
la (Figura 4-9).

3) Estrutura terciária: corresponde às


relações da cadeia polipeptídica no sentido de
estabilizar a conformação tridimensional.
Muitos tipos de interações químicas podem
ocorrer dentro de uma molécula protéica para
garantir a estabilidade das cadeias polipeptí-
dicas. As mais fortes são as ligações covalen-
tes, como a que ocorre entre dois aminoáci-
dos cisteína que se unem através de pontes Figura 4-9 – Estrutura molecular da enzima da glicó-
lise triose fosfato isomerase que apresenta regiões
dissulfetos entre seus grupamentos –SH for- em α-hélice (espirais em azul) e em β-folha pregue-
mando o complexo cistina (Figura 4-10). ada (setas vermelhas) (Adaptado de Devlin, T.M.,
1999).
Há, ainda a formação de pontes de hi-
drogênio, interações eletrostáticas e intera-
ções fracas de van der Waals entre os grupa-
mentos R

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 4: Aminoácidos e Proteínas 50

Figura 4-11 - Estrutura terciária final da mio-


Figura 4-10 – A união covalente entre dois aminoácidos globina, uma proteína formada por apenas uma
cisteína entre seus grupamentos –SH, gera uma ponte cadeia peptídica. (Adaptado de Devlin, T.M.,
dissulfeto formando um grupo cistina extremamente 1999).
rígido que mantém a estrutura terciária das proteínas.

Esta estrutura terciária é comum a to-


das proteínas e polipeptídios (cerca de 50
aminoácidos). Algumas proteínas contêm
apenas uma cadeia polipeptídica (p.ex.: mio-
globina, Figura 4-11) enquanto outras são
composta por mais de um tipo iguais ou dife-
rentes entre si (proteínas oligoméricas), co-
mo é o caso da hemoglobina (Figura 4-12) e
das γ-globulinas com 2 pares de cadeias idên-
ticas; e da glutamina-sintetase bacteriana
com 12 cadeias idênticas.

4) Estrutura quaternária: é o arranjo espa-


cial entre cadeias peptídicas das proteínas
oligoméricas, definida por interações não-
covalentes entre as cadeias peptídicas e outros
compostos de origem não protéica que, fre- Figura 4-12 – Estrutura quaternária da hemoglobina,
qüentemente, fazem parte da proteína. Algu- uma proteína oligomérica formada por quatro cadeias
peptídicas unidas por grupamentos prostéticos heme.
mas proteínas são formadas por várias cadeias (Adaptado de Devlin, T.M., 1999).
peptídicas unidas por ligação covalente e,
portanto, não apresentam estrutura quaterná- A configuração espacial final das pro-
ria (p.ex.: a enzima digestiva α- teínas (estrutura terciária ou quaternária) é
quimotripsina possui três cadeias peptídicas constante e determinante das funções biológi-
ligadas covalentemente por pontes dissulfeto). cas por elas exercidas.
A estrutura quaternária, portanto diz respeito As proteínas globulares são esferas
ao arranjo não covalente formado por várias compactas e irregulares resultantes do enove-
cadeias polipeptídicas como é o caso da he- lamento da cadeia polipeptídica. São bastante
moglobina, da enzima aspartato transcar- solúveis em água corresponde à principal for-
bamilase com 12 cadeias e da proteína do ma das enzimas.
vírus do tabaco com 2.120 cadeias polipeptí- As proteínas fibrosas têm suas cadei-
dicas unidas não covalentemente. as polipeptídicas arranjadas de forma paralela
e dispostas em feixes (Figura 4-13), possuin-
do grande resistência física à distensão da
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 4: Aminoácidos e Proteínas 51

molécula (p.ex.: colágeno e queratina). Al- Proteínas conjugadas


gumas proteínas têm os dois tipos de confor- Muitas proteínas apresentam em sua
mação, como é o caso da miosina muscular e composição, moléculas não protéicas ligadas
do fibrinogênio. de forma covalente ou não aos aminoácidos
das proteínas, denominados, genericamente,
A B de grupo prostético.
A hemoglobina (Figura 4-12) é uma
proteína conjugada cujo grupamento prostéti-
co é são quatro grupamentos hemes (Figura
4-14) que se ligam de forma não covalente às
cadeias peptídicas.

Figura 4-13 - Representação


esquemática da estrutura de
proteínas fibrosas e globula-
res. A) estrutura do colágeno
evidenciando as cadeias pep-
tídicas unidas em feixes e
estabilizadas por pontes de
hidrogênio. B) a enzima
\ fosfoglicerato mutase e seus
dois domínios globulares.
(Adaptado de Devlin, T.M.,
1999)
Figura 4-14 - O grupamento heme e seu anel
A exposição de proteínas a pH extre- tetrapirrólico ligado ao ferro reduzido.
mos ou temperaturas elevadas, mesmo por Um grupo importante de proteínas
períodos curtos, faz com que a maioria delas conjugadas são as glicoproteínas que estão
apresentem modificações físicas em sua con- presentes na superfície celular (p.ex.: muci-
formação tridimensional e em sua função fisi- na), fazem parte de proteínas estruturais (p.
ológica, processo conhecido como desnatu- ex.: o colágeno), são hormônios (p.ex.: gluca-
ração. A visualização geralmente é pela for- gon) ou receptores de membrana. A glicose
mação de precipitado esbranquiçado e a mu- liga-se de maneira irreversível a uma fração
dança tridimensional é configurada no dese- da hemoglobina (hemoglobina glicada) e
novelamento das cadeias polipeptídicas. permite a monitoração da concentração de
Fisiologicamente, condições extremas glicose plasmática (glicemia) até 120 dias
de desnaturação protéica são obtidas com (vida média da hemoglobina) antes da coleta
variação brusca acima de 50oC e pH abaixo de sangue. Outra fração de glicose fixa-se à
de 5,0, ambas condições incompatíveis com a albumina formando as frutosaminas que, à
vida. Desta forma, o desenovelamento protéi- maneira da hemoglobina glicada, monitora a
co em hipertermia ou acidoses leva a diminu- glicemia anterior da coleta em até 30 dias
ição ou até perda da função protéica, mas que (vida média das albuminas).
se mostra reversível quando cessa a causa da As lipoproteínas são importantes
variação de temperatura e/ou pH. Este proces- transportadoras dos lipídios plasmáticos, prin-
so de renaturação, entretanto não é visuali- cipalmente os triglicerídeos e o colesterol. De
zado em condições experimentais extremas acordo com a variação das lipoproteínas
onde a desnaturação protéica é irreversível. pode-se avaliar o risco para doenças cardíacas
coronarianas.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 4: Aminoácidos e Proteínas 52

EXERCÍCIOS
1. Comente a classificação dos aminoácidos
quanto a composição da cadeia R.
2. Conceitue aminoácidos essenciais, não-
essenciais, glicogênicos, cetogênicos e
glicocetogênicos.
3. O que são aminioácidos raros e não-
codificados?
4. Qual a importância dos aminoácidos no
estudo dos erros inatos do metabolismo?
5. Comente sobre a propriedade ácido-básica
dos aminoácidos.
6. Conceitue os vários níveis de organização
estrutural das proteínas.

REFERÊNCIAS DA INTERNET
Fundamentos de Bioquímica:
www.fundamentosdebioquimica.hpg.com.br

Webioquímica
www.pucpr.br/disciplinas/bioquimica/Webio1.html

3D Images of proteins
www.imb-jena.de/IMAGE.html

Ricardo Vieira
Capítulo 5
Enzimas
A
s enzimas são proteínas espe- reagentes (aqui denominados de substrato)
cializadas na catálise de rea- para convertê-las nos produtos, de uma ma-
ções biológicas, ou seja, elas neira a diminuir a energia necessária para le-
proporcionam que as reações químicas tor- var estes substratos ao estado de ativação e-
nem-se muito mais rápidas que a reação não nergética caracterizado por uma molécula em
catilada (a enzima nuclease estafilocócia ace- transição entre o substrato e o produto.
lera a reação em 5,6x1014 vezes!),o que as Freqüentemente, utiliza-se a analogia
coloca entre as biomoléculas mais importan- da chave-e-fechadura para designar a especi-
tes para o ser vivo havendo situações onde ficidade de uma enzima para seu substrato.
uma pequena queda ou aumento na atividade Porém esta comparação perde força quando se
enzimática acarreta problemas fisiológicos conhece enzimas que possuem mais de um
sérios. tipo de substrato ou substratos que sofrem a-
A própria evolução do conhecimento ção enzimática por mais de uma enzima. A-
bioquímico tem nas enzimas sua gênese, com lém disso, o próprio espaço existente para a
a descoberta do poder catalítico do suco gás- realização da ação enzimática não é tão “aper-
trico sobre as proteínas e da saliva sobre o tado” quanto pode sugerir uma chave-e-
amido no início do século XIX. Louis Pas- fechadura. Entretanto o encaixe espacial entre
teur, em 1850, postulou que as reações fer- a molécula do substrato com a enzima de-
mentativas do levedo, convertendo açúcar em monstra um preciosismo próprio das melhores
álcool, eram devidas a substâncias existentes chaves-e-fechaduras, abrindo as portas para as
dentro do levedo, as quais foram posterior- reações bioquímicas.
mente denominadas de enzimas (derivado do A ligação entre uma enzima a outra
latim en = dentro + zima = levedo). molécula se dá de maneira complexa, uma
Com o isolamento das enzimas fer- vez que há a formação de muitas ligações fra-
mentativas do levedo em 1897, teve início a cas entre os átomos componentes das molécu-
era mais produtiva da pesquisa em bioquímica las. As únicas ligações fortes que ocorrem
surgindo as principais hipóteses do funciona- nesta interação enzimática são as que ocorrem
mento das enzimas dentro da célula. Em entre partes das moléculas que se encaixam
1926, o isolamento da enzima urease, estabe- perfeitamente no plano tridimensional.
leceu a natureza protéica das enzimas, crian- A região da enzima onde ocorre este
do-se o conceito de que todas as enzimas são encaixe é denominada de sítio de ligação ou
proteínas, mas nem todas as proteínas são en- sítio catalítico e corresponde, geralmente, a
zimas. Na década de 80, entretanto, foram um entalhe na estrutura da molécula da enzi-
identificadas moléculas de RNA que possuem ma formado por uma seqüência de aminoáci-
atividade catalítica, as ribozimas, o que pôs dos que garante a forma de uma cavidade (Fi-
abaixo aquele conceito quase que dogmático. gura 5-1). Os demais aminoácidos da enzima
As enzimas, entretanto, são um capítu- são responsáveis por manter a forma deste
lo à parte no estudo das proteínas e, sem dú- sítio de ligação, havendo um ou mais sítios de
vida nenhuma, possuem suas bases de conhe- posicionamento que facilitam a ligação com
cimento voltadas para a compreensão da es- a molécula de substrato formando um com-
trutura tridimensional protéica. plexo reversível enzima-substrato. No subs-
Como uma proteína, uma enzima de- trato, há sempre um grupamento que favorece
pende da estrutura terciária (ou quaternária) uma ligação suscetível com o sítio catalítico
para exercer sua função catalisadora, uma vez da enzima.
que tem que interagir com as moléculas dos
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 5: Enzimas 54
A ligação do substrato com a enzima Existem várias enzimas que são pro-
forma um complexo enzima-substrato que duzidas em tecidos diferentes e catalisam a
logo se dissocia liberando a enzima intacta e o mesma reação, porém apresentam caracterís-
substrato, agora convertido no produto. De- ticas químicas ou físicas diferentes. Elas são
pendendo do tipo de enzima, esta reação pode chamadas de isoenzimas e, freqüentemente,
ocorrer entre mais de uma molécula e liberar podem apresentar afinidade diferente pelo
uma ou mais moléculas de produto. substrato.

Figura 5-1 – A ligação entre a enzima (estrutura maior,


em vermelho) e o substrato (estrutura menor, em amare-
lo): A) o encaixe se dá pelo sítio catalítico da enzima.;
B) há a formação de um complexo enzima-substrato; C)
o substrato é convertido no produto (a estrutura em a-
zul); D) o produto é liberado, regenerando a molécula de
enzima.

Algumas enzimas são formadas exclu-


sivamente por aminoácidos (p.ex.: a ribonu-
Figura 5-2 – A ligação da enzima com um co-fator
clease pancreática), porém, a maioria precisa é o permite a ação enzimática sob um substrato.
de um co-fator que funciona como uma espé- Neste caso, a enzima sem o co-fator (apoenzima)
cie de “calço molecular” permitindo o encaixe não possui ação catalítica, ma somente o complexo
perfeito da enzima com o substrato e propor- enzima/co-fator (holoenzima).
cionando a quebra da estrutura original da As isoenzimas possuem importância
molécula do substrato, iniciando a formação em interpretações clínicas por interferir no
do produto final da reação enzimática (Figura diagnóstico laboratorial de certas doenças. É o
5-2). cso da fosfatase alcalina, uma enzima hepáti-
Esses co-fatores podem ser íons metá- ca que tem a concentração plasmática aumen-
licos (Fe++, Mn++, Zn++) ou compostos orgâ- tada na obstrução hepática, e que possui uma
nicos denominados coenzimas (p.ex.: vitami- isoenzima produzida pela placenta em mulhe-
nas hidrossolúveis como a B6, B12, biotina0 res grávidas. Neste caso, mulheres grávidas
etc.). Algumas enzimas utilizam um ou outro podem ter um diagnóstico errôneo de obstru-
tipo de co-fator ou ainda ambos, com a parte ção hepática se o clínico não avaliar a possibi-
protéica denominada apoenzima e o comple- lidade de um aumento da fosfatase alcalina
xo enzima/co-fator denominado holoenzima. ser em virtude da gravidez e não de um pro-
Em alguns casos, a ligação da enzima blema hepático.
com o co-fator não se faz de maneira perma-
nente, porém quando esta ligação é estável, o
co-fator faz parte da enzima e é denominada Classificação das enzimas
de grupo prostético.
Primariamente, as enzimas foram de-
nominadas pela adição do sufixo –ase ao no-
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 5: Enzimas 55
me do substrato (p.ex.: amilase, urease, argi- drogenases OH Æ =O e C-NH2 Æ NH
nase) ou por nomes empíricos (p.ex.: pepsina, possuem o NAD(P) como coenzima, en-
tripsina). quanto que as C-C Æ C=C são ligadas ao
Normalmente, ao invés das denomina- FAD.
ções empíricas, as enzimas são denominadas • Desaturases: formação de ligação dupla
pela reação que executam sobre determiando em ácido graxo.
substrato, podendo, entretanto, ser denomina- • Hidroxilases: facilita a oxidação de dois
da pelo nome comum quando o nome se mos- doadores com a incorporação de oxigênio
trar extenso ou complexo de ser denominado. em um dos doadores. O outro substrato é
Assim sendo, a enzima hexoquinase, oxidado, sendo formado água. O produto
que catalisa a transferência de um grupamento final é identificado pela incorporação de
fosfato do ATP para a glicose, é denominada uma –OH em sua molécula.
de ATP-glicose transferase, porém é mais • Oxidases: há a redução do oxigênio mole-
conhecida pelo primeiro nome. cular
Atualmente, existe uma classificação • Oxigenases: há a adição de oxigênio em
de uso internacional para as enzimas, onde uma molécula
são agrupadas em seis classes de acordo com • Redutase: uma hidrogenase que reduz o
a reação que catalisa e cada classe é subdivi- substrato.
dida em várias subclasses. As classes e sub-
classes recebem números que as identificam Tabela 5-1: Classificação das enzimas
e, desta maneira, permitem a classificação das Classes Reação catalisada Subclasses
enzimas em grupos de ação enzimática. Por Oxirreduta- Transferência de Desidrogenases
exemplo, a amilase, enzima que degrada o ses elétrons Desaturases
Hidroxilases
amido, é identificada pelo número 3.2.1 (clas- Oxidases
se 3 = grupo das hidrolases; primeira subclas- Oxigenases
se de número 2 = grupos das hidrolases que Redutases
quebram de carboidratos; segunda subclasse Transferases Transferência de Quinases
de número 1 = as glicosidases). grupos algumas Mutases
Fosforilases
Esta forma de classificação enzimática
Polimerases
não tem grande popularidade em virtude da Transaldolases
dificuldade de fixação de todas as subclasses Transcetolases
existentes, porém é a forma internacionalmen- Transaminases
te aceita e obrigatoriamente uma enzima em- Hidrolases Transferência de Esterases
zima estudada em trabalhos científicos deve grupos funcionais Lípases
para a água Nucleosidases
ser devidamente identificada por esta nomen- Nucleotidases
clatura. Peptidases
Entretanto, acima de forma complica- Fosdatases
da de identificação das enzimas, esta classifi- Sulfatases
cação internacional possui o metido de agru- Liases Adição de grupos a Aldolases
duplas ligações ou Descarboxilases
par as enzimas em seus principais grupos e o inverso Hidratases
facilitar o estudo dos diversos tipos de ação Sintases
enzimática. Na tabela 5-1 estão citadas as Isomerases Transferência de Epimerases
principais classes e subclasses das enzimas. grupos dentro da algumas Mutases
A seguir, estão descritas as classes de molécula produ- Racemases
zindo isômeros
enzimas e suas principais subclasses, especi-
Ligases Formação de liga- Carboxilases
ficando-se a reação a qual catalisa. ções C—C, C—S, Sintetases
C—O e C—N por
CLASSE 1 - Oxirredutases: catalisam rea- condensação com
ções onde há troca de elétrons (oxi-redução). gasto de energia do
ATP
• Desidrogenases: facilita a transferência de
hidrogênio. De uma maneira geral, desi-

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 5: Enzimas 56
CLASSE 2 - Transferases: transferência de • Epimerases: promove a interconversão de
grupos de uma molécula para outra. epímeros (carboidratos que diferem pela
• Quinases: transfere grupos de alta energia. posição de apenas uma hidroxila).
• Mutases: move grupo de um ponto para o • Mutases: transferência de grupamentos em
outro da molécula uma mesma molécula formando isômeros.
• Fosforilases: quebra de uma ligação C—O • Racemases: formação de isômeros especu-
pela adição de Pi. lares inversos.
• Polimerases: reações de adição de uma
unidade de polimerização.
• Transaldolases: transfere um grupamento CLASSE 6 - Ligases: união de duas molécu-
aldeído de um substrato para outro. las acopladas à quebra de ATP.
• Transcetolases: o grupamento cetona é • Carboxilases: adição de CO2.
movido de uma molécula para outra. • Sintetases: ligação de duas moléculas com
• Transaminases (aminotrasnferase): quebra de pirofosfato (P—P).
transfere um grupamento amino de um a-
minoácido para um cetoácido. Por que as enzimas são catalisa-
CLASSE 3 - Hidrolases: quebra moléculas
dores tão eficazes?
por hidrólise.
As enzimas são essenciais para o me-
• Esterases: hidrolisa um éster em álcool e
tabolismo celular devido a vários fatores que
ácido.
envolvem seu papel que vão desde uma “eco-
• Lipases: promovem a quebra de ligações nomia” energética celular até a extrema adap-
ésteres entre um ácido graxo e o glicerol. tação às condições biológicas intracelulares.
• Nucleosidases: degrada nucleosídeos em
base nitrogenada + ribose. a) Ações na “economia” energética celular:
• Nucleotidases: degrada nucleotídeos em As enzimas são excelentes catalisado-
nucleosídeos + Pi. res biológicos por diminuir a necessidade e-
• Peptidases: quebra de ligações peptídicas. nergética para que as reações bioquímicas a-
• Fosfatases: hidrólise de ésteres, liberando conteçam, o que, por si só, já torna a reação
Pi. mais rápida e eficiente. Outros efeitos levam a
• Sulfatases: hidrólise liberando sulfato. aumentar a eficácia da reação enzimática, mas
sem dúvida essa “economia” celular é funda-
CLASSE 4 - Liases: corta ou sintetiza liga- mental para a compreensão da importância
ções C—C, C—O e outras, por reações que das enzimas para a biologia celular.
não oxidação ou hidrólise e sem envolvimen- Entretanto, as enzimas não alteram a
to de reações de transferência de grupamentos energia livre (G) da reação, em vez disso,
de uma molécula para outra. exercem sua função catalisadora reduzindo a
• Aldolases: forma ligação C—C após a li- energia de ativação (GAt) das reações quími-
gação de um aldeído ou cetona com outro cas, promovendo uma via de reação onde os
composto bioquímico. produtos são formados de maneira mais rápi-
• Descarboxilases: catalisa a remoção de da, com menos gasto de energia (Figura 5- 3).
CO2. Um aumento na energia livre em um
• Hidratases: liberação de água durante a sistema reacional corresponde à liberação da
formação do produto. energia existente dentro das moléculas e que é
• Sintases: catalisa uma síntese onde não há liberada quando os substratos são convertidos
gasto de ATP. em produtos. Assim, as reações exotérmicas
(aquelas que provocam um aumento da tem-
CLASSE 5 – Isomerases: formação de isô- peratura do meio) possuem valores negativos
meros. para a variação da energia livre (∆G) uma vez
que os produtos situam-se em patamares de

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 5: Enzimas 57
energia livre menores do que quando eram meio deixando um déficit energético após a
substratos, pois liberaram energia para o meio conversão dos substratos em produtos.
(e por isso o meio aquece). Na natureza, as reações químicas ten-
Pelo raciocínio inverso, as reações dem a ocorrer espontaneamente na direção
endotérmicas (aquelas que consumem calor onde há a dissipação da energia, ou seja, no
do meio) possuem valores de ∆G positivos, sentido em que a entropia (grau de desorga-
pois os substratos acumularam energia além nização) aumenta. Isto significa dizer que em
daquela que tinham inicialmente. Nesta situa- reações espontâneas, o produto final possui
ção, evidencia-se uma queda da energia livre uma variação de energia livre com valores
no sistema reacional, com os produtos “rou- negativos, indicando a natureza exotérmica
bando” calor do meio para poderem ser for- das reações. Em bioquímica, tal calor de rea-
mados. ção é utilizado para a realização de trabalho
celular e o termo mais adequado para esse
tipo de reação é exergônica.
Então, há uma tendência natural de ser
mantida os níveis energéticos antes e depois
da formação dos produtos, havendo apenas a
redistribuição da energia entre os produtos e o
meio reacional. Esses conceitos dizem respei-
tos aos princípios gerais da termodinâmica,
onde a conservação da energia (primeira lei) e
a mudança para níveis de maior entropia (se-
gunda lei) são leis universais para as reações
envolvendo a produção e consumo de energia
(para maiores informações, ver Capítulo sobre
Figura 5-3 – As enzimas diminuem a energia de ativação Bioenergética).
necessária para converter os substratos em produtos. A vari- As enzimas não modificam o processo
ação da energia livre, entretanto, não é alterada em relação à de produção ou consumo energético de uma
reação não catalisada. reação química, não alteram o equilíbrio da
reação, mas aumentam a velocidade da reação
A energia de ativação corresponde a por diminuir a energia de ativação dos subs-
uma determinada quantidade de energia que tratos. Isto acontece devido à conversão dos
os substratos necessitam receber para atingir substratos em produtos ocorrer pela facilita-
um nível energético de instabilidade que de- ção do alinhamento tridimensional entre os
sencadeie sua conversão em produto. De uma substratos, exigindo uma energia bem menor
forma geral, esta energia advém do meio rea- para a quebra do limiar energético para a for-
cional e está relacionada à afinidade existente mação dos produtos.
entre os substratos, além da direção energética Esta poderosa ação catalítica é possí-
da reação. Logo, para que uma reação ocorra, vel graças à forma tridimensional do sítio de
é necessário que o substrato receba energia catalítico da enzima (e o co-fator, na maioria
elevando seu estado de excitação molecular das vezes) com o substrato que permite uma
até um ponto em que possibilite sua conver- rápida reação, ao invés da reação não catali-
são em produto. sada que necessitaria de um movimento e ali-
Todas as reações químicas ocorrem nhamento aleatórios.
desta maneira, tanto as exotérmicas quanto às Poderíamos, portanto, generalizar uma
exotérmicas. Nas reações exotérmicas a ener- reação enzimática como:
gia de ativação recebida é devolvida comple- S + E Æ ES Æ EP Æ P + E
tamente para o meio, acrescida de mais ener- Onde S = substrato(s); E = enzima
gia decorrente do processo exotérmico. Nas (mais cofator, quando for o caso); ES = com-
reações endotérmicas, a energia de ativação plexo enzima substrato, EP = estágio que an-
recebida não é liberada totalmente para o tecede a liberação de P = produto(s).

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Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 5: Enzimas 58
Nota-se que a formação de ES é limi- fígado para o sangue. Quando o indivíduo não
tante para a reação e ocorre em um tempo consegue sintetizá-la em concentrações ade-
mais rápido do que ocorreria se não houvesse quadas (em virtude de uma doença genética
a catálise enzimática. denominada de Doença de von Gierke) a gli-
Apesar de, teoricamente, as reações cose tende a se acumular nas células hepáticas
catalisadas por enzimas poderem ocorrer na e acaba sendo degradada por uma outra enzi-
sua ausência, em termos fisiológicos isto, na ma que, naturalmente, a degradaria em menor
maioria das vezes, é impossível. Por exemplo, velocidade. Esta nova enzima que passa a tra-
um mol de glicose (180g) quando convertida balhar mais, a glicose-6-desidrogenase, leva
totalmente em energia em equipamentos de à síntese de pentoses em grande quantidade e
laboratório, libera cerca de 680 kcal após gas- esta, por sua vez, acaba sendo convertida em
tar quase 200 kcal como energia de ativação bases nitrogenadas de onde a adenina e a gua-
para convertê-la em H2O e CO2. nina em excesso irão ser convertidas em áci-
Entretanto a mesma reação realizada do úrico que, finalmente, acaba se depositan-
nas células gasta somente cerca de 20 kcal (10 do nas articulações e causando uma doença
vezes menos energia) a título de energia de extremamente dolorosa denominada gota.
ativação, liberando os mesmos 680 kcal, isso Esta é apenas uma das muitas rotas metabóli-
graças à incrível economia proporcionada pe- cas em que o ácido úrico pode ser sintetizado
las enzimas do metabolismo energético. Por- devido a uma modificação na eficácia de en-
tanto, estas reações realizadas sem enzimas na zimas do metabolismo hepático (maiores de-
célula exigiriam uma temperatura corpórea 10 talhes serão abordados no Capítulo sobre me-
vezes maior (algo como 370oC) para poderem tabolismo de bases nitrogenadas).
ocorrer, fato impossível para os seres vivos
(pelo menos por aqueles que conhecemos nes- c) Alta eficiência mesmo em baixas concen-
te planeta). trações:
Um outro fator importante na consa-
b) A ação na ordem das reações celulares: gração das reações enzimáticas como esteio
Apesar da pouca energia necessária químico do ciclo da vida celular está no fato
ser um motivo muito forte para a eficácia das das enzimas serem regeneradas ao final do
reações enzimáticas, muitas vezes, a reação processo, podendo reagir com novas molécu-
não-catalisada é impossível em termos fisio- las do substrato sendo necessárias, portanto
lógicos devido à rapidez que se espera na em quantidades bastante inferiores das do
formação dos produtos para a continuidade do substrato, situação ideal para o meio extre-
ciclo biológico, ou mesmo pela necessidade mamente diluído do citoplasma exigindo um
de níveis energéticos de ativação superior ao gasto menor na síntese da enzima pelo meca-
suportado pela célula. nismo genético celular.
Ou seja, mesmo que a diferença ener-
gética entre a reação catalisada e a não catali- d) Especificidade enzima substrato como
sada não se constitua em impedimento para fator acelerador da reação:
que a reação ocorra, a lentidão na formação É fundamental para o sucesso da rea-
dos produtos simplesmente emperraria a ma- ção enzimática o fato que os substratos per-
quinaria bioquímica celular, levando a um manecem "presos" no sítio catalítico, redu-
colapso químico, modificando a ordem de re- zindo os movimentos aleatórios da molécula
ações devido ao acúmulo do substrato (por ser (redução da entropia) permitindo a catálise
lentamente degradado) e pela deficiência do mais rápida.
produto (já que é lentamente formado). Isto é, Além disso, quando se forma o com-
na maioria das vezes, simplesmente impossí- plexo enzima-substrato, as pontes de hidrogê-
vel em termos biológicos ou traz efeitos se- nio que venham a se formar fixando o subs-
cundários graves para o organismo. trato na enzima, ocorrem entre o substrato os
Por exemplo, a enzima glicose-6- grupamentos dos aminoácidos do sítio catalí-
fosfatase permite a liberação de glicose do tico (e na molécula do co-fator) e quase nunca

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 5: Enzimas 59
com a água do meio reacional. Esta ação é por retirar um composto (o substrato) que po-
denominada retirada da capa de solvatação de ter outras vias metabólicas importante e
e diminui a resistência física das moléculas produzir uma quantidade exagerada de um
dos substratos em reagirem. composto (os produtos) que podem ser inde-
Também é fundamental para a eficácia sejáveis à célula. Logo, não basta que uma
da reação enzimática, a modificação tridimen- enzima deixe de ser sintetizada para que ela
sional que a molécula da enzima sofre no pare de fazer efeito, uma vez que é continua-
momento que se liga com o substrato, favore- mente regenerada. Portanto, um mecanismo
cendo a formação das ligações necessárias de regulação da ação enzimática torna-se in-
para que os produtos sejam liberados, com o dispensável para o sucesso da ação catalítica.
alinhamento das partes afins das moléculas Em outras palavras, a enzima tem se “saber”
com o gasto mínimo de energia. A falta de quando parar e quando começar a trabalhar.
especificidade entre o sítio catalítico da enzi- Isto ocorre graças a vários mecanis-
ma com o produto formado é fundamental mos de controle onde o principal é uma dimi-
para a liberação da enzima para nova reação nuição (ou aumento) de sua atividade de a-
(Figura 5-4). cordo com o aumento (ou diminuição) de
compostos relacionados com o produto da
reação, o que estabelece um mecanismo de
feedback (retroalimentação, ou seja, informa-
ção a algo de trás por algo da frente) que pode
ser negativo ou positivo, de acordo com a
natureza da reação.
Por exemplo, o aumento da concentra-
ção de ATP celular favorece a inibição da ati-
vidade da maioria das enzimas do metabolis-
mo energético através de um mecanismo de
feedback negativo o que impede que as molé-
culas energéticas produzam indefinidamente
Figura 5-4 – Representação da complementaridade espacial e
ATP o que levaria à destruição da célula pelo
química entre enzima e substrato. A) regiões do substrato pos-
suem regiões complementares no sítio catalítico da enzima excesso de calor liberado no processo. No en-
(aqui representado uma ponte de hidrogênio, atração iônica e tanto, não há a necessidade do longo processo
interações fracas apolares); B) o complexo enzima-substrato se de síntese de mais enzimas para reiniciar o
forma com a retirada da capa de solvatação, o que diminui a processo em virtude de a queda de ATP ativar
resistência da molécula; C) o produto formado não tem especi-
as enzimas do metabolismo energético indu-
ficidade com a enzima; D) as regiões que antes se atraiam,
agora se repelem, regenerando a enzima. zindo a produção de mais ATP (esse processo
é denominado de regulação alostérica e será
Quando há a formação do complexo melhor detalhado ainda neste capítulo).
enzima-substrato o cenário molecular está
armado para que haja a formação dos produ- Mecanismos de ação enzimática
tos. Note que estes fatos ocorrem de uma ma-
neira muito rápida e dentro no sítio catalítico Vários mecanismos para a reação en-
e a especificidade das ligações fracas que o- zimática são propostos a partir da natureza
correm entre os grupamentos da enzima (e co- química dos substratos e cada reação enzimá-
fator) com o(s) substrato(s) proporcionam um tica possui uma peculiaridade que a torna úni-
aumento da velocidade da reação. ca. Entretanto, podemos agrupar os mecanis-
mos de reação enzimática em três mecanis-
e) A ação das enzimas é regulável: mos principais que abrangem a maioria das
Uma vez são produzidas, as enzimas reações enzimáticas. São eles:
iniciam sua ação catalítica até que a última
molécula de substrato seja convertida em pro-
dutos. Esta fato pode ser fatal para a célula

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 5: Enzimas 60
a) Catálise ácido-básica: É uma reação dependente do pH uma
Utiliza os íons H+ (catálise ácida) ou vez que o grupamento R de vários aminoáci-
-
OH (catálise básica) da água, ou a proprieda- dos varia sua carga elétrica com o pH o que
de ácido-básica de alguns aminoácidos, para interfere neste tipo de catálise. Os aminoáci-
promover a formação de um intermediário dos Aspartato, Glutamato, Histidina, Lisina,
entre os substratos e os produtos que se que- Cisteína e Tirosina são os que, freqüentemen-
bra rapidamente impedindo o retorno à forma te, estão presentes no sítio catalítico de enzi-
de substrato (Figura 5-5). mas que funcionam através deste mecanismo
de ação.

Figura 5-5 – Modelo de catálise ácido-básica de conversão de uma cetona em um enol. A) a reação não catalisada o-
corre espontaneamente somente com alta energia de ativação; B) modelo de catálise ácida com o grupamento ácido
representado por A-H ligado ao sítio ativo da enzima (curvas sinuosas em cinza); C) modelo de catálise básica onde :B
é o grupamento básico ligado à enzima. Tanto em B quanto em C, há o envolvimento do H+ da água que é esteqiome-
tricamente regenerada ao final (OH- + H+) assim como a enzima em sua configuração original ácida ou básica. Observe
que Há a formação de um composto traasnitório onde o substrato está ligado por ponte de hidrogênio à enzima. (Adap-
tado de Voet & Voet, 2000).

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Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 5: Enzimas 61
Este tipo de reação enzimática é bastante formada uma ligação covalente entre a enzi-
comum e o grupamento ácido da enzima é ma e o substrato no composto intermediário.
representado A-H e o grupamento básico por Na Figura 5-6, está exemplificada uma
:B, representando o H+ da enzima que se li- reação enzimática por catálise covalente na
gará com o substrato e o ponto de ligação da conversão de oxalacetato (ácido carboxílico)
enzima com um H+ do substrato, respectiva- em acetona pela perda de CO2, reação extre-
mente. Os demais mecanismos de ação enzi- mamente lenta sem a ação enzimática.
máticos têm sempre alguma semelhança à
catálise ácido-básica. c) Catálise por íon metálico:
Uma reação que exemplifica bem este Os íons presentes na molécula da en-
tipo de catálise é a conversão espontânea de zima (ou do co-fator, principalmente Fe+2,
cetonas a enol, cuja energia de ativação é Fe+3, Cu+2, Zn+2, Mn+2 e Co+2) ou captados do
muito alta sem a catálise enzimática. Na pre- meio no momento da formação do complexo
sença de enzimas, a reação ocorre com menor enzima-substrato (Na+, K+, Mg+2 ou Ca+2),
gasto energético para a formação do comple- favorecem o alinhamento tridimensional do
xo de transição. substrato, estabilização do complexo transitó-
rio ou mediar reações de oxi-redução.
b) Catálise Covalente:
Há a formação de uma ligação cova-
lente entre a enzima (ou o co-fator) e o subs-
trato impedindo que haja a regeneração do
substrato e a rápida formação dos produtos.
Portanto, há sempre a necessidade de uma
reação adicional que permita a regeneração da
enzima.
A catálise covalente ocorre sempre en-
tre um agente nucleofílico (afinidade por pró-
tons) da enzima e um agente eletrofílico (a-
finidade por elétrons) do substrato. Os princi-
pais nucleófilos são a hidroxila (-OH), sulfi-
drila (-SH), amino (-NH3+) e o imidazol (da
histidina). Esses nucleófilos estão presentes
em aminoácidos polares, conforme pode ser
observado na figura ver figura 4.2 do Capítulo
sobre Aminoácidos e Proteínas.
Os eletrófilos mais comuns nos subs-
tratos são o íon hidrogênio (H+), cátions me-
tálicos, o carbono da carbonila (–COO-) e
iminas (R2–C=NH+, também denominada de
Base de Schiff).
Normalmente, este tipo de reação o-
corre em três etapas: 1) o nucleófilo (enzima)
se liga com o eletrófilo (substrato), formando
a ligação covalente; 2) retirada de elétrons Figura 5-6 – Catálise covalente. A) reação de descarboxi-
pelo eletrófilo; e 3) reversão da primeira etapa lação espontânea não catalisada de oxalacetato em acetona;
com a saída do catalisador. B) pormenorização dos passos da reação catalisada enzi-
Este tipo de reação é semelhante à ca- maticamente, onde os diversos híbridos de ressonância
tálise básica, envolvendo a adição de H+ ao formados permitem a ligação covalente do substrato com a
enzima (3) e a total regeneração da enzima, quebrando a
substrato, havendo a retirada e posterior (e ligação covalente e liberando o produto (8). Note que há
posterior adição) de –OH. A diferença deste saída e entrada de íons H+ e OH- (1, 3, 5 e 7) resultantes da
mecanismo de ação para a catálise básica é ação enzimática.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 5: Enzimas 62
Esta interação favorece uma maior es- cado em várias enzimas, apesar de não ter seu
tabilidade eletrostática, o que permite que a mecanismo totalmente elucidado através de
reação ocorra com menor necessidade energé- experimentos laboratoriais.
tica para atingir o estado de transição.
O papel desses íons metálicos é seme-
lhante ao íon hidrogênio nas reações enzimá-
ticas, ligando-se a grupos carregados negati-
vamente (p.ex.: a –OH da H2O) e transferin-
do-os para o substrato (mecanismo que lem-
bra a catálise ácida). Porém, os íons metálicos
são mais eficazes por que podem estar presen-
tes em concentração maior que os H+ sem
modificar o pH, além do que podem possuir
carga positiva maior que +1, favorecendo
uma reação mais eficaz.
Um mecanismo clássico por catálise
por íon metálico é a hidratação de CO2 em
bicarbonato (HCO3-) mediada pela anidrase
carbônica (Figura 5-7). A reação não catali-
sada forma ácido carbônico somente em altas
concentrações de CO2 o que acarreta a neces-
sidade de altas condições de pressão, incom-
patível com o ambiente celular. Entretanto, a
anidrase carbônica possui um íon Zn+2 em seu
sítio ativo que permite a transferência de –OH Figura 5-7 – Catálise por íon metálico. A) a hidratação de
para o substrato (CO2) favorecendo a forma- dióxido de carbono (CO2 )em bicarbonato (HCO3-) não
ção do bicarbonato e liberando o H+ para o catalisada; B) a catálise da reação pela enzima anidrase
carbônica. O Zn+2 no sítio ativo (1) absorve -OH da água o
meio.
que permite a atração do CO2 (2). A absorção de nova -OH
pelo Zn+2 (4) favorece a liberação do HCO3- e a regenera-
Mecanismos que aceleram a rea- ção da enzima (5). Observe que somente uma molécula de
H2O é degradada por mol de bicarbonato formado.
ção enzimática
Os mecanismos de ação enzimática Um outro tipo de mecanismo de rea-
baseados na catálise ácido-básica, catálise co- ção que incrementa a velocidade da reação é
valente e catálise por íons metálicos explanam observado quando estão envolvidos mais de
a grande maioria das reações enzimáticas. Po- um substrato e as enzimas favorecem um ali-
rém, algumas condições adicionais favorecem nhamento tridimensional entre as moléculas
um aumento considerável na velocidade da estabelecendo um grau de torção ideal para
reação enzimática, quando presentes na molé- que os substratos reajam entre si de maneira
cula de enzima. mais rápida e com menor necessidade de e-
É o caso da existência de pontos de a- nergia para atingir o estado de transição. Este
tração eletrostática entre a enzima e o substra- tipo de mecanismo é denominado de catálise
to que excluem totalmente a água no sítio de por efeitos de proximidade e orientação e é
ligação favorecendo uma reação em condi- uma maneira eficaz de acelerar a velocidade
ções de extrema rapidez devido à aproxima- da reação enzimática.
ção máxima entre enzima e substrato. A au- Por fim, um efeito fundamental para a
sência de água no sítio ativo leva a reação à garantia de uma alta eficácia catalítica está
condição de reação orgânicas em meio apolar atrelado ao fato de a enzima possuir maior
que são mais rápidas que as que ocorrem em afinidade pela molécula do estado de transi-
meio aquoso. Este tipo de mecanismo é de- ção do que pelo substrato. Este mecanismo de
nominado de catálise eletrostática e é verifi-
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 5: Enzimas 63
ação de catálise por ligação preferencial à
molécula do estado de transição facilita a
formação rápida do estado de transição para
diminuir a tensão energética causada pela li-
gação com o substrato. Observe que as enzi-
mas que possuem tal propriedade possuem
alta afinidade pelo substrato, mas afinidade
ainda maior pela molécula do estado de tran-
sição, porém promovem sua liberação, uma
vez que o estado de transição é um estágio
rápido onde logo se forma o produto, com a
enzima liberando-o e se regenerando rapida-
mente.
Figura 5-8 - A velocidade da reação enzimática aumenta
com o aumento da concentração do substrato até o ponto em
Cinética enzimática que atinge sua velocidade máxima. A partir deste ponto, a
velocidade torna-se constante, independente do aumento da
Como já percebemos, a velocidade da concentração do substrato. KM (constante de Michaelis-
reação não é proporcional a existência de um Menten) corresponde à concentração de substrato suficiente
equilíbrio de reação favorável, ou seja, a for- para atingir a metade da velocidade máxima. O valor de
KM é igual a [S] quando a enzima encontra-se na metade de
mação de produtos em níveis de energia livre sua velocidade máxima.
(∆G) mais baixos que os substratos. A dimi-
Há a um aumento da velocidade da re-
nuição da energia de ativação (∆GAt) é o prin-
ação com o aumento da concentração do subs-
cipal efeito da ação enzimática. A velocidade
trato devido ainda haver enzima disponível
da reação está atrelada, portanto, não a um
para a catálise. Isto, entretanto, ocorre até um
valor negativo alto de ∆G, mas uma menor
determinado ponto onde há a equivalência
variação de ∆GAt, como é observado na rea- entre a concentração da enzima e do substra-
ção enzimática. to, o ponto de saturação da enzima. Na verda-
Qualquer reação química tem sua ve- de, a saturação da enzima não ocorre quando
locidade aumentada pelo aumento da concen- há partes equivalentes entre o substrato e a
tração dos reagentes. Nas reações catalisadas enzima, uma vez que há uma relação distinta
por enzimas, um aumento da concentração do entre as concentrações necessárias de enzima
substrato também aumenta a velocidade de para degradar o substrato em uma unidade de
reação, mas somente até um determinado pon- tempo, usualmente, um minuto.
to que corresponde a um valor da concentra- Assim, algumas enzimas estão funcio-
ção do substrato em que a capacidade catalíti- nando a pleno vapor quando existem, por e-
ca da enzima está no máximo e a reação atin- xemplo, 3 moles de enzima para cada três mo-
ge, portanto, sua velocidade máxima, não au- les de substratos ou, ainda, 5 moles de subs-
mentando mesmo que se aumente a concen- tratos para cada mol de enzima. Na Figura 5-9
tração do substrato (Figura 5-8). está representada a variação da velocidade da
Na prática, isto acontece quando exis- reação enzimática em função da concentração
te mais enzima disponível que substrato, ou do substrato, para uma enzima hipotética que
seja, quando a concentração da enzima está trabalhe em concentrações fictícias de 1 mol
saturada em relação ao substrato. de enzima degradando 1 mol de substrato em
Quando os substratos estão em con- um minuto.
centração bastante inferior a da enzima, há a Como pode ser observado, quando há
predominância da forma livre da enzima uma a saturação da enzima, a adição de mais subs-
vez que poucas moléculas de enzimas são ne- trato não promove o aumento da reação, no
cessárias para as poucas moléculas de substra- entanto, a enzima poderá degradar todo o
to. substrato adicionado, desde que tenha tempo
disponível para isso. Esta observação acres-

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Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 5: Enzimas 64
centa um fator fundamental para o estudo da Km = constante do equilíbrio estacionário de
cinética enzimática: o tempo. Michaelis-Menten
[S] = concentração do substrato

Uma correlação matemática importan-


te é observada no caso especial em que a ve-
locidade inicial da reação é exatamente a me-
tade da velocidade máxima, isto é, quando Vo
= ½Vmáx, então teremos:

Vmáx Vmáx [S]


=
2 KM + [S]

Deduzindo esta fórmula, teremos que


Km=[S], conforme demonstrado na análise
gráfica da Figura 5-8. Podemos afirmar, en-
Figura 5-9 – Representação esquemática da velocida- tão, que a constante de Michaelis-Menten é
de de reação enzimática. As figuras de A a E represen- igual à concentração de substrato na qual a
tam a adição crescente de substrato (círculo) em rela- velocidade inicial da reação é metade da velo-
ção a uma concentração constante de enzima (meia
lua) formando um complexo enzima substrato e libe-
cidade máxima. Esta constante é um valor
ração do produto (cruz). A partir de C, a enzima en- importante na caracterização da cinética en-
contra-se saturada e a velocidade máxima de 3 mo- zimática, pois uma enzima pode ter a mesmo
les/mim não se altera. valor de velocidade máxima que outra enzi-
ma, porém dificilmente terá o mesmo valor de
Na Figura 5-8, note que existe um va- KM, que irá indicar que a concentração de
lor de concentração de substrato [S] em que é substrato necessária para saturar a enzima é
atingida a velocidade máxima (Vmáx). Obvia- diferente. Desta forma, reações enzimáticas
mente a concentração da enzima [E] perma- que possua baixo KM irão atingir a velocida-
nece constante durante a análise, pois se au- de máxima em valores de [S] bem menor, o
mentar [E], a tal ponto de ela não se encontrar que indica que a enzima será bem mais rapi-
saturada, a velocidade da reação também au- damente saturada com o substrato do que uma
mentará atingindo a velocidade máxima em enzima que tenha o KM maior, indicando que
outro patamar de [S]. quanto maior o KM mais lenta é a reação en-
Ainda no gráfico da figura 5-8, obser- zimática.
va-se que existe um determinado valor da Esta e outras observações são melho-
concentração do substrato que é necessário res visualizadas através de uma modificação
para se atingir a metade da velocidade máxi- do gráfico da Figura 5-7 através do gráfico do
ma (1/2Vmáx). Este valor de [S] é denominado duplo-recíproco de Linewaver-Burk descri-
de Km, a constante de Michaelis-Menten, to na Figura 5-10. Este tipo de gráfico é resul-
casal de pesquisadores que determinou a ex- tante da relação dos valores inversos dos dois
pressão quantitativa da relação de [S] e a ve- eixos cartesianos, no caso a velocidade inicial
locidade da reação enzimática, através da e- (Vo) e a concentração do substrato [S].
quação geral: Esta correlação permite que seja vi-
sualizado ponto importante no estudo da ciné-
Vmáx [S] tica enzimática através da simples inversão
Vo =
KM + [S] dos termos na equação geral e Michaelis-
Onde: Menten:
Vo = velocidade inicial de uma reação enzi-
mática 1 KM + [S]
Vmáx = velocidade máxima da reação =
Vo Vmáx [S]

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 5: Enzimas 65
Ou, deduzindo a expressão: A análise do gráfico duplo-recíproco
de Linewaver-Burk será melhor esplanada
1 KM 1 1 durante o estudo dos inibidores enzimáticos,
= x +
Vo Vmáx [S] Vmáx ainda neste capítulo.

Este tipo de análise gráfica permite Regulação enzimática


determinar com mais precisão a Vmáx, o que
se torna difícil pela análise dos valores verda- Como na célula existe um verdadeiro
deiros da equação de Michaelis-Menten. emaranhado de reações químicas onde os
produtos de uma reação são os substratos de
outras, é muito comum que uma das enzimas
de uma via metabólica determine a velocidade
de todo o processo diminuindo a velocidade
da reação, limitando a velocidade para o con-
junto de reações seguidas. Este fator provoca
o cúmulo do substrato e o seu deslocamento
para outras vias metabólicas acessórias.
A atividade enzimática também pode
sofrer alterações com a variação do pH intra-
celular. Todas as enzimas possuem um pH
Figura 5-10 – O gráfico do duplo-recíproco de Line-
waver-Burk onde são determinados pontos importan- ótimo de atuação onde qualquer variação para
tes no estudo da cinética enzimática. Os valores de mais ou menos, modifica a eficácia da reação
1/VMáx são visualizados na interseção no eixo da 1/Vo, enzimática. Isto se deve pelo fato de haver
enquanto que o valor de -1/KM corresponde à interse- aminoácidos cujo radicais R funcionam como
ção com o eixo de 1/[S]. Como correspondem a valo- ácidos ou bases, doando ou cedendo prótons
res inversos, quanto maior o KM, mais para a esquerda
o ponto de interseção e quanto menor a velocidade para o meio. Em vista disso, há a alteração da
máxima, mais abaixo o ponto de interseção, e vive- carga no sítio catalítico ou na conformação
versa. tridimensional da proteína de maneira que
impeça a ligação de forma eficaz com o subs-
Por essa análise, o gráfico adota uma
trato. Variações na temperatura também di-
configuração linear onde a inclinação corres-
minuem a eficácia da reação enzimática por
ponde a relação KM/Vmáx. Note que como os
modificar o equilíbrio químico.
valores plotados são os inversos dos reais,
Variações extremas de pH (geralmente
quanto maior a inclinação para cima, maiores
abaixo de 4,0 e acima de 8,0) e temperatura
serão os maiores os valores do eixo 1/Vo, ou
(acima de 56oC) in vitro terminam por desna-
seja, menor a velocidade e, portanto, mais
turar de maneira irreversível as enzimas
lenta será a reação enzimática. Logo, quanto
Existem vários tipos de enzimas de
maior a inclinação para baixo, mais veloz a
regulação, dos quais enfatizaremos três:
reação. Da mesma forma, quanto mais para a
direita, menor o valor de KM.
a) Enzimas alostéricas:
Portanto, como a inclinação está dire-
Neste importante tipo de regulação, há
tamente relacionada com o KM uma queda em
a formação de uma ligação não-covalente e
seu valor leva a uma queda na inclinação do
reversível da enzima com o seu produto ou
gráfico o que revela que quanto maior for o
(mais freqüentemente) com um dos produtos
KM, mais lenta será a velocidade reação.
das reações seguintes, levando a desestabili-
Esta queda na velocidade pode ocor-
zação da sua forma tridimensional o que im-
rer, ainda, sem a modificação do valor do KM,
pede a regeneração para consumir nova molé-
bastando para isso que diminua somente o
cula do substrato.
valor da velocidade máxima, mantendo-se o
Na molécula da enzima há um ponto
KM inalterado, como é o caso de certos inibi-
especial para o encaixe com esse metabólito
dores que se ligam ao sítio ativo da enzima e
regulador, denominado sítio de regulação ou
a impedem de catalisar a reação.
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 5: Enzimas 66
alostérico (do latim alos = outros e estereo = A ativação e inativação das enzimas
espaço, lugar). Ocorre um feedback negativo da glicogenélise (degradação do glicogênio)
entre o produto e a enzima, impedindo que através de enzimas fosforilases oriundas de
nova lomlécula de produto seja produzida. via metabólica regulatória do metabolismo de
Esse regulador pode ser um ativador da ativi- hormônios como o glucagon é um bom e-
dade enzimática aumentando a velocidade da xemplo deste tipo de regulação (ver o Capítu-
reação por aumentar a especificidade com o lo sobre metabolismo de carboidratos).
substrato (feedback positvo).
O próprio substrato pode desempenhar c) Enzimas reguladas por clivagem
o papel de regulador (nas enzimas ditas ho- proteolítica:
motrópicas). Quando o regulador é diferente Neste tipo de regulação, há a partici-
do substrato, a enzima é denominada de hete- pação de um precursor inativo da enzima, de-
rotrópica. nominado zimogênio que corresponde a uma
O término da regulação ocorre com a enzima com aminoácidos a mais dos que os
retirada do regulador da molécula da enzima, necessários para a função catalítica. Na forma
uma vez que a ligação que os une não é cova- de zimogênio, esses aminoácidos adicionais
lente irreversível. Esta saída está condiciona- impedem a ação catalítica da enzima.
da ao requerimento da molécula reguladora Esse tipo de enzimas regulador retira
para a via metabólica e se dá quando sua con- peptídeos ou aminoácidos do zimogênio pro-
centração cai o que vai estimular a enzima porcionando a sua ativação. Note que a retira-
(que estava inibida) a produzir mais produto. da dos aminoácidos é mediada por enzima
Esta regulação paradoxal onde o produto ini- que possuem mecanismos próprios de regula-
be sua própria síntese é extremamente eficaz e ção, na maioria das vezes alostéricos.
controla a velocidade de formação do produto Uma bom exemplo deste tipo de regu-
e degradação do substrato. lação é o mediado pela enzima renina, pro-
Um exemplo clássico deste tipo de re- duzida pelas células justaglomelurares renais,
gulação é observado durante o metabolismo que retira aminoácidos da molécula de angio-
energético, onde o ATP promove a inibição tensinogênio (o zimogênio) e a converte em
alostérica na maioria das enzimas na via me- angiotensina I. Ainda nesta mesma via meta-
tabólica do ciclo de Krebs (ver Capítulo sobre bólica, a angiotensina II tem aminoácidos reti-
Bioenergética). rados por outra enzima, a ECA (enzima con-
versora de angiotensina) gerando a angioten-
b) Enzimas reguladoras por ligações sina II, potente vasoconstritor e ativador de
covalentes reversíveis: outras reações biológicas.
Há a formação de uma enzima inativa
pela adição de grupamentos fosfato inorgâni- Além desses três mecanismos básicos,
co (Pi = PO3-), AMP (adenosina mononucleo- a atividade enzimática também pode sofrer
tídeo fosfato), UMP (uridina mononucleotí- alterações com a variação do pH intracelular.
deo), ADPribose (adenosina difosfato + ribo- Todas as enzimas possuem um pH ótimo de
se) ou metil (–CH3), através de ligação cova- atuação onde qualquer variação para mais ou
lentes por intermédio de outras enzimas. menos, modifica a eficácia da reação enzimá-
Este tipo de regulação gera enzimas inati- tica. Isto se deve pelo fato do grupamento
vas quando ligadas ao grupamento, havendo funcional estar ionizado nas ligações peptídi-
sua ativação com a retirada do grupamento. É cas (ver Capítulo 4 sobre proteínas) e de ha-
um método, também, bastante eficaz uma vez verem aminoácidos cujo radical R funcionam
o grupamento adicionado pode ser o produto como ácidos ou bases, doando ou cedendo
de sua própria via metabólica (uma regulação prótons para o meio.
alostérica) ou, mais freqüentemente, o produ- Em vista disso, há a alteração da carga
to de uma via metabólica paralela sujeita à no sítio catalítico ou na conformação tridi-
regulação própria. mensional da proteína de maneira que impeça
a ligação de forma eficaz com o substrato.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 5: Enzimas 67
Variações na temperatura também diminuem com o substrato, entretanto a enzima não
a eficácia da reação enzimática por modificar promove sua quebra, ao invés disso fica im-
o equilíbrio químico. pedia de ligar-se com o substrato, que passa a
Variações extremas de pH (geralmente se acumular. Com o aumento da concentração
abaixo de 4,0 e acima de 8,0) e temperatura do substrato, aumenta a probabilidade da en-
(acima de 56oC) in vitro terminam por desna- zima ligar-se ao substrato e não ao inibidor o
turar de maneira irreversível as enzimas. que leva ao fim da inibição.
Entretanto, a variação de pH e tempe- Desta forma, o efeito inibidor se dá de
ratura não podem ser encarados como um me- maneira mais eficaz em concentrações baixas
canismo regulador, uma vez que há o decrés- do substrato e é revertido por grandes concen-
mo generalizado de todas as enzimas dentro trações de substrato. Esses efeitos podem ser
de uma mesma via metabólica. Tais fatores observados no gráfico de velocidade de rea-
são, portanto, acessórios no estudo da regula- ção (Figura 5-11) onde o ponto chave da aná-
ção enzimática. lise fica por conta da não mudança da veloci-
dade máxima da reação, que se torna, entre-
Mecanismos de inibição enzimá- tanto, mais lenta devido à diminuição do valor
do KM, conforme discutido anteriormente.
tica
b) Inibidores não-competitivos:
A reação enzimática pode, ainda, so- Reagem com a enzima livre, mas não
frer ação de agentes inibidores que diminu- no sítio catalítico. É o tipo clássico de regula-
em a velocidade da reação, agindo por meca- ção alostérica.
nismos diversos que podem ser produtos do Como a ligação do inibidor não se faz
próprio metabolismo celulares ou externas ao no sítio catalítico, não há diminuição da inibi-
organismo, como é o caso de vários tipos de ção com o aumento da concentração de subs-
medicamentos. Essa ação inibidora, longe de trato como na inibição competitiva. Logo, a
ser um empecilho à reação, mostra um eficaz única maneira de reverter a inibição é a reti-
mecanismo de regulação quando associado a rada do inibidor da molécula da enzima, o que
uma via metabólica onde o inibidor é um den- é feito, geralmente, por ação de outra enzima.
tre os muitos produtos da via. Como a queda na velocidade da rea-
Os mecanismos de inibição são, em ção ocorre independentemente da concentra-
sua maioria, reversíveis, havendo a regenera- ção do substrato, o KM sofre mínima ou ne-
ção da ação enzimática quando cessa ação do nhuma variação, o que indica que o aumento
inibidor. da inclinação do gráfico de Linewaver-Burk
Entretanto, alguns inibidores agem de (queda na velocidade) é induzido pela queda
forma mais drástica ligando-se irreversivel- da Vmáx, Na Figura 5-12 estão descritas as
mente à enzima, destruindo sua ação catalíti- implicações de uma inibição não competitiva
ca. Neste caso, somente a síntese de nova mo- na análise gráfica da cinética enzimática.
lécula de enzima restaura sua ação, o que nem Alguns tipos de inibidores não compe-
sempre é possível, pois a inibição pode levar à titivos podem combinar-se reversivelmente
morte da célula como é o caso de vários anti- com o complexo enzima-substrato ao invés do
bióticos desenhados para destruir enzimas substrato, evitando a formação de produtos.
chaves do metabolismo bacteriano. Este tipo de inibição é freqüentemente deno-
Os principais tipos de inibição podem minada de incompetitiva e obedece aos
ser agrupados em três grupos distintos: mesmos princípios cinéticos da inibição não-
a) Inibidores enzimáticos competitivos: competitiva.
Reagem reversivelmente com a enzi- c) Inibidores irreversíveis:
ma livre no sítio catalítico em competição Promovem uma alteração permanente,
com o substrato, para formar um complexo química, de algum grupo funcional essencial
enzima-inibidor. na molécula da enzima. Muitos medicamentos
A inibição ocorre em virtude de uma modernos são inibidores irreversíveis de uma
extrema similarida tridimensional do inibidor
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 5: Enzimas 68
reação enzimática específica o que confere
uma alta especificidade e poucos efeitos cola-
terais.
A destruição do sítio catalítico pro-
move a queda sumária da velocidade da rea-
ção enzimática, com a observação do aumento
do valor de KM e a queda da Vmáx. Este efeito
é o mesmo observado quando se analisa uma
mesma reação enzimática frente a concentra-
ções diferentes de enzima, devido ao efeito
inibitório ser definitivo e retirar as enzimas do
meio.

Figura 5-12 – O efeito de inibidores não-


competitivos na análise gráfica da cinética enzimá-
tica. A) devido ao impedimento no sítio catalítico, a
enzima inibida não pode atingir a velocidade máxi-
ma e um aumento de substrato não reverte a inibi-
ção. B) a queda da Vmáx é a causa do aumento da
inclinação do gráfico enquanto que o valor de KM
apresenta pouco ou nenhum aumento.

EXERCÍCIOS
1. Descreva a estrutura molecular básica das
proteínas.
Figura 5-11 – Análise gráfica da ação de inibidores 2. Conceitue isoenzimas, co-enzimas e holo-
enzimáticos competitivos. A) o efeito do inibidor leva enzimas.
a uma queda na curva, com aumento do KM e manu- 3. No que se baseia a classificação das enzi-
tenção dos valores de Vmáx; B) gráfico de Linewaver- mas?
Burk onde os valores inversos da velocidade e de [S]
revelam que a inibição competitiva ocorre com o au-
4. Quais as principais classes enzimáticas?
mento do KM (aumento da inclinação). 5. Por que as enzimas são catalizadores tão
eficazes?
6. Descreva os mecanismos de ação enzimá-
tica.
7. Comente sobre alguns fatores que acele-
ram a ação enzimática.
8. Quais as características básicas da cinética
enzimática?
9. Quais os mecanismos de regulação enzi-
mática?
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 5: Enzimas 69

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Ricardo Vieira
Capítulo 6
Carboidratos
O
s carboidratos (também cha- Os carboidratos mais simples possuem
mados sacarídeos, glicídios, de três a oito carbonos, os monossacarídeos,
oses, hidratos de carbono ou e possuem a fórmula empírica Cn(H2O)n. A
açúcares), são definidos, quimicamente, como grande informação embutida por detrás desta
poli-hidróxi-cetonas (cetoses) ou poli-hidróxi- fórmula geral, na verdade, é a origem dos
aldeídos (aldoses), ou seja, compostos orgâ- carboidratos nos fenômenos fotossintéticos
nicos com, pelo menos três carbonos onde dos vegetais (Figura 6-2). Devido esta ori-
todos os carbonos possuem uma hidroxila, gem, os carboidratos contém na intimidade de
com exceção de um, que possui a carbonila sua molécula a água, o CO2 e a energia lumi-
primária (grupamento aldeídico) ou a carboni- nosa do sol utilizados em sua síntese.
la secundária (grupamento cetônico) (Figura A organização mais complexa entre
6-1). mais de uma molécula de carboidrato, gerará
polímeros formado pela perda de uma molé-
cula de água o que confere a fórmula geral
Cn(H2O)n-1 própria para esses carboidratos.
Alguns carboidratos, porém, possuem em sua
estrutura nitrogênio, fósforo ou enxofre não se
adequando, portanto, à fórmula geral.
A conversão da energia luminosa em
energia química faz com que esses compostos
fotossintéticos funcionem como um verdadei-
ro combustível celular, liberando uma grande
quantidade de energia térmica quando que-
Figura 6-1 - Os monossacarídeos mais simples. Como brado as ligações dos carbonos de sua molé-
os demais monossacarídeos, aqueles que possuem o cula, liberando, também, a água e o CO2 que
grupamento funcional aldeído são denominados aldoses lá se encontravam ligados.
e os que contêm o grupamento cetona são as cetoses. O
gliceraldeído já demonstra uma importante propriedade
dos carboidratos, a isomeria óptica graças ao seu carbo-
no 2 assimétrico.

Figura 6-2 - Os
carboidratos são
as biomoléculas
energéticas que
garantem a reci-
clagem do carbo-
no na biosfera. Na
figura está repre-
sentada a partici-
pação de mitocôn-
drias e cloroplas-
tos na reciclagem
do carbono.
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 6: Carboidratos 71

De fato, desde a bactéria mais simples gia para movimentar elétrons em uma rede de
e antiga até os animais mais jovens na escala enzimas trasnportadoras de elétrons que ga-
evolutiva (entre eles, certamente, o homem) rantem ATP suficiente para unir átomos de
contém as enzimas necessárias para a quebra carbono do CO2 absorvido, armazenando a
da molécula da glicose, uma hexose, o princi- energia solar nas moléculas de glicose sinteti-
pal representante dos carboidratos. zadas neste processo fotossintético.
Todo o metabolismo energético celu- O sistema metabólico celular tem co-
lar gira em torno dos processos metabólicos mo base a utilização da energia contida nas
da glicose e vários distúrbios patológicos são moléculas de carboidratos e nas biomoléculas
evidenciados quando há uma deficiência nas a eles relacionados, no intuito de liberar ener-
vias metabólicas da glicose, como é o caso da gia térmica para as reações bioquímicas da
diabetes mellitus doença de alta incidência célula.
mundial caracterizada pela deficiência na fun- Esta energia térmica, por fim, é con-
ção do hormônio pancreático insulina, res- vertida em ligações altamente energéticas de
ponsável pela regulação da glicose sangüínea. fosfato na molécula de ATP durante o proces-
Os animais não são capazes de sinteti- so de respiração celular (fosforilação oxidati-
zar carboidratos a partir de substratos simples va) tornando o ATP um verdadeiro armazém
não energéticos, como os vegetais. Desta da energia solar que se conservou através de
forma, precisam obtê-los através da alimenta- todo esse fantástico processo biológico.
ção, produzindo CO2 (excretado para a atmos-
fera), água e energia (utilizados nas reações Os monossacarídeos
intracelulares).
Os lipídios são sintetizados nos vege- São os carboidratos mais simples.
tais e animais a partir da acetil-CoA, o produ- Possuem de 3 a 8 carbonos, sendo denomina-
to principal do metabolismo aeróbico da gli- do, respectivamente, trioses, tetroses, pento-
cose, sendo utilizados como fonte de energia ses, hexoses, heptoses e octoses.
quando há escassez de carboidratos. Da mes- Têm uma única unidade cetônica ou
ma forma, as proteínas são utilizadas como aldeídica, possuindo pelo menos um átomo de
fonte energética alternativa. Desta forma, carbono assimétrico (C*) existindo, portanto,
principalmente os animais, lipídios constitu- formas estereoisoméricas, com exceção da di-
em reserva energética sintetizada diretamente hidróxi-cetona, que não possui C* (ver Figura
a partir do metabolismo da glicose. 6-1).
Nos animais, há um processo de pro- Os C* possibilitam a existência de i-
dução de intermediários metabólicos da glico- sômeros ópticos e caracterizam a região da
se que simulam uma síntese, chamado neogli- molécula denominada centro quiral, do latim
cogênese que fornece carboidratos a partir de quiros = mão, em referência a conformação
percursores não glicídicos. Porém tal processo isomérica semelhante a duas mãos que não se
só é possível a partir de substratos provenien- superpõe mas são idênticas (Figura 6-3).
tes de um prévio metabolismo glicídico, lipí- Os monossacarídeos possuem, portan-
dico ou, principalmente, protéico, o que não to, inúmeros isômeros estruturais e ópticos,
supre a necessidade de obtenção de carboidra- com os quais compartilham a prioridade nos
tos pela alimentação, o que torna os animais processos bioenergéticos. Como todo com-
dependentes dos vegetais em termos de ob- posto orgânico que possui carbono assimétri-
tenção de energia. co, o número de isômeros ópticos é determi-
De fato, os vegetais são privilegiados nado por 2n (n= número de C* da molécula).
no sentido que garantem seu combustível ce- A glicose (como todas as hexoses) possui 16
lular através da fotossíntese. A clorofila isômeros ópticos devido possuir 4 carbonos
presente nas células vegetais é a única assimétricos, logo 24 = 16.
molécula da natureza que não emite energia Este grande número de isômeros leva
em forma de calor imediatamente após ter a ocorrência de uma mistura racêmica quando
tido seus elétrons excitados pela luz: ela os carboidratos encontram-se dissolvidos em
utiliza esta energia para movimentar elétrons
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 6: Carboidratos 72

água. Entretanto, o equilíbrio tende para a mentos, mais estável). Esta denominação está
forma mais estável que é obtida por uma rea- relacionada com a semelhança com o furano e
ção intramolecular que ocorre entre a carboni- o pirano, poderosos solventes orgânicos mas
la do grupamento funcional com uma das que não tem nenhuma relação com os monos-
muitas hidroxilas da molécula, formando um sacarídeos, a não ser a semelhança estrutural
composto cíclico denominado hemiacetal. (Figura 6-5).

Figura 6-3 - A glicose, como todos os monossa-


carídeos, possui isômeros ópticos devido a pre-
sença carbonos assimétricos.
Esta forma cíclica dos monossacaríe-
deos é possível graças à grande diferença de
eletronegatividade do oxigênio e os átomos de
carbono e hidrogênio da molécula, que dá aos
carbonos e hidrogênio uma carga elétrica par-
cialmente positiva e aos oxigênios uma carga
parcialmente negativa (Figura 6-4). Entretan-
to, devido à configuração espacial final da
molécula de hexoses e pentoses, há a possibi-
lidade de reação intramolecular entre o gru- Figura 6-4 - A formação da forma hemiacetal de α e β-
pamento funcional e um dos carbonos mais glicopiranose. A) representação do arranjo eletrônico na
molécula de glicose. Note que o C1 apresenta-se com
distantes, formando um composto cíclico
maior diferença de carga elétrica que os demais carbonos.
(hemiacetal) que se mostra mais estável que a B) a união entre o C1 e o oxigênio e C5 forma uma ponte
forma aberta, não cíclica. etér entre eles. O C1 passa a ter uma hidroxila que antes
Este forma de hemiacetal é mais está- não possui, gerando dois isômeros: o α e o β, CIS e
vel e a formação de isômeros deve ser antece- TRANS em relação ao C2, respectivamente.
dida da quebra do anel o que diminui a proba- Esta forma estrutural cíclica de hemia-
bilidade de encontra-se os demais isômeros cetal, resulta da reação intramolecular entre o
ópticos em uma solução de monossacarídeos grupamento funcional (C1 nas aldoses e C2
devido a maior estabilidade do hemiacetal. nas cetoses) e um dos carbonos hidroxilados
Os monossacarídeos de ocorrência na- do restante da molécula (C4 na furanose e C5
tural mais comum, como a ribose (5C), glico- na piranose).
se (6C), frutose (6C) e manose (6C), existem Furanoses e piranoses ocorrem nas
na forma de hemiacetais quer na formas de formas isoméricas α e β (cis ou trans), con-
furanose (um anel de 5 elementos, menos forme a posição da hidroxila do C2 em rela-
estável) ou de piranose (um anel de 6 ele- ção à hidroxila do C1.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 6: Carboidratos 73

Figura 6-6 - A for- (Figura 6-8). De fato, uma solução de glicose


ma cíclica de hemia- contém na verdade uma mistura em equilíbrio
cetal adquire seme-
de glicose e frutose.
lhança estrutural aos
solventes orgânicos
furano e ao pirano,
de onde sua nomen-
clatura é derivada. A
forma de glicopira-
nose é menos estável
que a de glicofura-
nose devido ser um
anel de cinco ele-
mentos.

Figura 6-7 - Poder redutor da glicose. Há a perda de


Uma propriedade química importante prótons e elétrons que são captados pelos agentes
de monossacarídeos livres ou ligados a outros reduzidos durante a oxidação da glicose.
elementos (inclusive a outros monossacarí-
deos), é o poder redutor (são oxidados) se o
o C1, na forma de hemiacetal, apresentar hi-
droxila livre, ou seja não esteja ligado a ne-
nhum composto. Este poder redutor pode ser
comprovado ao reagir um carboidrato (p.ex.:
a glicose) com um reagente suscetível a redu-
ção (um oxidante), como o Cu+2, que se reduz
a Cu+1. Essas reações clássicas re oxi-redução
foram um dos primeiros métodos de identifi-
car glicose em líquidos orgânicos.
O poder redutor da glicose revela,
também, a sua capacidade de se oxidar duran-
te o processo metabólico. a oxidação química
da glicose no C1 fornece o ácido glicônico
(Figura 6-7), enquanto o produto final da oxi-
dação enzimática completa no metabolismo
celular é CO2 e H2O.
Uma implicação importante deste po-
der redutor é comprovada na caracterização
do poder redutor em cetoses (normalmente,
cetonas não são redutores, aldeídos sim). Isto
pode ser explicado pelo fato de cetoses e al-
doses se interconverterem através de um fe-
nômeno químico chamado tautomeria, devi-
da a um rearranjo molecular entre o C2 e o C1
das cetoses, formando seu isômero aldose. Figura 6-8 - A frutose em glicose é convertida por tau-
Assim a frutose, por exemplo, converte-se em tomeria entre o C1 e o C2. A reação é reversível e justi-
glicose e, como tal, apresenta poder redutor fica o poder redutor das cetoses.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 6: Carboidratos 74

Todos os monossacarídeos possuem Esta ligação pode ocorrer entre carbo-


inúmeros isômeros ópticos, estruturais e de nos que estejam no mesmo plano espacial (cis
função, mas apenas a α-D-glicopiranose pos- ou α) ou entre carbonos em diferentes planos
sui uma via metabólica comum a todos os (trans ou β).
seres vivos. Este fato faz deste monossacarí- Existem vários dissacarídeos presentes
deo o mais importante para o metabolismo na alimentação, como, por exemplo:
energético, com os demais tendo que ser con- Trealose = glicose + glicose α (1Æ1);
vertido em glicose ou em intermediários de Celobiose = β-glicose + β-glicose (1Æ4);
seu metabolismo. Maltose = glicose + glicose α(1Æ4)
O fato de a glicose ser o carboidrato presente no malte.
de eleição para o metabolismo energético Iso-maltose = isômero α(1Æ6) da maltose
celular tem uma justificativa evolucionária, (subproduto da digestão do
onde se atribui o sucesso de sua utilização amido e glicogênio);
pelas células primordiais tendo favorecido as Lactose = glicose + galactose β(1Æ4) -
gerações que apresentaram enzimas adaptadas é o principal carboidrato do
à forma tridimensional da α-D-glicopiranose leite;
ao invés dos demais isômeros. Sacarose = glicose + frutose (α 1Æ2), a
Na Figura 6-9 estão representados forma mais comum de açúcar,
alguns monossacarídeos de importância bio- obtida da cana-de-açúcar, be-
lógica, dentre os inúmeros existentes. terraba etc.
Os dissacarídeos são importantes fon-
Dissacarídeos tes de carboidratos na alimentação, como é o
caso da lactose que é o principal carboidrato
São formados por dois monossacarí- da dieta dos mamíferos na fase de amamenta-
deos unidos por ligação covalente (ligação ção. Posteriormente, a maioria dos animais
glicosídica). A ligação glicosídica ocorre en- perde a capacidade de degradar a lactose de-
tre as hidroxilas do C1 de um monossacarído vido à queda na produção intestinal da enzima
com qualquer um outro carbono do outro mo- que a degrada, a lactase (em humanos, isto
nossacarídeo. ocorre, freqüentemente, na velhice).

Figura 6-9 - Os monossacarí-


deos apresentam vários isôme-
ros ópticos devido a presença
de centros quirais devido a seus
carbonos assimétricos (marca-
dos em vermelho).

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 6: Carboidratos 75

A sacarose é o dissacarídeo mais con- Os polissacarídeos de reserva mais


sumido o principal composto de sabor adoci- importantes são o amido e o glicogênio (Fi-
cado adicionado à alimentação humana. gura 6-11), ambos de alto peso molecular e
A maltose é o principal substrato para polímeros da glicose em ligações α(1Æ4) nas
a produção de cervejas fermentadas, como a cadeias principais e ligações α(1Æ6) nos
cerveja e destilados como o uísque. pontos de ramificação, sendo o glicogênio
Na Figura 6-10 estão representadas as mais compacto por apresentar mais ramifica-
estruturas das moléculas dos principais dissa- ções em sua molécula.
carídeos. Apenas a forma de amilose do amido
não é ramificada, pois possui somente liga-
ções do tipo α(1Æ4); a forma amilopectina
do amido é semelhante à molécula de glico-
gênio (ramificada).
Outros polissacarídeos possuem papel
estrutural nas paredes celulares. A celulose
(Figura 6-12) é formada por moléculas de
glicose unidas por ligações β(1Æ4) e é o
principal constituinte estrutural da parede
celular dos vegetais, responsável por extrema
resistência.
Graças à natureza da ligação β(1Æ4)
entre as unidades de glicose, há a formação de
pontes de hidrogênio dentro da molécula, o
que torna a molécula de celulose bastante
rígida e plana, permitindo o empilhamento de
várias cadeias formando uma estrutura poli-
mérica extremamente resistente.
É impregnada por outras substâncias
poliméricas, não sendo digerida pelos ani-
mais, que não apresentam enzimas para que-
brar este tipo de ligação, a exceção de animais
herbívoros e cupins, que possuem bactérias e
protozoários que digerem a celulose no apare-
lho digestivo desses animais (para maiores
detalhes, ver Capítulo sobre metabolismo de
carboidratos).
A celulose, como fibras vegetais, é
importante na composição dos alimentos por
manterem o trânsito intestinal e melhorar o
Figura 6-10 - Os principais dissacarídeos da metabolismo de proteínas, carboidratos e lipí-
dieta humana. dios (ver Capítulo 2 sobre Alimentos).
As paredes porosas e rígidas das bac-
térias possuem peptidoglicanas, que são po-
Polissacarídeos lissacarídeos lineares formados por unidades
alternadas de ácido N-acetil-murâmico e N-
Os polissacarídeos ou glicanas são acetil-glicosamina (derivados de carboidra-
polímeros de monossacarídeos (hexoses) uni- tos) interligados por cadeias polipeptídicas
dos por ligação glicosídicas na forma α ou β. curtas.
Alguns funcionam como reserva de carboidra- O tecido conjuntivo dos animais pos-
tos, outros atuam na morfologia celular. sui vários mucopolissacárides (um tipo de
glicoproteínsa) ácidos (p.ex.: o ácido hialurô-
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 6: Carboidratos 76

nico), formados por unidades de açúcar alter- É grande a semelhança entre a estrutu-
nadas, uma das quais contém o grupamento ra molecular da quitina e da celulose, ambas
ácido. Estas estruturas, nas quais a porção isômeros β(1Æ4), o que as coloca como os
polissacarídica predomina, são chamadas pro- polissacarídeos mais resistentes da Terra e,
teoglicanas. sem dúvida, os mais abundantes, haja vista o
A carapaça dos insetos contém quiti- grande número de insetos e vegetais.
na, um polímero de N-acetilglicosamina) que
dá resistência extrema ao exo-esqueleto (Fi-
gura 6-13).

Figura 6-11 - A molécula de amido na forma de amilopectina é


formada por unidades de glicose unidas por ligações α(1Æ4)
na estrutura principal e α(1Æ6) nos pontos de ramificação. A
forma linear (amilose) apresenta somente ligações α(1Æ4) e é
menos solúvel que a amilopectina.

Figura 6-12 - A estrutura molecular


da celulose. As ligações β(1Æ4) não
são quebradas pelas enzimas diges-
tivas dos animais e a disposição das
unidades de glicose na molécula
permite a formação de pontes de
hidrogênio e o empilhamento de
cadeias, o que torna a celulose ex-
tremamente resistente.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 6: Carboidratos 77

As células animais têm um revesti- deo formado pela galactose (ver Figura 6-9)
mento externo (glicocálix) macio e flexível ligada por ligação β(1Æ3) com a N-acetil
formado por cadeias de oligossacarídeos (pe- glicosamina (a mesma unidademonomérica
quenos polissacarídeos) ligadas a lipídeos e da quitina, ver Figura 6-13). Este dissacarídeo
proteínas. liga-se ao aminoácido serina ou treonina das
proteínas. Outros carboidratos, como a galac-
tose, a manose e a xilose, podem estar O-
ligados a proteínas, porém são mais raros.
Os glicolipídios correspondem a com-
postos existentes na superfície celular que
possuem função de marcador imunoquímico,
como é o caso dos antígenos do sistema san-
güíneo ABO que possuem a galactose, a N-
acetilglicosamina e a fucose os carboidratos
ligados aos lipídios da membrana.
Outro polissacarídeo importante é a
heparina, que possui função anticoagulante
nos vasos sangüíneos dos animais; é formada
por glicosamina + ácido urônico + os ami-
noácidos serina ou glicina.

Figura 6-13 - A extrema semelhança entre a


estrutura molecular da celulose e da quitina justi-
fica sua larga distribuição como polissacarídeo
estrutural em vegetais e insetos. A celulose é um
polímero β(1Æ4) de glicose e a quitina um polí- EXERCÍCIOS
mero β(1Æ4) da N-acetilglicosamina).
1. Qual a importância metabólica das formas
As glicoproteínas possuem um ou isoméricas alfa e beta-glicopiranose?
mais carboidrato em sua composição molecu-
lar sendo que a maioria das proteínas da su- 2. Descreva a estrutura molecular do amido
perfície celular são glicoproteínas. e da celulose.
O ponto de ligação destas glicoproteí-
nas pode ser o nitrogênio ou o oxigênio (N ou 3. Qual a importância dos dissacarídeos para
O-ligadas). o metabolismo de mamíferos?
Nas glicoproteínas N-ligadas, há uma
conformação estrutural única, onde o monos- 4. Comente sobre a função dos principais
sacarídeo liga-se com a proteína em sua forma polissacarídeos.
β para C1 e o aminoácido de ligação sempre é
a asparagina, seguida de um aminoácido 5. Qual a origem do poder redutor dos car-
qualquer (exceto prolina e aspartato) e, em boidratos e por que alguns não possuem
seguida, serina ou treonina. Esta ligação de tal característica química?
carboidratos e proteínas tão específica ocorre
durante a síntese da proteína, sendo que 6. Descreva o processo de formação das
quando termina a síntese protéica, o carboi- formas cíclicas da glicose.
drato já está ligado.
As glicoproteínas O-ligadas são, quase
em sua totalidade, formadas por um dissacarí-

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 6: Carboidratos 78

Para navegar na internet

Fundamentos de Bioquímica:
www.fundamentosdebioquimica.hpg.com.br

Glycoscience network page:


www.vei.co.uk/TGN/tgn_main.htm

Gastroinfo:
www.gastroinfo.com.br/01_pancr.htm

Diabetes:
www.diabetic.com/education/pubs/dcctslid/sld048.htm

Estrutura molecular 3D:


www.udel.edu/Biology/Wags/histopage/modelspage/m
odelspage.htm

Ricardo Vieira
Capítulo 7
Lipídios
L
ipídios são biomoléculas carac- Os lipídios não são biomoléculas poliméricas
terizadas pela baixa solubilida- como os ácidos nucléicos, proteínas e os prin-
de em água e outros solvente cipais carboidratos, mas possuem uma capa-
polares e alta solubilidade em solventes apo- cidade de agrupar-se em moléculas complexas
lares. São vulgarmente conhecidos como gor- e possuem, muitas vezes, longas cadeias car-
duras e suas propriedades físicas estão rela- bonadas responsáveis pelas suas propriedades
cionadas com esta natureza hidrófoba. hidrofóbicas.
São moléculas que possuem uma Na verdade, todas as considerações
grande variedade de formas estruturais, tendo acerca do metabolismo lipídio advêm da ca-
em comum somente o fato de serem hidrofó- racterística hidrófoba das moléculas. Esta
bicas e serem biosintetizadas a partir da ace- propriedade não é uma desvantagem biológi-
til-CoA. Este fato coloca os lipídios como ca, mesmo o corpo possuindo cerca de 60%
uma importante molécula dentro do metabo- de água. Justamente por serem insolúveis, os
lismo energético, uma vez que a acetil-CoA é lipídios são fundamentais para estabelecer
a molécula que inicia os principais processos uma interface entre o meio intracelular e o
bioenergéticos. extracelular, francamente hidrófilos.
De certa forma, os lipídios possuem A membrana celular corresponde a es-
uma função energética mais reservada ao ar- ta barreira lipídica onde o impedimento de
mazenamento do que o aproveitamento puro e fluxo livre de compostos hidrossolúveis, co-
simples de seu poder energético, uma vez que, loca as proteínas de membrana como os por-
justamente pelo fato de serem muito calóri- tais de controle da composição celular.
cos, possuem vias metabólicas alternativas ao Possuem funções importantíssimas
metabolismo energético que, muitas vezes, para o metabolismo celular tanto de eucario-
levam a danos ao organismo gerando doenças tas como procariotas (Figura 7-1), podendo-se
graves, denominadas dislipidemias (ver relacionar como principais as seguintes:
Capítulo sobre metabolismo Lipídico).

Figura 7-1 – Os lipídios exercem as mais variadas e importantes funções no metabolismo dos seres vivos.
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 7: Lipídios 80

• Composto bioquímico mais calórico em formando uma molécula globosa denominada


animais e sementes oleaginosas sendo a micela que será tanto mais solúvel, quanto
principal forma de armazenamento (trigli- maior for a polaridade da cabeça polar.
cerídeos) e geração de energia metabólica
através de via metabólica específica (β-
oxidação de ácidos graxos);
• Componentes das membranas celulares,
juntamente com as proteínas (fosfolipí-
dios, esfingolipídios e colesterol);
• Componentes de sistema de transporte de
elétrons no interior da membrana mito-
condrial (umbiquinona);
• Formam uma película protetora (isolante
térmico) sobre a epiderme de muitos ani-
mais (tecido adiposo);
• Funções especializadas como hormônios,
sinalizadores celulares, antioxidantes.
Figura 7-2 – Representação didática de uma molé-
cula de lipídio evidenciando a parte polar e a apolar
São vários os usos dos lipídios, seja na de sua molécula.
alimentação (óleos de grãos, margarina, man-
teiga, maionese), seja como produtos manufa-
turados (sabões, resinas, cosméticos, lubrifi- Vários arranjos micelares são possí-
cantes). Várias pesquisas nacionais recentes veis, sendo a própria camada bi-lipídica das
indicam os lipídios como importantes com- membranas celulares um produto deste arran-
bustíveis alternativos, como é o caso do óleo jo (Figura 7-3). Os lipídios com a cabeça po-
vegetal transestereficado que corresponde a lar com pouquíssima capacidade de solubili-
uma mistura de ácidos graxos vegetais trata- zação (p.ex.: os triglicerídeos, os ésteres do
dos com etanol e ácido sulfúrico que substitui colesterol), necessitam, freqüentemente da
o óleo diesel, não sendo preciso nenhuma adição de compostos emulsificantes (solubi-
modificação do motor, além de ser muito me- lizantes de gorduras) para incrementar a for-
nos poluente e isento de enxofre. mação das micelas. Esses emulsificadores
A única propriedade química comum podem ser proteínas (lipoproteínas), carboi-
aos lipídios é seu caráter hidrofóbico e a pre- dratos (glicoproteínas) ou emulsificantes di-
sença de uma extremidade na molécula que gestivos (sais biliares).
possui certa polaridade e que possibilita sua
ligação com compostos polares, que vão tor-
nar possível seu transporte em meio solúveis.
Caracteriza-se na molécula dos lipí-
dios, assim, uma cabeça polar e uma cauda
apolar, terminologia utilizada aqui exclusi-
vamente com objetivo didático (Figura 7-2).
A cabeça polar é, geralmente, a carboxila
(p.ex.: nos ácidos graxos), a hidroxila (p.ex.:
no colesterol) ou outro composto polar (p.ex.:
o grupamento fosfato nos fosfolipídios). A
cauda apolar é todo o restante da molécula,
formada, predominantemente de carbono e
hidrogênio, podendo haver ou não duplas li-
gações (cadeia insaturada).
Figura 7-3 – Arranjo estrutural micelar dos lipídios em solução
Os lipídios em solução aquosa tendem aquosa. A) micela globosa; B) bicamada lipídica; C) bicamada
a agregar-se pela cauda apolar deixando a lipídica em forma de membrana separando dois ambientes lí-
cabeça polar em contato com o meio aquoso, quidos distintos.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 7: Lipídios 81

Classificação caso do ácido isovalérico que está presente


no aparelho auditivo de mamíferos marinhos
Devido a grande variabilidade estrutu- Os ácidos carboxílicos já apresentam
ral dos lipídios, muitos tipos de classificações severa diminuição em sua solubilidade acima
são propostas dependendo do ponto de vista, de oito carbonos, apesar de serem mais fre-
se químico ou biológico. qüentes na natureza os com mais de 14C e
Adotaremos uma classificação didáti- menos de 20C.
ca que atende a ambos ponto de vistas, que Apesar de a maioria dos ácidos graxos
agrupa os lipídios de acordo com a presença possuírem nomes vulgares de largo uso na
ou não de ácidos graxos em sua molécula. prática diária, a nomenclatura oficial obedece
Os lipídios que possuem ácidos gra- às regras para ácidos carboxílicos, com a ter-
xos (ácidos carboxílicos com grande cadeia minação –óico adicionada o número de car-
carbonada) são saponificáveis, uma vez que bonos. A existência de dupla ligação é indica-
reagem com bases fortes formando sabões. da entre parênteses após o número de carbo-
São lineares em sua maioria, podendo ser nos do ácido graxo indicada pela letra grega
saturados ou insaturados. Possuem função delta (∆) adicionada ao número do carbono
energética e estrutural. São os acilgliceróis, onde está a dupla ligação.
fosfolipídios, esfingolipídios e ceras. Desta forma, o ácido láurico (nome
Os lipídios que não possuem ácidos vulgar) é denominado ácido duodecanóico
graxos em sua molécula, não são saponificá- (12:0), ou seja, um ácido graxo saturado de 12
veis e não são energéticos. A maioria possui carbonos. O ácido linoléico é o ácido octadi-
função estrutural ou especializada (hormô- enodecanóico (18: 2∆9,12), ou seja, um ácido
nios, vitaminas, anti-oxidantes), desempe- graxo insaturado de 18 carbonos e com as
nhando papel chave em várias vias metabóli- duplas ligações nos carbonos 9 e 12.
cas. São os terpenos, esteróides e Eixosa- Na tabela 7-1 estão citados os princi-
nóides. pais ácidos graxos e suas nomenclaturas vul-
A seguir, passaremos a apresentar as gar e oficial.
principais características de cada tipo de lipí-
Tabela 7-1 – Relação dos principais ácidos graxos de
dios, a começar por aqueles que os caracteri- importância biológica.
zam, os ácidos graxos.
Nomenclatura Nomenclatura
Vulgar Oficial
Ácidos Graxos Láurico Dodecanóico (12:0)
Mirístico Tetradecanóico (14:0)
Palmítico Hexadecanóico (16:0)
Os ácidos graxos são ácidos carboxíli- Palmitoléico ∆9
Hexadecanóico (16:1 )
cos de cadeia longa que pode ser saturada ou Esteárico Octadecanóico (18:0)
insaturada e quase sempre de número par de Oléico Octadecanóico (18:1 )
∆9
carbonos e de cadeia não linear. Linoléico ∆9, 12
Octadecanóico (18:2 )
A grande freqüência de ácido graxos α-Linolênico ∆9, 12, 15
de número par de carbonos dá-se ao fato da Octadecanóico (18:3 )
γ-Linolênico ∆6, 9, 12
síntese ocorrer por adição de acetil-CoA, que Octadecanóico (18:3 )
Araquídico Eicosanóico (20:0)
possui dois carbonos (ver Capítulo sobre me- Araquidônico ∆5, 8, 11, 14
Eicosanóico (20:4 )
tabolismo lipídico). A maioria dos ácidos Beênico Docosanóico (22:0)
graxos são lineares, porém existem alguns, Lignocérico Tetracosanóico (24:0)
(principalmente de origem vegetal) que são Nevrônico Tetracosanóico (24:1 )
∆15
ramificados, geralmente com grupamentos
metil como ramificação (p.ex.: o fitol, com- Os ácidos graxos saturados podem ser
ponente da clorofila), mas são agrupados den- denominados acrescentando-se –enóico de-
tro de um grupo a parte denominados terpe- pois da indicação do número de duplas liga-
nos, que serão estudados ainda neste capítulo. ções e em quais carbonos estão localizadas.
Outros ácidos graxos ramificados mais sim- Assim, o ácido araquidônico é o ácido
ples são sintetizados em animais, como é o 5,8,11,14-eicosatetraenóico.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 7: Lipídios 82

Uma maneira muito freqüente de se ao fato de possuírem funções especialíssimas


denominar os ácidos graxos insaturados é a na biologia celular. Uma alimentação isenta
contagem dos carbonos por letras gregas, sen- de gorduras levará à carência desses ácidos
do o carbono α (alfa) o da carbonila, o β (be- graxos com conseqüências patológicas seve-
ta) o segundo na seqüência e ω (ômega) o ras, como dermatite, desidratação, má cicatri-
último da cadeia. As duplas ligações costu- zação e até a morte (para maiores detalhes ver
mam a ser indicadas a partir do carbono ôme- Capítulo sobre metabolismo dos ácidos gra-
ga, o que faz com que o ácido oléico seja xos).
também denominado de ácido octadecanóico Os ácidos graxos sofrem vários tipos
ômega-9. de reações químicas, dentre as quais podemos
Os ácidos graxos saturados são sinte- citar:
tizados tanto por vegetais quanto por animais, • Esterificação: ácidos graxos ligam-se a
o que lhes dá larga distribuição na natureza. álcoois formando ésteres:
Possuem uma boa estabilidade estrutural de-
vido organizarem-se em camadas de grande R-COOH + HO-R Æ R-COO-R + H2O
adesividade devido a forma linear das cadeias
hidrocarbonadas. • Saponificação: ácidos graxos reagem
Esta alta estabilidade lhes confere al- com bases fortes gerando um sal (sabão)
tas temperaturas de fusão, ou seja, em tempe- que possui propriedades emulsificantes
ratura ambiente, eles estão no estado sólido (o (solubilizantes de gorduras).
ácido láurico possui a mais baixa temperatura R-COOH + NaOH Æ R-COONa + H2O
de fusão: 44oC enquanto que o ácido lignocé-
rico liquefaz-se somente em 84,2oC). • Hidrogenação: ácidos graxos insaturado
Esta propriedade permite que os lipí- (com duplas ligações) recebem H2 e con-
dios ricos em ácidos graxos saturados tenham vertem-se a ácidos graxo saturado. A hi-
o aspecto de gordura sólida (sebo), o que é drogenação severa pode converter ácidos
comum nas gorduras animais. graxos em álcoois graxos.
A Figura 7-4 representa o arranjo es-
trutural entre os ácidos graxos que lhes confe- R-CH=CH-COOH + H2 Æ R-CH2-CH2-COOH
re o estado físico de gordura sólida ou de ó-
leo.
Os ácidos graxos insaturados possu-
em um arranjo estrutural menos estável, devi-
do à dupla ligação que desestabiliza as cama-
das de lipídios, conferindo uma temperatura
de fusão bastante baixa (no ácido nevrônico a
temperatura de fusão é de 39oC enquanto que
no ácido araquidônico é de -49,5oC). Desta
forma, os lipídios ricos em ácidos insaturados
possuem o estado líquido (óleos) em tempera-
tura ambiente, o que é próprio das gorduras
vegetais.
Os mamíferos não possuem enzimas
que sintetizam ácidos graxos insaturados Figura 7-4 – Representação esquemática do arranjo das
(dessaturases) cuja dupla ligação esteja abai- cadeias saturadas e insaturadas em lipídios. A) ácido graxo
xo do C16, o que torna os ácidos graxos insa- saturado; B) ácido graxo insaturado; C) arranjo mais estável
entre as moléculas de ácido graxo saturado, tornando mais
turados com dupla ligação abaixo do C16,
difícil a desordenação das moléculas, o que lhes confere
impossíveis de serem sintetizados pelos ma- necessidade de maior energia para quebrá-la; D) os ácidos
míferos, tornando-se essenciais na dieta. Os graxos insaturados estão no estado líquido em temperatura
ácidos araquidônico, linoléico, linolênico e ambiente devido à maior instabilidade dos arranjos entre suas
oléico são considerados ácidos graxos essen- moléculas, sendo necessário menor energia para quebrar o
arranjo estrutural.
ciais justamente por esse motivo e assiociado

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 7: Lipídios 83

Acil-gliceróis entes da alimentação, além de sintetizar novas


moléculas a partir de outros substratos (ver
São assim denominados por se trata- Capítulo sobre Metabolismo Lipídico). A
rem de moléculas compostas por grupamentos deposição do tecido adiposo promove, ainda a
acil (R-COO-) ligado ao glicerol. formação de uma camada protetora contra a
São formados pela esterificação de perda de calor, indispensável para animais
um, dois ou três ácidos graxos (saturados ou que vivem em clima frio.
insaturados, iguais ou não) com uma molécula Os triglicerídeos são encontrados tanto
de glicerol, formando mono, di ou tri-acil- em gorduras animais quanto em óleos vege-
glicerol, comumente denominados de mono, tais, havendo apenas uma predominância de
di ou triglicerídeos, denominação vulgar e ácidos graxos insaturados nos triglicerídeos
quimicamente incorreta, mas de grande uso na de origem vegetal, devido a incapacidade dos
prática clínica e laboratorial sendo a denomi- animais em sintetizar a maioria dos ácidos
nação utilizada neste capítulo (Figura 7-5). graxos insaturados necessários para o metabo-
lismo. Os ácidos graxos insaturados presentes
nos triglicerídeos de origem animal geralmen-
te são derivados da alimentação e não da sín-
tese endógena.
Os mono-acil-gliceróis e os di-acil-
gliceróis estão presentes em concentrações
muito baixas no organismo, sendo resultantes
de processos intermediários do metabolismo
de triglicerídeos ou de outros lipídios, como é
o caso do di-acil-glicerol que é um segundo
mensageiro de algumas reações celulares,
liberado após a degradação de fosfolipídios,
como será visto a seguir.

Fosfolipídios
São derivados dos triglicerídeos, onde
o terceiro ácido graxo é substituído por uma
cabeça extremamente polar contendo fosfato
(PO3-2) ligado a um composto X que pode ser
de várias origens (Figura 7-6). Geralmente o
Figura 7-5 - Os triglicerídeos são os principais acil- segundo carbono é um ácido graxo insaturado
gliceróis. A) uma molécula de glicerol une-se a três (freqüentemente o ácido araquidônico).
moléculas de ácidos graxos através ligações éster. B) O
triglicerídeo formado possui o primeiro e terceiro ácido
graxo no mesmo plano, opostos ao segundo ácido graxo.

Os triglicerídeos são os principais li-


pídios de reserva tantos de animais quanto de
vegetais, o que os coloca como uma das mo-
léculas mais calóricas utilizadas no metabo-
lismo celular. São uma espécie de “reserva
molecular de ácidos graxos”, sendo necessária Figura 7-6 – Os fosfolipídios possuem estrutura
semelhante aos triglicerídeos. O grupo X pode ser o
a quebra da ligação éster por enzimas hidrolí- –H (ácido fosfatídico, o mais simples), etanolamina,
ticas denominadas, genericamente, lipases colina, serina, inositol, glicerol ou fosfatidilglicerol.
liberando os ácidos graxos de sua molécula. A nomencaltura será fosfatidil + nome do X (p.ex.:
Em animais, são armazenados no teci- fosfatidiletanolamina). A lectina e a cardiolipina são
do adiposo, que tem a capacidade de absorver denominações vulgares da fosfatidilcolina e do
difosfatidilglicerol, respectivamente.
grande quantidade dos triglicerídeos proveni-

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 7: Lipídios 84

A denominação correta desses com- Esfingolipídios


postos é a de glicerofosfolipídeos (ou, ainda,
fosfoglicerídeos), entretanto neste texto será São formados por um ácido graxo li-
utilizada a denominação vulgar de fosfolipí- gado a uma molécula de esfingosina (um a-
dios em virtude do largo uso na prática clínica minoálcool) e uma cabeça polar X (Figura 7-
e laboratorial. 7).
Graças à grande cabeça polar, os fos-
folipídios são importantes constituintes da
membrana celular, onde o contato com o lí-
quido intracelular e o extracelular é viabiliza-
do pela formação a bicamada lipídica. As
proteínas da membrana celular também asso-
ciam-se fortemente às frações polares e apola-
res dos fosfolipídios.
Apesar da grande importância com li- Figura 7-7 – A molécula de esfingolipídio é constitu-
ída pela esfingosina ligada a somente um ácido graxo
pídios estruturais da membrana, os fosfolipí- e uma cabeça polar X. O mais simples possui X = –H
dios possuem papel fundamental em outros (ceramida) e é a base dos demais esfingolipídios.
processos biológicos.
É o caso do dipalmitoil- Dependendo da natureza de X, têm-se
fosfatidilcolina (a fosfatidilcolina cujos áci- diversos tipos de esfingolipídios. A ceramida
dos graxos são o ácido palmítico) que é o possui o –H como cabeça polar, enquanto que
principal componente da substância surfactan- os demais possuem grupamentos bem defini-
te pulmonar que impede o colabamento (uni- dos, agrupando-se em três classes distintas:
ão das superfícies internas) dos alvéolos pul- esfingomielinas, cerebrosídeos e gangliosí-
monares. Esta substância ajuda a diminuir, deos.
também, o efeito físico da pressão dos gases Os esfingomielinas (ou esfingofosfo-
respiratórios sobre o alvéolo. A produção des- lipídios) possuem como X, grupamentos fos-
ta substância surfactante, entretanto encontra- fatados como a fosfoetanolamina e a fosfoco-
se em plena produção somente após o nasci- lina. Esses esfingolipídios possuem função de
mento, o que leva a crianças que nascem pre- proteção e revestimento elétrico dos axônios
maturamente, portanto com pouco surfactante neuronais, sendo os principais constituintes da
pulmonar, a desenvolverem um quadro sério bainha de mielina dos neurônios.
de insuficiência respiratória devido a dificul- Nos cerebrosídeos (ou esfingoglico-
dade de encher os alvéolos colabados. Esta lipídios) o X é um carboidrato. São importan-
condição patológica (conhecida como sín- tes constituintes da bainha mieliníca cerebral.
drome da angústia respiratória) também Os gangliosídeos possuem estrutura
pode se estabelecer em adultos sempre que molecular complexa, devido o X ser um po-
diminui a produção desse fosfolipídio. límero de carboidratos (ou derivados) unidos
Quando há a retirada de um dos ácidos ao ácido siálico (um derivado da glicose).
graxos da molécula de um fosfolipídio, a mo- Possuem função estrutural importante da su-
lécula resultante (fosfolisolipídio) possui po- perfície das membranas celulares, com a ca-
tente ação detergente e, realmente, destrói a beça polar de carboidratos projetando-se para
membrana, provocando, obviamente, a morte o meio extracelular funcionando como recep-
celular. Enzimas que possuem essa função tores celulares.
(fosfolipase A2) estão presentes em venenos Uma doença genética grave conhecida
de cobra e de abelhas, justificando a potente como doença de Tay-Sachs é decorrente do
ação lítica tecidual. Outras enzimas que reti- acúmulo excessivo de gangliosídeos no tecido
ram a cabeça polar (fosfolipase C) geram di- nervoso, levando ao retardo mental e graves
acil-gliceróis que agem como segundo men- distúrbios neurológicos.
sageiros de alguns hormônios. A ação dessas
enzimas será melhor estudada no Capítulo
sobre metabolismo lipídico.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 7: Lipídios 85

Ceras
São misturas álcoois graxos (com ca-
deia longa de 16 a 20C) e ácidos graxos (com
cadeia de 16 a 30C). Possuem função estrutu-
ra bem definida na formação de favos em
colméias de insetos sociais.
As baleias do tipo cachalote possuem
grande quantidade de ceras e outros lipídios
em uma enorme cavidade nasal especializada
que funciona como órgão flutuador, de acordo Figura 7-8 – Os principais esteróides.
com o fluxo sanguíneo. Essa mistura de lipí-
dios foi utilizada durante quase todo o século
XVII como produto de beleza capilar pela Terpenos
sociedade européia e americana, conhecido
como espermacete de baleia, além, é claro, São lipídios não saponificáveis que
da utilização como combustível juntamente possuem como estrutura base a unidade iso-
com a gordura do tecido adiposo da baleia. prenóide (Figura 7-9).
Este fato levou quase à extinção esses animais São, geralmente, de origem vegetal e
e ao conseqüente declínio da economia (na muitos possuem propriedades organolépticas
sociedade norte-americana, a indústria baleei- (sabor e odor agradável) sendo utilizadas co-
ra foi a principal base da economia durante mo especiarias na culinária mundial. Nos ve-
vários anos) fato superado graças à invenção getais, esses terpenos possuem função prote-
de máquinas movidas à combustível fóssil. tora contra microorganismos, uma vez que
não possuem sistema imunológico.
Lipídios esteróides As vitaminas E e K são terpenos de
função bioquímica especializada (ver Capitu-
Também chamados de esteróis, este lo 8 sobre Vitaminas).
grupo de lipídio não saponificável possui pos-
suem como estrutura molecular básica o nú-
cleo-pentano-per-hidro-fenantreno (Figura
7-8). Possuem função diversificada que vai
desde estrutural até a especializados hormô-
nios e vitamina (Vitamina D).
O colesterol é o principal representan-
te deste grupo e é sintetizado exclusivamente
em animais, possuindo função importante na
formação da membrana celular e na síntese de
ácidos biliares e hormônios esteróides (p.ex.:
os hormônios sexuais). Um similar vegetal do
colesterol, o fitosterol, não é absorvido du-
rante a digestão não possuindo, portanto fun-
ção metabólica ou patológica em seres huma-
nos.
O conhecimento do metabolismo das
lipoproteínas que transportam o colesterol Figura 7-9 – Os terpenos constituem-se lipídios cujos princi-
plasmático corresponde em importante passo pais representantes são de origem vegetal e possuem caracte-
no estudo da bioquímica aplicada a clinica de rísticas organolépticas. O mirceno (folha de louro), limoneno
(limão) e zingibereno (gengibre), o látex da borracha natural
pacientes com hipercolesterolemia, como será (sis-poli-terpeno), cinamaldeído (canela), eugenol (cravo) e
abordado com maiores detalhes no Capítulo elemicina (noz-moscada) são exemplos de terpenos ou deri-
sobre metabolismo lipídico. vados.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 7: Lipídios 86

Eicosanóides Os leuciotrienos são produzidos pelos


leucócitos atuando na contração da muscula-
São lipídios não saponificáveis deri- tura lisa dos pulmões.
vados do ácido araquidônico de 20C (eicos A maioria dos medicamentos que atu-
= vinte em grego) (Figura 7-10). am inibindo o processo de dor (analgésicos
São importantes hormônios locais, não derivados de esteróides) é inibidor da via
produzidos no local de uma reação inflamató- de síntese das prostaglandinas. Os medica-
ria e responsáveis pela potencialização do mentos que inibem a síntese de leucotrienos
sinal químico da inflamação, não sendo dis- são excelentes anti-asmáticos e os que inibem
seminado pela corrente sanguínea como os a síntese de tromboxanas acarretam uma di-
hormônios clássicos. Outras funções primor- minuição da formação de trombos, útil para
diais são desempenhadas pelos diferentes ti- quem tem problemas de coagulação intravas-
pos de eicosanóides. cular disseminada (uma doença que possibili-
As prostaglandinas são produzidas ta o despreendimento de trombos e a bostru-
em quase todos os tecidos e estão envolvidas ção de vasos sanguíneos).
nos processos de sono e vigília, resposta in- A biossíntese dos eicosanóides consti-
flamatória e contração dos músculos lisos do tui-se importante capítulo na compreensão da
útero. farmacologia desses medicamentos e será
As tromboxanas são produzidas pelas abordado no Capítulo sobre metabolismo li-
plaquetas e atuam na diminuição do fluxo pídico.
sangüíneo e na formação de trombos (tam-
pões celulares que impedem a hemorragia de
pequenos vasos).

Figura 7-10 – Os eicosanóides são derivados do ácido araquidônico (20:4∆5,8,11,14).

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 7: Lipídios 87

EXERCÍCIOS

1. Que relevância tem para o metabolismo


celular o fato de os lipídios serem insolú-
veis em água?

2. Quais as principais funções dos lipídios?

3. Comente sobre a classificação dos lipídios


e as principais características estruturais
de cada classe.

4. No que consiste a organização micelar dos


lipídios e qual a importância desta propri-
edade para o metabolismo celular?

Para navegar na internet

Fundamentos de Bioquímica:
www.fundamentosdebioquimica.hpg.com.br

Estrutura molecular 3D:


www.udel.edu/Biology/Wags/histopage/modelspage/m
odelspage.htm

Sociedade Portuguesa de Cardiologia


http://www.spc.pt/publico/principal.htm

Biobrás:
http://www.biobras.com.br

Ricardo Vieira
Capítulo 8
Vitaminas
E
m 1911, Casimir Funk isolou mentação básica era de arroz sem casca e co-
um composto cristalino do ma- zido excessivamente que destruía, por aque-
terial extraído da casca do ar- cimento, os resquícios de vitamina B1 do ar-
roz, utilizado para curar uma doença de pom- roz sem casca, além do peixe cru que comiam
bos denominada polineurite. A este composto em excesso e que possui enzimas que destro-
deu o nome de vitamina em virtude de ser em a vitamina B1.
considerada uma substância vital e possuir a Atualmente, entretanto, as doenças ca-
característica química de amina. Esta vitami- renciais vitamínicas são, na maioria das ve-
na, hoje em dia denominada vitamina B1, foi zes, observações raras visto que só se obser-
apenas a primeira de uma série de 13 compos- vam os sintomas característicos quando há a
tos que se descobriu que os seres humanos (e hipovitaminose exclusiva da vitamina em
muitos animais) não são capazes de sintetizar, questão, como descrito acima. O mais comum
sendo indispensáveis na alimentação, mesmo é a verificação de síndrome de desnutrição
que em doses diminutas, para garantir a reali- com sintomatologia complexa, resultante da
zação de várias reações bioquímicas, além de combinação de hipovitaminoses e carência de
serem agentes de patologias diversas quando nutrientes como os carboidratos, lipídios e
há uma carência nutricional. proteínas.
Apesar de somente no início do século As vitaminas são encontradas na mai-
XX ter sido isolado a primeira vitamina, o oria dos vegetais (principalmente cereais, fo-
conhecimento da existência de fatores nutri- lhas verdes e legumes) e produtos animais
cionais causadores de doenças quando ausen- (principalmente leite, ovos e fígado), com ex-
tes na alimentação remonta de muitos séculos ceção da vitamina B12 que é produzida so-
atrás. Hipócrates (300 a.C) já havia descrito mente por microorganismos mas que é arma-
um tipo de cegueira que era revertida com a zenada em tecidos animais (especialmente no
alimentação de fígado de animais, numa clara fígado), encontrada, portanto, nesses alimen-
alusão a deficiência de vitamina A. tos além de produtos da fermentação por mi-
No século XVI, as longas navegações croorganismos (como o iogurte, por exem-
transoceânicas dos exploradores, revelaram plo).
que os marinheiros sofriam de uma doença São classificadas em hidro e liposso-
descrita como escorbuto, caracterizada por lúveis, de acordo com sua característica quí-
sangramento gengival, hoje conhecida como mica de solubilidade. Exercem várias funções
conseqüência da hipovitaminose C. O interes- nos organismo, com uma alimentação conten-
sante é que os oficiais destes navios, muitas do cereais, vegetais verdes, legumes, carne e
vezes não apresentavam esses sintomas, fato suco de fruta suficiente para suprir as necessi-
que levou, em 1729, o médico inglês Jackson dades diárias.
Smith determinar a obrigatoriedade da inges- Muitas das vitaminas são termolá-
tão de suco de limão durante as viagens, como beis, (sensíveis ao calor) e fotolábeis (sensí-
medida preventiva contra o escorbuto, pois veis a luz), o que torna necessário que o ali-
ele observou que a alimentação da tripulação mento que as contêm seja ingerido cru (o co-
era diferenciada no que diz respeito a sucos zimento destrói essas vitaminas) e deva ser
cítricos. Esta medida foi suficiente para erra- armazenado ao abrigo da luz. Os alimentos
dicar o escorbuto. industrializados que devem ser esterilizados
Da mesma forma, o béri-béri, doença pelo calor precisam ser adicionados de quan-
carencial da vitamina B1, era freqüentemente tidades significativas dessas vitaminas para
relatada entre marinheiros japoneses cuja ali- garantir sua qualidade nutricional.
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 8: Vitaminas 87
Algumas possuem a capacidade de se- TPP +
complexo multienzimático
rem produzidas no próprio organismo a partir 2-cetoglutarato succinil-CoA
de precursores, como é o caso da vitamina D TPP +
complexo multienzimático
a partir da pró-vitamina D (um derivado do piruvato acetil-CoA
colesterol) ativada pela radiação ultravioleta e TPP +
a vitamina B3 que é sintetizada a partir do transcetolase gliceraldeído 3-P +
triptofano, um aminoácido essencial. Outras xilulose 5-P + ribose 5-P sedoheptulose 7-P
possuem uma grande reserva hepática o que
as torna disponível por muito tempo depois de É uma vitamina termolábil e sensível a
suspendida a ingestão (como é o caso da vi- variação de pH, sendo inativa em soluções
tamina B12 suficiente por até 3 anos e as li- alcalinas.
possolúveis). A sua deficiência resulta em béri-
Popularmente, as vitaminas são co- béri, uma doença de sintomas cardio-
nhecidas como compostos energéticos e sinô- neurológicos e motores. Em alcoólatras a ca-
nimo de saúde e vigor físico. Independente de rência de tiamina expressa-se na síndrome de
seu caráter obrigatório na alimentação, deve- Wernik-Korsakoff, cujas causas está atrelada
se esclarecer que as vitaminas atuam princi- à insuficiência hepática que dificulta o arma-
palmente como cofatores de reações bioquí- zenamento e absorção não só da tiamina mais
micas e não como substrato das reações. de quase todas as vitaminas do complexo B.
Apesar algumas possuírem papel fun- Uma ingestão acentuada de peixe cru
damental no processo de estabilização de ra- pode levar a uma maior destruição de tiamina
dicais livres (vitaminas C, E e A), logo impor- devido a presença de enzimas tiaminases que
tantes como atenuantes do processo de enve- hidrolizam a enzima no trato digestivo, inati-
lhecimento celular e os processos relaciona- vando-a.
dos aos radicais livres, a maioria das vitami- Seu uso terapêutico específico está as-
nas possui ação terapêutica inespecífica a sua sociado a reversão da sintomatologia neuro-
ação biológica (a vitamina B6, por exemplo, é muscular de algumas doenças genéticas onde
cofator de reações de transaminação de ami- há a diminuição da atividade das enzimas on-
noácidos e é utilizada terapêuticamente em de ela é co-fator. Freqüentemente, é utilizada
vertigens e dores musculares). em associação com as demais vitaminas do
O uso terapêutico é realizado em altas complexo B para a melhoria de sintomas de
doses aicma das necessidades diárias e só po- fraqueza muscular de causas variadas.
dem ser adquiridos através de medicamentos A Figura 9-1 representa a forma ali-
uma vez que seria necessária uma quantidade mentar da tiamina.
enorme das fontes naturais para atingir a con-
centração terapêutica (com exceção da vita-
mina C), o que pode levar ao aparecimento de
efeitos adversos típicos da hipervitaminose.

Vitaminas Hidrossolúveis
Figura 9-1 - Estrutura molecular da tiamina. A
1. Vitamina B1 (tiamina): forma ativa de tiamina pirofosfato (TPP) é obtida
pela adição de dois fosfato na OH terminal.
Durante a absorção intestinal, é fosfo-
rilada a tiamina pirofosfato (TPP), sua forma
ativa, que vai ser grupamento prostético das 2. Vitamina B2 (riboflavina):
enzimas 2-cetoglutarato desidrogenase e A forma ativa é o FAD (flavina adeni-
transcetolase. na nucleotídeo) e o FMN (flavina adenina
mononucleotídeo), que recebem e prótons e
elétrons, convertendo-se de formas oxidadas
(FAD+ e FMN+) para reduzida (FADH2 e
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 8: Vitaminas 88
FMNH2). O FAD é um importante transpor- com a pelagra. É o caso do erro inato do me-
tador de elétrons e prótons na cadeia respira- tabolismo conhecido como doença de Hart-
tória mitocondrial. nup onde o triptofano (e outros aminoácidos)
É uma vitamina de cor amarelada, possem a absorção diminuída. Em algumas
termoestável, porém fotolábil, que perde essa tipos de câncer desenvolve-se a síndrome
cor quando exposta a luz ou submetida a radi- carcinóide onde há o aumento do catabolis-
ação (um procedimento industrial comum pa- mo do triptofano, o que leva a pelagra.
ra aumentar a quantidade de vitamina D no Seu uso terapêutico está associado ao
leite). combate dos sintomas causados pela sua defi-
Nenhuma doença específica está asso- ciência, sendo que o uso terapêutico em ou-
ciada à sua carência, mas são observadas ra- tras manifestações clínicas é desaconselhado,
chaduras no canto da boca, seborréia e anemi- não devendo estar presente em doses acima de
a. Seu uso terapêutico é em associação com as 200mg/dia nos "coquetéis" de vitamina do
demais vitaminas do complexo B. complexo B, pois a hipervitaminose está rela-
Na Figura 9-2 pode ser observada a cionada à lesão hepática e hiperpigmentação
forma alimentar da riboflavina. da pele, além de vasodilatação (que induz a
queda da pressão arterial e faces rubras) e dis-
túrbios no metabolismo da glicose e ácido ú-
rico, levando a hiperglicemia e hiperuricemia.

Figura 9-3 - Estrutura molecular da vitamina B3 na forma de


Figura 9-2 - A estrutura molecular da riboflavina. ácido nicotínico ou niacina. A niacinamida possui a função
A forma ativa é e o FAD onde a última hidroxila é amida (substituição do -OH por -NH2).
adicionada ao fosfato (formando o FMN) ou ao
ADP (formando o FAD). 4. Ácido pantotênico:
Já foi denominada de vitamina B5, es-
3. Vitamina B3: ta vitamina faz parte da molécula de coenzima
Presente nos alimentos na forma de A (CoA) e é responsável por reações de aceti-
niacinamida (uma amida) e ácido nicotínico lação (advindo daí o termo A da coenzima A)
(ou niacina, um ácido carboxílico), esta vita- (Figura 9-4).
mina, que pode ser sintetizada a partir do a- Outra enzima que possui o ácido pan-
minoácido triptofano, participa da molécula totênico é a proteína transportadora de gru-
de NAD (nicotinamida adenina dinucleotí- pamentos acil na síntese de ácidos graxos.
deo), importantíssimo transportador de pró- Entretanto, a CoA é a forma mais abundante e
tons e elétrons no metabolismo energético importante de ação dessa vitamina, sendo res-
mitocondrial (Figura 9-3). ponsável pelo transporte de gripos carbonados
É foto e termoestável e tem na pela- (como o acetil e o acil) para o metabolismo
gra a forma clássica de carência alimentar energético.
cuja expressão sintomatológica é de fácil re- Nenhuma doença carencial é descrita,
conhecimento pela presença de dermatite, de- porém foi relatada uma síndrome do pé ar-
nêmcia e diarréia. Pode ocorrer quando o ali- dente descrita em pelotões da segunda grande
mento está contaminado com fungos produto- guerra cuja ração apresentava uma deficiência
res de micotoxinas que destroem a vitamina em ácido pantotênico. Uma forma sintética da
B3. vitamina, o ômega-pantotenato, possui ação
Outras doenças onde o metabolismo antagonista diminuindo a ação do ácido pan-
do triptofano é comprometido se expressam

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 8: Vitaminas 89
totênico ingerido naturalmente na alimenta-
ção.
Essa vitamina possui uma certa termo-
labilidade, com cerca de 1/3 sendo perdido
com o cozimento dos alimentos.

Figura 9-5 - Estrutura molecular da vitamina B6 em


sua forma de piridoxina. Na forma de piridoxal o -
CH2OH é substituído por -CHO e na forma de piri-
doxamina por -CH2NH2.

6. Vitamina B12 (cobalamina):


Possui íon cobalto ligado a um anel te-
trapirrólico no centro da molécula, muito se-
melhante à ligação do ferro da hemoglobina e
do Mn na clorofila (Figura 9-5). A forma mais
comum é a de cianocobalamina onde o -CN
liga-se ao cobalto, existindo ainda as formas
de hidroxicobalamina, aquocobalamina e
metilcobalamina com o -OH, H2O e -CH3
Figura 9-4 - Estrutura molecular da coenzima A. A região ligados ao cobalto, respectivamente.
em destaque corresponde ao ácido pantotênico. É cofator de reações de reorganização
estrutural (conversão de metil-malonil-CoA
em succinil-CoA) e reações de metilação
5. Vitamina B6: (conversão de homocisteína em metionina). A
É encontrada nos alimentos em três succinil-CoA é fundamental para a síntese de
formas: piridoxina (um álcool), piridoxal ácidos graxos e de aminoácidos e a metionina
(um aldeído) e piridoxamina (uma amina) é indispensável para a síntese das purinas (a-
(Figura 9-4). denina e guanina) e, por sua vez, para a sínte-
É coenzima em reações do metabolis- se de ácidos nucléicos.
mo dos aminoácidos, como por exemplo as A carência de vitamina B12 promove
transaminações. alterações no metabolismo lipídico e de ami-
É uma vitamina foto e termolábil noácidos, além de diminuir a síntese de DNA
(principalmente a forma de piridoxal) o que na medula óssea, o que leva a diminuição no
faz com que haja perda considerável com o metabolismo dos eritrócitos, levando à ane-
cozimento dos alimentos. É estável em meio mia peniciosa ou megaloblástica.
ácido, sendo inativada em pH alcalino. Necessita de uma proteína sintetizada
É rara a deficiência de vitamina B6, no estômago denominada fator intrínseco
não havendo uma doença carencial específica. (FI) para ser absorvida e transportada. A liga-
Entretanto, são descritos sintomas de dermati- ção com o FI, entretanto, é dificultada no
te, glossite e neuropatias relacionadas a sua meio ácido gástrico, o que torna necessário a
deficiência em pacientes que fazendo uso de presença de uma proteína presente na saliva e
certos quimioterápicos (ciclosserina, isoniazi- no estômago (a proteína R) que se liga com a
da e penicilamina). vitamina B12 no estômago, é digerida no in-
Seu uso terapêutico é como anti- testino e, somente assim, o FI liga-se à vita-
neurítico e na prevenção de enjôos. Existe a mina B12 e pode ser absorvido.
probabilidade de reações alérgicas quando se A vitamina B12 é sintetizada somente
faz uso de altas dosagens. por microorganismos, principalmente os pre-
sentes no sistema digestivo de herbívoros. É a
vitamina que é requerida em menor quantida-
de diária, fato que, associado ao acúmulo no

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 8: Vitaminas 90
fígado e músculos em grandes reservas, torna É termo e fotolábil, sendo destruída
o animal independente de grandes fontes ali- gradataivamente caso o alimento que a conte-
mentares. Os vegetais não sintetizam vitamina nha fique exposto a ação do sol ou se cozido.
B12, e por isso, os pacientes vegetarianos res- O escorbuto é a manifestação patoló-
tritos possuam o risco maior para a anemia gica clássica da carência de vitamina C e ca-
perniciosa. Os vegetarianos que comem ovos racteriza-se por sintomatologia relacioanda à
e/ou leite (chamados ovo, lacto ou ovo-lacto dimunição da síntese de colágeno (de hemor-
vegetarianos) possuem menor risco. ragias a queda de cabelos e dentes).
A vitamina B12 é uma vitamina ter- É usada, terapeuticamente, em altas
moestável, porém fotolábil. doses para prevenir a formação de radicais
livres, combatendo o envelhecimento celular.
O uso como antigripal não possui fundamento
científico, até o momento.
Normalmente, as doses acima de
400mg/dia já são compatíveis com a excreção
urinária, porém doses de até 12 mg/dia são
prescritas em pacientes que deseja-se diminuir
a ação do estresse oxidativo dos radicais li-
vres, como no caso de pacientes idosos.
Não há evidências acerca de sua toxi-
cidade, porém o risco de cálculos renais não
deve ser desprezado em virtude do oxalato ser
o produto final de seu metabolismo, quando
em excesso.

Figura 9-6 - A estrutura molecular da vitamina B12 Figura 9-7 - A estrutura molecular da vitamina C.
em sua forma de cianocobalamina.

7. Vitamina C (ácido ascórbico): 8. Ácido Fólico (folacina):


Essa é a vitamina que possui a estrutu- Sua forma ativa é como tetra-hidro-
ra molecular mais simples (Figura 9-7), deri- folato (THF) contém um carbono extra que
vada da glicose e presente na mioria de ani- doa em reações enzimáticas (Figura 9-8). O
mais e vegetais. Na verdade, somente poucos THF é produzido a partir da ação da enzima
animais (homem, porquinho-da-índia, morce- tetra-hidro-folato redutase. Existem seis for-
go das frutas e certas aves e peixes) não a sin- mas de THF, dependendo da forma como o
tetizam, isso devido à ausência da enzima L- carbono extra que é doado durante a reação
gulono-lactona, responsável pela sua síntese por ela catalizada: -CH3 (metil), -CH2- (meti-
a partir de derivados da glicose. leno), -CH=O (formil no N5 ou no N10 da
Sua principal função bioquímica é molécula), -CH=NH (formimino) e -CH=
converter o aminoácido prolina em hidroxi- (metenil).
prolina na formaçaõ do colágeno. No entanto, É importante na síntese de DNA por
é potente anti-oxidante, agindo como proteto- participar na síntese de purinas e timina.
ra da morte celular por ação de radicais livres. Quando ausente na alimentação, resulta, as-
sim com a vitamina B12, em anemia pernicio-
sa. Porém, enquanto a vitamina B12 possui

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 8: Vitaminas 91
reservas que duram anos, o folato pode levar a
doença carencial em poucos meses, em virtu-
de de sua baixa quantidade armazenada
(5mg). A carência de vitamina B12 leva a um
"aprisionamento" do folato pois a ativação
pela tetra-hidro-folato redutase depende de
etapas do metabolismo da vitamina B12, o
que potencia os efeitos da anemia perniciosa. Figura 9-9 - Estrutura Molecular da biotina.
O ácido fólico encontra-se presente
principalmente em vegetais folhosos (daí seu
nome); é uma vitamina termo e fotoestável. Vitaminas Lipossolúveis
1. Vitamina A:
Na retina, faz parte dos pigmentos
fotorreceptores rodopsina e iodopsina, que
modifica sua conformação espacial (de cis
para trans) que desencadeia o processo de
transmissão do impulso nervoso da visão.
É encontrada na forma de retinol (um
álcool) e de retinal (um aldeído), também
chamadas de vitamina A1 (Figura 9-10). Exis-
te, ianda, a forma de 3-desidro-retinol, de-
nominada vitamina A2. É uma vitamina ter-
Figura 9-8 - Estrutura molecular do ácido fólico. moestável, porém fotolábil a luz UV e a expo-
sição ao oxigênio atmosférico.
É obtida, principalmente, na forma de
9. Biotina:
beta-carotenos, pigmentos amarelados de ve-
Também conhecida como vitamina
getais.
H, é coenzima de enzimas carboxilases, des-
carboxilases e transcarboxilases transportan-
do o CO2 para os substratos (Figura 9-9). É
produzida em grande quantidade pela flora
bacteriana intestinal normal do ser humano, o
que torna sua carência muito rara.
Biotina + CO2 +
piruvato carboxilase
Piruvato oxalacetato
Figura 9-10 - Estrutura molecular do retinol (Vitamina
Biotina + CO2 + A1). O retinal é um tipo de vitamina A1 onde a OH ter-
acetil-CoA carboxilase
Acetil-CoA malonil-CoA minal é substituída por um grupamento aldeído
(CHO).A forma de 3-desidro- retinol, o C3 apresenta
dupla ligação.
A deficiência de bioina é muito rara,
porém na clara do ovo existe a proteína avi-
dina que impede a absorção intestinal da bio- A xerolftlmi e a cegueira noturna
tina o que faz com pessoas que se alimentam são processos patológicos resultantes da sua
de maneira exagerada com ovos crus (o cozi- carência alimentar.
mento destrói a avidina) desenvolvam alguns É um potente antioxidante, sendo re-
sintomas inespecíficos como anorexia, náu- ceitado para este fim, inclusive para fins cos-
sea, vômito, palidez, depressão, dermatite e méticos melhorando a consistência de cabelos
glossite. e pele. Em aplicações subcutâneas, retarda o
É uma vitamina termo e fotoestável. envelhecimento da pele e melhora a regenera-
ção tecidual.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 8: Vitaminas 92
Excesso de ingestão alimentar de caro- 3. Vitamina E (tocoferol):
tenóides leva a deposição desses pigmentos Possui importante função anti-
na pele dando-lhe um tom amarelado. Em, oxidante protegendo os lipidios de membra-
altas doses, apresenta efeitos colaterais neuro- nas (Figura 9-12). É termo e fotoestável.
lógicos severos, além de manifestações sistê- Em altas doses, é utilizada terapeuti-
micas como náuseas, dores abdominais, vômi- camente no tratamento da infertilidade agindo
to, cefaléia intensa. como estimulante da espermatogênese, apesar
São necessárias em doses diárias mui- de poder apresentar alguns efeitos colaterias
to pequenas na ordem de 1,5 mg/dia, expres- severos na coagulação sangüínea ou na regu-
sas em 5.000 unidades internacionais (1 UI lação hormonal.
= 0,3 µg). Um efeito interessante do uso excessi-
vo da vitamina E está relacionado com uma
2. Vitamina D: parente competição na absorção das demais
É produzida no organismo a partir da vitaminas lipossolúveis, o que pode induzir a
ativação pela UV do 7-desidrocolesterol for- carência delas.
mando o colecalciferol (vitamina D3) que é
convertido em 1,25-di-hidróxi-colecalciferol
por enzimas hepáticas e renais. Existe, ainda,
a forma de ergocalciferol (vitamina D2) que
é formada após a ativação ergosterol presente Figura 9- 12 - Estrutura molecular da Vitamina E.
em leveduras (Figura 9-11).
É necessária em dosagens diárias de
400UI (1 UI = 0,025µg) o que é obtido facil- 4. Vitamina K:
mente por síntese endógena. É cofator necessário para o processo
Não é uma vitamina verdadeira, e sim de coagulação sangüínea como no processo
funciona mais como um hormônio. Regula a de carboxilação. É produzida pelas bactérias
absorção do cálcio intestinal e o equilíbrio na intestinais, sendo sua carência muito rara eo-
liberação de cálcio e fósforo nos ossos. casiona distúrbios hemorrágicos, apesar de
É termo e fotoestável. Altas dosagens altas doses não prevenir hemorragias e poder
induzem a uma hipercalcemia que pode ser induzir à anemias hemolíticas e kernicterus
fatal ou favorecer processo de calcificação em (deposito de bilirrubina indireta no tecido
alguns órgãos. nervoso).
O raquitismo é a principal conse-
quência de uma carência nutricional de vita- Na tabela 8-1, encontra-se um resumo
mina D (nos adultos, osteomalácia). das principais informações sobre as vitami-
nas.

Figura 9-11 - Estrutura molecular da vitamina D2.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 8: Vitaminas 93
Tabela 8-1 - Resumo das características principais das vitaminas.
Função bio- Necessi- Termo- Foto- Doença ca- Uso tera- Toxici-
Vitaminas Forma ativa química dades Fontes lábil lábil rencial pêutico dade
diárias
Coenzima na Sementes e SIM NÃO Béri-béri; Melhoria Não
B1 Tiamina- descarboxila- 2 mg grãos de Síndrome de do estado relatada
(Tiamina) Pirofosfato ção oxidativa cerais, vísce- Wernik- metabólico
(TPP) de α- ras, carne Korsakoff geral
cetoácidos magra e leite
B2 Componente Coenzima de Germe de NÃO SIM Rachaduras Melhoria Não
(Riboflavi- de FAD e transferência 3 mg cerais, vísce- na boca, do estado relatada
na) FMN de hidrogênio ras, carne seborréia. metabólico
magra e leite geral
B3 Componente Coenzima de Carne, fígado NÃO NÃO Pelagra; Melhoria Lesão
(Nicotina- do NAD e transferência 20 mg e grãos de síndrome da do estado hepática;
mida) NADP de cerais língua negra metabólico hiper-
hidrogênio em cães geral pigmen-
tação
B5 Componente Transferência Levedura, SIM NÃO Síndrome do Melhoria Não
(Ácido da Co-A de grupos acil 10 mg fígado, ovos, pé ardente do estado relatada
pantotêni- e acetil carnes e leite metabólico
co) geral
Transamina- Sementes e SIM SIM Dermatite, Anti- Reações
B6 Piridoxal ção e descar- 2 mg grãos de glossite e neurítico; alérgicas
(Piridoxina) Fosfato boxilação de cereais, car- neuropatias anti-enjôos.
(PALP) aminoácidos ne, viscera,
ovos e leite
B12 Coenzima Cofator de NÃO SIM Anemia per- Associada Não
(Cobalami- B12 (desoxi- reações de 5 µg Vísceras e niciosa ao trata- relatada
na) adenosil- metilação carnes mento da
cobalamida) doença
carencial
Transporte de Sementes e NÃO NÃO Anorexia, Associada Não
BIOTINA Biocitina ou grupos CO2 0,25mg grãos de náusea, vômi- ao trata- relatada
Biotinilisina em processos cereais, car- to, palidez, mento da
carboxilantes ne, víscera, depressão, doença
ovos e leite dermatite e carencial
glossite
Ácido tetra- Transferência NÃO NÃO Anemia per- Associada Não
Ácido fólico hidrofólico de grupos 0,4 mg Levedura e niciosa ao trata- relatada
(THF) formil (sínte- vegetais mento da
se de nucleo- verdes doença
tídeos) carencial
Vitamina C Não precisa Cofator em SIM SIM Escorbuto Antioxi- Aumenta
(Ácido ser ativado reações de 60 mg Frutas cítricas dante; o risco de
ascórbico) para exercer hidroxilação antigripal. cálculos
sua função renais
Regula o Leite, man- NÃO SIM Cegueira Antioxi- Reações
A ciclo visual 5.000 UI teiga, queijo, (luz noturna, dante; neuroló-
(Retinol) 11-cis-retinal através da óleo de fíga- UV) xeroftalmia. gicas e
formação de do de baca- sistêmics
Rodopsina a lhau, frutas e severas
partir da vegetais ricos
opsina em carotenos
Exposição da NÃO NÃO Raquitismo Associada Hipercal-
D 1,25 diidroxi- Regula a pele a luz osteomalácia. ao trata- cemia,
(Colecalci- colecalciferol concentração 400 UI solar, leite, mento da calcifica-
ferol) de cálcio queijo, man- doença ção de
plasmático teiga, óleo de carencial órgãos
fígado de moles,
bacalhau, cálculos
óleos vegetais renais
E Não precisa Antioxidante NÃO NÃO Desestabili- Antioxi- Distúr-
(α- ser ativado protetor dos 30 UI Óleos vege- zação da dante; bios
tocoferol) para exercer lipídios insa- tais membrana estimula a hormo-
sua função turados celular espermato- nais e na
gênese coagula-
ção
K Síntese hepá- Vegetais NÃO NÃO Distúrbios da Associada Anemia
(2-metil- Não precisa tica da pro- folhosos, coagulaçào ao trata- hemolíti-
1,4- ser ativado tombina e 1 mg flora bacteri- mento da ca, ker-
naftoqui- para exercer fatores VII, ana intestinal doença nixterus
noina) sua função IX e X da carencial
coagulação
sanguínea

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 8: Vitaminas 94

EXERCÍCIOS

1. Comente sobre a importância das vitami-


nas para o metabolismo celular.

2. Comente sobre as vitaminas que possuem


uma doença carencial bem características.

3. Quais as ações farmacológicas das vita-


minas? Comente sobre o seu efeito tóxi-
co.

Para navegar na Internet

Fundamentos de Bioquímica:
www.fundamentosdebioquimica.hpg.com.br

Vitaminas e Minerais:
www.cyber-north.com/vitamins

Webioquímica
www.pucpr.br/disciplinas/bioquimica/Webio1.html

3D Images of proteins
www.imb-jena.de/IMAGE.html

Ricardo Vieira
Capítulo 9
Fundamentos de Bioenergética
A
s células possuem a capacida- de enzimas especializadas (ATPases), libe-
de espetacular de sobrevive- rando a energia para o sistema reacional, em
rem de maneira independente um processo exergônico.
desde que lhes sejam fornecidos os substratos
básicos para as reações químicas intracelula-
res. Dispondo de alguns compostos carbona-
dos (aminoácidos, carboidratos, lipídios), vi-
taminas, água e minerais, a célula pode operar
o processo de síntese da maioria dos elemen-
tos necessários para seu funcionamento, sen-
do que em organismos complexos, grupos
celulares específicos agrupam-se formando os
órgãos com as mais diversas funções fisioló-
gicas. ADP + Pi + 7,3 kcal Æ ATP + H2O ∆Go= + 7,3 kcal/mol
Um grupo de substratos possui uma ATP + H2O Æ ADP + Pi + 7,3 kcal ∆Go= - 7,3 kcal/mol
função primordial para estas funções que é a
Figura 9-1 - A moeda energética dos negócios intracelulares:
de fornecer a energia térmica necessária para o ATP.
que essas reações ocorram. São os compostos
energéticos (carboidratos, lipídios e proteínas)
que são degradados convertendo a energia Não só o ATP exerce essa função (Ta-
química que une seus átomos em energia tér- bela 1), mas há uma prevalência de reações
mica. intracelulares que o utilizam como a molécula
Entretanto, esta liberação térmica não fornecedora de calor para as reações endotér-
acontece de forma indiscriminada, pois have- micas, talvez por um preciosismo evolucioná-
ria a incineração do meio celular se cada mo- rio que “preferiu” utilizar uma “moeda única”
lécula energética liberasse todo seu potencial para as “transações” energéticas celulares.
térmico para o meio. Neste momento entra em A molécula de ATP não é, entretanto,
ação moléculas especializadas em captar esta uma molécula de reserva energética por ex-
energia térmica liberada e liberá-la mais fa- celência, uma vez que perde muito rapida-
cilmente em etapas posteriores, fazendo com mente seu Pi, sendo, por isso, utilizada mais
que as moléculas energéticas transfiram a em reações que necessitem da liberação rápi-
energia armazenada na intimidade de suas da de calor.
ligações químicas, para uma única molécula, As melhores moléculas de armazena-
que passa a funcionar como uma moeda ener- mento real de energia são o amido, glicogênio
gética: a adenosina-tri-fosfato, o ATP (Figura e triglicerídeos que podem liberar a principal
9-1). molécula precursora da síntese do ATP, a
O ATP é formado a partir da adição de acetil-CoA (Figura 9-2). Esta molécula é res-
uma molécula de fosfato inorgânico (Pi = ponsável por iniciar o principal grupo de rea-
HPO4-) a uma molécula de ADP (adenosina- ções bioquímicas que desencadearão a síntese
di-fosfato) em um processo endergônico, ou de ATP: o Ciclo de Krebs, com a cadeia
seja com a formação de uma molécula que respiratória acoplada.
retirou calor do sistema reacional para poder Muitas são as formas de se produzir
ser sintetizada. acetil-coA na célula, mas o metabolismo dos
Eligação de alta energia formada (7,3 carboidratos constitui a principal via, quando
kcal/mol), é facilmente quebrada na presença a glicólise prossegue em aerobiose (em anae-
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 9: Fundamentos de Bioenergética 98
robiose, há a síntese se ácido láctico e uma colocando-se o indivíduo em uma câmara
baixa produção energética). isolada onde seja medida perdas de calor e
A β-oxidação de ácidos graxos tam- produtos excretados em relação à alimentação
bém libera significativa quantidade de molé- e o consumo de oxigênio, onde um litro de O2
culas de acetil-CoA para o Ciclo de Krebs, consumido equivale a, aproximadamente,
existindo, ainda, uma série de aminoácidos 4,83 kcal de energia gasta.
que fornecem seu esqueleto carbonado para a É comum expressar o poder calórico
síntese de ATP (o nitrogênio do grupamento em calorias. Porém, a unidade correta de me-
amino converte-se em, NH3 e depois em uréia dir o calor liberado pelos alimentos é a kilo-
e é excretado). caloria (kcal). No jargão nutricional, costu-
Como produto final da degradação do ma-se referir-se à kilocaloria como grande
carbono, oxigênio e hidrogênio dessas molé- caloria (Cal) para diferenciar da unidade calo-
culas energéticas, há a liberação de CO2, H2O ria (cal).
e energia térmica, que é armazenada no ATP Um kcal à energia necessária para
para ser liberada rapidamente, quando neces- elevar um litro de água em um grau centígra-
sária. do, de 17 para 18oC. Em artigos científicos,
freqüentemente, os valores de kcal são con-
vertidos em unidades de trabalho kilojoule
(kj) multiplicando-se pelo fator 4,14. Isto
reflete o fato que o calor liberado nas reações
celulares são convertidos em trabalho celular.
Neste texto, porém, iremos utilizar
valores em kcal por ser um valor de uso mais
geral e expressa valores verdadeiros de calor.
Desta forma, para efeito de raciocínio,
imagine que a temperatura de um ser humano
normal, que varia entre muito pouco (35 –
36oC) e precisa de uma certa quantidade de
calor constantemente produzida para manter
esta temperatura. Como cerca de 60% do peso
corpóreo corresponde a água, um homem de
70kg possui cerca de 42 litros de água. Assim,
para manter a temperatura corpórea neste ní-
Figura 9-2 - A molécula de acetil-CoA é inicia- vel, são necessários 42 kcal.
dora do ciclo de Krebs, a “gasolina” do “motor”
Após a morte, quando tem início a pa-
metabólico celular.
rada total dos processos metabólicos, o corpo
humano leva cerca de uma hora para entrar
Poder calórico dos alimentos em hipotermia definitiva (na primeira hora,
ainda há atividade metabólica em vários teci-
Em condições normais, a energia ab- dos). Assim sendo, pode-se pressupor o tem-
sorvida por via alimentar deve ser igual a e- po de uma hora para as 42 kcal serem consu-
nergia gasta, diariamente, por um indivíduo, o midas puramente para manter a temperatura
que confere um equilíbrio energético relacio- corpórea, o que sugere que é necessário cerca
nado a um balanço calórico alimentar, ou seja, de 1.008 kcal por dia (42kcal x 24 horas) so-
uma quantidade tal de alimentos das três clas- mente para manter a temperatura corpórea.
ses (energéticos, plásticos e reguladores) que Levando-se em consideração a reali-
proporcionem quantidades suficientes para as zação de atividades físicas, mentais e demais
atividades metabólicas básicas do organismo atividades metabólicas que requerem energia,
sem deficiências ou excessos de energia signi- pode-se compreender a intensa quantidade de
ficativos. energia liberada pelos alimentos em uma ali-
O gasto de energia varia amplamente mentação. Cada grupo de alimentos deve estar
em diferentes condições e pode ser medida
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 9: Fundamentos de Bioenergética 99
presente na alimentação diária de forma a danosa ao organismo, o que faz que um ani-
atender as necessidades individuais, tendo mal que não se alimente por mais de duas
como parâmetro, a produção de energia, le- semanas morra por inanição.
vando-se em consideração as necessidades Os animais hibernantes são exceção a
individuais de acordo com o biotipo, estado essa regra, pois os lipídios armazenados du-
fisiopatológico, idade, sexo, estilo de vida e, rante as estações quentes, garantem a energia
inclusive, características sócio-culturais. Para e água necessárias durante o inverno, sem
mais detalhes, ver Capítulo 2 sobre Bioquími- haver a ação danosa dos corpos cetônicos,
ca dos Alimentos. mas sim seu aproveitamento total no metabo-
É evidente que toda essa quantidade lismo energético. O camelo que contém em
de energia (ainda mais quando em excesso) suas corcovas grandes depósitos de gordura
não é liberada de uma só vez no organismo, que garante água e energia para as longas
pois isso é incompatível com a vida por gerar travessias do deserto.
calor insuportável pelas células. Desta forma, Os carboidratos (glicose) são a fonte
um emaranhado de reações químicas desen- primária de energia dos neurônios. Em sua
volveram-se nos organismos vivos como uma ausência, somente há a utilização dos corpos
forma de desviar a energia livre dos alimentos cetônicos, não havendo o metabolismo ener-
para moléculas especializadas em armazenar gético de ácidos graxos.
esta energia e liberá-las gradativamente du- As proteínas são utilizadas somente de
rante o tempo de vida (ATP, liberação mais forma terciária para a produção de energia,
imediata; glicogênio e ácidos graxos, libera- porém possuem inúmeras funções biológicas
ção mais gradativa). que as fazem essenciais na alimentação, ape-
Os carboidratos são os alimentos e- sar de serem “desmontadas” em aminoácidos
nergéticos por excelência, apesar de os lipí- na digestão e sintetizadas, no fígado, em todas
dios serem mais calóricos. Isto se dá, prova- as proteínas plasmáticas.
velmente por terem sido os primeiros A utilização de proteínas no metabo-
compostos fotossintetizados, armazenadores lismo energético indica um certo desperdício
da energia solar na intimidade de suas de um substrato tão diferenciado em uma fun-
moléculas.
Os lipídios são compostos primários ção básica como a produção de energia. Isto
de reserva energética na maioria dos animais só se observa quando há extrema carência
justamente pelo fato de serem primeiro arma- energética na ausência de glicose ou lipídios
zenados como indicativo de excesso de calo- disponíveis para o metabolismo energético ou
rias na alimentação. Em vegetais, o consumo quando há intensa atividade física.
de lipídios geralmente está atrelado aos pro-
cessos de manutenção de células germinativas As moléculas "altamente"
em sementes que ficam longo tempo sem o
fornecimento de carboidratos pela fotossínte- energéticas
se, uma vez que são separados do organismo
gerador. Mesmo nessas sementes, os carboi- O ATP não é a única molécula capaz
dratos (na forma de amido) estão presentes de receber e liberar energia térmica para as
como combustível energético. reações bioquímicas. A condição primordial
Os nutrientes energéticos ingeridos di- para uma molécula ser considerada "altamen-
ariamente, rapidamente são consumidos. As te" energética é ter a capacidade de transferir
reservas de glicogênio sintetizado a partir de grupamentos químicos durante reações bio-
excesso de glicose duram, no máximo, 24 química, liberando a energia para o meio (re-
horas, enquanto que as reservas de lipídios ação exergônica) possibilitando que os subs-
armazenadas nos adipocitos pode fornecer, tratos da reação absorva esta energia para ser
em tese, energia para cerca de um mês sem a produzido os produtos (reação endergônica)
ingestão de alimentos. Entretanto, a produção num acoplamento entre esses dois tipos de
de compostos secundários a degradação dos reação.
lipídios (os corpos cetônicos) possuem ação

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 9: Fundamentos de Bioenergética 100
Na tabela 9-1 estão apresentadas as Portanto, um excesso de produção de
principais moléculas energéticas e os grupos acetil-CoA não é um processo desejável, ha-
químicos transferidos durante o processo e- vendo um deslocamento constante para a sín-
xergônico. Nas Figura de 9-3 a 9-5 estão a- tese de aminoácidos e outros processos que
presentadas duas importantes moléculas consumam a acetil-CoA impedindo seu acú-
transportadoras de elétrons. mulo, até um limite tolerável pela célula que,
Muitas vezes, uma reação química não geralmente, corresponde a queda do pH devi-
utiliza totalmente a energia liberada pela mo- do ao acúmulo dos corpos cetônicos.
lécula energética, havendo o aumento da tem-
peratura no momento da reação. Este efeito As reações enzimáticas
pode ser benéfico para a célula, como no pro-
cesso de manutenção da temperatura corporal
As reações que acontecem no meio in-
nos mamíferos, mas, na maioria das vezes,
tracelular possuem o auxílio indispensáveis de
precisa ser impedido, havendo um processo
enzimas que não interferem na estrutura mo-
de regulação onde não há perda da energia em
lecular dos produtos, mas possibilitam sua
excesso.
rápida formação. Apesar de algumas molécu-
Isto quase sempre é observado quando
las de RNA possuírem propriedades enzimáti-
há a liberação de muitas moléculas de acetil-
cas (ribozimas), as enzimas clássicas são,
CoA no excesso alimentício de carboidratos,
quimicamente, proteínas que possuem uma
havendo o desvio da acetil-CoA para a síntese
estrutura tridimensional complementar a um
de colesterol, triglicerídeos e corpos cetôni-
substrato específico ajustando-se a ele em um
cos.
modelo chave-fechadura, permitindo a forma-
Este efeito metabólico também é ob-
ção dos produtos com um gasto mínimo de
servado na carência de glicose onde os ácidos
energia.
graxos passam a liberar grandes quantidades
Este processo acontece pela formação
de acetil-CoA para o processo energético,
de um complexo enzima-substrato que permi-
havendo o natural acúmulo de colesterol e
te que os substratos se encontrem de maneira
corpos cetônicos que trazem problemas fisio-
muito mais rápida e ordenada, diminuindo a
lógicos importantes para o ser humano como
energia necessária para que ocorra a reação
a aterosclerose e a cetoacidose, podendo, in-
(energia de ativação), liberando a enzima
clusive, levar a morte.
intacta ao final da reação (para maiores deta-
A acetil-CoA é utilizada, também, na
lhes ver Capítulo 5 sobre enzimas).
síntese de alguns aminoácidos, porém como
os aminoácidos não se armazenam no orga-
nismo, a síntese de lipídios fica privilegiada.

MOLÉCULA ENERGÉTICA GRUPO DE EXEMPLO DE REAÇÕES QUE


TRANSFERÊNCIA PARTICIPAM
ATP (adenosina tri--fosfato)
UTP (uridina-tri-fosfato) fosforil (Pi = fosfato glicólise, cadeia respiratória, ciclo de
inorgânico) Krebs, síntese da creatina
GTP (guanosina-tri-fosfato)
Creatinina-fosfato
NADH (nicotinamida-adenina-dinucleotídeo) síntese do ácido láctico, cadeia respirató-
NADPH (NAD-fosfato) elétrons, hidrogênio ria, ciclo de Krebs
FADH2 (flavina-adnina-dinucleotídeo)
Acetil-Coenzima A (acetil-CoA) grupo acil (cadeia ciclo de Krebs, β-oxidação, síntese de
carbonada) aminoácidos e lipídios
Biotina CO2 ciclo de Krebs
Tetra-hidro-folato (THC) carbono simples síntese de aminoácidos
Tiamina-prirofosfato (TPP) aldeído ciclo de Krebs, síntese de acetil-CoA
S-adenosilmetionina (adoMET) metil síntese e degradação de aminoácidos
Uridina-bi-fosfato-glicose glicose síntese do amido e glicogênio
Tabela 9-1 - Exemplo de moléculas "altamente energéticas" que participam de processos bioquímicos essenciais.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 9: Fundamentos de Bioenergética 101
necessárias em pequenas quantidades uma vez
que são reaproveitadas ao final da reação. De
fato, a maioria das reações biológicas são
enzimáticas e não ocorrem na ausência ou
inibição da enzima.

Figura 9-3 - A molécula de NAD+ é responsável pela


captação de um par de elétrons e um H+ durante reações
de desidrogenações, poderosas reações exergônicas.
Fazem parte de um complexo transportador de elétrons
mitcondrial.

Figura 9-5 - A molécula de NADP+ não é um bom


transportador de elétrons para o metabolismo ener-
gético, porém garante o transporte dos elétrons para
sistemas que necessitem de potencial redutor (p.ex.:
síntese de lipídios, redução do ferro da hemoglobi-
na).

As principais reações bioe-


nergéticas
Os carboidratos constituem os princi-
pais compostos energéticos, com a glicose
possuindo um mecanismo de degradação pre-
sente em todos os seres vivos. De fato, a se-
melhança entre o processo de degradação da
glicose nos seres vivos, indica sua importân-
cia no processo metabólico.
As principais reações bioenergéticas,
portanto, estão relacionadas com o metabo-
Figura 9-4 - A molécula de FAD+ recebe um par de lismo da glicose, onde o passo primordial é a
elétrons e dois H+ durante desidrogenações. Junto com o
quebra da molécula da glicose, de seis carbo-
FAD+ é uma das principais moléculas da cadeia respira-
tória mitocondrial. nos, em duas moléculas de ácido láctico, de
três carbonos. Este processo citoplasmático, a
Desta forma, as enzimas tornam-se in- glicólise, ocorre em todas os seres vivos,
dispensáveis para os processos biológicos sejam anaeróbios ou aeróbios.
pois poupam um gasto desnecessário de ener- Em aerobiose, particularmente, não há
gia, além de permitir a rápida formação dos a formação de ácido láctico mas sim de ácido
produtos em um tempo muito menor do que pirúvico, que é devidamente convertido em
seria se a reação não fosse enzimática e serem acetil-coA, iniciando, nas mitocôndrias, o

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 9: Fundamentos de Bioenergética 102
ciclo de Krebs (ou do ácido tricarboxílico, o essencialmente anaeróbico, com o metabolis-
ácido cítrico). mo aeróbico produzindo quase vinte vezes
Aqui, há a liberação de elétrons que mais energia para os processos metabólicos
são transportados por compostos especializa- intracelulares. Desta forma, o ciclo de Krebs
dos gerando energia capaz de unir moléculas e a Cadeia respiratória correspondem à se-
de ADP com Pi formando ATP, na chamada qüência natural do metabolismo da glicose e
fosforilação oxidativa ou cadeia respirató- dos demais compostos energéticos (ácidos
ria. graxos e aminoácidos).
Quando há um excesso de glicose ali-
mentar, há o estímulo da síntese de glicogênio Tabela 9-2 - Os principais sítios das reações bioquími-
hepático e muscular (glicogênese), além da cas intracelulares.
conversão da acetil-CoA em excesso em tri- REAÇÃO BIOQUÍMICA LOCAL
Glicólise
glicerídeos e seu posterior depósito nos adi-
Síntese de ácidos graxos
pócitos (ver Capítulo 10 sobre Metabolismo). Síntese de corpos cetônicos citoplasma
Os ácidos graxos correspondem às Síntese do Colesterol
moléculas de maior poder calórico no Parte do ciclo da uréia
metabolismo celular, mas são utilizados Parte da gliconeogênese
Ciclo de Krebs
secundariamente à glicose. O processo
Cadeia respiratória mitocôndrias
enzimático mitocondrial da β-oxidação dos β-oxidação dos ácidos graxos
ácidos graxos, produz moléculas de acetil- Formação da acetil-CoA
CoA para o Ciclo de Krebs, além de NADH e Parte do Ciclo da uréia
FADH2 para a cadeia respiratória. Parte da gliconeogênese
Síntese e empacotamento de molé- retículo en-
O excesso de acetil-CoA é destinado à
culas complexas (glicolipídios, doplasmático
síntese de corpos cetônicos, outras moléculas glicoproteínas, lipoproteínas, hor- e aparelho de
energéticas. Os aminoácidos também são uti- mônios protéicos) Golgi
lizados para a produção de energia fornecen- Síntese de protéinas ribossomos
do acetil-CoA ou intermediários para a glico- Degradação de moléculas comple- lisossomos
neogênese ou o Ciclo de Krebs. xas
Síntese de DNA e RNA núcleo
Outras reações bioquímicas importan-
tes utilizando as moléculas energéticas ocor-
A glicólise, também conhecida como
rem em vários locais da célula de maneira
via de Ebden-Meyerhof, é a primeira via
contínua, havendo a regulação da degradação
metabólica da molécula de glicose e outras
dos substratos através de processos de regula-
hexoses. Todos os seres vivos (a exceção dos
ção da atividade enzimática. Na tabela 9-2
vírus) realizam, invariavelmente, a glicólise
estão relacionadas as principais localizações
seja em condições de aerobiose ou de anae-
de reações bioquímicas importantes.
robiose, com as enzimas glicolíticas presentes
Neste capítulo, trataremos das reações
no citoplasma.
do Ciclo de Krebs e Cadeia Respiratória e dos
Primariamente, a glicólise é um pro-
principais processos que antecedem a forma-
cesso anaeróbio onde se observa a formação
ção de acetil-CoA (Glicólise e β-oxidação de
de um produto final estável (lactato) e em
ácidos graxos).
condições de aerobiose, o metabolismo da
glicose prossegue com as demais vias produ-
Glicólise toras de energia (ciclo de Krebs e cadeia res-
piratória) mas somente se a célula possuir
A glicose é o principal substrato para mitocôndrias funcionais, uma vez que esses
as reações energéticas, sendo a glicólise o processos são todos intramitocondriais.
principal processo de utilização energética da A glicólise ocorre em uma seqüência
glicose, presente em todos os seres vivos, enzimática de 11 reações, divididas em duas
desde a mais antiga e simples bactéria até o fases: a primeira até a formação de duas mo-
mais recente e complexo organismo multice- léculas de gliceraldeído-3-fosfato caracteri-
lular. A glicólise, entretanto, é um processo za-se como uma fase de gasto energético de 2
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 9: Fundamentos de Bioenergética 103
ATPs nas duas fosforilações que ocorrem É importante observar que, sendo oxi-
nesta fase (Figura 9-6); a segunda fase carac- dado o piruvato, o NADH (produzido na gli-
teriza-se pela produção energética de 4 ATPs cólise) que seria utilizado para sua redução, é
em reações oxidativas enzimáticas indepen- poupado o que possibilita que os elétrons por
dentes de oxigênio, utilizando o NADH como ele transportado, possam penetrar na mito-
transportador de hidrogênios da reação de côndrias e convertidos em ATP, em última
desidrogenação que ocorre (Figura 9-7). análise, na cadeia respiratória.
O rendimento energético final do me- A primeira fase da glicólise é uma fase
tabolismo anaeróbio da glicose, portanto é: de gasto energético onde os produtos forma-
• 1a. FASE: - 2 ATPs dos são mais energéticos que a glicose. A
• 2a. FASE: +4 ATPS (= saldo bruto: 2 segunda fase, resgata a energia investida e
por cada lactato formado) libera parte da energia contida na molécula de
• SALDO: + 2 ATPs (saldo líquido) glicose.
Em condições de aerobiose, porém, o As reações irreversíveis impedem a
piruvato não é reduzido e sim oxidado nas reversão do processo e a liberação de glicose
mitocôndrias pelo complexo enzimático pi- para o meio extra-celular. A neoglicogênese
ruvato-desidrogenase (também chamado precisará "driblar" essas reações irreversíveis
piruvato-descarboxilase) havendo a forma- para gerar glicose. As enzimas desta via me-
ção de acetil-CoA e a liberação de uma molé- tabólica permitirão justamente nessa reversi-
cula de CO2 por cada piruvato oxidado. bilidade (ver capítulo 10 sobre metabolismo).
É formado, também, um NADH na re-
ação de desidrogenação, indo para a cadeia
respiratória, uma vez que já está dentro das
mitocôndrias.

Figura 9-6 - Na primeira fase da glicólise há o gasto da energia da ligação fosfato de duas moléculas de ATP. É
uma fase de investimento energético para a produção posterior maior da energia com a quebra da molécula. Duas
reações de fosforilações são irreversíveis o que obriga a não formação de glicose a partir do aumento da concetra-
ção do produto. Essas reações irreversíveis serão alvo de enzimas da neoglicogênese.
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 9: Fundamentos de Bioenergética 104

Figura 9-7 -A segunda fase da glicólise é responsável pela produção energética equivalente a quatro ligações de alta ener-
gia do ATP mais a formação de dois NADH. Parte do BPG formado é usado como sinalizador para a liberação de O2 nos
tecidos pela hemoglobina.

Alguns fungos possuem um tipo espe- As hemácias realizam, também, so-


cial de glicólise, denominada fermentação mente o metabolismo anaeróbico pelo fato de
alcóolica, pelo fato de degradar a glicose até suas mitocôndrias serem afuncionais.
piruvato (3C) e este até etanol (2C) com a Nas hemácias, durante a segunda fase
liberação de CO2. da glicólise, o 1,3-bis-fosfo-glicerato pode ser
Este é o principal motivo de se utilizar isomerizado em 2,3-bis-fosfo-glicerato (BPG)
fungos (p.ex.: Sacharomices cerevisae) para e se ligar com a hemoglobina induzindo a
obter a base para as bebidas alcóolicas e tam- liberação de O2 nos tecidos (ver capítulo 20).
bém como fermento de pão (a massa aumenta
de volume graças ao CO2 liberado). Ciclo de Krebs
A maioria das bactérias realiza o me-
tabolismo anaeróbico da glicose, mesmo sen-
O Ciclo de Krebs (assim denominado
do aeróbias, pelo simples fato de não possui-
em homenagem ao bioquímico alemão Hans
rem mitocôndrias. Algumas bactérias, entre-
Krebs que estabeleceu, em 1937, as seqüên-
tanto, possuem na membrana citoplasmática
cias de reações a partir de estudos prelimina-
enzimas transportadoras de elétrons que per-
res), também chamado Ciclo do Ácido Tri-
mite o metabolismo aeróbico semelhante ao
carboxílico ou Ciclo do Ácido Cítrico, é a
observado no Ciclo de Krebs e Cadeia Respi-
mais importante via metabólica celular. Ocor-
ratória.
re sob a regência de enzimas mitocondriais,
em condições de aerobiose, após a descarbo-
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 9: Fundamentos de Bioenergética 105
xilação oxidativa do piruvato a acetil-CoA, As mitocôndrias possuem uma estrutu-
após o final da glicólise. ra de membrana peculiar que a assemelha a
A acetil-CoA também é originária da um organismo particular vivendo dentro de
degradação de ácidos graxos (β-oxidação) a uma célula estranha. De fato, o DNA mito-
partir da mobilização dos triglicerídeos arma- condrial apresenta diferenças notáveis em
zenados nos adipócitos e também dos amino- relação ao DNA nuclear, assemelhando-se
ácidos originários da degradação das proteí- mais com bactérias do que com o próprio or-
nas (alanina, treonina, glicina, serina, cisteína, ganismo na qual estão inseridas, sugerindo
fenilalanina, tirosina, leucina, lisina e tripto- que a sua origem é resultante de um processo
fano). Corpos cetônicos também podem ser de endosimbiose ocorrido nos primórdios da
degradados em acetil-CoA e aproveitados evolução.
pelos músculos e neurônios. A membrana externa das mitocôndrias
Todos esses compostos são sintetiza- é bastante permeável às moléculas que ser-
dos a partir da acetil-CoA e por isso podem vem de substratos para as reações energéticas
ser convertidos nela quando há necessidade (piruvato, acetil-CoA, ácidos graxos ativa-
energética. Entretanto, isto não é verdade para dos), porém a membrana interna corresponde
todas as moléculas originárias da acetil-CoA, a uma barreira para a entrada dessas molécu-
como é o caso do colesterol que não possui las para o interior da mitocoôndria.
função energética, correspondendo, portanto a É na membrana interna que estão loca-
um “beco sem saída” do metabolismo energé- lizadas proteínas especializadas em introduzir
tico a partir da acetil-CoA. os substratos citoplasmáticos para o interior,
O Ciclo de Krebs está associado a uma denominadas, genericamente, como lançadei-
cadeia respiratória, ou seja, um complexo de ras de substratos que proporcionam a sele-
compostos transportadores de prótons (H+) e ção das moléculas a serem degradadas pelas
elétrons que consumem o oxigênio (O2) ab- enzimas mitrocondriais. Dependendo do tipo
sorvido por mecanismos respiratórios, sinteti- de lançadeira, tem-se processos distintos de
zando água e gerando ATPs através de um captação de moléculas do citoplasma, ou de
processo de fosforilação oxidativa. saída de compostos da matriz mitocondrial
Esses processos ocorrem dentro das para o citoplasma.
mitocôndrias, com as enzimas do Ciclo de O Ciclo de Krebs inicia-se com a uni-
Krebs dispersas na matriz e os transportadores ão de uma molécula de acetil-CoA (2C) com
de elétrons estão fixos na cristas mitocondri- uma de oxalacetato (4C) gerando o citrato
ais (Figura 9-8). (6C) que possui três carboxilas.
O Ciclo de Krebs pode ser dividido
em oito etapas conseqcutivas:

1. INÍCIO: condensação da acetil-CoA com


o oxalacetato, gerando citrato: esta reação
é catalisada pela enzima citrato-sintase e
gera um composto de seis carbonos, uma
vez que o oxalacetato possui 4C e a acetil-
CoA, possui 2C que correspondem aos dois
últimos carbonos da glicose que ainda es-
tão unidos depois da oxidação do piruvato.
Figura 9-8 – A mitocôndria, sede do metabolismo energéti-
co. As enzimas do Ciclo de Krebs estão presentes na matriz 2. Isomerização do citrato em isocitrato: esta
mitocondrial, enquanto que os transportadores de elétrons reação é catalisada pela enzima aconitase.
encontram-se nas cristas mitocondriais (invaginações da Há a formação de cis-aconitato como um
membrana interna). O fluxo de prótons ocorre da matriz para intermediário ligado à enzima, porém pode
o espaço intermembrana e daí de volta para a matriz, geran-
ser que ele constitua uma ramificação do
do um potencial protônico necessário para a síntese de ATP.
ciclo.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 9: Fundamentos de Bioenergética 106
3. Oxidação do citrato a α-cetoglutarato: lico que inicia-se com a captação de uma mo-
catalisada pela enzima isocitrato- lécula de 2C (acetil-CoA) por um composto
desidrogenase, utiliza o NADH como de 4C (oxalacetato), gerando uma molécula
transportador de 2 hidrogênios liberados na de 6C (citrato) que é trabalhado enzimatica-
reação, havendo o desprendimento de uma mente para liberar os 2C iniciais como CO2,
molécula de CO2, a primeira da acetil- regenerando a molécula original de oxalaceta-
CoA. Há a formação de oxalo-succinato to, reiniciando o ciclo.
como intermediário ligado à enzima. Durante esta regeneração, são produ-
4. Descarboxilação oxidativa do α- zidos 4 substratos altamente energético deri-
cetoglutarato a succinil-CoA: é catalisada vados das reações de desidrogenação: 3 NA-
pelo complexo enzimático α- DH e 1 FADH2, além de um ATP no nível
cetoglutarato-desidrogenase e utiliza o dos substratos.
NADH como transportador de 2 hidrogê- Na verdade, os carbonos da acetil-
nios liberados na reação, havendo o des- CoA incorporados à molécula de citrato só
prendimento de mais uma molécula de são liberados como CO2, na segunda volta do
CO2 que corresponde ao último carbono Ciclo de Krebs e não imediatamente após a
remanescente da acetil-CoA, com as rea- formação do citrato. Entretanto, este detalhe
ções seguintes reorganizando o estado e- não diminui o fato que cada duas moléculas
nergético dos compostos com a finalidade de CO2 liberado, corresponde a molécula de
de regenerar o oxalacetato, molécula inici- acetil-CoA que entrou no Ciclo.
adora do ciclo, permitindo o Na Figura 9-9 está representado esta
prosseguimento do metabolismo da acetil- importante via metabólica celular.
CoA.
5. Desacilação do succinil-CoA até succina-
to: a enzima succinil-CoA sintase catalisa Na sua essência, o Ciclo de Krebs re-
esta reação de alto poder termogênico, ge- presenta a forma como a mitocôndria, utili-
rando um GTP (guanosina-tri-fosfato) que zando poucas moléculas do substrato oxlace-
é convertido em ATP (o único produzido tato pode converter uma quantidade enorme
no nível dos substrato do Ciclo de Krebs). de acetil-CoA já que no final do ciclo, o oxa-
6. Oxidação do succinato a fumarato: catali- lacetato se regenera e possibilita o a captação
sada pela enzima succinato-desidrogenase, de nova molécula de acetil-CoA. Sendo as-
utiliza o FADH2 como transportador de 2 sim, é a acetil-CoA a molécula iniciadora do
hidrogênios liberados na reação. Ciclo de Krebs, uma vez que o oxalacetato
funciona como uma espécie de substrato tem-
7. Hidratação do fumarato a malato: catali- porário do ciclo.
sada pela enzima fumarase (ou fumarato- Desta forma qualquer biomolécula que
hidratase) corresponde a uma desidratação ao ser degradada forneça acetil-CoA (p.ex.:
com posterior hidratação, gerando um isô- glicose, ácidos graxos, certos aminoácidos,
mero. etanol, ácido acético) é potencial “combustí-
vel” mitocondrial para a formação de ATP
8. TÉRMINO: desidrogenação do malato pelo Ciclo de Krebs. Entretanto, moléculas
com a regeneração do oxalacetato: catali- que forneçam o oxalacetato ao serem degra-
sada pela enzima malato-desidrogenase, dadas (p.ex.: alguns aminoácidos), ou qual-
utiliza o NADH como transportador de 2 quer substrato do ciclo de Krebs que conver-
hidrogênios liberados na reação. Na verda- ta-se em oxalacetato aumenta apenas a velo-
de, o Ciclo de Krebs não termina, verda- cidade de formação de ATP, mas não a sua
deiramente, com esta reação, pois outra quantidade já que o oxalacetato não é um
molécula de acetil-CoA condensa-se com o “combustível” propriamente dito do ciclo de
oxalacetato, reiniciando um novo ciclo. Krebs, mas o substrato para que ele aconteça.

De uma forma resumida, pode-se dizer


que o Ciclo de Krebs é um processo metabó-
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 9: Fundamentos de Bioenergética 107

Figura 9-9 - O Ciclo de Krebs. É produzido somente um ATP no nível dos substratos, sendo necessário que os hi-
drogênios e os elétrons retirados durante o ciclo sejam transportados para a cadeia respiratória para a produção de
ATP (3 ATPs por cada par de hidrogênios transportado pelo NADH e 2 por cada FADH2). Ao centro, a foto do cien-
tista alemão que dá nome a esta importante via metabólica.

A acetil-CoA disponível na mitocôn- Todas essas vias alternativas da acetil-


dria possui vários destinos metabólicos, além CoA, no entanto, não fazem parte da via gli-
do Ciclo de Krebs. Dentre eles os principais colítica, mas uma espécie de desvio do ciclo
são: de Krebs (ver capítulo 10 sobre metabolismo).
1) dar início à síntese de ácidos graxos pela
ação da enzima ácido graxo-sintase (esti- Cadeia Respiratória
mulada pela insulina);
2) duas moléculas podem condensar-se origi-
Os 4 pares de hidrogênios (e seus elé-
nando os corpos cetônicos;
trons) liberados no ciclo de Krebs são imedia-
3) pode ser incorporada, através de uma série
tamente transportado para a cadeia respira-
de reações enzimáticas, em um núcleo ci-
tória que é um processo gerador de ATPs
clo-pentano-perhidro-fenantreno, indo sin-
onde o O2 serve de aceptor final dos hidrogê-
tetizar o colesterol.
nios (e elétrons) gerando uma molécula de
4) pode ser requerida para a síntese dos ami-
H2O por cada par de elétrons que são trans-
noácidos cetogênicos.
portados pelo NADH e FADH2, gerados não
As vias de síntese de colesterol e cor-
só do ciclo de Krebs, mas de qualquer outra
pos cetônicos compartilham algumas enzimas
reação metabólica celular.
e a “decisão” que qual via prosseguir depen-
A síntese de ATP resultante do trans-
dendo da presença ou não de insulina, visto
porte de elétrons, ocorre em virtude da ener-
que a síntese de colesterol é estimulada por
gia livre liberada durante o fluxo de prótons
esse hormônio.
que ocorre entre os complexos transportado-
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 9: Fundamentos de Bioenergética 108
res de elétrons e prótons que comunicam a O complexo IV contém os citocro-
matriz mitocondrial e o espaço intermembra- mos a e a3 que possuem um grupamento he-
na. me (com um átomo de ferro) e estão ligados a
Quando o NAD+ se reduz, formando uma proteína transmembrana que conecta a
NADH, nas reações de desidrogenação nas matriz com o espaço intermembrana e possui
quais participa como co-fator enzimático den- dois átomos de cobre que possibilita o trans-
tro da matriz mitocondrial, há a passagem porte de elétrons para o aceptor final, o oxi-
imediata dos elétrons, que retirou do substra- gênio (O2).
to, para o complexo protéico denominado Quando os elétrons atravessam este
Complexo da NADH-desidrogenase ou complexo IV, gera-se um terceiro fluxo de um
Complexo I, que é composto por mais de 25 próton da matriz para o espaço intermembra-
flavoproteínas fixas na matriz mitocondrial na, com os elétrons sendo transferidos para o
que comunicam a matriz com o espaço inter- oxigênio, que se reduz formando água. Os
membrana. dois prótons necessários para formar a água
Este complexo possui um NAD+ e se- são retirados da matriz mitocondrial, ficando
te sítios contendo ferro e enxofre que funcio- a água na mitocôndia podendo atravessar para
nam como receptores de elétrons, reduzindo- o citoplasma.
se e oxidando-se quando há o fluxo eletrôni- Observe que um único par de elétrons
co. O receptor final de elétrons, deste com- transportado seqüencialmente pelos comple-
plexo, é a ubiquinona que converte-se em xos I, III e IV, geram o fluxo de três prótons
ubiquinol quando recebe os elétrons (se re- para o espaço intermembrana, com a forma-
duz). ção de uma molécula de água.
Quando os elétrons atravessam o O complexo II ou Complexo Succi-
complexo I e são transferidos até a ubiquino- nato-ubiquinona, é uma única enzima fixa
na, há a um fluxo de um próton que atravessa na crista mitocondrial mas que não comunica
a matriz em direção ao espaço intermembra- a matriz com o espaço intermembrana. Esta
na. Com esta passagem do próton, os elétrons enzima é a succinato-desidrogenase que par-
são transportados para o complexo III, de- ticipa da 6a reação do Ciclo de Krebs.
nominado, também de Complexo dos Cito- Este complexo é formado um FAD+
cromos bc1 ou Ubiquinona–citocromo c ligado a centros Ferro-enxofre. Ela transfere
oxidorredutase. os elétrons provenientes do FADH2 para a o
A ubiquinona desloca-se do complexo complexo III, mas de maneira diferente como
I em direção ao complexo III, correspondendo os elétrons do NADH são transportados para
a um transportador móvel. Este complexo o complexo III. Em virtude de não ser uma
contém os citocromos b562, b566, c1 e c, liga- proteína transmembrana, não gera o fluxo de
dos a uma proteína ferro-enxofre e cerca de prótons que o complexo I gera, fornecendo
outras seis proteínas. Todo este complexo III um sítio de fluxo de prótons a menos que os
está fixado na crista mitocondrial e é trans- elétrons transportados pelo NADH.
membrana, conectando a matriz e o espaço Na Figura 9-10, observa-se a represen-
intermembrana (com exceção do citocromo c tação esquemática dos complexos I,II, III e IV
que conecta-se apenas com o espaço inter- e a relação dos prótons lançados para fora da
membrana). mitocôndria e os pares de elétrons transporta-
O receptor final de elétrons deste dos.O fluxo de prótons gerado pela passagem
complexo é o citocromo c que se reduz e dos elétrons pelos complexos I, III e IV (co-
transfere os elétrons para o complexo IV, nhecidos, por isso, como bomba de prótons),
denominado de Citocromo oxidase. Nesta fornece energia suficiente para a síntese de
trasnferência, gera-se um fluxo de um próton três ATPs, o que corresponde a uma relação
da matriz para o espaço transmembrana (o de uma molécula de ATP para cada próton
segundo fluxo protônico). O citocromo c, do bombeado ou 3 moléculas de ATP para cada
complexo III, é um transportador móvel que par de elétrons que passe pelos três comple-
leva os elétrons para o complexo IV. xos.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 9: Fundamentos de Bioenergética 109

Figura 9-10 – A cadeia respiratória. Os elétrons transportados pelo NADH mitocondrial são doados para o
complexo I que favorece a formação de três fluxos de prótons no sentido matrizÆespaço intermembrana capazes
de gerar, cada fluxo, um ATP com o bombeamento do próton no sentido inverso (espaço intermembranaÆmatriz).
Os elétrons transportados pelo FADH2 só geram dois fluxos de elétrons. A ubiquinona é um transportador móvel
entre os complexos I e II para o complexo III, assim como o citocromo c é entre o complexo III e o IV.

Observe a equação exergônica que Da mesma forma, a redução do O2, a


demonstra a redução do O2 a partir dos elé- partir do par de elétrons transportados pelo
trons transportados pelo NADH, liberando FADH2, libera energia livre na ordem de
53,14 kcal de energia. 36,71 kcal:

NADH + H+ + ½O2 Æ H2O + NAD+ FADH2 + ½O2 Æ H2O + FAD+


∆G = - 53,14 kcal ∆G = - 36,71 kcal

A energia necessária para a síntese de O que corresponde a energia suficiente


uma molécula de ATP, in vivo, corresponde a para a síntese de quase três ATPs (36,7÷12,51
12,51kcal, muito maior que a energia livre = 2,93). Como visto pela estequeometria das
padrão de 7,3 kcal necessárias para a síntese reações exergônicas acima descritas, energia
de ATP a partir de ADP e Pi. Isto se dá por- livre não é problema para a síntese de ATP na
que as concentrações dos substratos na célula mitocôndria. Entretanto, em estudos experi-
são diferentes do valor de 1M que são utiliza- mentais observou-se que há uma proporção de
dos no cálculo, além do que a temperatura 3 moles de ATPs formados por cada mol de
intracelular é diferente de 25oC, o pH nem NADH oxidado (e mol de O2 reduzido em
sempre é 7,0 nem a pressão é 1 ATM constan- H2O, por conseguinte), da mesma forma que 2
temente (condições padrões de temperatura, moles de ATPs são formados para cada
pressão e pH). mol de FADH2 oxidado.
Desta forma a energia liberada é sufi- A teoria quimiosmótica que justifica
ciente para a síntese de até quatro ATPs esta proporção, postulada por Peter Mitchell,
(53,14 ÷ 12,51 = 4,25) por par de elétrons ainda na década de 60) admite que os prótons
transportados pelo NADH. bombeados para o espaço intermembrana,

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 9: Fundamentos de Bioenergética 110
durante o fluxo de elétrons na cadeia respira- na membrana interna para poder entrar na
tória, criam um gradiente de baixo pH (devido cadeia respitarória.
à alta concentração de H+) e carga elétrica Quando a lançadeira é o glicerol-3-Pi-
positiva no espaço intermembrana. A partir desidrogenase, uma proteína superficial da
dessas diferenças de gradientes há movimen- membrana interna em contato somente com o
tação de uma outra bomba de prótons, agora espaço intermembrana, há a transferência dos
no sentido do espaço intermembrana para a elétrons direto par complexo III, via ubiqui-
matriz mitocondrial, através de um complexo nona, de forma semelhante aos elétrons trans-
protéico denominado complexo V que cor- portados pelo FADH2.
responde à enzima ATP sintase. Desta maneira, quando há o transporte
Esta enzima possui é semelhante a de elétrons do NADH citoplasmático via esta
uma maçaneta tanto na forma quanto no mo- lançadeira, cada NADH produz somente 2
vimento rotatório que realiza quando há o ATPs. Porém, a maioria das vezes, o NADH
fluxo de próton do espaço intermembrana citoplasmático transfere seus elétrons direta-
para a matriz mitocondrial. A porção corres- mente para o complexo I e a produção energé-
pondente à cabeça da maçaneta está voltada tica é idêntica ao NADH mitocondrial.
para a matriz mitocondrial e corresponde à
subunidade F1 que contém os sítios de liga-
ção do ADP e Pi para a formação do ATP.
β-Oxidação dos ácidos graxos
Quando os prótons são jogados para o
lado de fora da matriz mitocondrial, há a for- Os triglicerídeos são a principal forma
mação de um potencial eletroquímico positivo de obtenção dos lipídios na alimentação, tanto
externo que favorece a passagem dos prótons de origem animal quanto vegetal. Os três áci-
de volta para a matriz por dentro do comple- dos graxos presentes na molécula são os subs-
xo V. Nesta passagem há a liberação de calor tratos para uma via metabólica de extrema
suficiente para a união do Pi com o ADP para importância quando a glicose não consegue
formar o ATP. satisfazer as necessidades energéticas ou
Assim sendo, como cada par de elé- quando o organismo está sobre intensa carên-
tron transportado pelo NADH produz um flu- cia energética por exercício físico intenso.
xo de 3 prótons para fora da mitocôndria, a A degradação de ácidos graxos é esti-
entrada desses próton pelo complexo IV favo- mulada pelo glucagon, epinefrina e cortisol
rece a síntese de 3 ATPs, bem como os elé- que promovem a mobilização dos triglerídeos
trons transportados pelo FADH2 produzem do tecido adiposo, ativando uma lipase intra-
apenas 2 fluxos de prótons para fora da mito- celular sensível a esses hormônios que libera
côndria e, portanto, somente 2 ATPs são pro- os ácidos graxos para o sangue onde são
duzidos. transportados para todas as células ligados à
Desta forma, a cadeia respiratória cor- albumina.
responde a um passo fundamental e decisivo Uma vez na célula, os ácidos graxos
no processo de formação de energia química vão ser oxidados na mitocôndria liberando
armazenada no ATP, uma vez que há uma tantas moléculas de acetil-CoA quanto forem
grande produção de NADH e FADH2 nos o número de carbonos na ordem de uma mo-
processos exergônicos da célula. lécula de acetil-CoA para cada dois carbonos
Um fato importante, entretanto, é que do ácido graxo.
essa relação de 3 ATPs produzidos por cada Como o ácido graxo mais simples sin-
NADH só é 100% verdadeira quando se trata tetizado pelos animais contém 16 carbonos, 8
de NADH produzido dentro da mitocôndria e moléculas de acetil-CoA no mínimo são libe-
que trasnfere seus elétrons para o complexo I. radas por cada molécula de ácido graxo oxi-
Alguns NADH produzidos no cito- dada. Portanto, oxidar ácido graxo sempre vai
plasma não entram na mitocôndria e tem que levar a um excesso de acetil-CoA que não
“entregar” seus elétrons para uma lançadeira pode ser convertida novamente em ácidos
graxos nem colesterol, uma vez que no mo-

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 9: Fundamentos de Bioenergética 111
mento metabólico não existe insulina para madas já se encontram na mitocôndria e po-
estimular essa via. dem seguir para o ciclo de Krebs e cadeia
A via restante é a da síntese de corpos respiratória, rapidamente.
cetônicos que, apesar de possuírem função Porém, o excesso da acetil-CoA for-
energética, podem trazer efeitos indesejáveis mado vai obrigar à sua saída para o citoplas-
para o organismo (ver Capítulo 10 sobre Me- ma para iniciar a síntese de ácidos corpos
tabolismo). cetônicos (ver capítulo 9 sobre Metabolismo).
A β-oxidação ocorre em cinco reações Os ácidos graxos podem, ainda, ser
próprias, sendo uma primeira citoplasmática e metabolizados através da α-oxidação, um
as demais intramitocondriais. processo que produz menos enrgia que a β-
1. INÍCIO: ativação do ácido graxo: a oxidação pois fornece apenas 1 NADH por
CoA é adicionada à molécula do ácido cada carbono oxidado , não produzindo ne-
graxo formando o ácido graxo ativado ou nhuma acetil-CoA.
acil-CoA (p.ex.: o ácido palmítico forma Só são α-oxidados ácidos graxos de 13
o palmitoli-CoA). Esta reação é catalizada a 18 carbonos. Geralmente este processo não
pela enzima acil-CoA sintase que utiliza é completo e gera ácidos graxos de número
duas ligações fosfato de uma única molé- ímpar.
cula de ATP, gerando AMP + PPi. Na mi- A maioria dos ácidos graxos possuem
tocôndria, a acil-CoA penetra com o auxí- número par de carbonos. Entretanto os ácidos
lio de um composto transportador chama- graxos de número ímpar quando β-oxidados e
do carnitina. formam uma molécula de propioil-CoA (3C).
Os ácidos graxos insaturados produ-
2. Desidrogenação da Acil-CoA: catalisada zem um FADH2 a menos por cada dupla liga-
pela enzima acil-CoA desidrogenase, uti- ção, em relação ao ácido graxo saturado de
liza o FADH2 como transportador dos mesmo número de carbonos.
dois elétrons e dois H+ liberados, forman- A ômega-oxidação é uma via muito
do o enoil-CoA. menos freqüente realizada por hidroxilases
envolvendo o citocromo P450 do retículo
3. Hidratação do enoil-CoA: sob a ação da endoplasmático das células animais, não sen-
enzima enoil-CoA hidratase, forma o 3- do um processo formador de energia, pois
OH-acil-CoA. gera metabólitos excretados pela urina (ácido
adípico e subérico).
4. Desidrogenação do 3-OH-acil-CoA: a
enzima 3-OH-acil-CoA desidrogenase
utiliza o NADH como transportador de Balanço energético do meta-
dois elétrons e um H+ retirados do substra- bolismo da acetil-CoA
to, formando o 3-ceto-acil-CoA.
Cada reação metabólica de desidroge-
5. TÉRMINO: clivagem (quebra) do 3- nação cujos transportadores de elétrons forem
ceto-acil-CoA: há a quebra da molécula o NADH e o FADH2, correspondem a proces-
gerando uma molécula de acetil-CoA e o sos extremamente exergônicos e que favore-
restante do ácido graxo original, agora cem a síntese de ATP na cadeia respiratória.
com dois carbonos a menos, que nova- Dentro deste quadro, o Ciclo de Krebs, que
mente liga-se a outra molécula de CoA fornece 3 NADH e 1 FADH2 para a cadeia
gerando um novo acil-CoA. O ciclo reco- respiratória produz, indiretamente, 11 ATPs.
meça até a formação da última molécula d Como gera, também, 1 ATP no nível dos
acetil-CoA. substratos (5a reação), há a formação de 12
ATPs por cada molécula de acetil-CoA que
A β-oxidação é uma via extremamente entra no ciclo (Tabela 9-3).
eficaz na produção de energia, já que as mo-
léculas de acetil-CoA, NADH e FADH2 for-
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica - Capítulo 9: Fundamentos de Bioenergética 112
Tabela 9-3 - Saldo energético do ciclo de Krebs e Desta forma, um ácido graxo de 20
cadeia respiratória a partir de um acetil-CoA. carbonos possui o balanço energético bruto de
Ciclo de Krebs Cadeia Res- TOTAL 165 ATPs, devendo-se descontar desse total a
piratória
energia correspondente a 2 ATPs gasta no
3 NADH x 3 ATPs 9 ATPs
1 FADH2 x 2 ATPs 2 ATPs início do processo (Tabela 9-5).Tabela 9-5 -
Balanço energético bruto da β-oxidação de um ácido
1 ATP (no nível - 1 ATP graxo saturado de 20C.
dos substratos)
TOTAL - 12 ATPs
Ácido ATPs
graxo Ciclo Cadeia TOTAL
Como cada molécula de glicose, de 20C de Respi-
quando degradada na via glicolítica aeróbica, Krebs ratória
fornece 2 acetil-CoA e NADH, além de pro- No de molécu-
las de acetil- 10 12 120
duzir 4 ATPs no citoplasma (gastando 2 no CoA
início do processo - ver capítulo 5: Carboidra- No de NADH 9 - 3 27
tos), pode-se concluir que o saldo energético No de FADH2 9 - 2 18
total do metabolismo aeróbico de uma molé- TOTAL - - - 165
cula de glicose é de 38 ATPs (Tabela 9-4).
Este valor pode descer a 36 ATPs se Nos vegetais e algumas bactérias, a
considerarmos que o NADH citoplasmático acetil-CoA pode ser metabolizada por uma
produzido na glicólise pode utilizar a lança- via alternativa do Ciclo de Krebs chamada
deira glicerol-3-Pi-desidrogenase, como visto Via do glioxalato que consume 2 moléculas
anteriormente. de acetil-CoA formando uma molécula de
Na β-oxidação dos ácidos graxos, há succinato que é convertido em fosfoenolpi-
a produção de tantas acetil-CoA quantos fo- ruvato, que pode ser, finalmente, metaboliza-
rem o número de carbonos, além de 1 FADH2 da pelas enzimas da glicólise.
e 1NADH para cada vez que as enzimas mi- O ciclo do Glioxalato é muito ativo
tocondriais agem sobre o ácido graxo (o nú- nas sementes em germinação onde a acetil-
mero de NADH e FADH2 é sempre um a me- CoA fornecida na β-oxidação dos ácidos gra-
nos que o número total de acetil-CoA – ver xos são convertidos em moléculas de glicose.
capítulo 6: Lipídios). Os animais não realizam este ciclo,
pois não possuem as enzimas isocitrato-liase
e malato-sintase que são fundamentais para
esta via metabólica.

Tabela 9-4 - Saldo energético total (glicólise + Ciclo de Krebs + cadeia respiratória) do metabolismo aeróbico da glicose.
ATP no nível NADH FADH2 ATPs gerados na Quantidade total de
dos substratos cadeia respiratória ATPs
Glicólise (1a. fase) -2 - - - -2
Glicólise (2a. fase) +4 2 - 6 10
Oxidação de Piruvato - 2 - 6 6
Ciclo de Krebs +2 6 2 22 24
TOTAL +4 10- 2 34 38

Ricardo Vieira
Capítulo 10
Metabolismo
U ma das principais funções da
bioquímica é estudar o meta-
bolismo celular, ou seja, a
maneira como a célula sintetiza e degrada
cos). A forma final de absorção da energia
contida nessas moléculas se dá na forma de
ligações de alta energia do ATP o qual é
sintetizado nas mitocôndrias por processos
biomoléculas dentro de um processo coorde- oxidativos que utilizam diretamente o O2.
nado para garantir sua sobrevivência com o Desta forma, é essencial a presença de
máximo de economia energética. mitocôndrias e de oxigênio celular para o
O anabolismo (síntese das biomolécu- aproveitamento energético completo das
las) é sempre um processo que necessita de biomoléculas.
Quando não há mitocôndrias (p.ex.:
energia para que ocorra. Isto é típico de situa- nas hemácias) ou quando a quantidade de O2
ções onde o estado energético celular está disponível é insuficiente (p.ex.: em células
com excesso de substratos para a síntese e, musculares submetidas a extremo esforço
portanto, há bastante energia disponível no físico), o metabolismo anaeróbico ocorre.
meio celular. Entretanto, enquanto o metabolismo aeróbico
De maneira inversa, o catabolismo irá é comum a todas as biomoléculas energéticas,
liberar energia quando as biomoléculas forem o metabolismo anaeróbico é exclusividade
degradadas. Isto acontecerá sempre quando dos carboidratos, onde o produto final lactato
houver necessidade energética e as moléculas pode ser reciclado e gerar novas moléculas de
degradadas funcionarão como os substratos glicose (através da neoglicogênese), num
para a liberação de energia que o meio celular processo que necessita de mitocôndrias. Não
necessita. só o lactato é convertido em glicose por esta
As leis da termodinâmica estão inti- via, mas várias outras moléculas como ami-
mamente relacionadas com este processo bio- noácidos e o glicerol.
lógico, pois os princípios universais de manu- Algumas vias metabólicas são exclu-
tenção das massas e da energia durante as sivas de algumas biomoléculas, como é o caso
reações bioquímicas são mantidos e garantem da síntese de glicogênio a partir de glicose e
que a célula seja um perfeito “tubo de ensaio” da síntese de uréia no fígado, a partir do gru-
para as reações bioenergéticas. Anabolismo e pamento amino dos aminoácidos. Alguns pro-
catabolismo correspondem a processos anta- cessos, entretanto são comuns a todas as bio-
gônicos, mas que ocorrem de maneira articu- moléculas, como é o caso da neoglicogênese
lada permitindo a maximização da energia que utiliza como substrato o lactato proveni-
disponível dentro da célula. Dentro desse pon- ente do metabolismo da glicose, o glicerol
to de vista, cada molécula degradada libera proveniente dos ácidos graxos e vários ami-
energia para o meio que será utilizada por noácidos.
alguma reação de síntese num acoplamento Nas hemácias, em particular, uma via
perfeito das reações endergônicas e exergôni- metabólica não mitocondrial (a via da pento-
cas. se-fosfato) produz grandes quantidades de
As biomoléculas energéticas são os NADPH que possui função antioxidante e
carboidratos, lipídios e proteínas que são constitui importante rota metabólica nesta
obtidas em grandes quantidades durante a célula, apesar de também ocorrer em tecidos
alimentação ou são mobilizadas das reservas onde a síntese biológica é alta (p.ex.: nos he-
orgânicas quando são ingeridas em quantida- patócitos).
de insuficiente na alimentação ou quando o O metabolismo é dividido, didatica-
consumo energético aumenta grandemente mente, em três estágios distintos onde a pro-
(p.ex.: durante a realização de exercícios físi- dução de energia será disponibilizada a partir
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 114

de substratos específicos (Figura 10-1). Num Numa segunda fase, essas moléculas simples
primeiro estágio, as biomoléculas grandes são são degradadas em vias metabólicas específi-
degradadas em suas moléculas constituintes cas onde o produto final principal é a molécu-
em um processo que corresponde à digestão, la de acetil-CoA que é formada dentro das
quando há alimentos disponíveis. Dentro de mitocôndrias. As maneiras como a acetil-CoA
um ponto de vista de necessidade energética, é formada são muito variadas. De uma forma
esses substratos serão mobilizados das reser- geral, a glicólise forma piruvato a partir da
vas biológicas. Esta primeira fase promove a glicose no citoplasma que é convertido em
formação de 20 aminoácidos a partir da de- acetil-CoA na mitocôndria (ver capítulo 9
gradação protéica, ácidos graxos e glicerol a sobre Bioenergética).
partir dos triglicerídeos e glicose a partir do
amido alimentar ou do glicogênio muscular e
hepático.

Figura 10-1 – As três fases do metabolismo.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 115

Somente sete aminoácidos geram dire- Muitas doenças metabólicas instalam-


to acetil-CoA com os demais gerando inter- se netas vias, principalmente quando há ex-
mediários da neoglicogênese. Os ácidos gra- cesso ou falta dos percussores metabólicos o
xos geram acetil-CoA através da beta- que torna fundamental a compreensão do fun-
oxidação, um processo intramitocondrial, cionamento dessas vias metabólicas para po-
mas que se inicia no citoplasma com a ativa- der entender a gênese dessas doenças (p.ex.:
ção dos ácidos graxos. diabetes mellitus, aterosclerose coronária,
Esta segunda fase do metabolismo gota etc.).
possui uma diversidade muito grande de vias A seguir, serão detalhadas as princi-
metabólicas próprias de cada biomoléculas, pais vias metabólicas envolvidas no metabo-
porém o produto final comum, a acetil-CoA, lismo energético celular, que, apesar de serem
faz com que seja necessário perfeita integra- apresentadas isoladamente, devem ser estuda-
ção para o início da próxima fase mitocondri- das de maneira integrada, pois ocorrem dentro
al. de uma entidade dinâmica e programada para
A terceira e última fase do metabolis- sobreviver, a célula. No capítulo 9 sobre bio-
mo ocorre somente em condições de aerobio- energética, foram apresentados os principais
se e no interior das mitocôndrias. A acetil- processos energéticos celulares comum a to-
CoA é a molécula que inicia esta fase com o das as células enquanto que neste capítulo
ciclo de Krebs a etapa crucial onde a forma- serão apresentados as vias metabólicas pró-
ção de citrato desencadeia o processo que prias de cada biomolécula.
levará a formação de alto potencial redutor
verificado na formação de moléculas de NA- Metabolismo dos Carboidra-
DH e FADH2, além de ATP formados na ma-
triz mitocondrial. tos
Associado a este ciclo, uma cadeia de
transporte dos elétrons retirados dos substra- Após a absorção dos carboidratos nos
tos pelos NADH e FADH2, presente na crista intestinos, a veia porta hepática fornece ao
da mitocôndria, permite a síntese de ATP em fígado uma quantidade enorme de glicose que
grande escala a partir da oxidação do O2 pro- é impossível ser totalmente degradada no me-
veniente da respiração que se combina com os tabolismo energético por extrapolar a capaci-
H+ mitocondrial e os elétrons liberados, for- dade de suporte calórico da hepatócito.
mando H2O. Este processo é extremamente Já no fígado, o excesso de glicose tem
eficaz e a concentração de acetil-CoA mito- vários destinos metabólicos, que serão os
condrial é fundamental para o sucesso deste mesmos na maioria das células extra-
processo. hepáticas, porém possuem, sem dúvida ne-
Um excesso de acetil-CoA leva ao nhuma, maior importância para o hepatócito
desvio da síntese de ATP e síntese de ácidos em virtude de receber o primeiro suprimento
graxos, colesterol e corpos cetônicos. Este de glicose. As rotas metabólicas da glicose,
desvio do metabolismo energético é muito além da produção de ATP, são:
comum e é um a forma eficaz de impedir o 1) síntese de glicogênio;
excesso do metabolismo oxidativo mitocon- 2) síntese de pentoses e redutores cito-
drial com a superprodução de ATP. Apesar da plasmáticos (NADPH);
síntese desses compostos ser citoplasmática, é 3) síntese de ácidos graxos (e em segui-
o excesso de acetil-CoA mitocondrial que da triglicerídeos), que são enviados
inicia esta síntese, em um processo ordenado para os adipócitos através de lipopro-
e extremamente eficaz, típico de quando há teínas sintetizadas no fígado;
excesso de substratos energéticos provenien- 4) síntese de colesterol (que pode ser
tes da alimentação ou da degradação dos áci- excretado na bile como sais biliares
dos graxos provenientes dos adipócitos. Co- ou transportado para as células extra-
mo vemos, são dois processos de origem dife- hepáticas através das mesmas lipo-
rente, mas fornecem excesso de acetil-CoA. proteínas que os triglicerídeos);

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Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 116

5) síntese de corpos cetônicos (que pos- dois pancreáticos, a somatostatina pancreá-


suem função energética para os teci- tica e a amilina, também são identificados
dos extra-hepáticos, principalmente como possuidores de função reguladora da
os neurônios e músculos). glicemia.

O fígado é a única célula que pode liberar 1. Insulina


glicose da célula para o sangue, fato indispen-
A insulina é um polipeptídeo (PM =
sável para suprir as necessidades energéticas
5.700d) formado por duas cadeias de aminoá-
de todas as células do organismo. Essa libera-
cidos (a cadeia A com 21 e a cadeia B com
ção só é possível graças à enzima glicose-6-
31), unidas entre si por duas pontes dissulfeto
fosfatase, que reverte a primeira reação da
de cistina e uma ponte dissulfeto interna na
glicólise (a formação de glicose-6-fosfato, ver
cadeia A (Figura 10-2). Promovendo a união
capítulo 9). As demais células, por não possu-
entre as duas cadeias, existe o peptídeo de
írem esta enzima, consomem integralmente a
ligação com 36 aminoácidos (peptídeo C)
glicose baixando a glicemia, já que absorvem
que é responsável pelo alinhamento da molé-
glicose do sangue mas não são capazes de
cula favorecendo a formação das pontes dis-
libera-la para o meio extracelular. Além dos
sulfeto fundamentais pela estabilidade da mo-
hepatócitos, algumas células justaglomerula-
lécula. As cadeias A e B da insulina, quando
res (renais) possuem pequena atividade de
ligadas ao peptídeo C, no conjunto, são de-
glicose-6-fosfatase, mas não exercem papel
nominados de pró-insulina que possui baixa
significativo na manutenção da glicemia.
atividade metabólica (cerca de 5 a 10% da
Apesar da grande quantidade de glicose
atividade da insulina).
liberada para o sangue pelo hepatócito, as
concentrações normais de glicose plasmática
(glicemia) não sofrem grande variação além
de 70 - 110 mg/dl, devido à regulação hormo-
nal pelos hormônios pancreáticos insulina e
glucagon.
É importantíssima a manutenção dos
níveis de glicemia dentro dessa faixa estreita,
pois uma hiperglicemia contínua torna o san-
gue muito concentrado alterando os mecanis-
mos osmóticos de reabsorção de água nos
túbulos renais, induzindo a uma diurese ex-
cessiva que pode levar à desidratação e uma
série de alterações patológicas específicas
típicas de uma doença metabólica muito co-
mum, a diabetes mellitus onde a falha no
mecanismo de absorção celular leva a uma
hiperglicemia crônica (ver capítulo 15 sobre
Diabetes Mellitus).
A insulina e o glucagon não são os ú-
nicos hormônios que possuem ação regulató- Figura 10-2 - A estrutura secundária da pró-insulina. Na
ria sobre a glicemia plasmática. Vários outros forma de pró-hormônio, é composto por três cadeias
hormônios (p.ex.: hormônios sexuais, glico- polipeptídicas distintas (A, B e C) onde o peptídeo C é o
corticóides, tireoidianos, GH etc.) também conector entre as demais cadeias e é separado da molé-
cula por hidrólise durante a secreção pancreática. (Adap-
têm ação metabólica, porém possuem uma tado de DEVLIN, 2000)
função energética secundária, sendo produzi-
dos a partir de estímulos outros que não a A insulina é produzida nas células β
hiperglicemia ou hipoglicemia, como é o caso das ilhotas de Langerhans e é armazenada em
da insulina e do glucagon. Outros hormônios vesículas do Aparelho e Golgi. Quando a
concentração de glicose sanguínea atinge ní-
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Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 117

veis acima de 110 mg/dl, há um excesso do ção da insulina para a corrente sangüínea, ela
metabolismo oxidativo mitocondrial nas célu- liga-se a um receptor específico nas membra-
las beta o que determina a liberação de insuli- nas celulares das células alvo. O receptor para
na para a circulação sanguínea a partir de um insulina é uma glicoproteína com duas subu-
mecanismo complexo (Figura 10-3). Sabe-se nidades α e β (Figura 10-4). Após a ligação
que esse excesso do metabolismo mitocondri- da insulina com a subunidade α, o complexo
al nas células beta é devido a pouca atividade insulina-receptor estimula um sistema especí-
das vias de desvio do metabolismo energético fico envolvendo a fosforilação de tirosina na
comuns nas demais células (síntese de glico- subunidade β, o que ativa o sistema de segun-
gênio, lipídios e corpos cetônicos) o que acar- do mensageiro responsável pelas ações fisio-
reta uma grande produção de ATP mitocon- lógicas celulares.
drial, fato que desencadeia a liberação de in-
sulina para o sangue.

Figura 10-4 - O receptor de insulina possui duas subu-


Figura 10-3 - A regulação da síntese e secreção de insuli- nidades α que fica no domínio extracelular e liga-s com
na está relacionada ao aumento da atividade oxidativa a insulina. As duas subunidades β situam-se na porção
mitocondrial devido à hiperglicemia, uma vez que as vias citoplasmática e possuem atividade catalítica citoplas-
naturais de desvios do metabolismo energético possuem mática. Para a entrada de glicose na célula, há a necessi-
baixa atividade nas células beta do pâncreas. O ATP gera- dade da integração de um transportador de glicose
do abre abre canais de K+ que despolariza a membrana (GLUT), específico para cada tipo de tecido.
levando à entrada de Ca++ que, juntamente com o Ca++
disponível nas reservas intracelulares estimula a secreeção O GLUT4 está presente na maioria das
da insulina produzida no retículo endoplasmático
células do organismo, o que torna a presença
de insulina indispensável para a entrada de
O estresse oxidativo indicado pelo glicose na célula. Entretanto, células impor-
aumento da produção de ATP pode levar a tantes como as células beta-pancreáticas, os
produção de produtos indesejados para a célu- enterócitos, as hemácias, o hepatócito e os
la (p.ex.: radicais livre), que pode destruir a neurônios possuem outros tipos de GLUT que
células beta. não dependem de insulina, o que significa
Uma vez na corrente sangüínea, a in- que, para essas células, não necessitam da
sulina possui três efeitos principais: 1) ativação inicial de um receptor para insulina
estimula as células a captar a glicose; 2) para que a glicose penetre na célula.
estimula os músculos e fígado a armazenar O GLUT4 modifica sua conformação
glicose na forma de glicogênio; e 3) estimula espacial quando há a ligação da insulina com
a síntese de ácidos graxos e aminoácidos. o receptor, permitindo a entrada de glicose na
A forma como a insulina exerce essas célula. Entretanto, esta entrada não é contí-
funções na célula depende da interação com nua, devido a um processo de endocitose do
receptores específicos que desencadeiam rea- GLUT4 que torna indisponível a entrada de
ções intracelulares específicas. Após a libera- novas moléculas de glicose até que haja a
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 118

regeneração do GLUT4. Este processo regula vinda da digestão independente da existência


a entrada de glicose na célula, possibilitando de insulina plasmática.
que todas as células tenham um aporte de
glicose suficiente, não havendo um consumo
exagerado por parte de nenhum tecido (Figura
10-5).

Tabela 10-1 - Transportadores de glicose (GLUT).


Tipo Localização Insulino-
dependente
GLUT1 hemácias NÃO

GLUT2 hepatócito NÃO


células beta

GLUT3 neurônios NÃO Figura 10-5 - A entrada de glicose na maioria das


hemácias células é mediada pela interação da insulina, seu re-
ceptor e o GLUT4. A) o GLUT4 permanece em vesí-
GLUT4 músculos culas citoplasmáticas enquanto a insulina não se liga
adipócitos SIM ao receptor. B) a interação insulina/receptor promove
a maioria das células a exocitose do GLUT4 e sua ligação com a glicose
extracelular. C) a retirada de insulina induz a endoci-
GLUT5 enterócito NÃO tose do complexo GLUT4/glicose.

GLUT7 retículo endoplasmático NÃO As hemácias possuem os GLUT1 e 3,


dos hepatócitos o que permite a absorção direta de glicose. Os
neurônios também são insulino-independentes
A insulina só é liberada pelo pâncreas uma vez que possuem no GLUT3 um impor-
quando há hiperglicemia, o que faz com que tante transportador de glicose. As próprias
as células tenham uma quantidade garantida células beta-pancreáticas possuem o GLUT2
de glicose suficiente para o metabolismo e- como transportador de glicose o que as torna
nergético. independente da insulina, fato que é crucial
Para a entrada de glicose nas células, para que esta célula absorva glicose e possa
há a necessidade de um transportador de gli- liberar a insulina que será utilizada nas de-
cose (GLUT, do inglês Glucose Transporter) mais células.
que está acoplado ao receptor de insulina e
modifica sua conformação espacial permitin- 2. Glucagon
do a entrada de glicose na célula. Há vários É um polipeptídio formado por uma
tipos de GLUT denominados GLUT1, 2, 3, 4, cadeia única de 29 aminoácidos (PM =
5 e 7, sendo que somente o GLUT4 são insu- 3.500d), sintetizado pelas células alfa das
linodependentes (Tabela 10-1). Os demais ilhotas pancreáticas (Figura 10-6). Um peptí-
tipos de GLUT permitem a entrada de glicose deo similar é produzido pelas células do trato
na célula independente da existência de recep- gastrointestinal (principalmente pelo estôma-
tor para insulina. go), o que pode interferir nas dosagens deste
As células que além do GLUT4 pos- hormônio.
suem os demais tipos de GLUT, entretanto, O principal estímulo para sua secreção
não dependem da hiperglicemia para que ab- é a hipoglicemia e o aumento de ácidos gra-
sorvam glicose uma vez que esses transporta- xos e aminoácidos livres no plasma (especi-
dores não dependem da insulina. É o caso do almente a alanina).
enterócito que possui o GLUT5 e consegue O glucagon possui ações contrárias às
absorver ativamente a glicose liberada na di- da insulina, principalmente no que diz respei-
gestão e transportá-la para a veia porta hepáti- to ao armazenamento energético, promovendo
ca. Os hepatócitos, que além do GLUT4 pos- a degradação das reservas energéticas, au-
sui os GLUT 2 e 7, absorvem toda a glicose mentando a glicogenólise e a mobilização dos
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 119

ácidos graxos dos adipócitos. É um potente em pessoas normais, age como um regulador
estimulador da neoglicogênese. da glicemia.
Sua secreção é estimulada pela hiper-
3. Somatostatina glicemia (de maneira idêntica à insulina), des-
conhecendo-se, porém, o significado fisioló-
A somatostatina pancreática é pro-
gico de tais ações, supondo-se tratar de um
duzida pelas células delta das ilhotas, possu-
resquício evolucionário.
indo forte ação parácrina (em células adjacen-
Existem evidências que a deposição de
tes), inibindo a secreção de insulina e gluca-
amilina nas células beta pancreáticas leva a
gon. Apresenta-se sob duas formas: uma ca-
sua destruição progressiva, estando este fato
deia peptídica única de 14 aminoácidos e ou-
associado a gênese da diabetes mellitus (ver
tra com o dobro, possuindo vida média de
capítulo 15 sobre Diabetes Mellitus).
cerca de 2 minutos (Figura 10-7).
A somatostatina atua, ainda, inibindo
a secreção dos hormônios gastro-intestinais
gastrina e secretina, diminui a motilidade gas-
tro-intestinal, da vesícula biliar e do pâncreas
exócrino.

Figura 10-6 - Estrutura secundária do glucagon.


Figura 10-8 - Estrutura secundária da amilina.

5. Síntese do glicogênio
Ocorre, principalmente no fígado e
nos músculos, apesar de a maioria das células
possuírem as enzimas necessárias para esta
síntese. Os músculos, em razão de sua grande
Figura 10-7 - Estrutura secundária da somatostatina massa, apresentam cerca de 4 vezes mais gli-
pancreática de 14 aminoácidos. cogênio do que o fígado (Tabela 10-2). O
glicogênio é uma fonte imediata de glicose
4. Amilina para as células (principalmente os músculos)
quando há a diminuição da glicose sangüínea.
Este polipeptídeo pancreático foi iden-
A síntese de glicogênio ocorre sempre
tificado em células beta das ilhotas, possuindo
em condições de excesso de glicose e corres-
37 aminoácidos (Figura 10-8). Entre as fun-
ponde a importante rota de desvio do metabo-
ções observadas, destaca-se a estimulação do
lismo energético. Como toda reação anabóli-
secreção do suco gástrico e pancreático, dimi-
ca, é extremamente endergônica e produz uma
nuindo, entretanto, a motilidade intestinal e da
macromolécula solúvel que se deposita em
vesícula biliar, diminuindo o metabolismo
grânulos solúveis no citoplasma.
absortivo pós-prandial e, conseqüentemente,
Esta propriedade do glicogênio torna o
atrasando a absorção de carboidratos o que,
excesso de sua síntese um perigo para a célu-
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 120

la, já que por ser solúvel e depositar-se no outras, formando um polímero α(1Æ4). A
citoplasma, leva ao aumento da concentração união inicial da molécula de UDP com a gli-
do citoplasma, tornando-o muito “viscoso” e cose-1-fosfato forma a UDP-glicose (uridina-
diminuindo a atividade enzimática celular, o difosfato-glicose) pela retirada do Pi do C1 da
que pode levar, inclusive, à morte celular. Por glicose-1-fosfato e do UTP.
isso, é fundamental que a célula possua um Uma primeira molécula de UDP-
mecanismo de regulação da síntese de glico- glicose é captada por uma proteína denomi-
gênio bem coordenado para impedir os efeitos nada glicogenina que se liga covalentemente
nocivos de um acúmulo de glicogênio. à glicose e libera o UDP. Esta união glicose-
A síntese de glicogênio é estimulada glicogenina é indispensável para a ação da
pela insulina, o que permite a rápida retirada enzima glicogênio sintase que promove a adi-
de glicose plasmática e seu depósito quase ção de pelo menos mais sete moléculas de
que imediato como glicogênio. É obvio que a glicose, em ligações α(1Æ4) sempre liberan-
glicose que penetra na célula terá que seguir do o UDP.
outras vias metabólicas, além da síntese de A partir daí, há o crescimento da ca-
glicogênio, uma vez que não possuímos um deia até cerca de 15 moléculas de glicose, a
órgão especializado para esse armazenamen- partir do qual, a enzima ramificadora (ami-
to, como é o caso dos vegetais que armaze- do-1Æ4,1Æ6-transglucosidase) promove a
nam o amido nas raízes e sementes. retirada de uma fragmento contendo cerca de
7 moléculas de glicose e o adiciona á molécu-
Tabela 10-2: Armazenamento de carboidratos em
adultos normais (peso médio de 70 kg).
la em uma cadeia paralela na oitava molécula
Carboidrato Peso Relativo Massa Total
de glicose em ligações do tipo α(1Æ6). A
Glicogênio 4,0% 72g (1) glicogênio sintase volta a atuar acrescentando
Hepático mais um fragmento de cerca de 15 moléculas
Glicogênio 0,7% 245g (2) de glicose para uma nova retirada de um
Muscular fragmento de 7 moléculas pela enzima ramifi-
Glicose extrace- 0,1% 10g (3) cadora.
lular
Desta forma, estas duas enzimas traba-
TOTAL 4,8% 327g
(1) lham coordenadamente possibilitando a for-
Peso do fígado: 1.800g;
(2)
Massa muscular: 35kg: mação de uma molécula de amido extrema-
(3)
Volume total: 10 litros. mente ramificada, o que garante sua alta solu-
(Adaptado de MURRAY et al., 2000, p.181). bilidade devido a estrutura tridimensional. A
molécula de glicogenina permanece ligada
Como visto anteriormente, a primeira covalentemente à molécula de glicogênio du-
reação do processo glicolítico é a formação de rante todo o processo.
glicose-6-fosfato a partir da fosforilação da O glicogênio fica disponível no fígado
glicose. A síntese de glicogênio se inicia pela e músculos, sendo consumido totalmente den-
ação da enzima fosfoglicomutase que forma tro de um intervalo que varia de 12 a 24 horas
glicose-1-fosfato a partir da glicose-6-fosfato. após a última refeição, dependendo das neces-
Esta enzima é ativada pela insulina e a glico- sidades energéticas.
se-1-fosfato não pode seguir para as vias gli- A enzima glicogênio sintase é regula-
colíticas, o que faz desta via um importante da por vários mecanismos, sendo que a ativa-
desvio do metabolismo energético e é fre- ção pela glicose-6-fosfato um dos mecanis-
qüente, portanto, quando há um excesso de mos mais eficazes. Esta enzima existe em
glicose como substrato energético. duas formas diferentes: forma inativa D (De-
A partir daí, há a incorporação de uma pendente de glicose-6-fosfato, não fosforila-
molécula de uridina-tri-fosfato (UTP) que da) e forma ativa I (Independente de glicose-
proporciona a ligação entre o C1 de uma mo- 6-fosfato, fosforilada). A forma inativa é ati-
lécula com o C4 de outra (reação catalisada vada por fosforilação, em mecanismos envol-
pela enzima glicogênio sintase), formando vendo os segundos mensageiros AMPc, Ca++
uma maltose inicial que logo será acrescida de e diacilgligerol, estimulados por vários hor-
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Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 121

mônios. Um aumento da concentração de gli- mobilizado a partir de uma seqüência de rea-


cose-6-fosfato na célula leva a uma aumento ções que não são o inverso da sua síntese, por
da forma D ativa da glicogênio sintase, o que uma via metabólica complexa que se inicia a
estimula a síntese de glicogênio. partir de estímulos hormonais reflexos à hi-
Para que haja uma grande quantidade poglicemia (glucagon) ou estímulos externos
de glicose-6-fosfato é preciso um alto grau de (adrenalina, glicocorticóides). Esses estímulos
fosforilação mediado pela grande quantidade possuem como segundo mensageiro o AMP
de glicose intracelular. A fosforilação é um cíclico (AMPc), que é formado a partir do
fato celular importante para a ativação de vá- ATP sob ação da enzima adenilato-ciclase.
rias vias metabólicas, além desta, e revela um O AMPc converte a enzima fosforila-
estado de alta atividade metabólica e, portan- se-quinase-b (inativa) em fosforilase-
to, uma situação de excesso de substratos e- quinase-a (ativa), que por sua vez retira uma
nergéticos. Um alto estágio de fosforilação molécula de glicose do glicogênio, na forma
pode ser obtido pela ação de hormônios, con- de glicose-1-fosfato, liberando-a para o meta-
forme discutido no capítulo 9 sobre bioener- bolismo em uma reação que utiliza a mesma
gética. enzima que inicia a síntese de glicogênio, a
Um grupo especial de enzimas deno- fosfoglicomutase, formando glicose-6-fosfato.
minadas fosfoproteínas fosfatases são identi-
ficadas como enzimas reguladoras da síntese
de glicogênio e atuam inativando a atividade a
glicogênio sintase.
Naturalmente, as fosfoproteínas fosfa-
tases ligam-se ao glicogênio e promovem a
inativação da glicogênio sintase retirando seu
fosfato e incorporando à sua molécula. Esta
ligação das fosfoproteínas fosfatases com o
glicogênio não permite a síntese de mais gli-
cogênio e ocorre quando alguns hormônios,
como o glucagon, promovem sua fosforilação.
Note que, neste estado metabólico, a fosfori-
lação das fosfoproteínas fosfatases é oposta a
defosforilação da glicogênio sintase, logo
promove sua inativação.
Entretanto, quando há hiperglicemia,
uma grande quantidade de glicose está dispo-
Figura 10-9 – A síntese do glicogênio. 1) a enzima
nível para o metabolismo celular e há o au- fosfoglicomutase é converte glicose-6-fosfato em
mento da quantidade de insulina plasmática. glicose-1-fosfato; 2) a formação de UDP-glicose ini-
A fosfoproteína fosfatase ligada ao glicogênio cia a síntese de glicogênio; 3) a enzima glicogênio
é fosforilada por proteínas ativadas pela insu- sintase torna-se ativa por estímulo da insulina inician-
do a extensão da cadeia de glicogênio a partir da liga-
lina, o que leva a retirada da fosfoproteínas
ção covalente de uma molécula de glicose com a pro-
fosfatase da molécula de glicogênio. Esta reti- teína glicogenina; 4) a molécula de glicogênio cresce
rada permite que a glicogênio sintase perma- até cerca de 15 fragmentos de glicose em ligações do
neça fosforilada e, portanto, ativa induzindo a tipo α(1Æ4); 5) a enzima ramificadora promove a
síntesede glicogênio. quebra de um fragmento com cerca de 7 moléculas de
Nas Figura 10-9 e 10-10 estão resumi- glicose e a acrescenta em uma cadeia paralela em
ligações do tipo α(1Æ6); 6) a molécula final de glico-
dos os principais passos na regulação da sín- gênio contém cerca de 40.000 moléculas de glicose .
tese de glicogênio.
A ativação desta enzima, que tem co-
6. Glicogenólise mo co-fator a vitamina B6, gera glicose-1-
fosfato através da quebra das ligações
Quando há a necessidade de glicose
para o metabolismo energético, o glicogênio é α(1Æ4). As ligações α(1Æ6) dos pontos de

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 122

ramificação são quebradas pela enzima de [A]


desramificação, denominada α(1Æ6)-
α(1Æ4) glicanotransferase.
No fígado, a existência da enzima gli-
cose-6-fosfatase permite a conversão da gli-
cose-6-fosfato em glicose livre que sai para o
sangue e eleva a glicemia. Nas demais célu-
las, principalmente nos músculos, a glicose-6-
fosfato não pode ser convertida em glicose
livre e, portanto, segue para o metabolismo
energético.
O aumento da glicemia faz com que
cesse os estímulos do glucagon inibindo a
glicogenólise. O AMPc que é produzido pela
ação do glucagon, epinefrina e cortisol (esti-
mulantes da glicogenólise) é degradado pela
enzima fosfodiesterase. A insulina aumenta a
atividade desta enzima, levando, portanto, ao
bloqueio da glicogenólise. [B]
A seqüência de reações da glicogenó-
lise, mediada pela inibição da glicogênio sin-
tase e ativação da glicogênio fosforilase en-
contra-se resumida nas figuras 10-11.

Figura 10-11 – Esquema geral da glicogenólise no


Figura 10-10 – A ativação da glicogênio sintase. 1) a jejum [A] e no exercício físico [B]. Ver o texto para
insulina liga-se ao receptor inativo; 2) a ativação do detalhes.
receptor de insulina promove 3) a fosforilação de
proteínas sinalizadoras que promovem a ativação de
proteínas cinases que funcionam como fatores de Na figura 10-11 [A] representa a regu-
crescimento e 4) proteínas fosfatases que atuam no lação da glicogenólise no jejum onde o gluca-
metabolismo ativando a glicogênio sintase que, por gon conecta-se ao seu receptor e 2) ativa a
sua vez induz 5) a síntese do glicogênio. proteína G que, por sua vez, 3) ativa a adeni-
lato ciclase que possui função de converter
ATP em AMPc que, na seqüência, 4) liga-se a
forma inativa da proteína cinase A 5) ativan-
do-a e, por fosforilação, 6) inativa a glicogê-
nio sintase e, finalmente, 7) pára a síntese de
glicogênio. A forma inativa da fosforilase
cinase A pode 8) por fosforilação induzida
pela mêsma forma ativa da proteína cinase A

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 123

ser ativada 9) e degradar o glicogênio for- A neoglicogênese corresponde, portanto,


mando 10) a glicose-1-fosfato que 11) pela no contorno dessas três reações em vias espe-
ação da fosfoglicomutase gera glicose-6- cíficas da neoglicogênese, descritas a seguir e
fosfato que retorna ao sangue como glicose a pesentadas de maneira esquemática na Figu-
12) pela ação da glicose-6-fosfatase hepática. ra 10-12.
A Figura 10-11 B representa o mesmo
mecanismo mediado pela epinefrina onde 1) a 1. Conversão de piruvato em fosfoe-
ligação com os receptores alfa ativa a enzima nol-piruvato: ocorre em uma seqüência de
fosfolipase C que leva a formação dos segun- reações citoplasmáticas e mitocondriais. O
do mensageiros 3) di-acil-glicerol (DAG) e piruvato citoplasmático é convertido a oxala-
inosina-3-fosfato (IP3). O DAG possui meca- cetato na mitocôndria, que é reduzido pelo
nimso idêntico de inibição da glicogênio sin- NADH em malato e liberado para o citoplas-
tase mediado pelo glucagon. O IP3, após 4) ma. No citoplasma, o malato é oxidado a ma-
abrir canais de cálcio (da mesma forma que lato pelo NAD+ gerando, novamente, o oxa-
impulsos nervosos), promove 5) a ativação da lacetato que é convertido em fosfoenol-
calmodulina e a ativação da fosforilase cinase piruvato pela fosfoenol-piruvato-
da mesma forma que o glucagon. carboxiquinase, cujo doador de Pi é GTP.
Na carência de NAD+ citoplasmático
(típico da glicose anaeróbica) o oxalacetato
7. Neoglicogênese mitocondrial é convertido diretamente a fos-
Quando há uma queda na concentra- foenol-piruvato pela ação da enzima fosfoe-
ção de glicose plasmática são ativadas rotas nol-piruvato-carboxiquinase mitocondrial.
metabólicas que proporciona uma liberação
de glicose para o plasma e o retorno dos ní- 2. Conversão de frutose-1,6-bi-fosfato
veis normais de glicemia. A glicogenólise em frutose-6-fosfato: é catalisada pela enzi-
hepática é um processo muito eficaz, entretan- ma frutose-1,6-bifosfatase que promove a
to as reservas logo são exauridas e o fígado retirada do Pi do C1 por hidrólise.
lança mão de uma nova via de síntese de gli-
cose que utiliza substratos não glicídicos. 3. Conversão de glicose-6-P em glicose
Esta nova via metabólica hepática, a livre: ocorre no fígado, pois somente no RE
neoglicogênese ou gliconeogênese, fornece dos hepatócitos encontra-se a enzima glicose-
glicose para o plasma. Porém quando ocorre 6-fosfatase. Esta reação é comum também a
em tecidos extra-hepáticos, principalmente no glicogenólise e permite que o fígado regule a
músculo, a glicose formada é utilizada somen- concentração de glicose plasmática.
te no metabolismo energético devido a ausên- Através dessas três reações, todos os
cia da enzima glicose-6-fosfatase, exclusiva intermediários do ciclo de Krebs que são pro-
do hepatõcito. duzidos pelo catabolismo dos aminoácidos
Esta síntese de novas moléculas de (citrato, isocitrato, α-cetoglutarato, succinato,
glicose ocorre a partir de precursores mais fumarato e malato), assim como os que forne-
simples como o glicerol, lactato, piruvato e cem piruvato, podem produzir oxalacetato e
aminoácidos glicogênicos. Não é um proces- fornecer glicose através da gliconeogênese.
so reverso da glicólise, porém utiliza os subs- O oxalacetato não consegue sair da
tratos comuns da via glicolítica para produzir mitocôndria, mas o malato sim. Desta forma,
glicose. o acúmulo de oxalacetato leva a reversão para
A razão de a neoglicogênese não poder u- malato e a saída para o citoplasma onde ocor-
tilizar a via reversa da glicólise, é que as fos- rem as demais reações da neoglicogênese.
forilações da primeira fase (conversão de gli-
cose em glicose-6-fosfato e a conversão de
frutose-1,6-fosfato em frutose-1,6-bi-fosfato)
e a formação de piruvato a partir do fosfoe-
nol-piruvato, são reações irreversíveis.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 124

Figura 10-11 - A neoglicogênese é um processo mitocondrial e citoplasmático que ocorre como a reversão da
glicólise onde as reações irreversíveis são substituídas por reações específicas da neoglicogênese, estimuladas pelo
glucagon, epinefrina e cortisol.

As reações enzimáticas da neoglico- Os aminoácidos glicogênicos permi-


gênese são estimuladas pelo glucagon, epine- tem a formação de glicose que será utilizada
frina e cortisol e é imprescindível que não como energia por todas as células pela neogli-
haja acetil-CoA disponível na mitocôndria cogênese hepática, evitando os efeitos da hi-
para que o oxalacetato formado não seja con- poglicemia.
vertido em citrato e inicie o ciclo de Krebs. A Os ácidos graxos não fornecem subs-
ausência de acetil-CoA é compatível com o tratos para a neoglicogênese devido ao fato
momento metabólico da célula onde há uma que a acetil-CoA é utilizada direta para a
queda na degradação de glicose. O glucagon é produção de energia ou é deslocada para o
um potente estimulador dessa via uma vez citoplasma para a produção de colesterol ou
que é liberado pelo pâncreas após a hipogli- corpos cetônicos. Entretanto, quando os trigli-
cemia. cerídeos são degradados, há a liberação de
A neoglicogênese estimulada pelo cor- glicerol que pode ser utilizado como substrato
tisol e epinefrina corresponde a uma ação para a neoglicogênese, porém convém lem-
metabólica derivada não a um estímulo hipo- brar que neste estado metabólico (de consumo
glicêmico mas por uma necessidade metabóli- de ácidos graxos) a grande quantidade de ace-
ca derivada a um estresse energético. til-CoA não permite um acúmulo de oxalace-
Os aminoácidos são importantes for- tato devido a grande quantidade de acetil-
necedores de substratos da neoglicogênese, CoA que estimula o Ciclo de Krebs.
porém aqueles que fornecem acetil-CoA dire-
tamente (cetogênicos) não fornecem substra-
tos para esta via metabólica e sim estimulam a
produção de energia para o ciclo de Krebs.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 125

8. Via das pentoses ou via transcetolases que proporcionam a formação


de trioses, tetroses e heptoses intermediárias.
do fosfogliconato Esses carboidratos se combinam entre
Esta rota metabólica (Figura 10-12) si, através da ação dessas enzimas, e geram a
produz NADPH e ribose-5-fosfato a partir da glicose de várias maneiras diferentes, sempre
desidrogenação da glicose-6-fosfato pela en- reordenando os carbonos disponíveis nas rea-
zima glicose-6-fosfato-desidrogenase ções. Duas riboses (5C) formam uma hepto-
(G6PD) formando a 6-fosfo-glicocono- se (7C) e uma triose (3C). Esses carboidratos
lactona que é convertido em 6-fosfogliconato formam a glicose (6C) e uma tetrose (4C).
pela ação da lactonase. Este composto é con- A tetrose (4C) liga-se com outra pen-
vertido a ribulose-5-fosfato pela retirada de tose (5C) gerando uma outra glicose (6C) e
CO2 e por desidrogenação pelo NAD+, catali- uma triose (3C). Esta triose liga-se a outra
sada pela enzima 6-fosfogliconato- triose formando uma terceira glicose.
desidrogenase.
A ribulose-5-fosfato formada é isome- 9. Metabolismo de outros
risada a ribose-5-fosfato pela enzima fosfo-
pentose-isomerase e é utilizada na síntese de carboidratos
ácidos nucléicos. A frutose é convertida em frutose-6-
A formação da pentose, entretanto, fosfato pela hexocinase no fígado, e a enzima
não é o principal produto desta via, mas sim a frutoquinase promove a formação de frutose-
formação de NADPH em tecidos que necessi- 1-fosfato que é quebrada em gliceraldeído e
tam de seu poder redutor em reações biológi- di-OH-cetona-fosfato pela enzima frutose-1-
cas (p.ex.: síntese de ácidos graxos, redução fosfato aldolase. Esses compostos são comuns
do ferro nas hemácias). a via glicolítica e prosseguem o metabolismo
As hemácias realizam este desvio me- energético normal.A galactose é convertida
tabólico de maneira exclusiva (não realiza a em galactose-1-fosfato pela enzima galacto-
síntese de glicogênio, colesterol nem corpos quinase. A enzima UDP-glicose-galactose-
cetônicos). A G6PD está associada ao GLUT1 1-P-uridiltransferase é a responsável pela
o que estimula a via das pentoses em grande conversão da galactose-1-fosfato em glicose-
escala permitindo que o NADPH formado 6-fosfato e a continuidade do metabolismo
mantenha a enzima glutationa redutase ativa celular. A deficiência dessas enzimas propor-
e, em conseqüência, o ferro do grupamento ciona o acúmulo de galactose plasmática (ga-
heme reduzido. Este fato permite que a he- lactosemia) que pode acarretar em danos neu-
moglobina transporte o oxigênio de maneira rológicos graves.
reversível onde o ferro liga-se ao O2 por atra- A manose é convertida em manose-6-
ção eletrostática e não por ligação covalente, fosfato pela hexocinase que é isomerizada
que aconteceria na ausência da glutationa- pela enzima fosfomanose isomerase forman-
redutase. do a frutose-6-fosfato que prossegue no meta-
Mutações no gene da G6PD favore- bolismo glicolítico.
cem a destruição da capacidade da hemoglo- A sacarose é sintetizada nos vegetais
bina em transportar o oxigênio de maneira a partir da UDP-glicose sendo a frutose-6-
reversível e a destruição da hemácia preco- fostato unida à UDP-glicose pela ação da en-
cemente levando a anemias hemolíticas gra- zima sacarose-6-fosfato-sintase, formando a
ves. sacarose-6-fosfato que tem seu Pi removido
Em casos de extrema carência energé- pela enzima sacarose-6-fosfatase disponibili-
tica, a ribose formada pode ser requisitada zando a sacarose no citoplasma dos vegetais.
pelo metabolismo celular. Neste caso, a ribo- Nos animais, entretanto, há a ação da a enzi-
se-5-fosfato regenera a glicose-6-fosfato por ma sacarase intestinal liberando glicose e
uma via diferente de sua síntese (não gastando frutose para a captação hepática, não havendo
os NADPH produzidos) sob a ação seqüencial sacarose disponível para o metabolismo celu-
de enzimas denominadas transaldolases e lar.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 126

Figura 10-12- Na via das pentoses para cada seis moléculas de glicose degradas, uma é convertida, novamente, a gli-
cose-6-fosfato o eu gera um ciclo sem fim. As cinco moléculas restantes são convertidas em ribose-5-fostato que é
requisitada para a síntese de nucleotídeos. Nas hemácias, no entanto, não há a formação de riboses e, portanto, a via das
pentoses passa a ter no NADPH formado o produto principal, já que ele é utilizado no processo de manutençãol da
hemoglobina no estado reduzido, o que possibilita a ligação reversível com o oxigênio. A deficiência genética da G6PD
leva a formação de uma hemácia frágil pelo depósito de metahemoglobina (hemoglobina oxidada irreversivelmente)
que sofre hemólise mais rapidamente que uma hemácia normal.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 127

as subclávia e jugular que se conectam com a


A lactose é sintetizada na glândula veia cava e o coração.
mamária de maneira similar ao glicogênio, ou Os lipídios da dieta são, portanto, ab-
seja, há a ligação da galactose da UDP- sorvidos no sistema circulatório sem passar
galactose com a glicose, e a respectiva libera- pelo fígado o que permite que os triglicerí-
ção de UDP, a partir da ação da enzima lacto- deos sejam captados pelos adipócitos (ou pe-
se sintase. Entretanto, esta enzima em outros los músculos, caso haja necessidade energéti-
tecidos promove a ligação da galactose com a ca) antes de serem submetidos ao poderoso
N-acetil-glicosamina formando a porção car- metabolismo hepático, como acontece com os
boidrato das glicoproteínas, sendo denomina- demais nutrientes.
da nesses tecidos de galactosil transferase. A A razão desta absorção diferenciada
diferença da atividade dessas enzimas é a pre- está nas propriedades lipossolúveis dos lipí-
sença de proteína α-lactoalbumina na galacto- dios, o que faz toda a diferença no estudo do
sil-transferase, que é sintetizada a partir do metabolismo lipídico. Uma vez que os trigli-
estímulo hormonal da prolactina. A lactose cerídeos são primeiramente captados nos teci-
alimentar é degrada em glicose e galactose no dos, resta somente o colesterol e os demais
intestino sob a ação da enzima intestinal lac- lipídios da dieta (sem função energética) a
tase. serem metabolizados pelo hepatócito quando
Na maioria dos animais ocorre a sínte- o sangue retorna ao coração e, obrigatoria-
se de ácido ascórbico a partir da UDP-glicose mente, tem que passar pelo fígado.
que é desidrogenada em UDP-glicuronato O colesterol dietético que chega para
através da enzima UDP-glicose- o metabolismo hepático é adicionado ao co-
desidrogenase. O UDP-glicuronato é impor- lesterol e triglicerídeos produzidos endoge-
tante grupamento da detoxificação hepática namente como resultado dos desvios metabó-
existindo em todos os animais. licos resultantes de um excesso de acetil-CoA,
Na seqüência de reações que levam a principalmente originário de uma hiperglice-
síntese de ácido ascórbico, o UDP-glicuronato mia.
é convertido em gulonato pela enzima glicu- O colesterol pode ser degradado até
ronato-redutase (NAPH dependente) que é sais biliares e são excretados pela bile (Figura
convertido em gulonolactona pela aldonolac- 10-12). Entretanto existe uma efetiva reabsor-
tonase. A síntese de ácido ascórbico dá-se ção dos sais biliares (até 99,5%) para o fígado
pela conversão da gulonolactona pela ação da após a digestão o que torna a necessidade de
enzima gulono-oxidase, o que não ocorre em colesterol para sua síntese bem pequena. Des-
alguns poucos animais (alguns primatas, in- ta forma os triglicerídeos e o colesterol, sinte-
clusive o homem, pássaros peixes e roedores). tizados no fígado, devem ser encaminhados
para os tecidos extra-hepáticos para serem
metabolizados.
O transporte dos lipídios na linfa e no
Metabolismo dos lipídios sangue é feito por lipoproteínas que possuem
função importantíssima na gênese de doenças
Os lipídios possuem características
relacionadas aos lipídios, as dislipidemias.
especiais no que diz respeito ao seu metabo-
lismo em virtude ao processo absorção intes-
tinal diferenciada que favorece a sua captação
pelo sistema linfático o que faz com que não
seja captado pelo fígado, logo após a digestão
(ver capítulo 2 sobre Alimentos). O duto lin-
fático abdominal, que capta os lipídios da
alimentação, transfere os lipídios para o duto
linfático torácico que se conecta com o siste-
ma circulatório na altura do encontro das vei-

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 128

Figura 10-12 - Síntese dos ácidos biliares. A partir do colesterol há a síntese dos ácidos biliares primários no fígado que são
excretados na bile. Uma vez no duodeno, sofrem a ação de bactérias intestinais produzindo os ácidos biliares primários. Devi-
do ao pH alcalino da bile e do conteúdo duodenal, os ácidos biliares apresentam-se na forma de sais biliares.

1. Metabolismo das lipo- Os lipídios da alimentação são trans-


portados pelos quilomícrons e os provenien-
proteínas tes da síntese hepática são transportados pelas
Lipoproteínas são proteínas sintetiza- demais lipoproteínas.
das na mucosa intestinal e no fígado durante o A diferença básica entre cada lipopro-
processo metabólico dos lipídios, sendo a teína diz respeito à quantidade de lipídios e
estrutura básica mostrada nas Figura 10-13 e proteínas na molécula, aumentando a densi-
10-14. dade quanto maior a quantidade de proteínas
As proteínas das lipoproteínas São de- presente em sua composição.
nominadas de apoproteínas e possuem a fun- Desta forma existem lipoproteínas de
ção de solubilizar os lipídios e possibilitar o baixa densidade (LDL = low density lipopro-
seu transporte plasmático, além de correspon- tein), muito baixa densidade (VLDL = very
der a elementos identificadores de cada tipo low density lipoprotein) e de alta densidade
de lipoproteína. (HDL = high density lipoprotein). Os quilo-
As apoproteínas podem ser integrais mícrons (do latim quilo = gordura e micro =
que penetram na matriz lipídica (apo A e a- pequena) são as de menor densidade enquanto
poB) ou periféricas que são superficiais à que as de maior densidade são as albuminas
molécula (apoC, apoD e apoE). De uma ma- ligadas aos ácidos graxos.
neira geral, a relação entre as apoproteínas Nas Tabelas 10-3 e 10-4 podem ser
com os lipídios é semelhante às membranas observadas as composições relativas de lipí-
celulares que são, também, lipoprotéicas. dios e proteínas transportadas pelas lipoprote-

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Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 129

ínas plasmáticas, assim como suas principais Nos adipócitos, os quilomícrons dei-
funções. xam grande quantidade de seu conteúdo de
Os quilomícrons são as primeiras li- triglicerídeos, convertendo-se em quilomí-
poproteínas do metabolismo lipídico. São crons remanescentes que são absorvidos
sintetizadas na mucosa intestinal transportan- pelos hepatócitos para a degradação do coles-
do os lipídios oriundos da dieta, principal- terol restante.
mente os triglicerídeos devido a grande quan- O colesterol é excretado na bile como
tidade existente na alimentação. ácido biliar ou como colesterol livre até a
São captados primeiro pelo duto linfá- saturação do sistema enzimático de síntese de
tico e depois pela circulação sanguínea indo, ácidos biliares, levando a necessidade da ex-
primeiro aos tecidos e somente depois para o portação do colesterol em excesso para os
fígado. tecidos extra-hepáticos.

Tabela 10-3 - Composição lipoprotéica relativa das lipoproteínas plasmáticas.

Lipoproteína Densidade Proteínas (%) Lipídios (%) TG FL Col Col FFA


(éster) (livre)
Quilomícrons ↓ 0,95 1-2 98-99 88 8 3 1 -
VLDL 0,95 - 1,006 7-10 90-93 56 20 15 8 1
IDL 1,006 - 1,019 11 89 29 26 34 9 1
LDL 10,10 - 1,063 21 79 13 28 48 10 1
HDL2 1,063 - 1,125 33 67 16 43 31 10 -
HDL3 1,125 - 1,210 47 43 13 46 29 6 6
Alb-FFA (*) ↑ 1,210 99 1 0 0 0 0 100
TG = triglicerídeos Col = colesterol FL = fosfolipídio FFA = free fat acid (ácidos graxos livres)
VLDL = very low density lipoprotein IDL = intermediate density lipoprotein
LDL = low density lipoprotein HDL = high density lipoprotein
( )
* Alb-FFA = albumina ligada a ácidos graxos livres. Forma de transporte dos FFA após a mobilização dos adipócitos.
(Adaptado de MURRAY et al., 2000, p. 269)

Tabela 10-4 - Principais lipoproteínas plasmáticas e suas apoproteínas.


Lipoproteína Funções Apoproteínas

Transportar os triglicerídeos da dieta e apresentá-los, aos A1, A2, A4, B48, C1,
Quilomícron adipócitos e tecidos periféricos cuja captação é mediada pela C2, C3, E
enzima lipase-lipoproteína, ativada pela apo-C2.
Apresentar os triglicerídeos e o colesterol remanescentes para B48, E
Quilomícron a degradação hepática, mediada por endocitose mediada pelo
remanescente receptor hepático que reconhece a apo-B48 e apo-E
Transportar os triglicerídeos endógeno para os depósitos no B100, C1, C2, C3, E,
VLDL tecido adiposo, com captação e hidrólise mediada pela enzima
lipase-lipoproteína
VLDL remanes- Endocitose mediada por receptor hepático e conversão a LDL B100, E
cente através remoção de apo-C2 e apo-E pela HDL plasmática
ou IDL
Transportar o colesterol endógeno para a degradação hepática B100
LDL e de outros tecidos através de endocitose mediada por recepto-
res para apo-B100.
Retirada do colesterol livre da corrente sangüínea esterefican- A1, A2, A4, C1, C2, C3,
HDL do-o e transferindo-os à VLDL remanescente. Retirada do D, E
LDL da parede dos vasos.
(Adaptado de MURRAY et al., 2000, p. 269)

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Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 130

ficação e captação pelo hepatócito para o pro-


cesso de degradação. A apoE também tem
esta função e também é adicionada à molécula
do quilomícrons pelo contato com a HDL da
mesma forma que a apoC2. Outras apoproteí-
nas estão presentes na composição dos quilo-
microns com a função de torna-lo solúvel (ver
tabela 10-4).
No fígado, há a síntese constante de
colesterol e triglicerídeos a partir do excesso
de acetil-CoA produzida durante o metabo-
Figura 10-13 - Representação esquemática de uma lismo energético. Esses lipídios endógenos
lipoproteína. As apoproteínas integrais (apo A e apo B) são transportados pela lipoproteína VLDL
estão inseridas firmemente na matriz lipídica, enquanto que possui a apoB100 como principal apopro-
que as proteínas periféricas (apo C, apo D e apoE) li- teína.
gam-se por forças fracas aos lipídios da periferia da
molécula. Observe a semelhança com a estrutura lipo-
Após ser liberada para a corrente san-
protéica da membrana celular. güínea, a HDL transfere a apoC2 e apoE para
a molécula de VLDL, da mesma maneira co-
mo faz com os quilomícrons. Desta forma, a
VLDL pode ser reconhecida pelos adipócitos
e ter o seu conteúdo de triglicerídeos retirado
para o armazenamento no tecido adiposo.
Após a retirada dos triglicerídeos, a
VLDL torna-se mais densa e de menor tama-
nho, sendo denominada de VLDL remanes-
cente (ou IDL).
Esta lipoproteína remanescente pode
ser captada pelo fígado e o seu conteúdo de
colesterol degradado. Porém isso raramene
acontece uma vez que a VLDL que lhe deu
origem foi sintetizada em uma situação de
excesso de lipídios hepáticos e, portanto, não
é de se esperar que o fígado proceda a sua
degradação, mesmo depois do depósito de
triglicerídeos nos adipócitos.
Observe que o colesterol que está na
VLDL remanescente corresponde ao excesso
Figura 10-14 - Representação esquemática das lipoproteínas da síntese e da alimentação, logo é de se espe-
plasmáticas. (Adaptado de DEVLIN, 2000). rar que não haja uma degradação hepática a
amenos que aumente a necessidade de síntese
A apoC2 é responsável pela identifi- de sais biliares. Isto pode ser conseguido caso
cação dos quilomícrons pelos adipócitos, in- diminua a absorção dos sais biliares no intes-
duzindo a ação da enzima lipase-lipoproteíca tino o que leva a uma maior necessidade de
do adipócito para favorecer a captação dos colesterol para a síntese. As fibras alimentares
dos triglicerídeos. Os quilomícrons não pos- e medicamentos da classe dos fibratos pro-
suem esta importante apoproteína quando são movem esta diminuição da absorção intestinal
sintetizados na mucosa intestinal. AapoC2 é de sais biliares e levam a queda do colesterol
adicionada pela lipoproteína HDL durante o plasmático em conseqüência. Em pacientes
transporte plasmático. com altas concentrações de colesterol plasmá-
A apoB-48 é uma proteína integral tico por causas genéticas (ver capítulo 16 so-
dos quilomícrons responsável pela sua identi- bre Dislipidemias) a retirada cirúrgica da úl-

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Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 131

tima porção do intestino delgado, onde ocorre na captação do colesterol plasmático, levando
a reabsorção em massa dos sais biliares, pro- a uma hiperolesterolemia de difícil tratamento
move uma queda na concentração de coleste- denominada hipercolesterolemia familiar.
rol sangüíneo devido o aumento da necessi- Na figura 10-16 está representado a estrutura
dade hepática de colesterol para a síntese de do receptor para LDL. Para maiores detalhes
sais biliares. sobre essa doença, ver capítulo 16 sobre Dis-
Desta forma, a VLDL remanescente lipidemias.
corresponde a uma lipoproteína com alto teor
de colesterol cujas apoC2 e apoE tendem a
sair da molécula, já que perderam sua função,
sendo transferidas de volta para a HDL.
A HDL, por sua vez, possui a capaci-
dade de transferir colesterol livre e ésteres de
colesterol do plasma para a molécula de VL-
DL. Ao final deste processo de recombinação
molecular entre as moléculas de HDL e VL-
DL, há a formação de uma nova lipoproteína,
a LDL.
A LDL possui em sua composição
quase que exclusivamente a apoB100 e uma Figura 10-15 - A captação do colesterol da LDL é media-
grande quantidade de colesterol que não é da por receptores celulares (LDL-R) que reconhecem a
captado pelo hepatócito. apoB100 da LDL. A regeneração do LDL-R é um impor-
tante mecanismo regulador da concentração de colesterol
O destino desse colesterol, entretanto, plasmático.
está assegurado em todas as células do orga-
nismo, devido à existência de receptores para
LDL. A captação de colesterol, entretanto,
ocorre, preferencialmente, nas células de teci-
dos que possuam grande necessidade de co-
lesterol para a síntese de membrana celular
devido a grande produção de células (medula
óssea, testículos, tecido epitelial) ou para a
produção de hormônios esteróides derivados
do colesterol (gônadas e supra-renais). O pró-
prio fígado capta colesterol da LDL quando
os níveis de sais biliares reabsorvidos diminu-
irem e houver necessidade de mais colesterol
para a síntese de novos sais biliares.
A captação da LDL se dá pela presen- Figura 10-16 - A estrutura do receptor celular para LDL
ça de receptor celular para a apoB100 que (LDL-R) revela cinco domínios distintos. Centenas de
promove a internalização do complexo recep- mutações no gene do LDL-R são responsáveis pelo acúmu-
tor/lipoproteína, possibilitando um controle lo de LDL colesterol no plasma. (Adaptado de Stryer,
da entrada de LDL na célula, uma vez que 1992).
todas estas células são capazes de sintetizar Com a endocitose do receptor celular
colesterol (Figura 10-15). de LDL, há uma regulação da entrada de co-
O receptor para LDL é uma proteína lesterol na célula que é dependente da quanti-
transmembrana com até 822 aminoácidos dade de colesterol necessária para a célula. As
distribuídos em cinco domínios diferentes células com alta atividade biosintética de
(um citoplasmático, um transmembrana e três hormônios esteróides serão as que mais capta-
extra-celulares). Os 18 éxons do gene do re- rão o colesterol da LDL, porém todas as célu-
ceptor para o LDL são alvos de mais de 600 las tendem a captar o colesterol.
mutações diferentes responsáveis pela falha

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 132

Entretanto quanto mais colesterol en-


tra na célula, menos receptores se regeneram O colesterol da LDL depositada na pa-
e, portanto, há um acúmulo fisiológico de rede dos vasos pode ser retirado pelas
LDL plasmática. Desta forma, uma grande moléculas de HDL pela ação da enzima
quantidade de colesterol da alimentação e/ou lecitina colesterol acil transferase (LCAT)
da síntese hepática, leva a saturação do siste- que esterifica o colesterol com triglicerídeos e
ma de captação celular do colesterol e o con- o transporta para novas moléculas de VLDL
seqüente acúmulo de colesterol no sangue, ou LDL para que possam novamente ser
uma vez que não pode ser excretado na urina metabolizadas nas células.
por ser insolúvel e nem pelo fígado, já que o Porém, quanto maior a concentração
sistema de captação está saturado. de LDL (e menor a de HDL) o colesterol ten-
O último destino desse excesso de de a se oxidar ao passar através do endotélio.
LDL é a deposição nos vasos sangüíneos uma Essa oxidação impede que os macrófagos
vez que por ser um lipídio de baixa densidade (células de defesa) reconheçam este LDL oxi-
a LDL flutua no sangue e deposita-se natu- dado como estruturas próprias do organismo.
ralmente nas paredes dos vasos. A fixação da Então, os macrófagos endocitam a LDL.
LDL se dá em todos os vasos do organismo, Esta endocitose, entretanto, ao invés
havendo um tropismo especial para as artérias de se constituir um importante processo para a
coronárias devido sua localização após a aor- retirada do colesterol da parede dos vasos,
ta, o que faz com que o sangue saia com alta torna-se um desencadeador do enrijecimento
pressão e em turbilhonamento graças à curva da artéria coronária. Isto acontece porque a-
que a aorta faz ao sair do coração. Isto faz pós a endocitose os macrófagos não conse-
com que os componentes de baixa densidade guem digerir o LDL e se tornam células gran-
percorram o vaso próximo à parede, o que des (células espumosas) sem função de fago-
favorece seu depósito quando estão em exces- citose e se acumulam nas paredes dos vasos
so (Figura 10-17). liberando fatores químicos que levarão à pro-
O acúmulo de lipídios nos vasos pode liferação do músculo liso, a lesão do vaso e a
levar a obstrução e nas artérias isto pode levar calcificação do local, criando a placa atero-
à necrose do tecido irrigado por ela. As arté- matosa que diminui a circulação sangüínea
rias coronárias irrigam o miocárdio e o efeito na área afetada, induzindo à necrose do tecido
principal de uma obstrução será o infarto do irrigado pelo músculo.
miocárdio. A obstrução da artéria coronária Na Figura 10-18 estão representados
por LDL é denominada de aterosclerose co- os eventos responsáveis pela formação da
ronária e é uma doença metabólica muito placa ateromatosa. Para maiores detalhes, ver
freqüente e de grande importância na clínica o capítulo 16 sobre Dislipidemias.
médica (ver Capítulo 16 sobre Dislipidemias). Como foi descrito, a molécula de
HDL possui importante função na manuten-
ção dos níveis plasmáticos de colesterol den-
tro de valores compatíveis com a ausência de
risco para aterosclerose coronária, pois possi-
bilita a retirada do colesterol livre do plasma
esterificando-o com o triglicerídeos através da
LCAT, transferindo este colesterol à molécula
de VLDL e LDL favorecendo o consumo do
colesterol pelas células periféricas e pelo pró-
prio fígado. Uma outra função atribuída à
HDL é a retirada física da molécula de LDL
da parede dos vasos, por um processo não
Figura 10-17 - Um excesso de LDL tende a se depositar bem conhecido, ajudando na prevenção da
naturalmente na parede das artérias coronárias vasos placa ateromatosa. A HDL, ainda, é captada
devido à baixa densidade dos lipídios e ao movimento pelos hepatócitos onde tem o seu colesterol
em turbilhão do sangue nas artérias próximas à aorta.
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 133

degradado em ácidos biliares ou excretados lhado deste metabolismo para a compreensão


como colesterol livre na bile. da fisiopatologia de doenças metabólicas de
grande importância na prática médica.
Nas figuras 18-19 e 18-20 estão repre-
sentados os passos do metabolismo lipídico.

Figura 10-18 - Formação da placa ateromatosa. A) o LDL


em excesso deposita-se na parede dos vasos formando a
estria gordurosa; B) a HDL pode retirar o colesterol pela ação
da LCAT; C) o LDL em excesso se oxida e é endocitado por
macrófagos; D) os macrófagos tornam-se células espumosas,
incapazes em digerir a LDL oxidada; E) as células espumo-
sas acumulam-se na camada íntima das artérias levando a sua Figura 10-19 - O metabolismo dos lipídios exógenos. 1)
destruição; F) a lesão contínua leva a fibrose e calcificação Os lipídios da alimentação são digeridos no intestino
da placa ateromatosa, impedindo a passagem de oxigênio delgado e absorvido para o sistema linfático; 2) o duto
para o miocárdio, levando ao infarto. linfático conecta-se com a circulação sangüínea e trans-
porta os lipídios em quilomícrons; 3) a HDL cede apoC2
Por todos esses fatores, a HDL é con- e E que favorecem a captação de triglicerídeos pelo
adipócito e pelos músculos; 4) o colesterol que restou e
siderada uma lipoproteína de proteção contra captado pelo fígado; 5) o fígado converte o colesterol em
a aterosclerose coronariana, sendo denomina- sais biliares ou o excreta livre na bile.
do vulgarmente, como o bom colesterol. Em
contrapartida, a LDL ganhou a “fama” de
mau-colesterol por ser a partícula aterogên-
cia. Entretanto, é o LDL que possibilita a cap-
tação do colesterol pelas células periféricas e
fígado.
O mau-colesterol na verdade é aquele
ingerido na dieta além da capacidade de ex-
creção hepática diária do indivíduo (até
1g/dia).
Estudos recentes demonstram que uma
lipoproteína sintetizada no fígado denominada
de lipoproteína (a) é muito parecida com a
LDL, possuindo uma apo(a) ligada através de
ligação covalente com a apo-B100, o que lhe
confere um poder extremamente aterogênico Figura 10-20 - O metabolismo dos lipídios endógenos.
uma vez que possui uma função de retardo na 1) o colesterol e triglicerídeos produzidos no fígado por
degradação dos coágulos sangüíneos. Por isto, um excesso de acetil-CoA são transportados para o san-
gue ligados à VLDL; 2) a HDL cede apoC2 e apoE para
esta nova lipoproteína já vem sendo denomi- a VLDL facilitando a captação dos triglicerídeos pelos
nada como o colesterol muito ruim. adipócitos e músculos; 3) o colesterol restante pode ser
O metabolismo dos lipídios endógenos captado pelo fígado e 4) ser convertido em sais biliares
e exógenos é muito semelhante, variando no ou excretado livre na bile. 5) a VLDL remanescente
tipo de lipoproteína envolvida. Porém, as con- converte-se em LDL devido à impossibilidade da degra-
dação hepática por saturação no processo de degradação
seqüências de um aumento da LDL plasmáti- do colesterol. A LDL plasmática pode ser captada pelas
co pode ter conseqüências desastrosas para o demais células do organismo.
organismo, daí a importância do estudo deta-

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 134

2. Síntese do colesterol CoA (HMG-CoA) pela adição de uma ter-


ceira acetil-CoA. A formação de HMG-
O excesso de acetil-CoA é o sinal para
CoA é etapa comum para asíntese de cor-
o início da síntese hepática dos lipídios
pos cetônicos. A enzima HMG-CoA-
(colesterol e ácidos graxos) e corpos
redutase é a responsável pela conversão
cetônicos. Esta síntese é citoplasmática o que
de HMG-CoA em mevalonato (6C), sen-
significa que a acetil-CoA deve sair da mito-
do, portanto, uma enzima regulaora da sín-
côndria para que as enzimas citoplasmáticas
tese de colesterol.
possam convertê-la nesses compostos. Entre-
2) Formação de unidades isoprenóides:
tanto a acetil-CoA é impermeável à
forma-se o isopentenil-pirofosfato (5C)
membrana mitocondrial, o que obriga um
por fosforilação do ATP e perda de CO2.
processo metabólico especial para sua saída.
3) Formação de esqualeno: seis moléculas
Isso ocorre com a formação de citrato
da unidade isoprenóide (5C), formadas na
após a condensação com oxalacetato (primei-
etapa anterior, condensam-se formando o
ra reação do Ciclo de Krebs) porém não há o
esqualeno (30C), sendo necessário a pre-
prosseguimento das reações para formar ATP,
sença de NADPH.
devido à inibição alostérica das enzimas do
4) Conversão do esqualeno em lanosterol:
Ciclo pelo ATP. Isso leva a um acúmulo de
o lanosterol é um composto cíclico que
citrato e a sua saída para o citoplasma, uma
contém o núcleo ciclo-pentano-per-hidro-
vez que é permeável à membrana mitocondri-
fenantreno. Esta fase necessita de NADPH
al. Uma vez fora da mitocôndria, o citrato é
e FAD+.
desdobrado pela enzima citrato liase liberan-
5) Conversão do lanosterol em colesterol:
do acetil-CoA e o oxalacetato que retorna à
ocorre no retículo endoplasmático, sendo
mitocôndria.
necessários 4 NADPH e 1 NAD+. O coles-
O colesterol existente no organismo
terol possui 27 carbonos pois nesta fase há
pode ser de origem exógena (alimentação) ou
a perda de 2 CO2 e um radical livre HCO-
endógena. Todas as células possuem o aparato
OH.
enzimático para a síntese do colesterol a partir
O colesterol não possui função energé-
da acetil-CoA, porém grande quantidade de
tica, mas possui importante função na forma-
colesterol é sintetizada no fígado a partir do
ção da membrana celular, na síntese de hor-
excesso de acetil-CoA proveniente do meta-
mônios esteróides e na síntese dos ácidos bili-
bolismo dos carboidratos estimulado pela
ares. Nas figuras 10-21 e 10-22 estão apresen-
insulina. A acetil-CoA proveniente da beta-
tadas as etapas na síntese de colesterol.
oxidação não é comumente destinada para a
A enzima HMG-CoA redutase é res-
síntese de colesterol devido a baixa de con-
ponsável paela regulação da síntese do coles-
centração de insulina típica deste estado me-
terol, que acontece em de três níveis diferen-
tabólico. Pelo contrário, a acetil-CoA destina-
tes:
da desse processo será aproveitada mais para
1) Feedback negativo da HMG-CoA reduta-
a síntese de corpos cetônicos, como será vista
se pelo próprio colesterol sintetizado. Esta
adiante.
inibição alostérica é extremamente eficaz
A síntese de colesterol compreende
e impede uma superprodução de colesterol
uma via metabólica de cinco fases. Nesta via
citoplasmático.
metabólica é necessária a presença do redutor
2) Ativação da HMG-CoA-redutase pela
NADPH. Como este processo ocorre em um
insulina e inativação pelo glucagon, o que
excesso de acetil-CoA típico de excesso de
faz da concentração de glicose plasmática
glicose, é de se esperar que a via das pentoses
é um importante regulador da síntese de
esteja ativa fornecendo este potencial redutor
colesterol.
na forma de NADPH.
3) Redução na transcrição do gene da HGM-
CoA-redutase através do colesterol capta-
1) Síntese do mevalonato: 2 moléculas de
do pela célula através da LDL. Alguns
acetil-CoA, formam acetoacetil-CoA que
medicamentos (p. ex.: levatastina e meva-
se converte em hidróxi-metil-glutaril-
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 135

tastina) são utilizados para diminuir os ní- o citrato mitocondrial é a forma de saída da
veis plasmáticos de colesterol por inibir a acetil-CoA em excesso.
ação enzimática da HMG-CoA-redutase

Figura 10-22 - A síntese do colesterol a partir do mevalonato


ocorre em oito etapas distintas. 1) A ação de cinases acrescenta
um grupamento pirofosfato (PPi) importante para a solubiliza-
ção dos compostos a serem formados a partir daqui. A entrada e
saída de PPi indica, também, reações irreversíveis o que impede
o retorno do colesterol para formar acetil-CoA; 2) Descarboxi-
lases são responsáveis pela retirada de CO2 da molécula e a
formação de uma unidade isoprenóide, o sio-pentenil-
pirofosfato (IPP); 3) O IPP se isomeriza em 3,3-di-metil-
pirofosfato (DPP); 4) IPP e DPP se unem para formar um com-
Figura 10-21 - A síntese do mevalonato é uma etapa posto de 10C; 5) Mais um IPP é adicionado para formar um
inicial importante que diferencia a síntese de coleste- composto de 15C. 6) Esses dois compostos de 15C se fundem
rol da síntese de corpos cetônicos. A enzima HMG- formando o esqualeno de 30C; 7) O lanosterol é formado como
CoA redutase é a responsável por essa diferenciação. produto da ciclização do lanosterol; 8) dezenas de reações en-
zimáticas adicionais encurtam a cadeia de lanosterol e formam
o colesterol (27C).

3. Síntese dos Ácidos Gra- A acetil-CoA no citoplasma é conver-


tida em malonil-CoA (3C) pela adição de um
xos e Triglicerídeos CO2 sob a ação da enzima acetil-CoA carbo-
xilase (uma enzima dependente da vitamina
É estimulada pela insulina, onde a ace- biotina).
til-CoA é oriunda, principalmente do excesso A partir daí, inicia-se a seqüência de
de glicose plasmático. A forma de obtenção reações coordenadas por um complexo multi-
da acetil-CoA citoplasmática é a mesma que a enzimático de seis enzimas (complexo enzi-
discutida para a síntese de colesterol, ou seja, mático ácido graxo sintetase) que promove a

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Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 136

adição de uma nova molécula de acetil-CoA tico (presente em quase todo tipo de gorduras
(2C) ao malonil-coA (3C), formando um pro- animais e vegetais) e ausente de carboidratos,
duto de 5C. portanto, promove a inibição da síntese de
Em seguida, há a perda de uma molé- ácidos graxos. Pelo contrário, alimentação
cula de CO2 gerando o ácido butanóico (4C). rica em carboidratos leva a um aumento da
A este ácido carboxilíco de 4C é adicionado síntese de ácidos graxos. A enzima ácido gra-
uma nova molécula de malonil-coA (3C) xo sintase também possui esse tipo de regula-
formando um composto de 7C. Uma nova ção.
retirada de CO2 leva à formação do ácido he- A cada três ácidos graxos formados
xanóico (6C). Assim, sucessivamente, há a são combinados com uma molécula de glice-
adição de moléculas de malonil-CoA e retira- rol (derivado do gliceraldeído-3-P do metabo-
da imediata de CO2 promovendo o crescimen- lismo da glicose) formando o triglicerídeo que
to da molécula de ácido graxo até a formação é “embalado” em uma VLDL para ser arma-
do ácido palmítico de 16C. zenado no adipócito (como visto anteriormen-
Estas reações utilizam o NADPH for- te).
mado na via das pentoses como composto Os triglicerídeos são sintetizados no
redutor nas reações de síntese de ácidos gra- fígado sob ação estimulante da insulina, por-
xos. tanto, quando há uma condição metabólica de
Em animais, o alongamento da molé- excesso de acetil-CoA, como no caso de um
cula de ácido graxo pode ocorrer na presença excesso de ingestão de carboidratos.
de um excesso de acetil-CoA sob a ação de Na Figura 10-23, está representado o
enzimas específicas para esse fim (elongases) processo de síntese dos ácidos graxos.
a partir do ácido palmítico. Os ácidos graxos
insaturados são formados a partir da ação de
enzinas denominadas dessaturases que tam-
bém utilizam o ácido palmítico como substra-
to, o que faz com os ácidos graxos insaturados
produzidos em animais nunca tenha a dupla
ligação antes do 16o carbono. Os ácidos gra-
xos que possuem dupla ligação em carbonos
de numeração inferior a 16 (p.ex.: ácido arac-
dônico, ácido linolíco) só são produzidos em
vegetais e são, por isso, denominados de ácios
graxos essenciais (ver Capítulo 7 sobre estru-
tura dos lipídios).
Os hepatócitos e os adipócitos são as
principais células produtoras de ácidos graxos
e triglicerídeos, apesar de a maioria das célu-
las possuírem o aparato enzimático para a sua
síntese.
A síntese de ácidos graxos é regulada
por modulação da atividade da enzima acetil-
CoA carboxilase, a primeira enzima dessa
via metabólica. A insulina promove sua ativa-
ção, enquanto que o glucagon e a epinefrina a Figura 10-23 - A síntese dos ácidos graxos. A) O processo
tornam inativa. inicia-se com a formação de malonil-CoA (3C) a partir de
Essa enzima também é inibida aloste- acetil-CoA (2C) e a adição de outra acetil-CoA para a
ricamente pelo malonil-CoA e pelo ácido formação de ácido butanóico, com perda de CO2. A partir
daí, há o aumento da cadeia pela adição de malonil-CoA e
palmítico, produto final da síntese, o que retirada de CO2 até a formação de ácido palmítico (16C).
constitui em um importante mecanismo regu- B) A enzima ácido graxo sintase possui dois domínios: um
lador. Uma alimentação rica em ácido palmí- de ligação ao malonil e outro de alongamento da cadeia.

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Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 137

4. Síntese de Corpos Cetôni- volátil, o que leva a um hálito cetônico carac-


terístico.
cos Em pacientes diabéticos, a ausência de
insulina e a alta quantidade de acetil-CoA
O acúmulo de acetil-CoA devido ao ex- pela beta-oxuidação estimulam intensamente
cesso da β-oxidação, leva à síntese hepática a síntese de corpos cetônicos o que leva a
dos corpos cetônicos (ácido ceto-acético, sérias complicações patológicas (ver Capitulo
ácido β-hidróxi-butírico e acetona). A reação 15 sobre Diabetes Mellitus).
inicial da síntese dos corpos cetônicos é seme- O fígado é um grande produtor de cor-
lhante à da síntese do colesterol, com a con- pos cetônicos, embora não tenha a capacidade
densação de duas moléculas de acetil-CoA de grada-los uma vez que não possui a enzima
através da enzima tiolase formando ceto- tioforase. Desta forma, os hepatócitos liberam
acetil-CoA, que se condensa com outra molé- para o sangue quase todo os corpos cetônicos
cula de ceto-acetil-CoA formando o HMG- circulantes.
CoA (semelhante ao processo inicial de sínte- Quando se realiza uma dieta isenta de
se do colesterol). carboidratos e rica em lipídios, há uma inibi-
Na presença de glucagon, epinefrina ou ção da síntese de ácidos graxos e a queda de
altas quantidades de colesterol citoplasmático insulina e aumento de glucagon observado,
ou na ausência de insulina (quando há hipo- promove o desvio da grande quantidade de
glicemia ou em pacientes diabéticos) a enzi- acetil-CoA resultante da beta-oxidação dos
ma HMG-CoA redutase (que levaria a síntese ácidos graxos para a única via metabólica
de colesterol) está inibida o que promove um disponível para o metabolismo energético que
acúmulo de HMG-CoA e a ativação da enzi- é a síntese de corpos cetônicos.
ma HMG-CoA liase que retira uma molécula Na figura 10-24 está resumido o proces-
de acetil-CoA e gera o primeiro corpo cetôni- so de síntese de corpos cetônicos.
co, o ácido cetoacético. Parte do ácido ceto-
acético é convertido, espontaneamente, em
acetona pela perda de CO2, porém a maior
parte é convertida em ácido β-hidróxi-
butírico, através da enzima 3-OH-butirato-
desidrogenase.
Os corpos cetônicos (com exceção da
acetona) possuem função energética como
substrato da neoglicogênese ou por oxidação
direta gerando acetil-CoA a través da ação da
enzima tioforase que gera acetoacetil-CoA e,
posteriormente, a acetil-CoA. Os neurônios
utilizam os corpos cetônicos como fonte ime-
diata na ausência de glicose, não utilizando
nenhum outro substrato energético.
No jejum prolongado, os corpos cetôni-
cos constituem-se importante fonte energéti-
ca, entretanto, um excesso sangüíneo leva a
uma queda acentuada do pH (cetoacidose)
que pode levar ao coma e ao óbito. Figura 10-24 - A síntese dos corpos cetônicos. A) As
A acetona, entretanto, não tem função reações iniciais são idênticas às da síntese de colesterol,
energética e tende a destruir a bainha mielíni- com exceção da ativação da enzima HMG-CoA liase ao
ca dos neurônios devido seu alto poder sol- invés da HMG-CoA sintase. B) Os corpos cetônicos fazem
vente de lipídios A acetona formada pode ser parte de uma tríade de desvios metabólicos do excesso de
acetil-CoA na mitocôndria e possuem importante função
excretada na urina ou pelos pulmões por ser energética sendo, entretanto, danosos ao organismo quando
em excesso.
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Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 138

Metabolismo das proteínas proteínas especializadas a serem enviadas


para o sangue.
A proteína plasmática presente em
Os aminoácidos são importantes fon-
maior quantidade é a albumina e possui a
tes de energia para o metabolismo celular,
importante função de trasnportar nutrientes,
porém só são utilizados quando há uma ex-
ácidos graxos, medicamentos, hormônios e
trema carência energética ou durante a prática
vários compostos de importância para o me-
de exercícios físicos intensos. É importante
tabolismo celular. As albuminas são proteínas
frisar que os carboidratos e lipídios são me-
de baixo peso molecular que podem ser cap-
lhores produtores de energia e a mobilização
tadas pelas células (principalmente pelos
de aminoácidos pode estar relacionada a uma
músculos) para fornecerem aminoácidos para
degradação de proteínas musculares ou plas-
o metabolismo energético. Uma outra impor-
máticas levando o organismo a uma depleção
tante função das albuminas é a manutenção do
dessas proteínas, o que pode trazer conse-
equilíbrio hídrico do sangue induzindo a pas-
qüências desastrosas como a atrofia muscular
sagem da água do líquido interstical evitando
e a hipoalbuminemia.
edema (acúmulo de água nos tecidos).
De fato, um dos maiores cuidados en-
Outras proteínas plasmáticas são sinte-
tre atletas é o balanceamento nutricional for-
tizadas no fígado e possuem improtante fun-
necendo fontes de carboidratos e lipídios
ção para a coagulação sangüínea. É o caso da
compatíveis com suas atividades energéticas,
protrombina, fibrinogênio, globulina acelera-
além de proteínas suficientes para o gasto
dora da coagulação e fator VII da coagula-
energético extra causado pelos exercícios físi-
ção. Esta propriedade faz com que o fígado
cos intensos ao qual são submetidos. Esta
seja um órgão fundamental na manutenção da
complementação alimentar de proteínas é
homeostase sangüínea e uma insuficiência
fundamental para que haja aminoácidos sufi-
hepática traz conseqüências graves no meta-
cientes para a síntese de novas proteínas mus-
bolismo protéico (ver Capítulo 12 sobre Bio-
culares, aumentando a massa muscular ao
química da Função Hepática).
invés de atrofiar os músculos.
A síntese da uréia, um dos processos
O fígado, entretanto, utiliza freqüen-
metabólicos mais importantes pois impede a
temente aminoácidos como fonte energética
formação de amônia tóxica ao organismo a
após a alimentação, uma vez que a glicose
partir do nitrogênio protéico, é exclusiva do
absorvida é grandemente desviada para a sín-
fígado o que o torna o centro da degradação
tese de glicogênio devido à presença de insu-
de aminoácidos. Os músculos precisam ajus-
lina assim como a síntese dos lipídios e não
tar o consumo de aminoácidos com a exporta-
sua degradação. Nos músculos também, a
ção da amônia para o fígado na forma dos
degradação protéica é freqüente e o metabo-
aminoácidos glutamina ou alanina, em uma
lismo energético a custas de aminoácidos faz
via metabólica extremamente importante e
parte da rotina metabólica diária.
que permite o equilíbrio fisiológico, princi-
Após a absorção dos nutrientes da a-
palmente durante a realização de exercícios
limentação, o fígado recebe uma grande quan-
físicos, como será discutido adiante.
tidade de aminoácidos constituem uma quan-
A seguir, serão apresentadas as princi-
tidade enorme de substratos que devem ser
pais vias envolvendo os aminoácidos dentro
metabolizados ao invés de serem simplesmen-
do metabolismo energético.
te repassados para o sangue. De fato, a con-
centração de aminoácidos no plasma sanguí-
neo é infinitamente menor do que a quantida- 1. Transaminação e Desa-
de de aminoácidos ingeridos e presentes na minação
veia porta-hepática.
A maior parte do nitrogênio protéico
O fígado mobiliza esses aminoácidos
não é utilizada em vias metabólicas nos seres
da alimentação (além dos que sintetiza, os não
humanos. Sendo assim, a retirada do grupa-
essenciais) principalmente par a síntese de
mento amino (-NH3+) dos aminoácidos é o

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Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 139

primeiro passo metabólico, com a formação As principais transaminases do hepa-


de amônia (NH3), um composto altamente tócito são a transaminase-glutâmico-
tóxico que é excretada, na forma de uréia pirúvica (TGP) ou alanina aminotransfera-
pelos rins. se (ALT) e a transaminase-glutâmico-
A uréia é a principal forma de excre- oxalacética (TGO) ou aspartato amino-
ção do nitrogênio protéico nos vertebrados transferase (AST). Essas enzimas transami-
terrestres. Em aves e répteis, o ácido úrico é a namna a alanina e o aspartato, respectivamen-
principal forma de excreção do nitrogênio te, possuindo tambeém ação sobre os demais
protéico; em peixes e larvas de anfíbios a a- aminoácidos, apesar de haver uma transami-
mônia é excretada intacta, permanecendo em nase para cada tipo de aminoácido.
alta concentração plasmática em peixes de Apenas doze dos vinte aminoácidos
água salgada para manter o equilíbrio osmóti- têm seu grupamento amino retirado por tran-
co. saminação (alanina, arginina, asparagina, as-
O processo de síntese da uréia envolve partato, cisteína, isoleucina, leucina, lisina,
enzimas tanto citoplasmáticas quanto mito- fenilalanina, triptofano, tirosina e valina). O
condriais. A retirada do grupamento amino é processo metabólico dos demais aminoácidos
a reação preparatória para essa síntese e é (inclusive o glutamato produzido na transa-
comum em todos os tecidos podendo ocorre minação) denomina-se desaminação oxidati-
por dois processos diferentes: a transamina- va. Por essa via podem ser degradados inclu-
ção e a desaminação. sive os doze aminoácidos que são transami-
A transaminação ou aminotranfe- nados.
rência é catalisada por enzimas chamadas Nessa desaminação há a retirada do
transaminases ou aminotransferases, que grupamento amino por enzimas denominadas
possuem como co-fator o piridoxal-fosfato, a aminoácido-oxidases, que convertem o gru-
forma ativa da vitamina B6 (Figura 10-25). pamento amino em amônia livre (NH3), libe-
Esse processo metabólico consiste na rando o cetoácido correspondente (Figura 10-
transferência do grupamento amino para o α- 26).
cetoglutarato (um cetoácido) formando um Em virtude da grande quantidade de
outro cetoácido e o aminoácido glutamato. glutamato produzido por transaminação, a via
Dependendo do aminoácido transaminado, glutamato-desidrogenase é a mais freqüente.
haverá um tipo diferente de cetoácido forma- O acoplamento de transaminação e desamina-
do (p.e.x.: a alanina forma o piruvato; o aspar- ção por essa via é denominado de transde-
tato forma o oxalacetato) porém sempre o saminação. A vantagem da transaminação é
mesmo aminoácido glutamato é formado. Isso justamente a formação de glutamato e a ne-
faz com que após essa reação, uma grande cessidade de uma única via metabólica poste-
quantidade de glutamato seja produzida no rior para a degradação dos doze aminoácidos.
fígado.

Figura 10-25 - A transaminação dos aminoácidos ocorre com a formação de um único aminoácido, o glutamato, e
um cetoácido para cada tipo de aminoácido metabolizado. O aceptor de amino é o cetoácido α-cetoglutarato.
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Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 140

Figura 10-26 - A desaminação oxidativa é um processo intramitocndrial que gera amônia par a síntese de uréia. É esti-
mulada pelo ATP e inibida pelo GTP. O α-cetoglutarato é regenerado para o citoplasma.

A toxidade da amônia formada impede A degradação de aminoácidos por essa


que esta reação seja citoplasmática pois pode- via acontece após a alimentação quando a
ria levar a sua saída para o sangue, o que acar- quantidade de glicose é suficiente para gerar o
retaria danos sérios, principalmente ao siste- ATP necessário para o hepatócito e, logo, o
ma nervoso central. A desaminação oxidativa excesso de ATP produzido estará contribuin-
é uma reação intramitocondrial e está aco- do para a degradação dos aminoácidos. De
plada a um processo eficaz de degradação da fato, as enzimas da desaminação mitocondrial
amônia formada, a síntese da uréia. são estimuladas pelo ATP.
Essa desaminação mitocondrial, re- Outro regulador é o GTP, porém atua
quer NAD+ ou NADP+ como receptor dos inibindo as enzimas da desaminação mitocon-
elétrons da reação. Com a retirada do grupa- drial. Como uma molécula de GTP é produzi-
mento amino do aminoácido, há a formação da diretamente no Ciclo de Krebs sem neces-
de um cetoácido. sitar da cadeia respiratória, a desaminação é
No caso do glutamato (principal ami- inibida quando o Ciclo de Krebs está em ati-
noácido dessa via) o cetoácido formado é o α- vidade. Este fato garante que quando a ativi-
cetoglutarato que sai da mitocôndria e retorna dade do Ciclo de Krebs está alta, a via de de-
ao citoplasma para servir de substrato para saminação dos aminoácidos também tende a
outra reação de transaminação. diminuir, tornando o α-cetoglutarato disponí-
O α-cetoglutarato é um intermediário vel para o Ciclo de Krebs garantindo sua
do Ciclo de Krebs e a sua saída da mitocôn- comtinuidade.
dria só pode ocorrer quando o Ciclo de Krebs Esses dois efeitos, embora antagôni-
não está ativo, caso contrário ele será utiliza- cos, são responsáveis por uma perfeita intera-
do como substrato das enzimas. ção entre o metabolismo energético mitocon-
Como já vimos anteriormente (Capítu- drial no que diz respeito à degradação de a-
lo 9 sobre bioenergética) o ATP é um inibidor minoácidos e o Ciclo de Krebs.
alostérico do Ciclo de Krebs. Dessa forma Os aminoácidos podem, ainda, serem
quanto maior a produção de ATP, menos o desaminados espontaneamente no citoplasma
Ciclo de Krebs "funcionará" e mais a via de sem o auxílio de enzimas. Porém essa desa-
regeneração do α-cetoglutarato para o cito- minação é lenta e só ocorre quando há lesão
plasma estará ativa. hepática severa e a diminuição da atividade
enzimática nos hepatócitos. Neste caso, a
conseqüência imediata será um aumento da
concentração de amônia plasmática, uma vez

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Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 141

que o fígado tornou-se incompetente em sua Krebs, ativando-o, o que faz com que a
função de degradar a amônia. Isto será res- síntese de uréia e o Ciclo de Krebs "ro-
ponsável pela principal causa do coma obser- dem" juntos, via metabólica denominada
vado em pacientes portadores de insuficiência por muitos de "Bicicleta de Krebs";
hepática crônica (ver capítulo 12 sobre Bio-
química da Função Hepática). e) Síntese da Uréia: a arginina formada sofre
ação da enzima arginase, que catalisa a
2. Síntese da uréia síntese da uréia e a liberação de uma mo-
lécula de ornitina que retorna a mitocôn-
No fígado, irá haver a produção de
dria, dando início um novo ciclo.
grande quantidade de um composto nitroge-
nado atóxico formado por duas moléculas de
O Ciclo da Uréia pode ser resumido
amônia, conjugadas com CO2 - a uréia. Esta
como um processo metabólico hepático que
reação se processa parte no citoplasma e parte
degrada amônia com a participação da orniti-
na mitocôndria do hepatócito. Na seqüência
na e cirtulina como transportadores dessa a-
de reações envolvendo a síntese da uréia (Fi-
mônia mitocondrial, favorecendo a liberação
gura 10-27), há a síntese do aminoácido argi-
da uréia formada no citoplasma.
nina e a participação dos aminoácidos não-
A "Bicicleta de Krebs" é uma expres-
codificados ornitina e citrulina.
são que lembra a integração existente entre o
A arginina é consumida em grande
ciclo da uréia e o metabolismo energético,
quantidade na produção de uréia o que faz
pois não se pode esquecer que a cada amônia
com que seja necessária na alimentação de
liberada significa que um aminoácido foi de-
animais jovens, em fase de crescimento. Por-
saminado e o cetoácido formado está apto
tanto, esse aminoácido apesar de ser sintetiza-
para o metabolismo celular. Por essas razões,
do torna-se essencial na alimentação.
pode-se perceber a importância dos aminoáci-
As reações do ciclo da uréia podem ser a-
dos para o metabolismo energético hepático,
grupadas em cinco fases:
além de que a síntese de glicogênio e de áci-
a) Formação da carbamoil-fosfato: na mi-
dos graxos impedem uma maior utilização de
tocôndria, há a hidratação de um CO2 e
carboidratos e lipídios exclusivamente para
uma NH3 (proveniente da desaminação do
produzir energia para o hepatócito.
glutamato), com o gasto de 2 ATP's;
Um problema adicional enfrenta os
músculos quando degradam aminoácidos para
b) Formação da citrulina: o carbomoil-
o metabolsimo energético: a amônia formada
fosfato doa seu grupamento carbomoil para
e necessita ser convertida em uréia mas o
a ornitina, que penetrou na mitocôndria a-
músculo não possui as enzimas para essa sín-
través de um transportador específico,
tese, somente o fígado. Logo, há a necessida-
formando a citrulina. A citrulina sai da mi-
de da formação de um produto não tóxico
tocôndria pelo mesmo transportador de or-
para transportar a amônia dos tecidos extra-
nitina;
hepáticos para serem metabolizadas até uréia
no fígado.
c) Formação do arginino-succinato: através
O aminoácido glutamina é o principal
da incorporação de aspartato na molécula
transportador de amônia plasmática após ser
de citrulina, com gasto de 1 ATP, no cito-
sintetizado a partir da união de glutamato com
plasma. Esse aspartato é mobilizado da
amônia pela ação da enzima glutamina-
mitocôndria através do mesmo
sintetase existente no músculo (Figura 10-
transportador que promove a entrada de
28). O glutamato não atravessa a membrana
glutamato na mitocôndria;
celular devido sua carga elétrica o que induz.
É uma reação que gasta ATP e produz
d) Síntese da Arginina: o arginino-succinato
a glutamina que será degradada até glutamato
sofre quebra, liberando uma molécula de
e amônia no fígado
fumarato e uma molécula de arginina. Es-
se fumarato é requerido para o Ciclo de
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 142

Figura 10-27 - O Ciclo de Uréia é


uma via metabólica que se inicia no
citoplasma e é concluída no cito-
plasma. A uréia produzida é quase
que totalmente excretada nos rins e
serve de bom parâmetro e avaliação
da função renal.

A glutamina corresponde a um subs- A amônia formada se combina com os


trato importante para outros processos de sín- íons H+ formando o íon amônio (NH4+) que é
tese que requerem amônia como a síntese de excretado na urina conjugado ao cloreto
aminoácidos e o metabolismo do nitrogênio plasmático. Esse processo de excreção de
em bactérias. Em seres humanos, ela possui amônia na urina (amoniúria) ocorre para
uma função adicional ao funcionar como re- diminuir a concentração de H+ plasmático em
guladora do pH em casos de acidoses. casos de acidose. Em pacientes diabéticos
Nesta situação patológica, a concen- existe uma acidose metabólica devido ao ex-
tração de H+ está perigosamente aumentada e cesso de corpos cetônicos produzidos e a a-
os rins atuam de várias maneiras para inverter moniúria vai estar particularmente acentuada
essa situação (ver capítulo 17 sobre Equilíbrio devido ao aumento da degradação de proteí-
Ácido-Básico). Uma das formas de controle nas musculares, uma vez que o metabolismo
do pH é a ativação da enzima glutaminase dos carboidratos não está ativo devido a falha
das células justaglomerulares renais que con- na ação da insulina.
verte a glutamina e glutamato e amônia.

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Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 143

plasmática para o metabolismo energético.


Esta via metabólica denominada de Ciclo da
glicose-alanina é um importante meio de
economia energética do organismo.

Figura 10-29 - A síntese muscular de alanania. 1) No


exercício físico intenso há o consumo aumentado de
proteínas para o metabolismo energético; 2) a amônia
muscular tende aumentar em resposta ao aumento do
metabolismo energético dos aminoácidos; 3) o metabo-
lismo anaeróbico da glicose também gera altas concen-
trações de lactato e H+ para o sangue. 4) a síntese de
Figura 10-28 - A glutamina é sintetizada nos múscu- alanina conjuga a amônia com o piruvato resolvendo os
los a partir do glutamato como forma de absorver dois problemas metabólicos. 5) a alanina é metabolizada
amônia e transportá-la até o fígado. no fígado e gera mais glicose para o metabolismo ener-
gético através da neoglicogênese.
O aminoácido alanina também é um 3. Catabolismo da cadeia
importante transportador de amônia dos teci-
dos extra-hepáticos. Entretanto, a sua síntese carbonada dos aminoá-
atende a algumas necessidades musculares cidos
específicas e só é observada quando há um
Diariamente, há um renovação de cer-
intenso trabalho muscular. Nessa situação
ca de 400g de proteínas o que significa que,
metabólica, o músculo tende a produzir muito
durante o dia, cerca de 400g de proteínas são
lactato resultante da glicólise anaeróbica, a
degradadas porém a mesma quantidade está
partir do piruvato (ver Capítulo 9 sobre bioe-
sendo produzida o que garante uma certa es-
nergética). O lactato Pode ser reciclado no
tabilidade na quantidade total de proteínas no
fígado gerando nova molécula de glicose na
organismo.
neoglicogênese. Porém, o H+ liberado para o
Esta taxa de renovação, denominada
sangue tende a levar a uma acidose que é uma
de taxa de turnover, implica na necessidade
das causas da fadiga muscular. Da mesma
da obtenção de aminoácidos essenciais na
forma, o músculo está degradando muitos
dieta além da síntese dos não-essenciais.
aminoácidos e aumentando perigosamente a
Apenas 11 aminoácidos são sintetiza-
amônia celular.
dos no organismo, porém a arginina é sinteti-
Assim sendo, a síntese da alanina re-
zada, mas totalmente consumida no ciclo da
solve estes dois problemas de uma só vez, já
uréia o que a torna indispensável na dieta e a
que são necessários piruvato e amônia para
cisteína e a tirosina são sintetizadas a partir
sintetizar uma molécula de alanina (Figura
da metionina e fenilalanina (aminoácidos
10-29). A alanina é captada pelo fígado e de-
essenciais) o que faz com somente nove ami-
gradada gerando novamente o piruvato, que é
noácidos sejam verdadeiramente indepen-
reciclado na neoglicogênese fornecendo no-
dentes da alimentação.
vas moléculas de glicose, garantindo um "se-
Entretanto, uma alimentação completa
gundo fôlego" para o praticante de exercício
apresenta uma grande quantidade de aminoá-
físico intenso com uma nova carga de glicose
cidos, sejam essenciais ou não ou que favore-
Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 144

ce a uma absorção de aminoácidos sempre 4. Síntese dos aminoácidos


acima das necessidades diárias.
Os aminoácidos essenciais são sinteti-
Desta forma, o catabolismo dos ami-
zados nos vegetais através do aproveitamento
noácidos é intenso após uma refeição protéi-
do nitrogênio na forma de NH4+, nitritos e
ca, permitindo a formação de grande quanti-
nitratos presentes no solo e que são produzi-
dade de uréia, resultado da degradação do
dos por bactérias capazes de fixar o N2 atmos-
grupamento amino, como visto anteriormente.
férico convertendo-os nos produtos nitroge-
O cetoácido resultado das reações de transa-
nados absorvidos pelos vegetais (p.ex.: Azo-
minação e desaminação., entretanto, possuem
bacter sp.e Rhizobium sp. fixam o N2; Nitros-
diversos destinos metabólicos que podem ser
somonas sp. e Nitrobacter sp. convertem a-
reunidos em dois grandes grupos: 1) os ceto-
mônia em nitritos e nitratos).
gênicos; e 2) os glicogênicos.
A decomposição bacteriana de animais
O primeiro grupo (os cetogênicos)
mortos gera NH4+, nitritos e nitratos, direta-
corresponde aos que são degradados em ace-
mente da degradação dos aminoácidos, inde-
til-CoA (de forma direta ou indireta, na forma
pendente da captação do N2 atmosférico.
de acetoacetil-CoA) e fornecem energia de
Os aminoácidos não-essenciais são
forma imediata no ciclo de Krebs. São fenila-
sintetizados nos animais a partir de moléculas
lanina, tirosina, triptofano, lisina, isoleucina,
precussoras que fazem parte do ciclo de Krebs
treonina e leucina.
e do grupamento amino proveniente da de-
A acetil-CoA produzida pelos
gradação de aminoácidos. Como vários ami-
aminoácidos cetogênicos não pode ser
noácidos fornecem intermediários do ciclo de
convertida em glicose, o que vai induzir à
Krebs, há uma interdependência entre os ami-
entrada obrigatória no Ciclo de Krebs para a
noácidos no seu processo de degradação e
produção de energia. Desta forma, um
síntese.
excesso de catabolismo destes aminoácidos
O glutamato, glutamina e prolina são
levaráao desvio para a produção de ácidos
graxos, colesterol e corpos cetônicos de sitentizados a partir do α-cetoglutarato. O
maneira idêntica a um excesso de acetil-CoA aspartato é sintetizado a partir do oxalacetato
oriundo do catabolismo de carboidratose (recebendo o grupo amino do glutamato). A
lipídios.Os demais fornecem intermediários do asparagina é sintetizada a partir do aspartato e
ciclo de Krebs (oxalacetato, fumarato, succci- o grupo amino provém da glutamina. A alani-
naé uriunda da transaminação do piruvato e
nil-CoA e α-cetoglutarato) bem como o piru-
glutamato. A serina é sintetiosada a partir do
vato. Esses produtos podem ser convertidos
gliceraldeído-3-fosfato, sendo que a glicina e
em glicose através da neoglicogênese e, as-
a cisteína derivam da serina. A arginina é uti-
sim, produzirem energia para as reações me-
lizada durante o ciclo da uréia. A tirosina ori-
tabólicas celulares, sendo os aminoácidos que
gina-se a partir da hidroxilação da fenilalani-
os produzem chamados de glicogênicos por
na.
este motivo. Alguns aminoácidos cetogênicos
A Figura 10-31 representa a esquema-
(fenilalanina, tirosina, triptofano, isoleucina e
tização das rotas de síntese dos aminoácidos.
teronina) podem ser utilizados como substra-
tos para a neoglicogênese além de produzir
acetil-CoA, sendo chamados, portanto, de
glicocetogênicos.
A Figura 10-30 demonstra a entrada
esquemática dos aminoácidos no metabolismo
energético.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 145

Figura 10-30 - Visão geral do metabolismo dos aminoácidos.

Figura 10-31 - Visão geral da síntese dos aminoácidos não-essenciais.

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 146

Metabolismo das Bases Ni- ta forma, um excesso de adenina e guanina na


alimentação resultará em uma excreção au-
trogenadas mentada de ácidos nucléicos, da mesma forma
que uma alimentação em excesso dos amino-
1. Metabolismo das puri- ácidos envolvido na síntese de purinas.
As purinas são convertidas em xanti-
nas na (a adenina, primeiramente em hipoxantina)
As bases nitrogenadas derivadas da que é convertida em ácido úrico pela enzima
purina (adenina e guanina) são sintetizadas a xantina-oxidase.
partir de um composto denominado 5- Uma enzima reguladora, a hipoxanti-
fosforribosil-1-pirofosfato (PRPP) que cor- na-guanina-fosforribosiltransferase (HG-
responde a uma molécula de ribose-5-fosato PRTase) catalisa a recuperação de adenina e
(formada no atalho das pentoses, durante o hipoxantina (derivada da guanina) para uma
metabolismo da glicose) adicionada de dois síntese “de novo” de IMP, GMP ou AMP,
fosfatos inorgânicos (pirofosfato) no carbono conforme haja a necessidade celular para a
1 da ribose pela ação da enzima PRPP- síntese de ácidos nucléicos ou outras funções
sintetase. dos nucleotídeos.
O produto final desta via glicolítica, O acúmulo de ácido úrico no organis-
gera um nucleotídio denomininado inosina- mo (hiperuricemia) é observado quando há
monofosfato (IMP) que é a base para a sínte- uma hiperatividade enzimática da enzima
se de adeninosina-monofosfato (AMP) e PRPP-sintetase ou por diminuição da ativida-
guanosina-monofosfato (GMP). Esses nu- de da HGPRTase, levando, em ambos os ca-
cleotídeos vão ser convertidos em ATP e GTP sos, a uma superprodução de ácido úrico.
que são utilizados na síntese de DNA ou em Uma outra condição patológica de hi-
funções energéticas celulares. peruricemia é observada quando há a diminu-
Participam desta síntese a vitamina á- ição da atividade da enzima glicose-6-
cido fólico, que fornece dois carbono para fosfatase que possibilita a liberação de glico-
fechar a molécula de inosina que é “montada” se do fígado para o sangue, fazendo com que,
na ribose-5-fosfato a partir dos aminoácidos desta forma, haja um excesso de glicose hepá-
não-essenciais glicina, glutamina e asparta- tica aumentando a síntese de pentoses e, con-
to e CO2. sequentemente, a de ácido úrico.
As enzimas que catalizam estas rea- Todas essas alterações enzimáticas são
ções estão presentes no citoplasma da maioria hereditárias e caracterizam uma doença
das células, permitindo uma independência metabólica denominada gota, que caracteriza-
celular quanto à necessidade da ingestão de se por acúmulo de ácido úrico nas
ácidos nucléicos na dieta. Uma exceção im- articulações levando a um processo
portante está na incapacidade da hemácia de inflamatório doloroso que é reversível
sintetizar purinas devido não possuir as enzi- mediante a diminuição de alimentação rica
mas necessárias, apesar da grande quantidade em material celular (carnes vermelhas,
de ribose-5-fosfato produzida no desvio das principalmente) e uso de medicamentos
pentoses da via glicolítica. bloqueadores da síntese de ácido úrico.
Devido a esta independência celular
na síntese de purinas, a adenina e a guanina 2. Metabolismo das pirimi-
proveninente da alimentação são transforma-
das, ainda na mucosa intestinal, em ácido dinas
úrico que é excretado nas fezes sem que haja A partir dos aminoácidos não-
a sua absorção intestinal. Porém, esta não é a essenciais glutamina e aspartato, há a sínte-
via principal de excreção, uma vez que grande se de ácido orótico, que combina-se com o
parte das purinas é absorvida para o fígado e, PRPP fornecendo a uridina-monofosfato
este sim, encarrega-se de convertê-las em (UMP) formando, posteriormente, UTP que
ácido úrico e excretá-lo por via urinária. Des- pode ser convertido em citidina-monofostato

Ricardo Vieira
Fundamentos de Bioquímica – Capítulo 10 - Metabolismo 147

(CTP) pela adição de glutamina. O UMP pode Assim sendo, a ingestão de pirimidi-
ser convertido em timidina-monofosfato nas na alimentação leva à conversão hepática
(TMP) e este em TTP. Esses nucleotídeos são de citosina e uracila no aminoácido não-
utilizados para a síntese das bases nitrogena- codificado β-alanina, um importante precus-
das uracila, citosina e timina, que fazem parte sor da coenzima-A junto com a vitamina áci-
das moléculas de DNA e RNA, ou são utili- do pantotênico, enquanto que a timina é con-
zadas no metabolismo energético celular. vertida em β-amino-iso-butirato, um pre-
Da mesma forma que as purinas, essas cussor da neoglicogênese e que pode ser ex-
bases nitrogenadas possuem uma independên- cretada na urina.
cia celular de substratos alimentares (a exce- Na Figura 10- 32 está representado um
ção da ribose, é claro, considerando-se sua esquema relatando as principais vias do meta-
origem a partir da glicose). bolismo das bases nitrogenadas.

Figura 10-32 - O Metabolismo das bases nitrogenadas está relacionado com a formação de produtos de excreção
(ácido úrico) ou de intermediários metabólicos (β-alanina e ácido β-NH2-isobutírico).

Ricardo Vieira
O que é vida?
Ricardo Vieira
Professor de Bioquímica - Universidade Federal do Pará
E-mail: jrvieira@ufpa.br

O conceito de vida não é privativo da ciência, da mesma forma que não pode a religião ou a filosofia
requerer a propriedade deste conceito. Em ciência, instrumento de estudo dos fenômenos naturais
abordados neste Curso, não importa saber o que é a vida como um conceito pronto, mas sim estudar e
discutir o que é a vida, baseado em evidências comprovadas e reproduzíveis pelos cientistas.
Muitos cientistas pensaram nisto antes de se chegar ao estágio atual do conhecimento científico, por
isso é indispensável saber o papel desempenhado por esses grandes nomes dentro desse contexto em que a
vida também está inserida, a ciência.

A evolução científica do conceito de vida


Idade Média (Século V a XV)
• Poder religioso-medieval estabelece uma limitação criativa de ordem política e cultural
(ʺ1000 anos de escuridãoʺ).
• O imaginário popular adota conceitos excêntricos para a origem da vida.
• A abiogênese torna-se a única forma não-bíblica de se explicar a origem da vida a ser
disseminada na antiguidade clássica.
• A igreja católica impõe à força seus conceitos, porém ignora a abiogênese, talvez por
achá-la inofensiva ou por considerar que o poder divino criativo possa continuar se
manifestando. Cavaleiro Medieval

A explosão de idéias do Século XVI a XVIII


• A teoria da geração espontânea ganha grande divulgação dentre os meios
científicos.
• Francesco Redi (1621 - 1697) combate a teoria da geração espontânea provando que
as moscas precisam que outras moscas para que surjam novas moscas.
• Lazaro Spalanzani (1729 - 1799) demonstra que é necessário contato com o ar para
que se apodreça material orgânico fervido previamente sugerindo a natureza
biológica da putrefação dependente de fatores não visíveis presentes no ar.
Experimento de Redi

• Em 1543, Nicolau Copérnico contradiz a Igreja e demonstra que a Terra não é


o centro do Universo.
• Isaac Newton, em 1665, estabelece a lei da gravitação universal, (fundamento
das modernas teorias da origem do universo).
• Lineu cria o sistema de classificação das espécies em 1735.
• Lavosier (1743-1794) cria a química moderna (da bioquímica atual).
• Em 1618, os alemães dominam a tecnologia de aparelhos ópticos e inventam o
primeiro microscópio.
• Robert Hooke visualiza a célula em 1665.
• Leeuwenhoek, em 1674, descobre a existência dos espermatozóides e em 1683 Isaac Newton
demonstra a existência de vida microscópica.
O que é vida? 2

• Em 1637 e 1641, René Decartes publica o trabalho que


fundamenta o pensamento científico atual, criando o
método científico que se baseia na observação e
comprovação seguindo rígida interpretação e
teorização do fenômeno observado.
• Durante esse período, muitos cientistas tiveram que
abdicar de seus pensamentos para não serem René Decartes
Antoine-Laurent Lavosier condenados em tribunais da inquisição.

Século XIX: a ciência emite conceitos de vida


• Theodore Schwan & Matthias Schleiden, em 1839,
estabelecem os fundamentos da Teoria Celular: todos
organismos são feitos de células; as células são as unidades
básicas da organização dos seres vivos; cada célula
desenvolve-se e funciona de maneira independente.
• Robert Virchow, em 1850, consolida a teoria celular: “omnis
celluae e celluae”: toda célula provém de uma célula pré-
existente.

Schwan & Chleiden


• Em 1858 o monge austríaco Gregor Mendel
publica seus experimentos de hibridização com
ervilhas realizados no jardim de seu mosteiro e
conclui existirem fatores hereditários que
segregam independentemente nas gerações. Seu
trabalho não é compreendido pela comunidade
científica devido ao complicado fundamento
matemático e a não existência de evidências de
quais seriam esses fatores hereditários.
Robert Virchow
Gregor Mendel
• Charles Darwin e Alfred Wallace, em 1858,
elaboram, independentemente, a teoria da Evolução
por Seleção Natural. Darwin publica o livro ʺA
origem das espéciesʺ após 30 anos de estudos e
reflexões.
• Em 1866, Ernest Heinrich Haeckel publica seus
trabalhos estabelecendo o Reino Monera para as
bactérias e afirmando que as células primordiais no
início dos tempos eram agrupamentos
protoplasmáticos (a quem denomina Protamoeba
Charles Darwin & Alfred Wallace primitiva) e que sua formação ainda ocorre em locais
• Thomas Henry Huxley (apelidado de o onde não há competição entre os seres primitivos e
“bulldog de Darwin” devido a sua rígida os mais avançados. Era o ressurgimento da
defesa às teorias da evolução) descreve uma abiogênese em formado científico adequado às
forma protoplasmática primitiva encontrada modernas teorias da evolução.
no lodo de fossas abissais

Ricardo Vieira
O que é vida? 3
conservado em álcool e a denomina Bathybius haeckleli em homenagem a Haeckel.
• Tem início a ʺonda Bathybiusʺ que trás à tona a discussão da possibilidade da vida
poder surgir espontaneamente a partir de reações químicas.
• Em 1873 tem início a Expedição Challenger que viaja pelo mundo colhendo e
analisando amostras do lodo de fossas abissais ainda frescas e comprova que
Bathybius não passa de um artefato produzido pelo álcool utilizado como
conservante por Huxley.

Thomas Henry
Huxley

A expedição Challenger (1873 - 1875)


O Século XX: abiogênese, de novo
• Uma nova abordagem para a abiogênese
surgiu da demonstração que a vida é
fruto espontâneo de reações químicas a
partir de elementos químicos
fundamentais existentes em todo o
universo conhecido.
• Em 1929, John Haldane e Aleksander
Oparin comprovaram que a atmosfera
primitiva não continha O2 mas elementos
que hoje não mais existem na atmosfera
atual.
• Harold C. Urey, em 1952, sugeriu que a
atmosfera primitiva tinha a mesma
composição da poeira estelar (H2, NH3,
CH4, H2O).
• Em 1953, Stanley Miller, estudante de
Urey, criou um aparato para síntese de
compostos orgânicos a partir de
Aparato de Miller Stanley Miller
elementos da atmosfera primitiva.
• Esta teoria de que a vida surgiu de uma ʺsopaʺ cósmica única, é radicalmente diferente da teoria de
Hackel, pois é necessário que haja condições atmosféricas próprias (que não mais existem) e um
tempo de bilhões de anos até um estágio de organização molecular que suporte a vida.
• Somente com a utilização do Carbono14 como método de datação é que se pôde estabelecer a idade
tempo provável da Terra (cerca de 4,5 bilhões de anos) e esta teoria ganhou força dentro do meio
científico.

Ricardo Vieira
O que é vida? 4

O Século XX: o século da genética


• O século XX trás como sua marca registrada o surgimento e incrível
expansão de uma ciência revolucionária que ousa entender e até recriar a
vida: a genética.
• Em 1900, de Vries, Correns e Tchermann redescobrem o trabalho de
Mendel.
• Alfred Stustevant e Thomas Morgan iniciam os mesmos estudos de
Thomas Morgan Rosalind Franklin Mendel utilizando com Drosophila melanogaster como modelo e chegam às
mesmas conclusões mas sugerem a existência de ligação gênica.
• O mapeamento gênico torna-se possível através de estudos de ligação,
antes mesmo de ser decifrado o código genético.
• Após a comprovação de que o DNA é o material genético em 1944 por
Avory, vários cientistas iniciam uma corrida para a descoberta da
estrutura de sua molécula.
• Linus Pauling estuda a composição química. Rosalind Franklin e Maurice
Maurice Wilkens Linus Pauling
Wilkens descrevem a forma em dupla hélice. Mas é o trabalho teórico de
Watson e Crick que em 1953 estabelece a estrutura da molécula de DNA
e abre caminho para a moderna genética molecular que revoluciona a
ciência criando novos paradigmas e levantando questões éticas.
• A vida passa a ser estudada em experimentos que vão do
seqüenciamento do genoma de vários seres vivos, inclusive o homem até
a clonagem de organismos complexos, inclusive o homem.

Watson & Crick

E o Século XXI?: uma opinião pessoal


• As técnicas de biologia molecular prometem ser a ferramenta ideal para desvendar o funcionamento dos
organismos vivos.
• Bem distante de se estabelecer novos conceitos para a vida, a ciência deve dissecar as moléculas e
encontrar as respostas para descrever como a vida funciona. A molécula alvo é o DNA de onde se pode
tirar conclusões baseadas na simples decodificação de sua seqüência e o estudo de como o gene se
expressa e regula.
• O estudo do genoma favorecerá a compreensão de vários mecanismos biológicos e os métodos de
clonagem e de DNA recombinante trarão a comprovação das novas teorias formuladas.
• A ciência deve superar os problemas éticos para se estabelecer como testemunha de como a vida é
gerada.
• A busca incessante por vida extraterrestre em planetas vizinhos, como Marte, deve prosseguir por todo
este século. Os resultados são imprevisíveis, podendo modificar drasticamente os conceitos atuais de
vida, ou, simplesmente, mantê-los.
• Entretanto, independente do progresso científico, a resposta para a pergunta ʺo que é vida?ʺ continuará
com suas múltiplas respostas. A diferença é que a resposta da ciência deverá estar bem mais
fundamentada.
• E você? Já pensou sobre o assunto?

Ricardo Vieira
A origem das biomoléculas
Ricardo Vieira
Professor de Bioquímica - Universidade Federal do Pará
E-mail: jrvieira@ufpa.br

A
pesar de frágil as evidências em Tabela 1 – Abundância relativa de elementos
virtude do insignificante número importantes para a vida em número
de planetas estudados (somente a de átomos por cada 1.000 átomos de
Terra!), a vida terrestre se apóia na existência de carbono.
água disponível em estado líquido, além de Elemento Abundância em Abundância no
temperatura compatível com o estágio de vida e organismos universo
de elementos químicos essenciais como Hidrogênio 80 – 250 10.000.000
hidrogênio, carbono, nitrogênio oxigênio, sódio, Carbono 1.000 1.000
magnésio, fósforo, enxofre, potássio, cálcio, Nitrogênio 60 – 300 1.600
manganês, ferro e zinco (Tabela 1). Oxigênio 500 – 800 5.000
O clássico experimento de Miller (Figura Sódio 10 – 20 12
1), em 1953, demonstrou a possibilidade da Magnésio 2- 8 200
formação de aminoácidos, carboidratos e Fósforo 8 – 50 3
nucleotídeos a partir de uma mistura de gás Enxofre 4 – 20 80
hidrogênio (H2), gás nitrogênio (N2), dióxido de Potássio 6 – 40 0,6
carbono (CO2), água (H2O), amônia (NH3) e Cálcio 24 – 50 10
metano (CH4) submetido a descargas elétricas e Manganês 0,25 – 0,8 1,6
radiação ultravioleta em temperatura compatível Ferro 0,25 – 0,8 100
à provável atmosfera primitiva terrestre. Esta Zinco 0,1 – 0,4 0,12
suposta composição química mínima é
(Fonte: CAMPBEL, 1995 – p.13)
perfeitamente plausível uma vez que tais
componentes encontram-se disponível em todo o
O experimento de Miller não se resume
universo e, certamente, deveriam estar presentes
em demonstrar a formação de compostos
em uma Terra “recém-nascida” (há torno de 4,6
orgânicos apenas de maneira aleatória, pois, se
bilhões de idade), conforme sugerido por John
assim fosse, a probabilidade de as reações
Haldane e Aleksander Oparin em 1929 e por
químicas se repetissem de maneira ordenada
Harold C. Urey em 1953.
(como ocorre nos seres vivos) seria quase zero
É claro que qualquer outro composto
tendo em vista as inúmeras combinações
químico presente poderia favorecer combinações
possíveis entre os átomos e moléculas. Mas,
diferentes gerando produtos ainda mais
diferente de uma reação apenas aleatória, as
complexos. O tempo de cerca de um bilhão de
moléculas primordiais têm que adquirir
anos disponível desde a origem da Terra até o
propriedades de autocatálise para poder justificar
surgimento da vida, há 3,4 bilhões de anos,
o prosseguimento das reações químicas em um
permitiram que, aleatoriamente, tais compostos
sentido: o da vida.
complexos fossem formados.
Parece difícil acreditar que algo tão
Desta forma, é viável a teoria que se uma
simples advindo de um evento aleatório poderia
molécula orgânica formada espontaneamente
gerar a diversidade de vida de nosso planeta. De
tivesse a propriedade de catalisar a síntese de
fato, os nucleotídeos podem se polimerizar de
outras moléculas idênticas, em algum momento o
maneira espontânea em reações químicas em
agrupamento de tais moléculas poderia levar à
condições semelhantes à atmosfera primitiva,
reprodução de um conjunto de moléculas com
porém os aminoácidos não têm essa capacidade
características químicas semelhantes, onde o
nem os carboidratos.
equilíbrio químico formado entre seu processo de
síntese e degradação favoreceria a multiplicação
de tais conjuntos de moléculas.
A origem das biomoléculas 2

Figura 1 – O aparato de Miller: vapor d’água misturado a componentes


elementares no universo sob a ação de descargas elétricas
permite a síntese de moléculas orgânicas. Acima, o Dr.
Stanley Miller
Fonte: http://www.accessexcellence.com/WN/NM/miller.html

Hoje, sabe-se que as proteínas com função Com os trabalhos de Sidney Altman,
enzimática são os catalisadores biológicos por Thomas Cech, Francis Crik e Leslie Orgel (todos
excelência e a impossibilidade de serem ganhadores de Prêmio Nobel), tornou-se plausível
sintetizadas em condições primitivas é um a teoria de que uma molécula formada
empecilho para a elaboração de uma teoria que espontaneamente em condições primitivas
abrangesse a origem de um sistema biológico na pudesse autocatalisar a síntese de outras
ausência de tais enzimas. Somente com a moléculas, agora não mais randomicamente, mas
descoberta, em 1982, de que a enzima peptidil- organizadamente e de maneira idêntica (CECH,
transferase (que catalisa a ligação peptídica que 1986; LEWIN, 1986).
ocorre nos ribossomos durante a síntese protéica) Este mundo pré-biótico onde uma espécie
é uma molécula de RNA, pôde-se formular teorias de “sopa orgânica” fervilhava ao calor e descargas
mais consistentes. Vários estudos demonstram a elétricas e novas macromoléculas complexas que
presença dessas moléculas de RNA em outros se multiplicavam, agora poderia abrigar um
sistemas biológicos (p.ex.: em retrovírus), como sistema químico estável, assim que as condições
reguladores do processo de splicing da molécula de reação química da Terra permitissem (Figura
de RNAm ou até mesmo sintetizadas em 2).
laboratório com propriedades catalíticas, sendo Provavelmente, vários milhões de anos se
denominadas de ribozimas (Tabela 2). passaram até a organização de um sistema
micelar onde partículas lipídicas pudessem
Tabela 2 – Reações catalisadas por ribozimas proporcionar um microambiente aquoso diferente
Reação Ribozima do meio externo e as reações químicas pudessem
Formação de ligações RNA ribossomal ocorrer de maneira organizada.
peptídicas De fato, a propriedade apolar dos lipídios
Clivagem de RNA, ligação de é um trunfo especial neste período pré-biótico,
RNA Auto splicing de onde as moléculas podem experimentar uma
Clivagem de DNA RNA sorte de combinações que se adaptam ou não às
Splicing de RNA condições ambientais.
Ligação de DNA Assim, as moléculas de RNA que
Polimerização, fosforilação, RNA sintetizado conseguem catalisar sua própria síntese podem
aminoacilação e alquilação de in vitro ser selecionadas nessas microesferas lipídicas e se
RNA multiplicar em bloco, uma protocélula.
Isomerização (ligação C-C)
(Adaptado de ALBERTS et al., 1999, p. 241)

Ricardo Vieira
A origem das biomoléculas 3

Sidney Altman Thomas Cech Francis Crick Leslie Orgel


Figura 2 – A molécula de RNA com poder catalítico deve ter sido a primeira biomolécula a ter sido
sintetizada de maneira não randômica, o que garantiu a perpetuação das moléculas mais
estáveis durante milhões de anos de experimentação aleatória. Acima, os autores desta teoria
que supõe um “mundo de RNA” pré-biótico. (Fotos: www.nobel.se)

Esses microambientes ricos em Este processo primitivo de morte


macromoléculas favoreceram a ação catalítica selecionou os grupos de moléculas mais
dessas ribozimas sobre aminoácidos (gerados por adaptados quimicamente às condições ambientais
síntese randômica), gerando polipetídeos e a seleção natural passa a exercer sua ação
específicos que, em virtude de suas propriedades evolutiva permitindo a sobrevivência dos mais
químicas naturais, passam a exercer uma ação adaptados.
catalítica mais complexa e, em um frenético A seleção natural não é a essência da
processo de síntese orgânica, chegam a formar um evolução, mas o principal mecanismo pelo qual as
agrupamento de biomoléculas que reagem entre espécies hoje adquirem sua adaptabilidade e
si reguladas por um equilíbrio químico específico diversidade genética. Mesmo as biomoléculas
que, quando não adaptado às condições químicas primordiais estavam sujeitas às leis da evolução e,
do ambiente, levam ao decaimento das mesmo sem haver um objetivo específico a ser
concentrações dos substratos e aquele ambiente atingido, as biomoléculas foram diversificando-se
reacional deixava de existir. em protocélulas e criando massa crítica para o

Ricardo Vieira
A origem das biomoléculas 4
surgimento da primeira célula primitiva
inaugurando a vida em nosso planeta.
Um momento crítico para o surgimento
da primeira célula era a existência de estruturas
químicas que possibilitassem reações em
ambientes aquosos diferentes ao do meio externo.
Em 1972, o cientista americano Sidney Fox
demonstrou a formação de microesferas após o
aquecimento contínuo dos compostos orgânicos
do experimento de Miller (Figura 3).

Figura 3 – As microesferas de Sidney Fox e seu


descobridor, indicado para o Prêmio
Nobel por seu trabalho. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBERTS B, BRAY D, ALEXANDER J, LEWIS J, RAFF M,
(Fonte: http://www.siu.edu/~protocell ROBERTS K & WALTER P. Fundamentos da Biologia
Celular: uma introdução à biologia molecular da
célula. Artmed, Porto Alegre, 1999.
Tais teorias são fortemente apoiadas por nd
CAMPBELL MK. Biochemistry. 2 ed., Saunders College
experimentos científicos rigidamente controlados, Publishing. Philadelphia, 1995.
realizados por renomados cientistas e publicadas CECH TR. RNA as an enzyme. Sci. Amer. 255 (5), 64-75,
1986.
em revistas científicas especializadas com rígido LEWIN R. RNA Catalysis Gives Fresh perspective on the
corpo editorial. Todavia não são isentas de origin of life. Science 231, 545-546, 1986.

críticas, pois apenas pintam um cenário químico


provável para o surgimento da vida em tempos LITERATURA RECOMENDADA
ARTHUR W. The emerging conceptual framework of
imemoriais. evolutionary developmental biology. Nature, 415(14):757-
A comprovação poderá ser feita caso seja 764, 2002
CAIRNS-SMITH AG. The first organisms, Sci. Amer. 252 (6),
encontrado outros sistemas biológicos primitivos 90-100, 1985.
em outros planetas com condições afins às FUTUYMA DJ. Biologia Evolutiva. Sociedade Brasileira de
Genética/CNPq. São Paulo, 1993.
propostas pela ciência atual. Ainda assim, restará GODFREY J. The Wonderland of primordial life: Book
a dúvida: não poderia a vida ter sido originada review. Nature, 405, 619 - 620 (08 Jun 2000)
LENTON TM. Gaia and natural selection. Nature, 394, 439 –
aqui na Terra e enviada para esses ambientes 447, 1998.
extraterrestres através de meteoritos, por VIDEIRA AAP & EL-HANI CN. (Eds.) O que é vida? Para
entender a biologia do século XXI. Faperj/Editora
exemplo. Ou então o contrário: a vida teria Relume Dumará. Rio de Janeiro, 2000. )
surgido em outro lugar, que não a Terra e para cá
migrado em cometas ou meteoros?
REFERÊNCIAS DA INTERNET
• A Brief History of Biochemistry: http://www.wwc.edu
• Biologia Evolutiva
http://www.nceas.ucbs.edu/ãlroy/lefa/lophodon.html
• Entrevista com Dr. Stanley Miller:
http://www.accessexcellence.com/WN/NM/miller.html
• Microesferas de Sidney Fox:
http://www.siu.edu/~protocell/
• O que é vida? http://www.nbi.dk/~emmeche
• The Nobel Prize Oficial Site: http://www.nobel.se

Ricardo Vieira
O que é vida? 5

LITERATURA RECOMENDADA
VIDEIRA, A.A.P & EL-HANI, C.N. O que é vida? Para entender a biologia do século XXI. Faperj - Editora
Relume Dumará. Rio de Janeiro, 2000.

INTERNET
O que é vida? http://www.nbi.dk/~emmeche

Biologia Evolutiva: http://www.nceas.ucbs.edu/ãlroy/lefa/lophodon.html

Carta de Thomas Huxley sobre a inexistência de Bathybius - Nature (August 1879):


http://aleph0.clarku.edu/huxley/UnColl/Nature/Rep-BAAS.html

The Challenger Expedition: http://www.oceansonline.com/challenger_ex.htm

Entrevista com Dr. Stanley Miller: http://www.accessexcellence.com/WN/NM/miller.html

Microesferas de Sidney Fox: http://www.siu.edu/~protocell/

Ricardo Vieira

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