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Absolvição – Prova ilícita – Ingresso em residência sem mandado –

Guarda de drogas.

Processo n° 2004.001.099925-1

Sentença

BRUNO, qualificado nos autos, está sendo processado como autor do crime consistente em ter em
depósito substância entorpecente, sem autorização legal, pois que foi preso em flagrante, nesta
cidade, na Rua Caruaru, na manhã de 22 de agosto último, com quarenta e oito gramas de cocaína.

A denúncia foi ofertada com lastro em inquérito policial, cujas peças principais são o auto de
apreensão de fl. 07, o auto de prisão em flagrante de fls. 02c/3 e o laudo prévio de fl. 08,
complementando-se os aspectos técnicos e documentais com o laudo definitivo de exame em
substância de fl. 40. A folha penal não foi entranhada.

O réu foi interrogado consoante o termo de fls. 41/2, tendo negado a prática do fato que lhe foi
imputado. As alegações preliminares estão às fls. 46/7 e a denúncia foi recebida pela decisão de fl.
54.

A instrução criminal com produção de prova oral está retratada na assentada de fl. 72, com a
inquirição das testemunhas arroladas pelas partes.

As derradeiras alegações do Ministério Público encontram-se às fls. 84/8, propugnando pela


procedência da pretensão deduzida nos termos da denúncia.

A Defesa se manifestou às fls. 92/102, com pedido de absolvição apoiado na convicção de não
cometimento do delito.

É o relatório.

Passo, pois, a decidir depois de cuidadoso exame.

Do crime da lei de entorpecentes

Trata-se da atribuição a BRUNO do crime previsto nos artigo 12 da Lei n° 6.368/76, na modalidade
de ter em depósito, ilicitamente, substância entorpecente.

Com efeito, sobre a existência da indicada infração penal pode-se desde logo afirmar, à vista do
resultado do exame realizado no produto apreendido, que este é de fato cocaína, conforme
detectado pelo laudo de fl. 40.

Assim, a se concluir pela verificação da conduta descrita no tipo da lei contra as drogas, assentada
estará a premissa de que a substância enquadra-se como entorpecente, sendo de se exigir
autorização legal ou regulamentar para excluir-se a adequação típica objetiva, autorização que não
existe em concreto.

Todavia, o ato de ter em depósito a substância, imputado ao réu, não ficou seguramente
demonstrado nos autos pela prova testemunhal, como a Defesa salientou em alegações finais.

Com efeito, dois policiais foram ouvidos como testemunhas, arrolados pela acusação pública,
levando-se em conta as precárias informações contidas no auto de prisão em flagrante. Ambos
disseram que a prisão de BRUNO foi fruto de operação policial de repressão ao tráfico de drogas,
naquela manhã, no Morro da Fé. Afirmaram que mais cedo houve troca de tiros entre traficantes e
policiais e que em razão disso resolver vistoriar o lugar. Disseram, também, que na noite anterior
teria havido baile funk e que era comum que traficantes dormissem na casa de namoradas. Assim,
os policiais observaram quando uma menina deixou uma das casas com ar de quem havia acabado
de acordar. Aproveitaram-se disso e entraram na casa, encontrando BRUNO. Este, por sua vez, foi
persuadido a indicar o lugar onde escondia cento e sessenta envelopes de cocaína, na calha, entre o
teto e a parede, lugar inacessível a ponto de os próprios policiais terem dito que sem a ajuda do réu
não encontrariam a droga. Esta é a síntese das declarações de JOÃO e JOSÉ (fls. 78/81).

A versão do réu é de que estava na casa da namorada e foi abordado pelos policiais. Disse que foi
agredido e ameaçado e concluiu afirmando que não havia droga alguma. As testemunhas arroladas
agredido e ameaçado e concluiu afirmando que não havia droga alguma. As testemunhas arroladas
pela Defesa e ouvidas em juízo confirmam a agressão, embora suas declarações apresentem as
discrepâncias apontadas pelo Ministério Público em razões finais (fl. 87).

Ao fim da instrução criminal o juízo depara-se com versões excludentes que retratam o mesmo
recorte da realidade.

Vale dizer, antes de qualquer coisa, que nenhuma credibilidade há de se sustentar a priori. A
dúvida é relevante e impõe cautela.

Quando o Ministério Público contesta a versão das testemunhas arroladas pela Defesa, fundamenta
a contestação na confissão extrajudicial (fl. 87), que de plano deve ser rejeitada. As declarações do
suspeito em sede de inquérito policial, sem assistência de Defensor, sequer servem como indício,
menos ainda como prova.

Ninguém pode ser julgado por morar ou transitar em área periférica. A prova do fato imputado é o
que importa para avaliar a responsabilidade penal do processado.

Convém frisar que muitas vezes uma suposta confissão do agente aos autores da prisão,
informalmente, tranqüiliza a consciência dos operadores jurídicos - especialmente a de juízes e
promotores de justiça - quando há deliberação pela condenação apesar do caráter duvidoso das
provas e da peremptória negativa do réu, em juízo. Ora, que garantias tem o juiz de que a suposta
confissão realmente ocorreu? A lhe conferir validade, malgrado exista alternativa igualmente
convincente, em sentido contrário ao da acusação, estaríamos transferindo o poder de julgar aos
policiais, sem processo, informação, defesa e contraditório. É evidente que algo assim não poderá
ter validade social ou jurídica!

A versão apresentada pelo processado, no sentido de não ser o guardião ou depositário das drogas,
é plenamente verossímil e somente provas cabais de que ele estava com a substância entorpecente,
para fins de venda, poderia validar a pretensão de punição.

Esta prova não foi colhida acima de qualquer dúvida razoável.

O que fica para análise como evidência são os depoimentos dos policiais.

Com efeito, os policiais confessam o ingresso em casa alheia, sem ordem judicial. Afirmam que este
ingresso fundamentou-se em suspeita. O ponto chave da ação policial e da suposta prova derivada
desta ação reside em saber se havia "fundada suspeita" para ingresso dos policiais na residência da
namorada do acusado!

Em que pese a péssima impressão deixada pela namorada do acusado, quando ouvida em juízo, o
certo é que são os próprios policiais que informam o critério da "fundada suspeita": traficantes
pernoitam na favela, depois dos bailes; como a moça foi vista saindo de uma casa, pela manhã, com
ar sonolento, presumiram que dormia com alguém e, presumiram mais, que este alguém era
traficante!

A jovem deixou a porta de casa aberta e a partir das mencionadas presunções os policiais sentiram-
se autorizados a entrar na casa. Nela encontraram o réu. BRUNO foi revistado e nada havia com ele
ou em lugar visível aos policiais. Ainda sem questionar o ingresso na casa - à qualquer título
inválido -, surge a espontânea decisão de BRUNO de mostrar aos policiais onde guardava quarenta
e oito gramas de cocaína! A pergunta que deve ser feita é a seguinte: por quê alguém que está na
casa da namorada, é surpreendido pela polícia e não é visto com drogas ou armas,
"espontaneamente" revela onde estes mesmos policiais poderiam encontrar cento e sessenta
envelopes de cocaína?

A única resposta plausível foi apresentada pelas testemunhas arroladas pela Defesa: se havia
drogas na casa, o acesso a elas somente foi possível porque o acusado foi constrangido!

Sabe-se, pelas declarações dos policiais (fls. 80/1) que estes não encontraram a droga sem a
colaboração do réu. A interrogação irrespondível consiste em determinar a motivação da
"confissão". É possível configurar outra hipótese: havia drogas na casa e o réu sabia disso. Ele,
BRUNO, não morava na casa. Não há controvérsia a respeito, haja vista as uníssonas declarações
das testemunhas arroladas por ambas as partes. Tratava-se da casa da namorada (ANA CLÁUDIA),
que diferentemente da prima (MADALENA - fl. 75), não trabalha e não estuda. ANA CLÁUDIA não
trabalha, não estuda, mora em anexo à casa da avó. Por quê as drogas não seriam dela? Por quê,
afinal, excluir de plano sua responsabilidade?
afinal, excluir de plano sua responsabilidade?

A realidade é que sequer é possível afirmar que havia drogas na casa.

Os profissionais do Direito sabem que o ingresso em casa alheia depende de autorização do


morador ou ordem judicial, ressalvadas as hipóteses expressamente citadas na Constituição da
República. Uma das ressalvas, invocada constantemente, é a de flagrante delito.

É razoável admitir que policiais envolvidos em troca de tiros com traficantes tentem prender os
traficantes no lugar onde estes buscam esconder-se. A lei permite o ingresso em residência alheia
nestas circunstâncias e nesse ponto houve recepção da norma constitucional.

A hipótese trazida a julgamento, porém, é outra. O tiroteio havia cessado, sequer desconfiava-se
que algum dos atiradores escondera-se na casa de ANA CLÁUDIA, e o ingresso nesta residência foi
fruto, exclusivamente, da suspeita não fundamentada previamente de que a jovem parecia
"namorada de traficante"!

Isso é inaceitável!

Tudo o que acontece em uma residência, em semelhantes circunstâncias, é duvidoso. Havia


drogas? Pertenciam ou estavam sob a guarda de BRUNO? Pertenciam ou estavam sob a guarda de
ANA CLÁUDIA? O local onde supostamente estavam guardadas foi indicado "espontaneamente"?
Ou o foi mediante tortura?

O erro inicial (flagrante, quanto ao procedimento) contamina toda a ação e as evidências que dela
decorrem. Qualquer resposta - afirmativa ou negativa - às interrogações anteriores é possível,
todavia não é confiável.

O desprezo à Constituição da República há de ser repudiado. Aceitar a violação à Constituição


como método de "combate" (controle) à criminalidade de qualquer natureza, ainda que violenta e
associada ao tráfico de drogas, corresponde a assumir a bandeira dos próprios traficantes e
enfrentá-los fora do terreno da legalidade e da ética. O Estado está proibido de agir assim!

Estes são os mesmos fundamentos da decisão proferida no processo 2004.001.087658-0 (réu


PEDRO), a requerimento do Ministério Público. Defender a Constituição da República é dever dos
que são responsáveis por julgar as pessoas acusadas da prática de crimes.

Uma última advertência, que remonta ao falecido Ministro e jurista FRANCISCO DE ASSIS
TOLEDO (Princípios Básicos de Direito Penal): semelhante decisão não pode ser confundida com
estímulo à criminalidade. Pelo contrário, a garantia da Constituição da República é também
garantia dos interesses vitais de todas as pessoas, muitas vezes afetados pela prática contínua de
delitos violentos. O real significado desta sentença é bastante simples: é dever do Estado fazer o
que estiver a seu alcance para controlar (e evitar) a prática de crimes. Tudo, porém, nos limites da
estrita legalidade e em conformidade à Constituição.

Como não foram produzidas provas, salvo aqueles de origem ilícita por força de indevido ingresso
em residência alheia, o acusado deve ser absolvido.

Posto isto, julgo improcedente a pretensão deduzida na inicial e absolvo BRUNO, com fulcro no
artigo 386, inciso VI, do Código de Processo Penal.
Sem custas.
Expeça-se imediatamente Alvará de Soltura, intimando-se da sentença o acusado.
Anote-se e comunique-se.
Transitada esta em julgado, dê-se baixa, procedendo-se em conformidade com o disposto no artigo
40 da Lei n. 6.368/76.
Após, arquivem-se.

P. R. I.
Rio de Janeiro, 17 de dezembro de 2004.

GERALDO PRADO
Juiz de Direito

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