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I
O cientista político Adam Przeworski se tem batido insistentemente pela
adoçåo de uma concepçåo minimalista de democracia, como forma de evitar
confusões analíticas e de que se possa atuar de maneira efetiva a respeito dos
problemas práticos pertinentes. Em palestra proferida na cidade do México em
1990,1 por exemplo, bradava ele que aquilo de que se trata com a democracia
é, em última análise, "que nåo nos matem!" -- que estejam apropriadamente
assegurados certos direitos fundamentais, correspondentes, em suma, à idéia
do "estado de direito".
As dificuldades com que se defronta a posiçåo de Przeworski fornecem
um bom ponto de partida para a discussåo que pretendo empreender aqui. Em
primeiro lugar, trata-se de assegurar somente aqueles direitos que se
costumam designar como direitos "civis"? Que dizer de direitos políticos
como o sufrágio, o direito de votar e ser votado? Dificilmente se poderia
pretender que os direitos civis estivessem assegurados com a ausência do
direito de voto, ou seja, em condições de ditadura política. Mas, pensando
melhor, e 2os direitos sociais, que completam a famosa classificaçåo de T. H.
Marshall? Naturalmente, se tivermos condições de desigualdade social mais
ou menos intensa, isso redundará certamente na existência de diferenciais de
poder privado que tenderåo a interferir negativamente com a possibilidade de
adequado usufruto dos direitos civis e políticos.
Há algo mais revelador, porém. Com efeito, o próprio Adam
Przeworski, em seus trabalhos relativos à social-democracia dos países
capitalistas europeus mais avançados e politicamente estáveis, caracteriza a
democracia como envolvendo crucialmente um compromisso social. Nesse
compromisso, o decisivo conflito entre capitalistas e trabalhadores se vê
mitigado, de tal forma que os trabalhadores aceitam a propriedade privada e o
controle dos investimentos por parte dos capitalistas e estes aceitam a
democracia política e as consequentes políticas sociais do estado em favor dos
trabalhadores.3 Como é bem claro, esta perspectiva introduz direta e
Preparado para o seminário “Direitos Humanos, Cidadania e Sociedade na América
Latina”, CEDES, Buenos Aires, outubro de 1992, patrocinado pelo Joint Committee of
Latin American Studies do Social Science Research Council e do American Council of
Learned Societies. Versões ligeiramente modificadas foram publicadas em inglês (em
E. Jelin e E. Hershberg, eds., Constructing Democracy: Human Rights, Citizenship, and
Society in Latin America, Boulder, Colorado, Westview Press, 1996) e em espanhol (E.
Jelin e E. Hershberg, orgs., Construir la Democracia: Derechos Humanos, Ciudadanía y
Sociedad en América Latina, Caracas, Editorial Nueva Sociedad, 1996).
1
. Colóquio "Democracia Política y Democracia Social", Centro de Estudios Sociológicos, México,
17 a 19 de outubro de 199O.
2
. T. H. Marshall, "Citizenship and Social Class", em Class, Citizenship, and Social Development,
Nova York, Doubleday, 1965.
3
. Veja-se, por exemplo, Adam Przeworski, Capitalism and Social Democracy, New York,
Cambridge University Press, 1985.
7
. As sugestões feitas nessa seçåo me parecem colocar em perspectiva mais adequada vários
aspectos dos temas tratados nas comunicações apresentadas em nosso simpósio por Rodolfo
Stavenhagen e Carlos Hasenbalg. Pondere-se, por exemplo, com respeito às relações de raça no
Brasil, o contraste entre uma perspectiva inclinada à atitude de combativa afirmaçåo da negritude e
de denúncia intransigente da ideologia oficial de democracia racial, por um lado, e, por outro, uma
perspectiva que se incline antes por tornar consequente aquela ideologia, tomando-a pela palavra,
por assim dizer, e procurando tornar efetivamente irrelevantes as características raciais das pessoas.
Ainda que seja possível apontar um componente de mascaramento e mistificaçåo na ideologia da
democracia racial, nåo se pode negar que ela descreve uma meta claramente preferível à da
hostilidade racial igualitária; nåo se pode tampouco assimilar simplesmente as condições brasileiras
a respeito às dos Estados Unidos e mimetizar as soluções americanas.
As relaçoes entre a abordagem propensa a destacar a "identidade" na política e a abordagem
supostamente antagônica da "escolha racional" såo discutidas mais longamente em Fábio W. Reis,
"Identidade, Política e a Teoria da Escolha Racional", Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.
3, no. 6, fevereiro de 1988, 26-39. Diversos aspectos correlatos aos temas tocados nessa seçåo e nas
anteriores såo também tomados de maneira mais detida e sistemática em Fábio W. Reis, "Para
Pensar Transições: Democracia, Mercado, Estado", Novos Estudos CEBRAP, no. 3O, julho de
1991, 76-98.
V
Alguns desdobramentos dessa perspectiva geral sobre os temas que aqui
interessam mais diretamente podem ser apontados através do exame de certa
ambivalência fundamental da própria noçåo de cidadania (vista como
categoria crucial em conexåo com a queståo dos direitos) tal como circula na
literatura sócio-científica e de filosofia política. Essa ambivalência pode ser
mostrada a partir de um texto de George Armstrong Kelly de alguns anos
atrás.[8]
Kelly contrapÆe a dimensåo cívica e a dimensåo civil da cidadania. A
dimensåo cívica é ligada por ele à idéia dos deveres e responsabilidades do
cidadåo, a sua propensåo ao comportamento solidário e à observância das
virtudes cívicas, propensåo esta que resultaria de sua identificaçåo com a
coletividade, ou do fato de que sua própria identidade pessoal se vê marcada
fundamente pela inserçåo na coletividade. O exemplo por excelência da
cidadania cívica é encontrado na pólis clássica, embora o estado-naçåo
moderno trate de mobilizar em seu favor o mesmo tipo de sentimento e
disposiçåo por parte de seus próprios cidadåos. Em contraste, a dimensåo civil
da cidadania é posta em correspondência com a busca moderna de afirmaçåo
dos direitos dos membros individuais da coletividade, que estaria igualmente
presente (como fica bem claro na célebre análise de T. H. Marshall da
realizaçåo sucessiva de diferentes tipos de direitos) tanto no momento da
afirmaçåo dos direitos civis quanto nos momentos em que ocorre a afirmaçåo
dos direitos políticos e dos direitos sociais.
O ponto a destacar é que os conteúdos que impregnam a idéia de
cidadania oscilam marcadamente em seu caráter segundo se adote a
perspectiva de cada uma daquelas duas dimensões -- pois os valores que cada
uma delas expressa såo claramente contrastantes com os da outra. Por um
lado, é evidentemente impossível deixar de resgatar, a propósito da noçåo de
cidadania, a perspectiva em que cidadania real é aquela condiçåo que tem
como elemento crucial o elemento correspondente à perspectiva moderna do
"civil" (ou "liberal") e na qual os membros da coletividade se afirmam por si
mesmos ou autonomamente -- isto é, afirmam-se na esfera privada (no
mercado), de maneira que nåo só prescinde do estado, mas que pode até opor-
se com eficácia ao estado. Na verdade, este elemento já se acha presente
mesmo no mundo clássico (nåo obstante a idealizaçåo contida na ênfase de
Kelly no civismo clássico): basta que evoquemos a perspectiva aristotélica-
arendtiana em que o cidadåo da pólis se qualifica como tal antes de mais nada
por ser um "monarca" ou "tirano" na esfera privada ou do oikos, isto é, por
controlar a família e os escravos e estar consequentemente livre para os
assuntos públicos. Seja como for, o que encontramos na literatura dedicada ao
tema da cidadania nos dias de hoje é que a necessidade de lidar com o caso
dos que nåo podem afirmar-se por si mesmos leva a um twist no qual a noçåo
é reformulada para incluir um inevitável ingrediente paternalista, ingrediente
este inerente à própria idéia de "proteçåo social" e à dimensåo social, como
tal, da cidadania. A acepçåo de "cidadania" que assim se introduz é
contraposta à concepçåo autonomista e liberal, e a idéia de proteçåo ou
assistência é nela definida (ou redefinida) como correspondendo a um direito
decorrente da inserçåo igualitária na comunidade -- a algo que se vincula com
8
. George A. Kelly, "Who Needs a Theory of Citizenship?", Daedalus, outono de 1979, 37-54 (v.
1O8, n. 4 dos Proceedings of the American Academy of Arts and Sciences).
9
VI
Destacou-se anteriormente que o capitalismo e sua expansåo
representam o contexto mais geral de nossos problemas. Nessa ótica, é
possível caracterizar o desafio recém-formulado por referência à cidadania em
termos de um problema constitucional básico que se impõe aos estados
nacionais contemporâneos em decorrência da afirmaçåo trazida pelo
capitalismo dos princípios do mercado e do "civil". Tal problema pode ser
visto como consistindo justamente em como obter a acomodaçåo "cívica"
dessa afirmaçåo -- e o cerne das dificuldades reside em que a soluçåo nåo
pode esperar ser simplesmente o resultado da apropriada "conversåo" moral,
ideológica ou sócio-psicológica a certa "cultura cívica" tida como adequada à
democracia. Ao contrário, a prevalência do civismo terá de ser a consequência
do encaminhamento e do amadurecimento favoráveis da própria lógica do
civil e dos interesses, o que significa sobretudo que os problemas da
democracia e da garantia dos direitos de todo tipo dificilmente poderåo ter
soluçåo estável se os problemas do próprio capitalismo nåo forem resolvidos
14
. Veja-se Fábio W. Reis, "Solidaridad, Intereses y Desarrollo Político", Desarrollo Económico -
Revista de Ciencias Sociales, vol. l4, no. 54, julho-setembro de 1974, 227-268. Merecem mençåo
aqui as tentativas recentes de retomar e revigorar o conceito de "sociedade civil" na análise de
diversos problemas ligados à temática geral que aqui se discute. Um volume a ser destacado é
certamente o de Jean Cohen e Andrew Arato, Civil Society and Political Theory, Cambridge,
Mass., The MIT Press, 1992. Embora me pareça que vários aspectos específicos dos problemas
podem efetivamente formular-se sem maiores danos através do recurso a esse conceito (proposto
por Cohen e Arato como uma categoria adicional, a ser introduzida ao lado das de estado e
mercado), creio que, tudo somado, a utilizaçåo dele representa, com efeito, antes um prejuízo que
um benefício. E o que está em jogo nåo é somente uma queståo de parcimônia científica, ou seja,
nåo se trata apenas de que o "espaço" de problemas relevantes pode ser apropriadamente
"mapeado" com recurso à dicotomia estado-mercado e à sugeståo aqui feita de expansåo do alcance
da noçåo de mercado, a qual passa a recobrir também o espaço que corresponderia à "sociedade
civil". Na verdade, a tentativa de "recortar" e definir o lugar da sociedade civil dilui a crucial
dialética entre os aspectos de solidariedade e interesses, consenso e conflito, "comunidade" e
"sociedade" que vimos destacando como perpassando os diferentes planos ou esferas da sociedade
(e permitindo a definiçåo analítica da própria idéia de política, com consequências fecundas). As
dificuldades resultantes se mostram, por exemplo, quando aproximamos a "sociedade civil" do
contraste examinado no texto entre o "civil" e o "cívico". A intençåo de muito do que propÆem
Cohen e Arato é na verdade destacar o papel de aspectos de identidade e correlatos que se mostram
claramente afins ao espaço do solidário e do cívico. Mas é impossível pretender excluir a operaçåo
dos interesses do âmbito da sociedade civil: considere-se o sentido da expressåo em Hegel, sua
afinidade óbvia com o "civil" de Kelly, apto a degenerar em clientelismo e particularismo -- e,
sobretudo, o fato de que Cohen e Arato, de maneira explícita e central, se ocupam eles mesmos,
relativamente à sociedade civil, de coisas como movimentos sociais que atuam estrategicamente na
busca de objetivos próprios e contra a resistência de outros atores... De outra parte, despojar o
mercado, mesmo no sentido mais estrito ou convencional, dos elementos de solidariedade e
civismo, que supõem a comunidade e portanto a identidade, é deixar escapar algo essencial,
tornando o "mercado" equivalente à interaçåo virtualmente beligerante.
16
. Uma espécie de contra-exemplo se tem com o momentoso impeachment do presidente Fernando
Collor ocorrido recentemente no Brasil. Trata-se, naturalmente, de um evento auspicioso do ponto
de vista das perspectivas de consolidaçåo da democracia no país, pois a experiência de ver as
instituições funcionarem de maneira normal e eficiente numa circunstância de crise é certamente
propícia a que se crie, na percepçåo coletiva, uma presunçåo favorável à institucionalidade
democrática, com consequências também favoráveis, provavelmente, no desdobrar subsequente do
processo político. Contudo, a crise de Collor está longe de representar o teste crucial de que se fala
no texto: a crise nasceu e se esgotou na corrupçåo praticada por círculos íntimos do poder (e
denunciada, aliás, pelos mesmos círculos). Foi, assim, a crise de um governo que acabou por
tornar-se mero sinônimo de corrupçåo e alvo do repúdio praticamente unânime da sociedade.
Faltou-lhe, portanto, a dimensåo de confronto social. E' revelador observar a respeito que a crise
por vários aspectos semelhante que envolveu o governo de Getúlio Vargas em 1954 (com
denúncias análogas de corrupçåo em esferas próximas ao presidente) nåo teve desfecho igualmente
favorável: nela, diferentemente do que se deu no caso de Collor, o problema da corrupçåo se
combinou com o fato de que o populismo socialmente "progressista" de Vargas se contrapunha ao
conservadorismo eleitoralmente frustrado da Uniåo Democrática Nacional (UDN), liderada pela
figura carismática de Carlos Lacerda.
17
. O leitor interessado poderá encontrar elaboraçåo adicional de alguns pontos do que segue em
outros trabalhos do autor. Vejam-se "Direitos Humanos e Sociologia do Poder", Lua Nova, no. 15,
outubro de 1988, 124-132; "Estado, Economia, Etica, Interesses: Para a Construçåo Democrática
no Brasil", Planejamento e Políticas Públicas, no. 1, junho de 1989, 33-56; e (especialmente
quanto ao item c abaixo) "Democracia Brasileira, Crise Econômica e Crise Constitucinal", trabalho
apresentado no seminário "Dilemas e Perspectivas da Democracia na América Latina", Såo Paulo,
Memorial da América Latina, 28 a 3O de novembro de 1991 (a aparecer proximamente em volume
organizado por Guillermo O'Donnell).
23
. Adam Przeworski, "Atrás da Cortina Rasgada", Jornal do Brasil, Caderno Idéias-Ensaios, 15 de
julho de 1990.
24
. Parece-me instrutivo destacar a respeito a presteza com que, mal saídos de penosas experiências
autoritárias, já começamos de novo a falar de alguns países latino-americanos que nelas se viram
envolvidos como sendo "democracias consolidadas", em certos casos antes mesmo de se chegar a
neutralizar sequer formalmente a presença militar. Às vezes, essa presteza se tem associado, de
maneira curiosa, com a tentativa de elaborar as condições que respondem pela "consolidaçåo" em
termos que omitem inteiramente -- e tornam como que irrelevante -- o fato de que houve golpes de
estado e experiências autoritárias recentes.