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A PUNTO DE DESPEGAR: FOTOGRAFIA E MEMÓRIA NO CONTEXTO DA

REMOÇÃO DO POVOADO DE SAN AGUSTÍN EM LIMA-PERU

Lorena Best Urday


Mestranda do Programa de Pós Graduação em Memória Social da UNIRIO RJ
lorenabesturday@gmail.com

Introdução: A mi me gusta tomarle fotos a los aviones

Avião decolando visto desde San Agustín. Foto: Alexis Vega

A mí me gusta tomarle fotos a los aviones despegando.


Alexis Vega, 14 anos

Para uma pessoa que não conhece onde se encontra localizado o aeroporto
internacional Jorge Chávez na cidade de Lima, capital do Peru, esta é somente uma
fotografia curiosa. Poderíamos nós perguntar: desde onde foi tirada essa fotografia para
conseguir capturar o avião decolando? Porém, para alguém que conhece Lima e o seu
aeroporto, sabe que esta é uma fotografia quase impossível de ser realizada, pois a pista de
decolagem do aeroporto da para um lugar desconhecido e que não tem estrada de aceso.
Porém, as costas de aeroporto, rodeado de campos de cultivo, existe o povoado de San
Agustín ou a ex fazenda San Agustín como é comumente chamado.
San Agustín é um dos últimos povoados semi rurais de Lima, nele vivem ao redor
de 500 familias, na sua maioria de origem migrante e dedicadas à agricultura. A vida e
história de San Agustín tem acontecido as costas e de costas para o aeroporto Jorge Chávez
desde a construção do mesmo, na década de 1950. E nos dias de hoje, San Agustín vive um
dos seus momentos mais dramáticos, pois o projeto de ampliação do aeroporto já foi
aprovado e o governo peruano tem iniciado o procedimento de expropriação das terras do
ex fundo San Agustín. Assim, a população de este lugar se encontra envolvida atualmente
no processo de desalojo.
Aléxis nasceu e mora em San Agustín e no 2009, quando tirou esta fotografia, tinha
11 anos. Acontece que San Agustín é um palco privilegiado para assistir o espetáculo dos
aviões decolando. Falo de espetáculo, porque quando alguém recém chega em San Agustín,
as crianças -que são as primeiras e receber aos visitantes-, levam as pessoas a percorrer os
caminhos do lugar e depois de virar uma curva numa rua de terra, elas vão surpreender ao
recém chegado que poderá observar um campo de cultivo e detrás dele o muro que separa
San Agustín do aeroporto. E desde este palco, o visitante poderá ouvir o intenso ruído das
turbinas e observar os aviões decolando.
Desde que começou a tirar fotografias para registrar a vida de San Agustín, Aléxis
mostrou preferência pelas vistas dos aviões. Assim, a sua busca incessante foi a dos locáis
de San Agustín desde onde se pode observar os aviões decolando. Aléxis, nos seus
enquadramentos, não quer captar somente o avião voando no ar e sim o contexto desde
onde acontece esta experiência de observação e convívio com os aviões: os tetos, os
campos de cultivo, as pessoas trabalhando e o muro que separa a sua comunidade do
aeroporto. Quando conversávamos sobre a sua preferência fotográfica pelos aviões, Aléxis
responde que ele um dia quer voar num desses aviões, ver San Agustín desde o céu e que é
lindo andar pelos campos de cultivo à noite e ver as luzes acessas do aeroporto. Para Aléxis
a sua vida na comunidade semi rural de San Agustín é um privilegio; pois nela se misturam
a sua vida de ruralidade, brincadeiras e trabalho nos campos de cultivo com a proximidade
do anseio da modernidade que o aeroporto significa. De esta maneira, as imagens
fotográficas de Aléxis e das outras crianças fotografas de San Agustín são um convite para
transitar pela complexidade da história de um lugar que nasceu condenado à desaparição
pelo projeto de modernidade.
Fotografar é um ato complexo, e no caso específico do registro de um cotidiano que
atravessa um momento de crise, poderíamos pensar que fotografar significa um
investimento por sintetizar a experiência de vida e uma maneira de resistência e
sobrevivência a partir da criação de imagens fotográficas prontas para serem interpretadas
pelo viés da memória e, pelo tanto, potencializar a capacidade de transformação que estas
fotografias podem gerar. Neste sentido, seguindo as reflexões de Ana Mauad a partir do
pensamento de Pierre Dubois, em que a fotografia é entendida “como uma operação
racional que fornece sentido às experiências sociais, mas que, ao mesmo tempo, as
dignifica e hierarquiza tornando-as memoráveis” (MAUAD, 2008 p. 19); nos adentramos
no território da fotografia como ação transformadora do sujeito que fotografa e como
experiência visual-vital inscrita em determinado contexto social. De esta maneira, pensar a
complexidade das fotografias entendidas como registro, representação e apresentação do
real (DUBOIS), amplia o panorama da reflexão para pesar na polissemia das imagens
fotográficas nos processos de interpretação que se geram a partir da recepção e o
agenciamento das fotografias.
No presente artigo apresentaremos o contexto de remoção que vive atualmente o
povoado de San Agustín pela ampliação do aeroporto internacional e, dentro deste
contexto, a prática fotográfica dos jovens e crianças do lugar como uma ação
transformadora sobre seu espaço social e sobre a sua experiência histórica particular. O
ponto neurálgico da pesquisa se localiza no desenvolvimento de uma metodologia para
interpretar as imagens fotográficas dos jovens e crianças pelo viés da memória e assim
redimensionar as imagens para alem do registro. De esta maneira, na proposta itnerpretativa
considero três aspectos inter relacionados: o modo de ver, é dizer aquilo que está referido
“à própria e peculiar inserção do fotógrafo no mundo social” (MARTINS, 2009: 64), a
visualidade como “a set of discourses and practices constituing distinctive forms os visual
experience in historically specif circunstances” (CHANEY, 2000: 118, citado por
MENESES, 2003) e finalmente a maneira em que as imagens são recepcionadas e
interpretadas a partir de diversas propostas de agenciamento.
Na primeira parte deste trabalho apresento o contexto no que se desenvolve a
pesquisa: o povoado de San Agustín na circunstância do futuro desalojo, suas implicações
sociais e simbólicas; assim como descrevo as atividades da oficina de fotografia “A punto
de despegar”. Na segunda parte abordo questões que se levantam a partir da pesquisa em
ciências sócias com as fotografias: a relação de colaboração na pesquisa, os desafios
interpretativos das imagens fotográficas e finalizo esta parte com uma reflexão sobre a o
trabalho da memória sobre as fotografias.

Solo nos podíamos llevar San Agustín en memoria: a ex fazenda San Agustín

El aeropuerto se construyó en el año 55 entre San Agustín


y Bocanegra y desde ahí comenzó la volada de que
teníamos que salir. Cuando el tiempo de Velasco Alvarado,
el fue el primero que trajo la noticia de que todos
íbamos a salir de San Agustín.
Testimonio de Alberto Donayre Ávila, poblador de San Agustín, 2002

A inícios do s. XX, San Agustín era uma próspera fazenda de cana de açúcar do
litoral limenho, lá chegaram para trabalhar migrantes andinos e afros peruanos que
construíam suas moradias ao redor da casa grande. Com a passagem do tempo o
fazendeiro desapareceu e na década de 1970 o governo nacionalista do General Juan
Velasco Alvarado decretou a Reforma Agrária e as terras passaram a ser propriedade dos
agricultores trabalhadores da ex fazenda. Porém, na década de 1950 se iniciou a
construção do aeroporto internacional Jorge Chávez, e desde aquele então os moradores
de San Agustín adquirem a condição de erradicáveis e o Estado peruano não se
compromete com a melhora das condições de vida da população, as quais nunca deixaram
de ser precárias. No ano de 2000 se anuncia o projeto de ampliação do aeroporto, que
compromete as terras de San Agustín, no 2008 se intensificam os rumores da remoção da
população e no final de 2010 o governo peruano anuncia que a concessão para o inicio
das obras de ampliação já foi outorgada e que no 2011 a população será desalojada.
Porém, ainda não existe um plano definido de reubicação da população em novas
moradias.
No Peru, assim como no resto de paises do cone sul, vivenciamos intensos
processos de transformação do espaço urbano em pro de grandes obras de infraestrutura e
de uma promessa de modernização das cidades a través das construções de grande
envergadura. Porém estes processos não consideram, e muito menos envolvem as
populações afetadas; deixando de lado os estudos de impacto e o compromisso com as
populações. Povoados inteiros estão sendo removidos, em alguns casos surgem
movimentos sociais de luta e resistência, porem; na maioria dos casos, a resistência é
simbólica, silenciosa e interna. Como acontece no caso de San Agustín.
Nestas remoções involuntárias da população e nos desalojos se percebe que os
projetos de infraestrutura fazem parte de projetos políticos e econômicos já estabelecidos,
nos que as condições das licitações e concessões não são conhecidas pela cidadania e
respondem a determinadas exigências ditas internacionais: como no caso da revitalização
dos bairros históricos (em pro do turismo), a construção de estradas, estádios e
aeroportos, ligados as cumbres mundiais, aos grandes eventos esportivos e aos projetos
de modernização. Porém, onde fica a nossa pratica e direito a exercer a cidadania? As
obras acontecem, formas inteiras de vida são removidas e o custo social, econômico e
humano é muito alto. Assim, populações inteiras demoram anos em se recuperar, pois
perdem grande parte da sua memória e história, sem sequer serem reconhecidas. Já na
opinião da maioria da sociedade o custo social não interessa, pois a “nítida melhora” é
pelo bem comum.
No caso especifico de San Agustín, embora a vida de longa data no lugar e o
arraigo da população com a terra a partir da sua vocação agrícola; as pessoas na cidade de
Lima nem sequer sabem da existência do lugar. Poderíamos afirmar que a invisibilidade
de San Agustín, responde a um complexo e constante processo de apagamento das vozes
desta população que acontece por múltiplas vias: uma delas a ausência do Estado. Isto
some as pessoas numa vida de sobrevivência e de ausência notória de direitos, e pela
outra a incorporação nos próprios moradores de uma estrutura de opressão que justifica
que a remoção por um projeto de modernização. Assim, em San Agustín nunca existiu
um movimento social organizado, embora exista uma diretiva de vizinhos que negociam
com o Estado as condições da sua remoção. Porém, a negociação é quase nula, o Estado
peruano não dialoga e como resposta emite resoluções de ameaça de desalojo; enquanto
as possibilidades de justiça se diluem.
Nesse contexto é que encontramos atos individuais e coletivos de resistência, como
o contar as histórias do lugar, como a apertura a receber jornalistas, pesquisadores e
pessoas que possam levar o caso deles para a opinião pública, como permitir o ingresso
de artistas para gerar projetos onde se recrie, reconte e de a conhecer este lugar, seu valor,
seu cotidiano e a sua situação. È claro que estas intervenções respondem a longos, às
vezes sutis e outras vezes evidentes, processos de negociação de interesses, expectativas e
desejos. Porém, a partir destas iniciativas conjuntas e solidárias este caso está começando
a aparecer na opinião pública no pais; embora não exista um movimento organizado de
resistência. O que se percebe é uma vontade mais básica: a de ter interlocutores para
contar a sua antiga e complexa história que é como a história do Peru. Pois San Agustín, é
um lugar onde convive um micro mundo do Peru contemporâneo, com as seus encontros
e desencontros.
São cinco as gerações que se sucedem em San Agustín: filhos dos antigos
trabalhadores da fazenda, migrantes andinos, afros peruanos e amazônicos que chegaram
para trabalhar na agricultura e os nikkei –descendentes dos migrantes japoneses, na sua
maioria de Okinawa, que chegaram ao Peru durante a II Guerra Mundial-. Assim a vida em
San Agustín continua, as famílias se multiplicaram, o povo se organizou em diversas
associações de moradores, a população conseguiu que o Estado crie uma escola e um posto
de saúde, as mulheres organizadas fundaram o “Comedor Popular 4 de Abril” e a casa da
ex fazenda –embora semi derruída- continuou sendo habitada pelas duas antigas moradoras:
as professoras Juana e Dora. As antigas casas de adobe dos empregados da fazenda
continuaram a ser utilizadas e também se construíram novas casas de tijolo, cimento e
madeira. E foi assim como se formou o “Pueblo Joven El Ayllu”, chegando até o contexto
atual da desapropriação das terras e o próximo despejo da população.

A oficina de fotografia “A punto de despegar”: como fotografarias a tua comunidade,


que esta para desaparecer?
No sabíamos como llevarnos este lugar, en el cual hemos
nacido, en el cual hemos crecido y tenemos muchos recuerdos
de él, de la gente, de los árboles. Solamente podíamos llevárnoslo
en memoria y lo que hicimos fue eso, tomar fotos para poder
llevarnos aunque sea un pedacito y recordar ese lugar como lo que es, nuestro hogar.
Susan Bonilla
As palavras de Susan foram colhidas da entrevista que lhe fizeram na reportagem do
canal de televisão NAPA (No apto para adultos)1, com ocasião da exposição de fotografia
“A punto de despegar”, acontecida em San Agustín em fevereiro de 2010. Com esta
exposição fechávamos o ciclo de trabalho da oficina de fotografia “A punto de despegar”, a
1
Para ver a reportagem pode acessar: http://www.youtube.com/watch?v=1zHdiNHLmYU
partir deste momento as fotografias teriam diferentes destinos: criar um arquivo, ser
publicadas em diferentes meios, continuar sendo expostas e virar objeto de pesquisa. No
momento da entrevista, Susan refletia sobre a sua ação como fotógrafa e o significado
daquelas fotografias: fotografar é uma forma de fazer memória e levar consigo algo do que
foi a sua vida em San Agustín.
A partir das palavras de Susan faço este exercício retroativo para apresentar a
oficina de fotografia “A punto de despegar” que aconteceu entre os anos 2008 e 2010 em
San Agustín e na que participaram Susan Bonilla que então tinha 18 anos, Chelsy e Yaré
Rivera, que tinham 13 e 11 anos e Kelly e Aléxis Vega que tinham 10 e 12 anos. No ano de
2008 o governo peruano anuncia que o projeto de ampliação do aeroporto Jorge Chávez
tinha sido aprovado e que se iniciaria o processo de licitação para outorgar a concessão da
obra. Nesse mesmo ano visitei San Agustín já com a idéia de criar uma oficina de
fotografia. A idéia de fotografar seduziu imediatamente as crianças e depois de uma rápida
oficina sobre o uso da câmera digital, começamos a fazer retratos de cada uma delas nos
seus lugares favoritos de San Agustín.
Com a passagem do tempo e o aumento da prática fotográfica as crianças
começaram a ter mais curiosidade sobre as pessoas e a história do seu lugar, assim como a
explorar as possibilidades estéticas da fotografia. De esta maneira, uma questão
fundamental é pensar as imagens como representações visuais da experiência, assim as
imagens não são somente um convite para olhar mais também para sentir. A imagem não é
unicamente um produto visual que é oferecido ao espectador para ele interpretar, o
fotógrafo é também aquele que sente e coloca a sua subjetividade no momento de fazer a
fotografia, transformando o ato fotográfico numa ação social (KOLHER, 2008).
A abordagem do ato fotográfico como uma ação social do olhar vai-nos permitir
aprofundar na idéia da ação do fotografo como processo identitario, de investimento de
sentidos e significados; de construção narrativa e de engajamento inserida na complexidade
social e histórica que envolve a sua produção fotográfica. Assim, o fotografo é um sujeito
que mergulha nos imaginários sociais na dialética da criação-recorte e registro-retrato da
realidade. O ato fotográfico é uma opinião visual pronta para ser interpretada e re inserida
na experiência social. De esta maneira, o registro visual é um recorte da realidade dado pelo
domínio da técnica e associado às várias formas de representações simbólicas, visões do
mundo, sensibilidades, estéticas e posições políticas de cada fotógrafo que vivencia
determinada experiência histórica (SILVA, 2009). Podemos concluir que a ação do olhar é
uma ação reflexiva sobre a realidade, pois detem uma “autonomia de ação e realização em
relação ao real imaginado e que, de forma singular, contribui para a formação do
imaginário social.” (SILVA, 2009 p:219).
No ato fotográfico se estabelecem as relações entre aquele que fotografa e os
fotografados e no dialogo entre ambos –por meio do dispositivo tecnológico- é que se
recriam os imaginários sociais. De esta maneira, existem diversas práticas que modelam as
experiências fotográficas, a nossa, dentro da oficina “A punto de despegar”, foi marcada
pela idéia do percurso. Ao longo dos nossos encontros percorremos uma e outra vez os
campos e ruas de San Agustín nos dias do trabalho, nos dias festivos e também nos dias em
que nada fora do cotidiano acontecia. Porém, a cada encontro novas imagens eram
descobertas e a vontade de fotografar continuava. Além disso, na oficina trabalhamos
temáticas como as ruas de San Agustín, os moradores, as suas casas e os objetos mais
prezados para eles (estas fotografias dentro da atividade na que entrevistávamos as pessoas,
lhes perguntando “que se levariam de todo jeito na hora de ir embora de San Agustín?”);
fizemos um registro completo dos dias da festa do Santo Padroeiro San Agustín e Santa
Rosa (29-31 de agosto), fotografamos a casa da ex fazenda e seus habitantes, também
registramos permanentemente os aviões decolado, visitamos um dos moradores nikkei,
descendente de um dos primeiros japoneses migrantes em San Agustín, e registramos a sua
casa, sua família e seus objetos prezados e finalmente organizamos uma visita de campo ao
aeroporto, onde fizemos uma quase etnografia fotográfica dos usuários do aeroporto e seus
costumes. De esta maneira, constituímos um banco de centenas de fotografias ao longo
destes dois anos.

Trabalhar com fotografia: uma pesquisa colaborativa


A oficina de fotografia “A punto de despegar” nasceu como um projeto cujo
objetivo era vivenciar a fotografia como uma forma de registro de um cotidiano e como
uma atividade criativa para representar o lugar onde nascemos e moramos; com a intenção
de “levar” e mostrar esta forma de vida em iminente extinção. È dizer a fotografia como
uma possibilidade de reinventar e redescobrir o dia a dia através da imagem. O ato de
fotografar passou a ser inscrição no mundo, recriação do mesmo, forma de se mostrar, de
transformar e de que, tanto os jovens fotógrafos como eu, estabeleçamos novas relações
com o contexto contemporâneo de San Agustín. De esta maneira, podemos afirmar que a
oficina “A punto de despegar” promoveu um projeto fotográfico baseado na diversidade,
colaboração, exploração, expressão e na descoberta coletiva.
A partir desta experiência fui descobrindo como o trabalho com a fotografia abre
um outro lugar para o pesquisador, possibilitando a emergência de metodologias de
pesquisa colaborativas, onde o conhecimento e as narrativas sobre determinada sociedade
se constroem nos saberes engendrados nos processos de produção da imagem, nos modos
de olhar dos produtores, nas formas de apropiação e os suportes e tecnologias utilizadas;
sendo todo este processo vivenciado como uma experiência histórica. De acordo com Maria
Teresa Villela, na introdução do livro “Usos e desafios da Imagem” (org. Bela Fieldman
Bianco e Miriam Moreira Leite):
A questão fundamental é o caráter construído e subjetivo do conhecimento e como
este vai se transformando. Assim o trabalho com imagens redefine as próprias
práticas e os fundamentos da pesquisa: a pesquisa passa a ser resultado da interação
entre pesquisadores, pesquisados, produtos e contextos históricos. O conhecimento
se desloca do pensar e nasce do complemento entre o fazer/pensar. As culturas
visuais são interpretadas em base à experiência de produção de imagens.
(VILLELA, 1998)

Segundo John Berger as fotografias existem para serem interpretadas e propõe


potencializar a capacidade de construção de memória nas fotografias como caminho para
pensar numa fotografia “alternativa” que possa se libertar da idéia limitante de que a
imagem vale por si mesma -é dizer que é um universo fechado de sentidos e significados
com uma interpretação pronta-. De esta maneira, o “fazer da memória” a partir das
fotografias poderia marcar as trilhas da interpretação das imagens fotográficas.
Interpretação que consiste em um desafio de construção metodológica para trabalhar com
as imagens fotográficas como produtos históricos e como imaginários sociais dos que elas
são indícios, marcas e visões. Nos dois seguintes apartados apresento um levantamento dos
caminhos de analise interpretativa das imagens fotográficas e finalizo o artigo com uma
reflexão sobre a capacidade do “fazer da memória” das fotografias ou do trabalho da
memória sobre as fotografias
Trabalhar com fotografias: os desafios da interpretação
Escolhi trabalhar com as fotografias como registro do cotidiano porque me interessa
as maneiras em que as pessoas –em especial as crianças e jovens- fazem uso das fotografias
para gerar ações transformadoras na sua realidade. Que fotografo, como fotografo, quando
fotografo, são escolhas inseridas num processo de auto reconhecimento individual e social
a través das representações estéticas visuais. Assim, poderíamos afirmar que a experiência
do olhar do fotógrafo passa a ser manifestação da sua identidade dentro de determinado
contexto social, de acordo a Sérgio Silva, esta característica,

(...) permite entender a cultura visual e a sua relação com a identidade como um
processo conjuntural centralizado no olhar e na percepção estética de
representação social das identidades. Com isso, a percepção estética tem se
tornado um instrumento de delimitação do espaço social e de definição
comportamental da cultura. Mas é preciso entender que o processo de análise
das imagens no campo das ciências sociais demanda um conhecimento
sistematizado no tocante ao contexto para o qual a imagem criada é
representante e, com isso, quais deverão ser os critérios de definição da
interpretação a ser proposta, ou seja, quais os critérios de elaboração da
hermenêutica visual. (p. 615)

Concordo com o autor quando afirma que um dos principais desafios do trabalho de
pesquisa com as imagens radica nos critérios da interpretação a ser proposta. Isto tem a ver
com as diversas maneiras em que as ciências sociais podem estudar o conhecimento visual,
no sentido da produção, apropiação, recepção e agenciamento das imagens, particularmente
das fotografias. Seria precipitado propor um único método de interpretação, pelo contrário a
presente pesquisa se soma ao desafio metodológico da interpretação das fotografias para a
construção das narrativas da memória social. Justamente a polissemia das imagens se
refere a sua capacidade para produzir diferentes narrativas, em dependência dos interesses,
das procuras, o contexto, a posição política e a própria biografia do autor ou dos autores
desta narrativa visual (KOHLER, 2008).
Experiência histórica, imaginários sociais, subjetividades, processos todos que se
entremeiam na vivencia do ato fotográfico e nas próprias imagens fotográficas; e que se
oferecem à construção de novos conhecimentos a partir da interpretação. As ciências
sócias concentram a sua metodologia de análise das imagens fotográficas em três aspectos
inter relacionados: o visual (que engloba os sistemas de comunicação visual), o visível e o
invisível (que tem a ver com as esferas do poder que orientam as prescrições sociais e
culturais) e a visão (que tem a ver com os instrumentos e técnicas de observação)
(MENESES, 2003).
Adentrando na primeira etapa deste analise interpretativo é recomendável iniciar o
processo tomando em conta o contexto de criação destas imagens fotográficas: um projeto
colaborativo onde as fotografias foram criadas pelas crianças e jovens de San Agustín. Esta
situação é fundamental para elaborar a abordagem da análise, pois se trata de registros da
própria experiência vital e das fotografias como experiência, onde o leitor é convidado para
se envolver na compreensão do mundo a partir de um sujeito determinado que vivencia o
seu contexto. Segundo Katherine Kohler, neste caso se beira o conceito de “performance”,
pois o ato de representação vai para além do falar de se mesmos para se mostrar. Assim, a
narrativa pode ser construída a partir de uma pluralidade de vozes: a história da produção
de cada imagem e as novas interpretações dos autores, a história a partir do que as
audiências vêem e a história a partir da sensibilidade do pesquisador. Finalmente, quando o
processo de construção da narrativa esteja num estagio mais avançado, tem que se
explicitar as decisões editorias, tanto no texto oral como na seleção das imagens. “Visual
narratives, like oral and written ones, are created for audiencies, often blurring fact and
fiction, the “natural” and the scripted, the public, and the private. Visual narratives create
new fictions with public performances of a “personal” self”. (KOHLER: 2008 p. 178)
A reflexão anterior nós abre caminho para a metodologia da intertextualidade como
rota possível para a construção das narrativas da memória a partir das fotografias de San
Agustín. Pensemos na,

Capacidade narrativa das imagens técnicas, discutindo-se ai a dimensão temporal


das imagens, os elementos definidores de uma linguagem eminentemente visual e,
por fim, o dialogo estabelecido entre imagens técnicas e outros textos, tanto de
caráter verbal, como não verbal, a partir do princípio da intertextualidade.
(MAUAD: 2008, p. 20). Dentro desta perspectiva, a produção das fontes orais se
processa com base no princípio de intertextualidade, segundo o qual, as narrativas,
textos e discursos são sempre resultado de um processo continuo de produção de
sentido, realizado com base num conjunto de experiências sociais prévias, que
podem vir condensadas pela memória através de imagens. (MAUAD: 2008, p. 172)

Neste sentido, a presente pesquisa se inscreve nos processos de produção da


memória social a partir das experiências de afirmação identitaria através das fotografias em
grupos sociales que tem escasas oportunidades para auto representar-se e agenciar suas
imagens no sentido de faze-las públicas. A pesquisa valoriza a prática fotográfica como um
caminho de exploração criativa para gerar imagens autônomas, que falem desde dentro da
própria realidade e cuja potência transformadora radica justamente na sua carga ideológica,
no seu olhar familiar e subjetivo carregado de afeto: um olhar internalizado sobre se mesmo
(RIPPER in Democracia viva, n. 36, p. 99), especialmente o olhar da criança que mostra a
riqueza da experiência de vida de San Agustín.
Tomar como referência para a pesquisa fotografias feitas por crianças abre novas
questões para serem pensadas, como à relação com o passado que as mesmas tem e em
conseqüência qual à sua percepção e forma de processar a memória. De esta maneira, a
analise interpretativa privilegiará o contexto em que se desenvolve a infância das crianças
de San Agustín: a invenção da vida num lugar semi rural no meio da cidade que fica as
costas da modernidade do aeroporto; o lugar deles dentro das suas famílias, compartilhando
as responsabilidades de trabalho e cuidado do lar; assim como os problemas. Fotografias e
imaginários de crianças que constroem uma narrativa mediada por imagens e entrecruzada
por textos. Considerando que as fotografias são “registros visuais, expressões de um regime
de visualidade, suporte de relações sociais, mas não memória dos acontecimentos em se
mesma.” (MAUAD:2008, p. 26). Assim, a proposta metodológica tem como substrato o
pensamento sobre a memória social como urdidura da análise interpretativa das narrativas.

Trabalhar com fotografias e a construção da memória social


De acordo a John Berger, no seu ensaio “Uses of Photography”, as fotografias
precisam ser interpretadas e estabelecer relações com o seu tempo e espaço, com os
sujeitos, com as suas próprias características de enunciação e com as suas escolhas. Como a
memória, as fotografias não são uma narração em se mesmas, elas preservam aparências
que servem para a construção de diversas narrativas, “it is because the photographs carry
no certain meaning in themselves, because they are like images in the memory of a total
stranger, that they lend themselves to any use.” (BERGER:2001 p. 289)
Entre memória e fotografias operam mecanismos sociais similares; como a seleção
daquilo que vai se lembrar –e fazer memorável- e daquilo que vai se registrar -e fazer
visível-. Esta seleção/edição funciona em contrapartida com o esquecimento, pois esta
capacidade é a que limita e da sentido à memória. Justamente é o exercício radial, total,
complexo e de múltiplas versões da memória onde radica a capacidade critica para
interpretar as fotografias, para que adquiram significados diversos (BERGER, 2001).
The aim must be to construct a context for a photograph, to construct it with
words, to construct it with other photographs, to construct it by its place in an
ongoing text of photographs and images. (…) Memory is not unlinear at all.
Memory works radially, that is to say, with an enormous number of associations all
leading to the same event. If we want to put a photograph back into the context of
experience, social experience, social memory, we have to respect the laws of
memory (...) A radial system has to be constructed around the photograph so that it
may seem in terms wich are simultaneously personal, political, economic,
dramatic, everyday and historic. (BERGER, 2001 p. 292-293).

A metodologia dos diálogos intertextuais propicia o espaço para interpretar as


imagens fotográficas de San Agustin desde o sistema radial da memória social. A
espontaneidade das associações que emergem no momento da conversação e as temáticas
que se anunciem, serviram como roteiro prévio para o exercício de interpretação que as
narrativas da memória social exigem. Neste estagio é que se realiza o trabalho de analise
interpretativo, contextualizando estas imagens fotográficas- memória, inserindo elas na
experiência social e histórica da que emergem e re dimensionando estas narrativas no
panorama maior do contemporâneo. Para esta finalidade podemos aprofundar numa
interpretação histórica que dimensione a questão temporal inscrita nestas narrativas e numa
interpretação sociológica, focada na construção e dinâmica dos imaginários sociais. O
sociólogo José de Souza Martins na sua obra “Sociologia da fotografia e da imagem”
coloca à fotografia como “uma das matérias primas do conhecimento relativo à construção
social da realidade.” (MARTINS:2010, p. 69). Martins pensa numa Sociologia centrada nos
processos sociais interativos, suas mediações, expressões e fenômenos, assim as fotografias
são consideradas como uma forma de experiência e processo cognitivo dentro de
determinada sociedade. De esta maneira, as imagens fotográficas propõem desafios
interpretativos onde o que se oculta é mais do que se mostra e onde o visível é somente um
indicio de todo um vasto mundo social que não aparece na imagem, mais que esta nele
contido. Desde esta perspectiva o ato fotográfico não é considerado como aquilo que
“congela” o momento, porém o está “descongelando” ao “remete-lo para a dimensão da
história, da cultura e das relações sociais.” (MARTINS: 2010 p. 65). Decifrar este invisível
a partir das imagens fotográficas se constitui no desafio da fotografia -enquanto meio de
compreensão imaginária da sociedade-; pois sempre detrás de toda fotografia se encontra a
perspectiva do fotógrafo, o seu modo de olhar e de se expressar através do visual (que tem a
ver com a inserção do fotografo no mundo social) e a relação com as representações de
determinada sociedade sobre o real (valorações, sentimentos, proibições e aperturas).
Somando se a este processo, dialogamos com os modos de recepção e de invenção do real a
partir das fotografias, pois,

Para o sociólogo, o importante da fotografia esta no imaginário social do


que ela é meio, na imaginação mediadora que suscita. O sociólogo “lê” a
fotografia indiretamente, através da compreensão que dela tem o homem
comum, da interpretação da vida social e da consciência social de que ela
é instrumento e expressão. (MARTINS, 2010 p. 68)

Finalmente, desde esta abordagem interpretativa a memória passa a ser considerada


como o mecanismo de critica das fotografias e as fotografias como a capacidade de
reinvenção e transformação da memória. Ambas funcionando socialmente numa relação
recíproca, de acordo ao pensamento de John Berger.

Referências bibliográficas

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BERGER, John. Modos de ver. Barcelona: Gustavo Gilli, 2002.

BERGER, John. Uses of Photography. Selected Essays. Editado por Geoff Dier. 2001, p.
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KOHLER RIESSMAN, Katherine. Narrative Methods for the human science. 2008.

LINO, Elizabeth, BEST, Kristel, GONZÁLES, María, HERNÁNDEZ, Alejandro. Oía


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