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Para uma pessoa que não conhece onde se encontra localizado o aeroporto
internacional Jorge Chávez na cidade de Lima, capital do Peru, esta é somente uma
fotografia curiosa. Poderíamos nós perguntar: desde onde foi tirada essa fotografia para
conseguir capturar o avião decolando? Porém, para alguém que conhece Lima e o seu
aeroporto, sabe que esta é uma fotografia quase impossível de ser realizada, pois a pista de
decolagem do aeroporto da para um lugar desconhecido e que não tem estrada de aceso.
Porém, as costas de aeroporto, rodeado de campos de cultivo, existe o povoado de San
Agustín ou a ex fazenda San Agustín como é comumente chamado.
San Agustín é um dos últimos povoados semi rurais de Lima, nele vivem ao redor
de 500 familias, na sua maioria de origem migrante e dedicadas à agricultura. A vida e
história de San Agustín tem acontecido as costas e de costas para o aeroporto Jorge Chávez
desde a construção do mesmo, na década de 1950. E nos dias de hoje, San Agustín vive um
dos seus momentos mais dramáticos, pois o projeto de ampliação do aeroporto já foi
aprovado e o governo peruano tem iniciado o procedimento de expropriação das terras do
ex fundo San Agustín. Assim, a população de este lugar se encontra envolvida atualmente
no processo de desalojo.
Aléxis nasceu e mora em San Agustín e no 2009, quando tirou esta fotografia, tinha
11 anos. Acontece que San Agustín é um palco privilegiado para assistir o espetáculo dos
aviões decolando. Falo de espetáculo, porque quando alguém recém chega em San Agustín,
as crianças -que são as primeiras e receber aos visitantes-, levam as pessoas a percorrer os
caminhos do lugar e depois de virar uma curva numa rua de terra, elas vão surpreender ao
recém chegado que poderá observar um campo de cultivo e detrás dele o muro que separa
San Agustín do aeroporto. E desde este palco, o visitante poderá ouvir o intenso ruído das
turbinas e observar os aviões decolando.
Desde que começou a tirar fotografias para registrar a vida de San Agustín, Aléxis
mostrou preferência pelas vistas dos aviões. Assim, a sua busca incessante foi a dos locáis
de San Agustín desde onde se pode observar os aviões decolando. Aléxis, nos seus
enquadramentos, não quer captar somente o avião voando no ar e sim o contexto desde
onde acontece esta experiência de observação e convívio com os aviões: os tetos, os
campos de cultivo, as pessoas trabalhando e o muro que separa a sua comunidade do
aeroporto. Quando conversávamos sobre a sua preferência fotográfica pelos aviões, Aléxis
responde que ele um dia quer voar num desses aviões, ver San Agustín desde o céu e que é
lindo andar pelos campos de cultivo à noite e ver as luzes acessas do aeroporto. Para Aléxis
a sua vida na comunidade semi rural de San Agustín é um privilegio; pois nela se misturam
a sua vida de ruralidade, brincadeiras e trabalho nos campos de cultivo com a proximidade
do anseio da modernidade que o aeroporto significa. De esta maneira, as imagens
fotográficas de Aléxis e das outras crianças fotografas de San Agustín são um convite para
transitar pela complexidade da história de um lugar que nasceu condenado à desaparição
pelo projeto de modernidade.
Fotografar é um ato complexo, e no caso específico do registro de um cotidiano que
atravessa um momento de crise, poderíamos pensar que fotografar significa um
investimento por sintetizar a experiência de vida e uma maneira de resistência e
sobrevivência a partir da criação de imagens fotográficas prontas para serem interpretadas
pelo viés da memória e, pelo tanto, potencializar a capacidade de transformação que estas
fotografias podem gerar. Neste sentido, seguindo as reflexões de Ana Mauad a partir do
pensamento de Pierre Dubois, em que a fotografia é entendida “como uma operação
racional que fornece sentido às experiências sociais, mas que, ao mesmo tempo, as
dignifica e hierarquiza tornando-as memoráveis” (MAUAD, 2008 p. 19); nos adentramos
no território da fotografia como ação transformadora do sujeito que fotografa e como
experiência visual-vital inscrita em determinado contexto social. De esta maneira, pensar a
complexidade das fotografias entendidas como registro, representação e apresentação do
real (DUBOIS), amplia o panorama da reflexão para pesar na polissemia das imagens
fotográficas nos processos de interpretação que se geram a partir da recepção e o
agenciamento das fotografias.
No presente artigo apresentaremos o contexto de remoção que vive atualmente o
povoado de San Agustín pela ampliação do aeroporto internacional e, dentro deste
contexto, a prática fotográfica dos jovens e crianças do lugar como uma ação
transformadora sobre seu espaço social e sobre a sua experiência histórica particular. O
ponto neurálgico da pesquisa se localiza no desenvolvimento de uma metodologia para
interpretar as imagens fotográficas dos jovens e crianças pelo viés da memória e assim
redimensionar as imagens para alem do registro. De esta maneira, na proposta itnerpretativa
considero três aspectos inter relacionados: o modo de ver, é dizer aquilo que está referido
“à própria e peculiar inserção do fotógrafo no mundo social” (MARTINS, 2009: 64), a
visualidade como “a set of discourses and practices constituing distinctive forms os visual
experience in historically specif circunstances” (CHANEY, 2000: 118, citado por
MENESES, 2003) e finalmente a maneira em que as imagens são recepcionadas e
interpretadas a partir de diversas propostas de agenciamento.
Na primeira parte deste trabalho apresento o contexto no que se desenvolve a
pesquisa: o povoado de San Agustín na circunstância do futuro desalojo, suas implicações
sociais e simbólicas; assim como descrevo as atividades da oficina de fotografia “A punto
de despegar”. Na segunda parte abordo questões que se levantam a partir da pesquisa em
ciências sócias com as fotografias: a relação de colaboração na pesquisa, os desafios
interpretativos das imagens fotográficas e finalizo esta parte com uma reflexão sobre a o
trabalho da memória sobre as fotografias.
Solo nos podíamos llevar San Agustín en memoria: a ex fazenda San Agustín
A inícios do s. XX, San Agustín era uma próspera fazenda de cana de açúcar do
litoral limenho, lá chegaram para trabalhar migrantes andinos e afros peruanos que
construíam suas moradias ao redor da casa grande. Com a passagem do tempo o
fazendeiro desapareceu e na década de 1970 o governo nacionalista do General Juan
Velasco Alvarado decretou a Reforma Agrária e as terras passaram a ser propriedade dos
agricultores trabalhadores da ex fazenda. Porém, na década de 1950 se iniciou a
construção do aeroporto internacional Jorge Chávez, e desde aquele então os moradores
de San Agustín adquirem a condição de erradicáveis e o Estado peruano não se
compromete com a melhora das condições de vida da população, as quais nunca deixaram
de ser precárias. No ano de 2000 se anuncia o projeto de ampliação do aeroporto, que
compromete as terras de San Agustín, no 2008 se intensificam os rumores da remoção da
população e no final de 2010 o governo peruano anuncia que a concessão para o inicio
das obras de ampliação já foi outorgada e que no 2011 a população será desalojada.
Porém, ainda não existe um plano definido de reubicação da população em novas
moradias.
No Peru, assim como no resto de paises do cone sul, vivenciamos intensos
processos de transformação do espaço urbano em pro de grandes obras de infraestrutura e
de uma promessa de modernização das cidades a través das construções de grande
envergadura. Porém estes processos não consideram, e muito menos envolvem as
populações afetadas; deixando de lado os estudos de impacto e o compromisso com as
populações. Povoados inteiros estão sendo removidos, em alguns casos surgem
movimentos sociais de luta e resistência, porem; na maioria dos casos, a resistência é
simbólica, silenciosa e interna. Como acontece no caso de San Agustín.
Nestas remoções involuntárias da população e nos desalojos se percebe que os
projetos de infraestrutura fazem parte de projetos políticos e econômicos já estabelecidos,
nos que as condições das licitações e concessões não são conhecidas pela cidadania e
respondem a determinadas exigências ditas internacionais: como no caso da revitalização
dos bairros históricos (em pro do turismo), a construção de estradas, estádios e
aeroportos, ligados as cumbres mundiais, aos grandes eventos esportivos e aos projetos
de modernização. Porém, onde fica a nossa pratica e direito a exercer a cidadania? As
obras acontecem, formas inteiras de vida são removidas e o custo social, econômico e
humano é muito alto. Assim, populações inteiras demoram anos em se recuperar, pois
perdem grande parte da sua memória e história, sem sequer serem reconhecidas. Já na
opinião da maioria da sociedade o custo social não interessa, pois a “nítida melhora” é
pelo bem comum.
No caso especifico de San Agustín, embora a vida de longa data no lugar e o
arraigo da população com a terra a partir da sua vocação agrícola; as pessoas na cidade de
Lima nem sequer sabem da existência do lugar. Poderíamos afirmar que a invisibilidade
de San Agustín, responde a um complexo e constante processo de apagamento das vozes
desta população que acontece por múltiplas vias: uma delas a ausência do Estado. Isto
some as pessoas numa vida de sobrevivência e de ausência notória de direitos, e pela
outra a incorporação nos próprios moradores de uma estrutura de opressão que justifica
que a remoção por um projeto de modernização. Assim, em San Agustín nunca existiu
um movimento social organizado, embora exista uma diretiva de vizinhos que negociam
com o Estado as condições da sua remoção. Porém, a negociação é quase nula, o Estado
peruano não dialoga e como resposta emite resoluções de ameaça de desalojo; enquanto
as possibilidades de justiça se diluem.
Nesse contexto é que encontramos atos individuais e coletivos de resistência, como
o contar as histórias do lugar, como a apertura a receber jornalistas, pesquisadores e
pessoas que possam levar o caso deles para a opinião pública, como permitir o ingresso
de artistas para gerar projetos onde se recrie, reconte e de a conhecer este lugar, seu valor,
seu cotidiano e a sua situação. È claro que estas intervenções respondem a longos, às
vezes sutis e outras vezes evidentes, processos de negociação de interesses, expectativas e
desejos. Porém, a partir destas iniciativas conjuntas e solidárias este caso está começando
a aparecer na opinião pública no pais; embora não exista um movimento organizado de
resistência. O que se percebe é uma vontade mais básica: a de ter interlocutores para
contar a sua antiga e complexa história que é como a história do Peru. Pois San Agustín, é
um lugar onde convive um micro mundo do Peru contemporâneo, com as seus encontros
e desencontros.
São cinco as gerações que se sucedem em San Agustín: filhos dos antigos
trabalhadores da fazenda, migrantes andinos, afros peruanos e amazônicos que chegaram
para trabalhar na agricultura e os nikkei –descendentes dos migrantes japoneses, na sua
maioria de Okinawa, que chegaram ao Peru durante a II Guerra Mundial-. Assim a vida em
San Agustín continua, as famílias se multiplicaram, o povo se organizou em diversas
associações de moradores, a população conseguiu que o Estado crie uma escola e um posto
de saúde, as mulheres organizadas fundaram o “Comedor Popular 4 de Abril” e a casa da
ex fazenda –embora semi derruída- continuou sendo habitada pelas duas antigas moradoras:
as professoras Juana e Dora. As antigas casas de adobe dos empregados da fazenda
continuaram a ser utilizadas e também se construíram novas casas de tijolo, cimento e
madeira. E foi assim como se formou o “Pueblo Joven El Ayllu”, chegando até o contexto
atual da desapropriação das terras e o próximo despejo da população.
(...) permite entender a cultura visual e a sua relação com a identidade como um
processo conjuntural centralizado no olhar e na percepção estética de
representação social das identidades. Com isso, a percepção estética tem se
tornado um instrumento de delimitação do espaço social e de definição
comportamental da cultura. Mas é preciso entender que o processo de análise
das imagens no campo das ciências sociais demanda um conhecimento
sistematizado no tocante ao contexto para o qual a imagem criada é
representante e, com isso, quais deverão ser os critérios de definição da
interpretação a ser proposta, ou seja, quais os critérios de elaboração da
hermenêutica visual. (p. 615)
Concordo com o autor quando afirma que um dos principais desafios do trabalho de
pesquisa com as imagens radica nos critérios da interpretação a ser proposta. Isto tem a ver
com as diversas maneiras em que as ciências sociais podem estudar o conhecimento visual,
no sentido da produção, apropiação, recepção e agenciamento das imagens, particularmente
das fotografias. Seria precipitado propor um único método de interpretação, pelo contrário a
presente pesquisa se soma ao desafio metodológico da interpretação das fotografias para a
construção das narrativas da memória social. Justamente a polissemia das imagens se
refere a sua capacidade para produzir diferentes narrativas, em dependência dos interesses,
das procuras, o contexto, a posição política e a própria biografia do autor ou dos autores
desta narrativa visual (KOHLER, 2008).
Experiência histórica, imaginários sociais, subjetividades, processos todos que se
entremeiam na vivencia do ato fotográfico e nas próprias imagens fotográficas; e que se
oferecem à construção de novos conhecimentos a partir da interpretação. As ciências
sócias concentram a sua metodologia de análise das imagens fotográficas em três aspectos
inter relacionados: o visual (que engloba os sistemas de comunicação visual), o visível e o
invisível (que tem a ver com as esferas do poder que orientam as prescrições sociais e
culturais) e a visão (que tem a ver com os instrumentos e técnicas de observação)
(MENESES, 2003).
Adentrando na primeira etapa deste analise interpretativo é recomendável iniciar o
processo tomando em conta o contexto de criação destas imagens fotográficas: um projeto
colaborativo onde as fotografias foram criadas pelas crianças e jovens de San Agustín. Esta
situação é fundamental para elaborar a abordagem da análise, pois se trata de registros da
própria experiência vital e das fotografias como experiência, onde o leitor é convidado para
se envolver na compreensão do mundo a partir de um sujeito determinado que vivencia o
seu contexto. Segundo Katherine Kohler, neste caso se beira o conceito de “performance”,
pois o ato de representação vai para além do falar de se mesmos para se mostrar. Assim, a
narrativa pode ser construída a partir de uma pluralidade de vozes: a história da produção
de cada imagem e as novas interpretações dos autores, a história a partir do que as
audiências vêem e a história a partir da sensibilidade do pesquisador. Finalmente, quando o
processo de construção da narrativa esteja num estagio mais avançado, tem que se
explicitar as decisões editorias, tanto no texto oral como na seleção das imagens. “Visual
narratives, like oral and written ones, are created for audiencies, often blurring fact and
fiction, the “natural” and the scripted, the public, and the private. Visual narratives create
new fictions with public performances of a “personal” self”. (KOHLER: 2008 p. 178)
A reflexão anterior nós abre caminho para a metodologia da intertextualidade como
rota possível para a construção das narrativas da memória a partir das fotografias de San
Agustín. Pensemos na,
Referências bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. La fotografía un arte intermedio. México DF: Nueva Imagen, 1980.
BERGER, John. Uses of Photography. Selected Essays. Editado por Geoff Dier. 2001, p.
286-293.
KOHLER RIESSMAN, Katherine. Narrative Methods for the human science. 2008.
MAUAD, Ana Maria. Poses e Flagrantes: ensaios obre história e fotografia. Niterói:
Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008.
MARTINS, José de Souza. Sociologia da fotografia e da imagem. São Paulo: Contexto,
2009.
MENEZES, Ulpiano T. Bezerra. Fontes visuais cultura visual, história visual. Balanço
provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, v. 23, n.45, julho 2003.