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OS DIREITOS HUMANOS E OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS.

por Carlos Weis1

1 - Introdução

O final do século XX revelou ao Direito o desenvolvimento de duas importantes


teorias, matizadas pela noção comum da coletivização dos conflitos e pela preocupação em
proteger interesses pulverizados pela sociedade ou por parcelas sociais. De um lado, a
evolução dos direitos humanos privilegiou sua indivisibilidade, interdependência e
complementariedade e induziu à criação de novos direitos híbridos, decorrentes da superação
da distinção absoluta entre direitos civis e políticos e direitos econômicos, sociais e culturais.
Além disso, novos direitos humanos vêm sendo reconhecidos, em atenção à preocupação com
a qualidade de vida no planeta, o desenvolvimento sustentado e integrado da espécie humana
e a preservação da natureza. De outro lado, a teoria dos interesses transindividuais, como
superação da doutrina individualista do processo, propiciou uma nova categorização de
direitos e interesses e sua justiciabilidade, antes inimaginável.

A raiz comum de ambas as doutrinas permite uma aproximação que as beneficia e


enriquece. No caso dos direitos humanos, a classificação legal do artigo 81 do Código de
Defesa do Consumidor2 facilita o reconhecimento de direitos ou interesses transindividuais
decorrentes do Direito Internacional, da Constituição Federal ou de normas inferiores, o que
reforça a noção da eficácia dos direitos econômicos, sociais e culturais e dos direitos humanos
globais e amplia as possibilidades de sua dedução em juízo.

Para a teoria dos interesses difusos e coletivos, a aproximação revela novas


possibilidades de sua exploração, para outros ramos que não os já consagrados direitos do
consumidor, meio-ambiente (que igualmente integra os direitos humanos) etc. A rigor, os

1
Carlos Weis é Procurador do Estadode São Paulo, membro e primeiro coordenador do Grupo de Trabalho de
Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo.
2
Lei Federal n. 8.078, de 11 de setembro de 1990.
”Art. 81 - A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo
individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único - A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza
indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza
indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por
uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.”
2
direitos humanos sociais sempre estiveram presentes no horizonte dos interesses difusos e
coletivos, como já dizia Mauro Cappelletti na década de setenta, em seu consagrado
Formazioni sociali e interessi di grupo davanti alla giustizia civile 3, em que destacava o caráter
difuso de direitos à saúde, à segurança social, a não sofrer discriminação, entre outros
encontrados nas Constituições democráticas modernas e em declarações internacionais dos
direitos do homem.

Pois bem. A fim de se encontrar os pontos de convergência dos dois sistemas, é


necessário analisar suas características fundamentais, do que se ocupa esse trabalho nos
próximos itens.

2 - As características dos direitos humanos contemporâneos

A construção moderna dos Direitos Humanos, propiciada pela cumulação de


tratados internacionais e pelo aprimoramento dos mecanismos de monitoramento e promoção,
implicou o surgimento de características próprias que iluminam sua compreensão,
direcionando a interpretação de suas normas no sentido de sua máxima eficácia.4

Assim, além das características tradicionalmente apontadas - inalienabilidade,


imprescritibilidade, irrenunciabilidade - surgem outras decorrentes da construção doutrinária e
mesmo pela expressa menção em textos normativos, das quais ora se faz um apanhado,
complementando os pensamentos desenvolvidos nos capítulos anteriores.

2.1 - Inerência

A noção de que os direitos humanos são inerentes a cada pessoa, pelo simples fato
de sua existência, decorre do fundamento jusnaturalista racional adotado pelo Direito
Internacional dos Direitos Humanos. Assim é que o Preâmbulo da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, logo no primeiro parágrafo, reconhece que a “dignidade inerente a todos os
membros da família humana e seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade,
da justiça e da paz no mundo.”5
3
O original italiano encontra-se publicado na Rivista di diritto processuale, Padova, CEDAM, v. 30, p. 361-402,
1975. Este trabalho utiliza a versão para o português, Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça
civil, trad. Nelson Renato Palaia Ribeiro de Campos, Revista de processo, São Paulo, v. 5, p. 128-159, jan./mar.
1977.
4
Para os fins deste trabalho, os direitos humanos são aqueles decorrentes das normas e princípios
constitucionais, acrescidos dos pertencentes ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, isto é, dos tratados
internacionais de que faça parte o Brasil, a teor do que permite o artigo 5o, § 2o, da atual Constituição Federal.
5
Esta passagem possui evidente conexão com a idéia de direitos humanos consolidada no século XVIII, como
mostra a seção I da Declaração de Direitos da Virgínia: “Todos os homens são por natureza igualmente livres e
independentes e têm certos direitos inatos que, quando entram no estado de sociedade não podem, por nenhuma
forma, privar ou despojar a sua posteridade, nomeadamente o gozo da vida e da liberdade, com os meios de
adquirir e possuir a propriedade e obter felicidade e segurança.” (Cf. tradução de Jorge Miranda, Textos históricos
3
O reconhecimento da inerência é premissa racional para a construção da noção de
direitos humanos, porque a existência do ser humano livre, anterior à criação do Estado,
permite a limitação da ação deste ou seu direcionamento para a criação de condições
favoráveis à vida em sociedade. E a transposição do pensamento liberal clássico para meados
do século XX se opera na medida em que aos documentos contemporâneos de direitos
humanos pouco importa o fundamento da inerência, mas sim o seu papel de pressuposto
necessário para o desenvolvimento de um conjunto de regras que visam a condicionar a ação
do Estado em benefício do interesse individual ou coletivo.

Com o surgimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos, fruto da reiteração


dos tratados e a conseqüente especialização dos direitos e dos instrumentos de
implementação neles previstos, deu-se a consolidação de um sistema positivado de normas
de direitos humanos, não mais sujeitas, em sua interpretação e aplicação, à verificação de sua
correspondência aos direitos naturais do ser humano.

Daí que o reconhecimento do caráter inerente dos direitos humanos, atualmente


exerce a função de propiciar a constante alteração do sistema normativo dos direitos
humanos, sempre que se renovar o entendimento do que seja a “dignidade inerente a todos
os membros da família humana”. É dizer que neste campo do Direito, talvez mais do que
qualquer outro, a elaboração de suas normas tem em mente consolidar a noção atualizada da
dignidade fundamental do ser humano, fonte de seus direitos positivados, estabelecendo desta
forma um equilíbrio dinâmico entre direito natural e positivo.

Como conseqüência decorre o caráter não taxativo dos direitos humanos até agora
reconhecidos, eis que sendo inerentes aos seres humanos, em grupo ou individualmente, se
apresentam em constante mutação, acompanhando e interferindo na evolução social, regional
e global. Assim, ainda que os tratados internacionais tenham conteúdo obrigatório, gerando
direitos aos seus beneficiários, nada impede uma nova formulação, seja pela sua inclusão em
algum texto legal futuro, seja por via da interpretação das expressões empregadas.6

Vê-se então o surgimento de novos direitos, cuja titularidade extrapola os limites


individuais, para alcançar grupos determinados ou mesmo a humanidade toda.

2.2 - Universalidade

do direito constitucional, 2. ed. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1990. p. 31. A Declaração de Direitos
da Virgínia foi promulgada em 16 de junho de 1776.)
6
Vide a respeito os Pactos Internacionais em seu artigo 5o e, especialmente, o artigo 29, “c” da Convenção
Americana de Direitos Humanos. No mesmo sentido, a Constituição Federal de 1988 dispõe no artigo 5 o, § 2o, que
os direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados.
4
A concepção universal dos direitos humanos decorre da idéia de inerência, a
significar que estes direitos pertencem a todos os membros da espécie humana, sem qualquer
distinção fundada em atributos inerentes aos seres humanos ou da posição social que
ocupam.

O Direito Internacional dos Direitos Humanos adotou tal concepção, como


exemplifica o artigo 1o da Declaração Universal de 1948, prevendo que: “Todos os seres
humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos e, dotados que são de razão e
consciência, devem comportar-se fraternalmente uns com os outros”.

Nota-se claramente a fundamentação jusnaturalista de base racional, servindo de


alicerce para o que afirma na primeira parte do dispositivo, bem como para o que se seguirá
nos artigos seguintes. Tal concepção vem sendo reafirmada a cada momento, como se vê na
Proclamação de Teerã7, resultante da primeira Conferência Internacional dos Direitos
Humanos (1968) em que se afirma: “A Declaração Universal dos Direitos Humanos enuncia
uma concepção comum a todos os povos dos direitos iguais e inalienáveis de todos os
membros da família humana e a declara obrigatória para toda a comunidade internacional.”
(art. 2o).

Passados trinta anos, quando da segunda Conferência Internacional dos Direitos


Humanos (Viena, 1993), prevaleceu a concepção segundo a qual: “A natureza universal
desses direitos e liberdades não pode ser questionada.” No mesmo sentido, o item quinto da
Declaração originada daquele conferência dispõe que as peculiaridades regionais e nacionais,
os contextos histórico, cultural e religioso, ainda que importantes, não servem de obstáculo à
obrigação estatal de promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais, o que encerra a discussão do ponto-de-vista normativo, ainda que perdure o
debate nos campos teórico e político, o qual escapa ao objeto deste estudo.

O ponto de interesse aqui, se refere à confrontação da universalidade diante das


várias dimensões dos direitos humanos, a partir das observações de Norberto Bobbio, para
quem, em sua formulação liberal, a universalidade não se aplicaria aos direitos sociais e nem
mesmo aos direitos políticos, sendo válida apenas no caso das liberdades negativas.
Realmente, ao se retornar à formulação da universalidade contida na Declaração Universal
dos Direitos Humanos (“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e
direitos ...”), verifica-se que o modelo com o qual se trabalha é o do liberalismo, para o qual o
sentido da igualdade consistia na uniforme abstenção do Estado diante da esfera individual de

7
Proclamada em Teerã, em 13 de maio de 1968. Tradução não oficial de Antônio Augusto Cançado Trindade.
5
todo e cada ser humano, aqui desprovido de um sentido concreto de existência, tido como
mera formulação racional genérica e abstrata.

Ocorre, como afirma Louis Henkin, que a universalidade dos direitos sociais pode
ser entendida no contexto mais amplo da dignidade humana, a que toda pessoa tem direito.
Desta forma, ainda que aqueles direitos digam respeito somente a certos grupos sociais, isso
se deve ao fato de se almejar a garantia efetiva, e para todas as pessoas, de um nível de vida
condizente com aquele princípio moral universal.8 Em conseqüência, a promoção dos direitos
econômicos, sociais e culturais, com a adoção de políticas voltadas a determinados setores da
sociedade - atualmente denominados “grupos vulneráveis” - é condição necessária para o
respeito pleno da universalidade dos direitos humanos, os quais não se realizam integralmente
sem a adoção das medidas previstas nos documentos que compõem o Direito Internacional
dos Direitos Humanos. Não há mais como pensar em respeito aos direitos humanos sem que
o Estado tome as providências que lhe compete, em vista a assegurar a elevação das
condições de vida ao que se convencionou chamar de padrão mínimo de dignidade humana.

2.3 - Indivisibilidade e interdependência

As expressões “interdependência” e ”indivisibilidade” têm sido empregadas


reiteradamente por documentos internacionais e escritos sobre direitos humanos, tais como se
fossem sinônimos, o que se explica pelo desejo de limitar a possibilidade dos Estados
construírem interpretações restritivas dos direitos enunciados, alegando o cumprimento parcial
das normas internacionais sobre a matéria.

Assim é que a ONU, mesmo tendo editado dois pactos internacionais de direitos
humanos9, aparentemente separando os direitos humanos em duas classes, fez questão de
afirmar a concepção unitária já em 1968, na Conferência Internacional de Teerã. A
Proclamação resultante do encontro é enfática: “13. Como os direitos humanos e as liberdades
fundamentais são indivisíveis, a realização dos direitos civis e políticos, sem o gozo dos
direitos econômicos, sociais e culturais torna-se impossível.”

Nos anos setenta, resoluções das Nações Unidas reiteraram esta idéia, consolidada
no item quinto, parte primeira, da Declaração e Programa de Ação adotada pela Conferência
Mundial sobre Direitos Humanos (Viena, 1993), ao afirmar que: “Todos direitos humanos são
universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados.”

8
The age of Rights. New York: Columbia University Press. p. 32.
9
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos, ambos adotados pela Resolução n. 2.200-A (XXII) da Assembléia Geral das Nações Unidas em
16.12.1966 e ratificados pelo Brasil em 24.1.92.
6
A indivisibilidade, então, está ligada ao objetivo maior do sistema internacional de
direitos humanos, a promoção e garantia da dignidade do ser humano. Ao se afirmar que os
direitos humanos são indivisíveis, se está a dizer que não existe meio-termo: só há vida
verdadeiramente digna se todos os direitos previstos no Direito Internacional dos Direitos
Humanos estiverem sendo respeitados, sejam civis e políticos, sejam econômicos, sociais e
culturais. Trata-se de uma característica do conjunto das normas e não de cada direito
individualmente considerado. Como diz Dalmo de Abreu Dallari, “Não existe respeito à pessoa
humana e ao direito de ser pessoa se não for respeitada, em todos os momentos, em todos os
lugares e em todas as situações a integridade física, psíquica e moral da pessoa. E não há
qualquer justificativa para que umas pessoas sejam mais respeitadas do que outras.” 10

A interdependência diz respeito aos direitos humanos considerados em espécie, ao


se entender que um certo direito não alcança a eficácia plena sem a realização simultânea de
alguns ou de todos outros direitos humanos. E essa característica não distingue direitos civis e
políticos ou econômicos, sociais e culturais, pois a realização de um direito específico pode
depender (como geralmente ocorre) do respeito e promoção de diversos outros,
independentemente de sua classificação.

Neste sentido, é exemplar a menção contida no preâmbulo dos Pactos


Internacionais de 1966, a dizer que “em conformidade com a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, o ideal do ser humano livre, no gozo das liberdades civis e políticas e liberto
do temor e da miséria não pode ser realizado, a menos que se criem as condições que
permitam a cada um gozar de seus direitos civis e políticos, assim como de seus direitos
econômicos, sociais e culturais.”

A respeito, observa J.J. Gomes Canotilho que mesmo as liberdades negativas,


surgidas quando da formulação dos direitos humanos de matriz liberal, carecem da
concorrência de direitos econômicos, sociais e culturais para a sua realização máxima.
Criticando a “desesperada tentativa” de se fazer sobreviver os arquétipos liberais em face do
processo de objetivação e socialização dos direitos fundamentais, o constitucionalista
português promove uma adequação temporal daquela noção, ressaltando os seguintes
elementos: “(i) a efectivação real da liberdade constitucionalmente garantida não é hoje
apenas tarefa de iniciativa individual, sendo suficiente notar que, mesmo no campo das
liberdades clássicas (para já não falar dos direitos sociais, económicos e culturais) não é
possível a garantia da liberdade sem intervenção dos poderes públicos.(...); (ii) ‘o homem
situado’ não abdica de prestações existenciais estritamente necessárias à realização de sua

10
Viver em sociedade. São Paulo: Moderna. 1995. p. 13
7
própria liberdade, revelando, neste aspecto, a teoria liberal uma completa ‘cegueira’ em
relação à indispensabilidade dos pressupostos sociais e económicos da realização da
liberdade.”11

Tome-se como exemplo a liberdade de locomoção. Para sua concretização no


mundo moderno já não basta a abstenção estatal ou mesmo sua atividade repressora da
eventual turbação de terceiro, eis que as necessidades objetivas dos seres humanos implicam
o deslocamento rápido em grandes distâncias, não só no interesse próprio, mas como parte do
funcionamento de toda a sociedade, decorrendo o dever estatal de criar as condições para
que o direito se materialize. Além disso, faz-se necessário que as pessoas disponham de
meios materiais que as permitam exercer seus direitos, novamente a demandar ações estatais
voltadas à realização dos direitos sociais. Em ambos os casos, as liberdades negativas não
mais se afiguram isoladas, sua eficácia demandando uma série de providências estatais que,
de certo modo, anulam a clássica distinção entre as ‘famílias de direitos humanos’, como visto
no capítulo precedente.12

José Afonso da Silva avança sobre tal conceito, relacionando-o ao modelo


democrático instituído pela Constituição Federal de 1988. Assim, os direitos e garantias
previstos no artigo 5o da Carta Política - de natureza preponderantemente civil e política -
“estão contaminados de dimensão social”, o que opera a transição “de uma democracia de
conteúdo basicamente político-formal, para a democracia de conteúdo social, se não de
tendência socializante. Quanto mais precisos e eficazes se tornem os direitos econômicos,
sociais e culturais, mais se inclina do liberalismo para o socialismo.” E acrescenta: “O certo é
que a Constituição assumiu, na sua essência, a doutrina segundo a qual há de verificar-se a
integração harmônica entre todas as categorias dos direitos fundamentais do homem sob o
influxo precisamente dos direitos sociais, que não mais poderiam ser tidos como categoria
contingente.”13

Novamente fica evidente que os direitos sociais, voltados à criação de condições


mais igualitárias de vida, são a condição de verdadeira eficácia das liberdades clássicas e
vice-versa.14 Daí porque Paulo Bonavides associa tais direitos ao que chama de globalização
11
Direito constitucional. 5. ed. Lisboa: Livraria Almedina. p. 517.
12
A expressão é de Genaro R. Carrió (Los derechos humanos y su protección: distintos tipos de problemas.
Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1990. p. 26) e substitui, com vantagens, a já criticada idéia de “gerações de direitos
humanos”.
13
Curso de direito constitucional positivo, 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 182.
14
Sobre o tema, diz Máximo Pacheco G.: “En el proceso de progresiva internacionalización de la promoción,
garantia y protección de los derechos humanos, el Derecho Internacional no se ha limitado a encarar la promoción
de los llamados derechos civiles y políticos y a procurar su garantía y protección sino que ha dirigido su atención y
su conseguinte normatividad a los derechos económicos, sociales y culturales. Solo el reconocimiento integral de
8
dos direitos fundamentais, que se contrapõe à globalização política neoliberal. Diz o autor: “A
globalização política na esfera da normatividade jurídica introduz os direitos de quarta geração,
que aliás, correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado social. São direitos
de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo.
Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima
universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de
convivência.”15

Por isso, destaca Alejandro Artúcio que o caráter interdependente dos direitos
humanos implica que se deve conceder aos direitos civis e políticos e aos econômicos, sociais
e culturais a mesma atenção.16 Novamente, esta característica aponta para a atualidade dos
direitos humanos, afastando qualquer tentativa de priorização de uma ou outra classe de
direitos, o que, tanto quanto indesejável, violaria a lógica do sistema, eis que não há mais
dúvida de que as exigências das sociedades atuais implicam a criação de condições mesmo
para o exercício das liberdades negativas, caso ainda se entenda estas como
hierarquicamente prevalescentes sobre os direitos sociais.

Mais recentemente, a noção de interdependência foi enriquecida com o advento dos


direitos humanos voltados à proteção de bens de interesse de toda a humanidade, como ao
desenvolvimento sustentado, ao meio-ambiente sadio, ao patrimônio genético, à paz etc., que
visam a criar as condições de vida necessárias ao respeito dos demais direitos humanos.

2.4 - Transnacionalidade

Esta característica dos direitos humanos é bem resumida por Dalmo Dallari, para
quem “Os direitos fundamentais da pessoa humana são reconhecidos e protegidos em todos
os Estados, embora existam algumas variações quanto à enumeração desses direitos, bem
como quanto à forma de protegê-los. Esses direitos não dependem da nacionalidade ou
cidadania, sendo assegurados a qualquer pessoa.”17

éstos puede asegurar la existencia rela de aquellos ya que, sin la efectividad del goce de los derechos
económicos, sociales y culturales, los derechos civiles y políticos se reducen a meras categorías formales; y, a la
inversa, sin la realidad de los derechos civiles y políticos, sin la efectividad de la libertad, entendida en su más
amplio sentido, los derechos económicos, sociales y culturales carecen, a su vez, de verdadera significación.” (Los
derechos fundamentales de la persona humana. Estudios Básicos de Derechos Humanos, San José, C.R., v.2,
1995. p. 93).
15
Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 524.
16
Universalidad, indivisibilidad, e interdependência de los derechos económicos, sociales y culturales, y los derechos
civiles y políticos: breves nociones de los mecanismos de suoervisión a nivel universal y regional. In: SEMINÁRIO
SOBRE DERECHOS ECONÓMICOS, SOCIALES Y CULTURALES, Genebra: Comissão Internacional de Juristas,
1996. p. 19.
17
O que são direitos da pessoa. São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense, 1984. p. 22.
9
Realmente, a noção de que os direitos humanos acompanham o ser humano onde
estiver deriva da concepção jusnaturalista que neles vê a inerência acima tratada. Porém,
mesmo para quem entende o Direito apenas como fruto do Estado, o desenvolvimento do
Direito Internacional dos Direitos Humanos e a ratificação crescente dos principais tratados
internacionais pela grande maioria dos países acaba por conduzir à mesma conclusão, do
respeito aos direitos humanos em todo o globo.

Neste sentido, a Declaração e Programa de Ação adotados em Viena (1993), no


item 4 da Parte II - A, “recomenda vivamente que se empreenda um esforço coordenado no
sentido de estimular e facilitar a ratificação, adesão ou sucessão dos tratados e protocolos
internacionais de direitos humanos adotados no âmbito do sistema das Nações Unidas,
visando a torná-los universalmente aceitos.”

De fato, no mundo atual o impacto de violações a direitos humanos transcende a


órbita estatal, como no caso do vazamento radiativo de Chernobil, em que o silêncio das
autoridades soviéticas colocava em risco grandes populações escandinávas e dos países
baixos, ou mesmo a questão da destruição da Amazônia, o aquecimento global etc. Também
no campo dos direitos sociais, seu desrespeito em partes do globo provoca o surgimento de
migrações em direção aos países ricos, igualmente afetando sua estabilidade interna e mesmo
servindo de caldo de cultura para o ressurgimento de ideologias fascistóides e totalitárias.

3 - Interesses transindividuais: traços fundamentais18

Para proceder à aproximação das duas teorias, faz-se também necessário marcar
os dados essenciais dos interesses difusos e coletivos, que serão, a seguir, combinados com
as características dos direitos humanos contemporâneos, já traçadas no tópico anterior.19

O surgimento da teoria dos interesses transindividuais advém da preocupação com


a “questão social”, decorrente do surgimento da “sociedade de massa”, em que a maioria das
relações econômicas e políticas é marcada pelo desaparecimento da individualidade do ser
humano, diante da padronização dos comportamentos e das regras correspondentes. Na
realidade, a relação não mais se estabelece com o indivíduo, mas com grupos mais ou menos

18
É adotada aqui a terminologia eleita pelo Código de Defesa do Consumidor. Emprega-se então interesses
transindividuais ao invés de meta, pluri ou supra-individuais. Distingue ainda os interesses difusos dos coletivos,
não desconhecendo, porém, a ambigüidade terminológica da doutrina italiana, para a maioria da qual os dois
termos são sinônimos, ou mesmo a distinção entre ambas realizada por Luís Filipe Colaço Nunes (A tutela dos
interesses difusos em direito administrativo: para uma legitimação procedimental. Coimbra: Almedina, 1989. p.
31).
19
As questões típicas da processualística não serão objeto de debate neste trabalho, cujo objetivo é verificar em
que medida a classificação dos interesses ou direitos como difusos, coletivos ou individuais homogêneos se
adequa aos direitos humanos.
10
imprecisos de pessoas, todas unidas por se encontrarem na mesma situação, jurídica ou
fática. 20

Como reflexo dessa nova realidade social21, a concepção de que somente são
dedutíveis juridicamente as relações entre dois sujeitos de direitos e obrigações claramente
definidos não mais se aplica. Decorre que as relações jurídicas massificadas têm como um
dos pólos seres humanos agregados numa mesma categoria, grupo ou classe social, pouco
importando os traços que distinguem cada indivíduo, do que decorre a inadequação da
fórmula processual individualista, segundo a qual o sujeito de direitos é o titular da relação
jurídica material.

Como destaca Ada Pellegrini Grinover, um primeiro aspecto de distinção entre os


interesses coletivos e difusos e as relações jurídicas individuais é que o conjunto dos
interessados é pouco ou nada determinável, estando ligados por uma relação jurídica-base ou
mesmo sobre dados de fato.22 Neste sentido, são interesses coletivos aqueles em que o
conjunto de pessoas é identificado sob uma relação jurídica de base, entre si ou em face da
parte contrária. No caso dos interesses difusos propriamente ditos, o conjunto humano não
apresenta contornos nítidos, eis que o critério de união é uma mera situação de fato.

Mais além, a tutela estatal não poderia ignorar relações sociais que não se
adequassem ao modelo individualista, mas que continuavam a gerar conflitos sem solução.
Para tanto, surgiu a necessidade de se prestar atenção não mais no dado da titularidade do
direito, mas nos próprios interesses em discussão e sua relevância social, para encontrar outra
maneira de tutelá-los. Nestes casos, a relação entre o bem de vida e a pessoa se estabelece
não mais em vista de um indivíduo, mas de uma coletividade, no que definitivamente se afasta
do modelo tradicional, em que a titularidade do direito de exigir a prestação equivalia à da
relação jurídica material.23

Além da indeterminação dos sujeitos, os interesses transindividuais se distinguem


pela peculiaridade do objeto, que desde logo não se confunde plenamente com o interesse
público, o “bem comum” cujo titular é o Estado 24. Num sentido amplo, os interesses difusos, os

20
Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. A tutela jurisdicional dos interesses difusos. CONFERÊNCIA NACIONAL DA
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, 7., 1978.
21
Para dar uma idéia do fenômeno no Brasil, em 1960 cerca de 55% da população brasileira vivia no campo,
situação que se inverte e intensifica a partir da década seguinte. Em 1980, apenas 36% dos brasileiros viviam no
campo e as grandes regiões urbanas aglutinavam a maioria da população urbana. (fonte: IBGE).
22
Ob. cit., item 5.4..
23
Como destaca MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimidade para agir. 3. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994.
11
da “coletividade como um todo”, identificam-se com o “bem geral”. 25 Em regra, porém, dizem
respeito a certos grupos sociais, mais ou menos precisos, com o que se assemelham mais aos
“corpos intermediários”, a parcelas da sociedade que possuem interesses coincidentes ou não
com o todo.

Os interesses transindividuais possuem como elemento distintivo a indivisibilidade


de seu objeto, de modo que a pretensão não pode ser fragmentada pelos integrantes do grupo
que a pleiteia, o qual, da mesma forma, é de difícil determinação. Mas ainda que assim não
fosse, a providência pretendida não poderia ser adotada de modo fragmentado, individual. Isso
não se confunde com a eventual possibilidade de cada indivíduo ter uma prestação
individualizada, pois o interesse é coletivo diante da natureza da correspondente prestação e
não do desfrute que cada pessoa vai obter com a proteção do bem de vida.

Por fim, caracterizam os interesses difusos e coletivos a chamada “litigiosidade


intensa”, determinada pela eventual existência de diversos valores em conflito, defendidos por
grupos sociais diversos e mesmo por indivíduos, decorrendo que o atendimento de um pleito
pode atingir o interesse de outro grupo. 26 A intervenção judicial nestes casos é complicada,
pois na estrutura tradicional do litígio o juiz figura como aquele que declara qual a “correta”
interpretação do Direito, eis que há apenas duas posições jurídicas em questão. No caso dos
interesses difusos, o Judiciário pode ser chamado a compor um litígio com pluralidade de
interesses e possibilidades de solução.

Em conseqüência do intenso debate doutrinário, o já citado artigo 81 do Código de


Defesa do Consumidor consagrou na legislação brasileira a existência dos interesses
transindividuais, com a peculiaridade da norma estabelecer e caracterizar suas três
modalidades, criando uma classificação de direito positivo. Este revela-se muito útil para a
pretendida aproximação com os direitos humanos e não resta em nada prejudicada pelo caput
da norma, ao fazer referência aparentemente exclusiva aos interesses e direitos “dos
consumidores”. Ocorre que a caracterização dos interesses transindividuais é antes de tudo
doutrinária, daí decorrendo o reconhecimento de várias modalidades de interesses difusos e
coletivos, entre as quais as advindas das relações de consumo. Então a norma citada traduz
24
Estado aqui não compreende a cisão entre sociedade civil e sociedade política, do que decorre o pensamento
que separa interesse público primário do secundário, este afeto ao Estado-Administração.
25
Cf. MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1992. p. 19.
26
Bom exemplo é a situação de risco da floresta amazônica. O caso põe em questão o interesse de vários grupos
e mesmo de toda população mundial, ao contrapor a necessidade de proteção da biodiversidade com a
possibilidade dos trabalhadores empregados na destruição da mata sobreviverem em outro lugar. Entra em
questão a própria condição de vida nos centros urbanos, caso aquelas pessoas, proibidas de explorar a selva,
migrassem para as cidades. Evidentemente é possível conciliar os interesses, como decorre da moderna noção
de desenvolvimento sustentado.
12
uma verdadeira regra geral, eis que é própria da teoria dos interesses como um todo e não
específica de uma de suas espécies, o direito dos consumidores.

4 - Os direitos humanos e os interesses transindividuais.

O primeiro encontro das duas teorias se dá em razão da transição do modelo de


Estado liberal clássico pelo welfare state, que decorre da substituição do paradigma do ser
humano abstrato, em situação de igualdade formal quanto ao gozo das liberdades individuais,
pela verificação das condições materiais de vida, que revelam um estado de desigualdade
substancial entre as classes e grupos sociais.

Para os direitos humanos, este novo vetor significou o ingresso, no rol de


atribuições da Administração, do dever de interferir na sociedade, a fim de prover os recém
estabelecidos direitos econômicos, sociais e culturais, cuja titularidade é coletiva na medida
em que as prestações demandadas destinam-se a reparar a situação de iniqüidade de todo
um grupo de pessoas, ainda que seja possível a cada uma delas usufruir individualmente das
facilidades instituídas.

Assim, a preocupação com a desigualdade substancial erode o conceito de direito


subjetivo, pois às novas relações jurídicas não mais se aplica o clássico modelo para o qual o
titular do direito material é o legitimado a requerer seu cumprimento.27 Realmente, as
demandas de natureza econômica, social e cultural não são necessariamente divisíveis, pois a
providência estatal requerida em geral somente pode ser adotada tendo em vista o todo e não
o particular. Diferentemente da violação das liberdades civis, em que se destaca a relação
entre o indivíduo e o Estado, no caso dos chamados interesses transindividuais a indevida
omissão estatal atinge o grupo desfavorecido como um todo, pois as pessoas que o integram
somente possuem alguma demanda como resultante de sua inclusão naquele universo. Em
suma, não fosse o desenvolvimento da doutrina do Estado social, não haveria lugar nem para
os direitos econômicos, sociais e culturais, nem para os interesses transindividuais de
natureza pública.

Aqui é importante assinalar que a relação entre Estado e sociedade, quanto à


realização dos direitos econômicos, sociais e culturais, não é unívoca, isto é, não há um único
interesse público envolvido, mas uma grande contradição entre os interesses dos diversos
grupos sociais e destes com os interesses individuais.28 Daí que não pode ser aceita a
asserção de que os direitos humanos sociais constituem uma categoria diversa dos direitos
27
GRINOVER, Ada Pellegrini, ob. cit., item 1.
28
Como destaca Celso Lafer, A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah
Arendt. São Paulo: Cia. das Letras, 1988. p. 132.
13
difusos e coletivos, como se fosse uma mera ampliação da dualidade Estado-indivíduo, própria
dos direitos civis e políticos, esta sim de outra natureza. 29 Na realidade, a possibilidade de
prestação estatal é múltipla e certamente não tem como alcançar todos os interesses
envolvidos, seja pela limitação de ordem material, seja pela contradição eventual entre alguns
deles, no que coincide a realização dos direitos sociais com a característica da litigiosidade
intensa dos interesses transindividuais.

Também a indeterminação dos sujeitos é comum a grande parte dos direitos


humanos, com especial destaque para os ditos “globais”, também conhecidos como “direitos
de solidariedade”. Neste caso, os direitos ao meio ambiente saudável, à paz, ao
desenvolvimento sustentado, à livre determinação dos povos, entre outros, possuem o dado
comum de pertencerem a um conjunto impreciso de pessoas, se não a toda a humanidade,
unidas por uma situação de fato e pelo interesse comum de garantir a qualidade de vida no
planeta. Ademais, a indivisibilidade do objeto é evidente, pois ainda que seja do interesse de
cada membro do grupo, categoria ou classe social a proteção do interesse, a prestação
correspondente não pode ser realizada, senão tendo em vista toda a comunidade, sem
possibilidade de sua divisão em fração ou quota.

Na realidade, os direitos humanos globais são típicos interesses difusos positivados


ou direitos difusos.30 Enquadram-se plenamente nas características gerais comuns a todos os
interesses transindividuais, já descritas acima, que constituem uma nova classificação das
relações jurídicas, para além do esquema individualista dual, dentro do qual podem caber
inúmeros direitos substantivos, desde que as demandas que regulem possuam os mesmos
elementos construídos pela doutrina e referendados pela legislação.

Igualmente, aqui podem ser vislumbrados os direitos econômicos, sociais e


culturais, cujas demandas possuem, ao lado do sentido individual - como condição de
exercício dos direitos civis e políticos, no que se afastam dos interesses difusos e coletivos - o
de garantir a segmentos vulneráveis prestações que reduzam ou eliminem situações de
desigualdade na sociedade. Tais conjuntos de pessoas dificilmente possuem o que o Código
de Defesa do Consumidor chama de “relação jurídica base” (art. 81, § único, II), estando
29
Neste sentido, Rodolfo de Camargo Mancuso, ob. cit., p. 75. Em sentido contrário, reconhecendo a similaridade
entre as duas categorias, Mauro Cappelletti (Formações sociais ..., ob. cit., p. 131), chegando a relacionar
expressamente como difusos os direitos à saúde, à segurança social, a não sofrer discriminação social, religiosa
ou racial.
30
O artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor não distingue entre interesse e direito, talvez para evitar
problemas para a aplicação da norma, ou mesmo por entender que à doutrina dos interesses difusos não
interessa travar tal debate. De toda sorte, alguns autores fazem essa distinção, para destacar que os interesses
se convertem em direitos, se transformados em normas substantivas que os positivem (BIDART CAMPOS,
Germán J., Teoria general de los derechos humanos. Buenos Aires: Astrea, 1991. p. 191, e MANCUSO, Rodolfo
de Camargo, ob. cit., p. 85).
14
vinculadas pelo simples fato de possuírem características comuns. Suas demandas não são
individualizáveis e as obrigações estatais decorrentes das normas constitucionais ou dos
tratados internacionais são indivisíveis, isto é, não podem, em regra, serem realizadas tendo
em vista uma pessoa determinada. Aliás, é a desigualdade material que constitui o dado
central identificador do grupo social (que não necessariamente corresponde à realidade de
cada um dos seus membros), em razão do que as providências eventualmente adotadas o são
em vista da situação do grupo e não do indivíduo, muitas vezes não identificável.31

Por fim, percebe-se a correspondência entre a constante mutabilidade de conteúdo


dos interesses difusos e a inerência, típica dos direitos humanos contemporâneos. Ocorre que
a alteração das situações de fato, ao longo do tempo, conduz ao surgimento de novas
pretensões pelos grupos sociais, ou à modificação, ou mesmo extinção, das já existentes. É o
que garante a eterna atualização dos interesses transindividuais. Da mesma forma, o
reconhecimento de que os direitos humanos são inerentes ao ser humano cria a possibilidade
de surgimento de novos direitos, na medida em que as condições sociais se alteram. Fica
então visível a concepção comum a ambas teorias, de encontrar nos seres humanos a fonte
dos interesses e direitos humanos, sendo necessário frisar neste ponto que os últimos, ainda
que positivados, jamais se desconectaram do jusnaturalismo, ora matizado pelas
transformações históricas, mas sempre remanescendo como o repositório último de
legitimidade das normas erigidas ou reconhecidas pelos Estados.

Tendo em vista a grande similaridade entre as teorias em estudo, parece


interessante enquadrar o Direito Internacional dos Direitos Humanos nas categorias criadas
pelo artigo 81, do Código de Defesa do Consumidor, o que se faz a título ilustrativo, tomando
como exemplo as normas consagradas em alguns tratados internacionais. Cabe ressaltar que
não há uma correspondência perfeita entre as categorias de uma e de outra teoria, ou seja, é
possível identificar, v.g., direitos de natureza social portadores de interesses individuais,
coletivos ou difusos, às vezes advindos da mesma norma internacional, diante da antes
assinalada complementariedade das medidas requeridas para plena realização do direito
previsto.

4.1 - Os direitos humanos difusos

31
Tomando como exemplo as mulheres, sua identificação como grupo social decorre não do dado biológico de
pertencer ao sexo feminino, mas pela situação real de desigualdade que viola o Direito e as coloca, todas, como
credoras das mesmas providências perante o Estado. Em decorrência, surgem normas aplicáveis somente a elas,
já consolidadas em um conjunto de tratados internacionais, que, inclusive, constitui um ramo específico do Direito
Internacional dos Direitos Humanos. No mesmo sentido, mostram-se sem qualquer sentido argumentos
comparativos, como se devesse haver “direitos dos homens”, eis que a supremacia social destes não os coloca
na posição de demandantes, enquanto grupo, de qualquer providência estatal para a eqüalização de suas
condições de vida.
15
Tendo em vista a definição contida no inciso I do citado artigo 81 do Código de
Defesa do Consumidor, surgem como direitos humanos difusos, em primeiro lugar, aqueles
decorrentes dos tratados referentes aos direitos globais, sempre que for possível identificar
com clareza as medidas requeridas. Porém, como já destacado, este ramo do Direito
Internacional dos Direitos Humanos ainda se encontra em fase de desenvolvimento, buscando
resolver questões ligadas ao obrigado por suas prescrições.

Como direitos humanos difusos podem ser enquadradas muitas das prescrições
relacionadas aos âmbitos econômico, social e cultural. A rigor, seguindo a terminologia legal, a
titularidade de parte dos direitos de tal natureza não é coletiva, mas difusa, pois o grupo social
que a detém não é plenamente identificável e seus membros estão ligados por circunstâncias
de fato.

Tome-se como exemplo o artigo 12 - 2, c, do Pacto Internacional dos Direitos


Econômicos, Sociais e Culturais, que dispõe sobre a adoção pelos Estados das “medidas que
se façam necessárias para assegurar (...) a prevenção e o tratamento das doenças
epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas doenças.”
Verifica-se que não há possibilidade de determinação do grupo de interessados, tanto porque
não se tem como identificar os doentes existentes ou potenciais, pois são diversas as
moléstias que se enquadram na descrição da norma. Soma-se a isso a circunstância de que
as prestações estatais requeridas para alcançar o fim indicado são múltiplas e indivisíveis, em
regra não podendo ser particularizadas em face da cada uma das pessoas beneficiadas, o que
nada tem a ver, vale repetir, com o gozo individual do serviço oferecido, como no caso verídico
do fornecimento de medicamentos de combate à AIDS, ordenada judicialmente. Para cumpri-
la, o Estado foi obrigado a tomar medidas destinadas a todo o grupo beneficiado (importação
de um lote de medicamentos, criação de um serviço de distribuição e controle etc.), mas cada
portador do vírus pode se beneficiar particularizadamente.

Retomando o que já foi assinalado anteriormente, a interdependência própria dos


direitos humanos contemporâneos indica que mesmo direitos de origem liberal atualmente
requerem ações estatais para que se tornem efetivos, como no caso do artigo 9o do Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos, concernente aos direitos da pessoa privada de
liberdade, cujo inciso 4 diz: “Qualquer pessoa que seja privada de sua liberdade, por prisão ou
encarceramento, terá o direito de recorrer a um tribunal para que este decida sobre a
legalidade de seu encarceramento e ordene a soltura, caso a prisão tenha sido ilegal.” Como
resta evidente, o recurso ao tribunal pressupõe a institucionalização das garantias respectivas,
cujo interesse não é somente do preso, mas de toda a sociedade. Considerando que o
16
exercício de liberdades fundamentais está condicionada à criação de condições objetivas e
subjetivas, nem sempre previstas em direitos econômicos, sociais e culturais, é possível
concluir que o sistema de normas criado pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos
permite ao intérprete a identificação de diversos novos interesses e direitos, eventualmente
demandáveis pela via judicial.

A respeito, a doutrina dos interesses transindividuais costuma identificar a


eliminação de toda forma de discriminação social como um interesse difuso. Ora, o princípio
da igualdade formal é basilar na teoria dos direitos humanos, estando presente nas
codificações liberais do século XVIII. Sua realização, porém, pode necessitar de providências
estatais, como a criação de um departamento policial voltado à investigação de práticas
delituosas relacionadas ao tema, a inclusão da matéria no ensino fundamental, a concessão
de subsídio para atividades artísticas relacionadas a uma cultura etc.

4.2 - Os direitos humanos coletivos

Em primeiro lugar, é necessário esclarecer que os direitos humanos coletivos não


se confundem com o que internacionalmente se está denominando “collective rights”, que
nada mais são que os direitos ditos de “solidariedade”, apelidados de “globais” por este
trabalho.32

Em vista da classificação legal antes aludida, os direitos humanos coletivos têm


como traço fundamental o vínculo jurídico entre as pessoas que compõem o grupo, categoria
ou classe social, entre si ou perante a parte oposta. Não se confundem com a soma dos
interesses individuais, mas são a expressão de um interesse coletivo com natureza própria,
dada pela proximidade entre os membros do grupo social e de sua mínima organização.33

Resulta que um primeiro foco destes direitos decorre das relações trabalhistas, em
que efetivamente pode ser vislumbrado um universo definido de pessoas, sendo expressiva a
utilização das palavras “classe” e “categoria” pelo inciso II do artigo 81 do Código. Tanto assim
é que cada vez mais os conflitos são resolvidos por acordos gerais. Estes, por sua vez,
observam uma expansão no seu conteúdo para abarcar, além das condições de trabalho, a
cooperação entre patrões e empregados para melhorar a gestão e a produtividade das
empresas, como condição de sobrevivência de ambos.34

32
SIEGHART, Paul, The international law of human rights. New York: Oxford University Press, 1995. p. 368.
33
MANCUSO, Rodolfo de Camargo, ob. cit., p. 44.
34
Sobre a conexão entre os direitos laborais e os interesses transindividuais, vide FIORILLO, Celso Antônio
Pacheco. Os sindicatos e a defesa dos interesses difusos no direito processual civil brasileiro. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1995.
17
Em vista dos direitos humanos de natureza política, os partidos mostram-se centros
de aglutinação de interesses coletivos, como no caso da liberdade de sua existência e de
participação no processo eleitoral.35 E o interesse partidário não se mistura com o de seus
membros ou de seus eleitores, merecendo caracterização e proteção próprias.

4.3 - Os direitos humanos individuais homogêneos

Não são propriamente interesses transindividuais, mas foram abarcados pelo


Código de Defesa do Consumidor, o que abre espaço para que deles se cuide. Neste campo
situam-se especialmente os direitos civis e políticos que, embora em essência individuais,
possuem necessidade de exercício coletivo, sem o que não se realizam. Fundamentalmente,
são os direitos de associação, como o de fundar sindicato ou de nele ingressar, previsto pelo
Direito Internacional dos Direitos Humanos nos dois Pactos Internacionais de 1966, pela
singularidade de constituir um direito civil que se exerce no âmbito das relações trabalhistas.

Também podem ser aqui classificados os direitos econômicos, sociais e culturais,


sempre que de suas previsões decorrerem direitos individualmente exercitáveis, tendo em
vista sua caracterização como “direitos-meio” de que é titular o indivíduo, igualmente detentor
de liberdades civis cuja materialização pode depender da criação das condições materiais pelo
Estado. A possibilidade de se exercer individualmente direitos sociais decorre da análise de
Celso Lafer, referida no capítulo II, em que ressalta a inserção dos direitos sociais na ótica
liberal, colocando-os não como direitos de um grupo social, mas do próprio indivíduo, eis que
são condições de exercício das liberdades clássicas. São, então, duas vertentes de um
mesmo direito, que encontra sua identidade na possibilidade do ser humano de demarcar o
limite de intervenção estatal, mesmo que isso se dê por meio da ação do Estado. Mas a meta
a ser alcançada perpassa a elevação de um grupo social a um nível superior de vida,
alcançando o indivíduo, que com isso ganha os meios que permitirão exercer plenamente sua
liberdade. Tal ótica se distingue da que vê nos direitos econômicos, sociais e culturais um fim
em si mesmos, antes instrumentalizando-os, tendo em vista o ganho pessoal de cada um que,
guindados a um padrão de vida mais condigno, deixam de pertencer aos modernamente
chamados grupos marginalizados ou excluídos para assumir sua individualidade.

35
Vale a pena colocar o problema das agremiações políticas cujo objetivo é a instauração de um sistema não-
democrático, cuja atualidade é dada pelos movimentos neonazistas e pelo fundamentalismo religioso. A questão é
saber se a democracia admite que se questione as suas próprias regras fundamentais de sobrevivência, ou se
neste caso não prevalece a vontade da maioria. Do ponto de vista do Direito Internacional dos Direitos Humanos,
o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos prevê que o direito à livre associação está sujeito às restrições
que se façam necessárias, em uma sociedade democrática, ao interesse da segurança nacional, ou direitos e
liberdades das demais pessoas (art. 22 - 2), do que se infere a possibilidade de proscrição de entidades do tipo
acima citado.
18
Figura como exemplo o direito a que o Estado combata as epidemias (PIDESC, art.
12-2, c); se isso depender da aplicação de uma vacina, não há problema em que uma pessoa
exija esta prestação que, neste caso não, é indivisível e nem se destina a um número
indeterminado de pessoas.

Nesta categoria podem ser divisadas pretensões concernentes à ampliação das


possibilidades de participação no poder, tradicionalmente restritas às instâncias da democracia
representativa. Neste caso, soma-se à situação individual do eleitor a sua eventual aglutinação
em torno de um interesse comum, deduzido por meio da iniciativa popular e da gestão
compartida das decisões estatais, realizada por diversas maneiras, como as audiências
públicas, o orçamento participativo, a descentralização do poder municipal etc. Tais ações vão
ao encontro da primeira maneira de proteger os interesses difusos e coletivos, a via legislativa,
em que ao Legislador é dado criar normas substanciais correspondentes aos seus diversos
ramos.36

As formas de democracia participativa, porém, ampliam essa possibilidade, ao


permitir que o próprio processo legislativo sofra a influência dos grupos interessados, que
passam de meros pacientes a atores no cenário estatal, capacitados tanto a criar as normas
que positivem seus interesses, como a demandar seu cumprimento, mesmo judicialmente.
Realça portanto uma nova conformação dos chamados “corpos intermediários”, como maneira
do cidadão fazer valer seus interesses, que a rigor não se individualizam, mas comungam com
os de outras pessoas que integram um grupo social, pelo mais variado motivo de fato ou de
direito. Nada mais são que as conhecidas “organizações não-governamentais”, verdadeiras
associações de pessoas reunidas para demandar prestações estatais na proteção de
interesses e, em alguns casos, participar da tomada das decisões e na implantação da política
pública.

5 - A justiciabilidade dos direitos humanos transindividuais

A possibilidade de exigir o cumprimento de direitos humanos econômicos, sociais e


culturais pela via judicial é a principal conseqüência de sua caracterização como interesses
transindividuais, como decorrência da superação do paradigma do direito subjetivo individual,
incompatível com novos direitos humanos que têm como característica a pluralidade dos
interessados e a ausência de uma pretensão particularizada contra o Estado.37
36
Cf. CAPPELLETTI, Mauro. Tutela dos interesses difusos (conferência proferida na Assembléia Legislativa do
Rio Grande do Sul em 27.11.84). Trad. Tupinambá Pinto de Azevedo. AJURIS, Revista da Associação de Juizes
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 33, p. 169-182, mar. 1985.
37
Situando-se este trabalho no âmbito do direito do Estado (e não do direito processual), não se pretende avançar
sobre a caracterização dos tipos de ação voltados à proteção dos direitos humanos. Ressalta, porém, a
possibilidade de emprego das ações coletivas, tais como a ação civil pública, o mandado de segurança coletivo e
19
Isso não quer dizer, porém, que todos os direitos do tipo social são exigíveis
judicialmente, por dois motivos. Em primeiro lugar, tais direitos ainda se encontram em fase de
especificação, sendo notável que a maioria das disposições do Direito Internacional dos
Direitos Humanos desta natureza contém uma baixa precisão quanto às providências exigidas
do Estado, o prazo de sua implantação, a eventual prioridade de umas sobre outras etc. Em
segundo lugar, a realização dos direitos sociais exige uma reorganização do Estado,
envolvendo uma pluralidade de interesses, por vezes conexos com a plataforma política de um
determinado governo eleito. E o Judiciário não possui função administrativa, não devendo
então se imiscuir nos meandros organizacionais que culminem com a efetiva prestação do
serviço público. Por outro lado, na medida em que as normas de direitos sociais contenham
uma tal especialidade que permita com clareza identificar a obrigação estatal, nada impede
que seja acolhido pleito neste sentido, bastando que se ordene ao Estado que realize a
atividade a que, afinal, se comprometeu juridicamente, como decorrência da própria vontade
popular, manifestada pelas instâncias democráticas de poder.

A justiciabilidade dos direitos sociais se dá, num primeiro momento, diante da


perspectiva liberal daqueles direitos, como meios de realização das liberdades fundamentais
ou, para usar a denominação dada por Carlos Santiago Nino, por se tratarem de direitos
humanos “instrumentais”38. Aqui a demanda pode se fundar na negativa do Estado em cumprir
uma obrigação social, cuja natureza e divisibilidade da prestação estejam perfeitamente
delineadas, como a de prover ensino básico gratuito a todos (PIDESC, art. 13 - 2, a). O direito
então é individual e pode ser demandado isoladamente ou com cumulação de sujeitos, pois
muitas vezes tais direitos são do tipo individual homogêneo. A demanda pode ainda se basear
no direito social como condição de ocorrência de uma liberdade civil, cujo gozo se mostra
impedido pela inércia estatal. Tal decorre da já debatida interdependência, característica
fundamental dos direitos humanos contemporâneos.

Na segunda hipótese, os direitos econômicos, sociais e culturais contêm interesses


transindividuais, podendo ser demandados pelas vias processuais próprias, cabendo a
avaliação sobre a não-invasão de esfera de decisão política, a qual só pode se dar no espaço
marginal conferido pelas normas jurídicas, pois não há discricionariedade quanto à realização
das obrigações previstas nos tratados internacionais, apenas se podendo dispor sobre o modo
como se dão. Quanto mais específicas as obrigações - e o sistema internacional caminha
neste sentido - menos margem de opção possui o administrador.

a ação popular. Ganha destaque a primeira, diante da possibilidade que cria para o julgador, de determinar a
realização de uma prestação pelo Estado, ao invés de apenas poder ser utilizada para a interrupção de prática
antijurídica, caso das demais.
38
Ob. cit., p. 42.
20
Tais ponderações têm em vista mostrar que os direitos econômicos, sociais e
culturais não são meras aspirações populares, mas contêm um efetivo caráter cogente, na
medida máxima das possibilidades técnicas e financeiras do Estado, como prevêem as
normas internacionais.

Concluindo, há que atentar para as ponderações de José Reinaldo de Lima Lopes


sobre o “novos direitos sociais”, cuja fruição enseja a prestação de serviços, estes marcados
pela impessoalidade e universalidade. Como conseqüência, os direitos econômicos, sociais e
culturais não poderiam ser demandados judicialmente, salvo se na defesa da instituição do
serviço público uti universi e não uti singuli, afastando qualquer possibilidade de se tutelar
interesses individuais homogêneos ou coletivos, decorrentes daquela categoria de direitos
humanos. Mais além, estes direitos sequer poderiam ser concebidos como geradores dos
interesses mencionados, restando apenas os difusos, sob pena de violação da universalidade
que os caracteriza.39

É necessário, porém, atentar para a natureza específica da universalidade dos


direitos em questão, distinta da consagrada aos civis e políticos. Para os direitos econômicos,
sociais e culturais o pressuposto é outro, o dos seres humanos contingentes, em desigualdade
de condições materiais, a requererem prestações positivas e distintas do ente estatal. Então
não é possível a simples extensão da universalidade liberal para este campo, diante do sentido
diverso da igualdade. Como diz Bobbio, neste caso “existem diferenças de indivíduo para
indivíduo, ou melhor, de grupos de indivíduos para grupos de indivíduos, diferenças que são
até agora (e o são intrinsecamente) relevantes.”40 Isto porque o Estado social tem como meta
a transformação das condições de existência de seres humanos concretos e situados, em que
a igualdade figura como resultado pretendido e não como princípio racional para a construção
do sistema jurídico de liberdades.

Mas a vinculação da universalidade aos grupos sociais em situação de


desfavorecimento não significa que os direitos humanos desta natureza passem a “pertencer”
exclusivamente a eles, se desligando do restante da sociedade. Na realidade, a universalidade
permanece íntegra, pois mesmo os direitos humanos sociais dirigem-se hipoteticamente para
toda a sociedade, existindo enquanto potência para qualquer ser humano. Ocorre que, por
serem direitos de crédito contra o Estado, tal potência somente há de se materializar para os
que efetivamente necessitem da prestação estatal tendente a recolocá-los em posição de
usufruir seus direitos civis e políticos. Neste sentido, a universalidade dos direitos econômicos,
39
O direito subjetivo e os direitos sociais: o dilema do Judiciário no Estado social de Direito. In: FARIA, José
Eduardo (org.). Direitos humanos, direitos sociais e justiça. São Paulo, Malheiros, 1994, passim.
40
A era dos direitos, Capus, 1992. p. 71.
21
sociais e culturais se identifica com a dos direitos civis e políticos, pois são direitos dirigidos a
toda a humanidade. Ocorre que, diferentemente dos direitos liberais, os sociais pressupõem
uma situação de desigualdade, condição para sua fruição, enquanto reivindicações ao Estado.
Assim, na atribuição dos titulares dos direitos sociais, há uma cisão quanto ao paradigma
liberal, pois aqueles direitos hipotéticos passam a se referir a um grupo social, cuja
composição pode ser imprecisa.

Por fim, não resta dúvida que os serviços públicos se enquadram no objetivo estatal
mais amplo de erradicar as desigualdades regionais e sociais (Constituição Federal de 1988,
artigo 3o, III), estando sua atribuição, para pessoas em situação vulnerável, em perfeita
harmonia com essa diretriz, na construção efetiva de um Estado Democrático de Direito.

6- Conclusões e propostas.

Do que foi exposto nos itens precedentes, é possível formular as seguintes


conclusões:

A) É juridicamente possível estabelecer uma correlção entre as normas definidoras dos direitos
humanos e os interesses transindividuais, seja em face do desenvolvimento doutrinário de
ambos ramos do Direito, seja diante da classificação trazida pelo artigo 81 da Lei Federal n.
8.078, de 11.9.90;

B) Da aproximação de ambas teorias, é possível identificar direitos humanos transindividuais,


divididos em direitos humanos difusos, coletivos e individuais homogêneos;

C) É possível a justiciabilidade dos direitos humanos transindividuais, pelos mecanismos


processuais adquados, a depender da clareza e precisão da formulação das obrigações
estatais correspondentes no direito substantivo, notadamente quanto aos direitos econômicos,
sociais e culturais.

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