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ARAGARÇAS (1943-1968): A MODERNA URBE NA ROTA PARA O OESTE *

Dulce Portilho Maciel*

RESUMO:
A cidade de Aragarças foi implantada em 1943, para servir de base avançada de operações para uma nova
instituição, a Fundação Brasil Central (FBC), criada também naquele ano, com a finalidade servir de
instrumento de ação do governo federal sobre a região Centro-Oeste do país. Esta região encontrava-se,
ainda na época, esparsamente povoada e precariamente integrada ao restante do país. Habitavam-na,
entretanto, numerosos grupos indígenas. A implantação da nova cidade levou em conta um projeto
urbanístico, especialmente para ela concebido, segundo o ponto de vista de que deveria vir a exercer
funções “civilizadoras” e, bem assim, de coordenação dos movimentos de expansão em direção ao oeste
do país, de atividades econômicas e culturais então próprias das regiões litorâneas brasileiras. A nova
cidade foi dotada de infra-estruturas e serviços urbanos básicos, além de outras comodidades da vida
moderna, o que a tornava singular em relação a todas as demais povoações da região.

Palavras-chave: Aragarças; Cidade moderna; Centro-Oeste

INTRODUÇÃO

A cidade de Aragarças foi fundada em 1943, a fim de que viesse a servir de base avançada

para as atividades da instituição denominada Fundação Brasil Central (FBC), constituída também

naquele ano, com a finalidade de desbravar1 e colonizar vastas áreas das regiões Centro-Oeste e

Norte do Brasil, compreendidas pelas bacias hidrográficas Araguaia-Tocantins, Xingu e Tapajós.

A FBC vinculava-se diretamente à Presidência da República e tinha sede na cidade do Rio de

Janeiro, então Capital federal. Foi a primeira instituição constituída, no Brasil, para servir de

instrumento de intervenção do Estado sobre o território.

Aragarças localiza-se a 15o 15’ latitude sul e 52o 15’ longitude oeste, na sub-região Sudoeste

do estado de Goiás, na confluência deste estado com o de Mato Grosso. A denominação da

cidade deriva dos nomes dos cursos de água que se reúnem naquele ponto, o rio Araguaia e seu

afluente pela margem esquerda, o rio Garças.

*
O presente texto foi apresentado, em versão ligeiramente diferente desta, nas IV Jornadas Nacionales Espacio,
Memoria e Identidad, promovido pela Universidad Nacional de Rosario, realizado em Rosário (Argentina), entre
4 e 6 de outubro de 2006. Os anais do evento foram publicados em CD.
*
Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense, professora e pesquisadora da Unidade
Universitária de Ciências Sócio-Econômicas e Humanas, da Universidade Estadual de Goiás.
1
Essa palavra era usada, na época, no sentido de “devassar” ou “explorar” terras desconhecidas.
A elaboração deste trabalho baseia-se em uma pesquisa mais ampla, a respeito da

trajetória histórica da FBC, em que se toma como principal fonte o conjunto de documentos

produzidos e/ou reunidos por esta instituição, ao longo de sua existência (cerca de 25 anos),

atualmente guardado no Arquivo Nacional – Coordenação Regional do Distrito Federal. Baseia-

se também em fontes primárias impressas; isto é: relatos de viajantes, obras escritas ou

organizadas por antigos moradores da cidade de Aragarças, ilustradas ou compostas com

reproduções de documentos originais (recortes de jornais, fotos históricas, depoimentos escritos

e orais, etc); matérias publicadas em periódicos editados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE).

O trabalho fundamenta-se, também, em alguns pressupostos teóricos, expostos aqui,

sumariamente.2 Parte-se nele, por um lado, da compreensão de que o Estado, tal como se

apresenta na época contemporânea, sob o sistema econômico capitalista, representa, em última

instância, os interesses dos segmentos econômico-sociais dominantes na sociedade e, sendo

assim, tem como principal função a defesa de tais interesses, tomados em seu conjunto -

eventuais interesses individuais discrepantes podem e devem ser descartados. Da eficácia do

Estado no cumprimento desta função, depende a conservação do próprio sistema econômico.

Parte-se, por outro lado, do ponto de vista de que, para a evolução regular do sistema, o

que implica na sua contínua reprodução, é condição indispensável a progressiva ampliação das

áreas geográficas a ele incorporadas, na dupla condição de produtoras e consumidoras de

mercadorias, no primeiro caso, prioritariamente de matérias primas (e/ou alimentos), e no

segundo, de produtos industriais acabados (ultimamente, também produtos informacionais).

Parte-se, ainda, da suposição de que, sob a vigência do referido sistema, as cidades

constituem-se em elemento fundamental, visto que são, ao mesmo tempo, pré-condição, parte

constitutiva e produto deste sistema. As aglomerações urbanas são as portas de entrada

2
As noções a seguir expostas foram formuladas com base em diversos autores filiados à tradição do pensamento
marxista, entre eles: V. I. Lênin (1987), J. Hirsch (1990), M. Folin (1977) e J. Lojkine (1986).

2
privilegiadas para a penetração do modelo econômico capitalista, em regiões anteriormente dele

excluídas. Para que possam alcançar maior eficácia no cumprimento desta função, as cidades

necessitam adquirir uma série de requisitos, que somente podem ser providos mediante o uso de

materiais e técnicas de produção próprios deste modelo econômico, em seu estágio coevo de

evolução. Deste modo, a constituição do urbano, em sua materialidade, torna-se, de um lado, o

próprio lócus da produção capitalista (e, portanto, de reprodução contínua do capital) e, de outro,

a base de apoio sobre a qual seu raio de influência se expande sobre o território.

O presente trabalho tem em vista contribuir para a reflexão acerca da experiência

brasileira de intervenção do Estado sobre o território, oferecendo respostas, ainda que não

definitivas, às seguintes indagações: a) em que medida a cidade de Aragarças veio a exercer as

funções de curto prazo para as quais foi implantada? b) que efeitos de longo prazo resultaram de

sua presença naquele território? c) tais efeitos guardam relação com as bases materiais e/ou

técnicas sobre as quais a cidade se estabeleceu?

1. A SEGUNDA GRANDE GUERRA E A MARCHA PARA O OESTE

O ano de 1930 inaugurou, no Brasil, um novo período da história política do país, a

República Nova,3 período também chamado de Era Vargas.4 Iniciou-se, naquela ocasião, um

processo de concentração do poder político nacional, no âmbito do poder executivo da esfera

federal de governo. Eliminava-se, deste modo, o caráter federativo da União brasileira, definido

na primeira Constituição republicana do país (de 1891) e, bem assim, a natureza dita liberal-

democrática de que, desde então, se revestira o regime de governo. Para operacionalização da

3
Edgar Carone (1974), por exemplo, usa essa denominação com referência ao período 1930-1937.
4
José Murilo de Carvalho usa essa expressão em sentido amplo, como o período entre 1930 e 1964, visto que a
define tomando como critério a relação entre a pessoa do presidente da República e as elites militares. Segundo
ele, a morte de Getúlio Vargas, em 1954, não teria interrompido um processo que se iniciara com a ruptura
ideológica entre Vargas e os militares, quando o presidente passou a acionar um novo ator político, o
operariado, pois, a partir de então, o combate teria sido travado contra sua herança - ou o seu “fantasma” -,
representada por Juscelino Kubitschek e João Goulart. Conforme esse autor: “Em 1964, travou-se a batalha final
que deu a vitória à facção militar anti-Vargas e a seus aliados civis, abrindo-se um novo ciclo político no país.”
(1999:56)

3
política centralizadora, criaram-se diversos ministérios e numerosas outras instituições, algumas

no âmbito dos ministérios, mas diversas delas vinculadas diretamente ao Chefe do Governo.

Entre estas últimas, achou-se a Fundação Brasil Central.

Esta concentração de poder no âmbito do Executivo federal teve relação com ideologias

então em voga no exterior - o caso das idéias fascistas, na Europa -, mas ancorava-se, também,

em um ideário crescentemente difundido nos meios intelectuais brasileiros, ao longo das

primeiras décadas do século XX, notadamente, entre as elites ilustradas do meio militar.

(Fausto,2001; Borges,1992) Pertenciam a estas elites diversos indivíduos investidos de autoridade

após a chamada Revolução de 1930, em razão do apoio que ofereceram ao movimento político

então vitorioso, encetado por segmentos dissidentes das oligarquias civis anteriormente no poder.

Diversos desses militares haviam participado de episódios do movimento rebelde

denominado “tenentismo”, desenrolado na década de 1920, protagonizado por jovens militares,

na época, de média patente. Entre estes ex-rebeldes, achava-se João Alberto Lins de Barros,

designado, ao instalar-se o novo governo encabeçado por Getúlio Vargas, para ocupar o cargo de

Interventor Federal no estado de São Paulo, já na época, a unidade de maior proeminência,

política e econômica, da federação brasileira. Deixaria este posto em 1932, em função do

movimento denominado Revolução Constitucionalista, em São Paulo.

Em 1937, em consonância com a cultura política autoritária e centralizadora então em

voga, em escala mundial e mais notadamente na Europa, instaurou-se, no Brasil, o regime

ditatorial do Estado Novo. Seguiu-se a isto uma campanha, veiculada pela imprensa, denominada

Marcha para o Oeste. Caracterizada por um discurso exacerbadamente nacionalista, de cunho

nitidamente ideológico, em justificação do novo regime, alcançaria larga repercussão na opinião

pública nacional, sobretudo após o ingresso do Brasil na segunda Grande Guerra, ao lado dos

países aliados. Sob o novo regime, João Alberto iria enfeixar, em suas mãos, extraordinária gama

de poderes, como veremos adiante.

4
Aquela campanha foi acompanhada por uma série de medidas, tomadas pelo governo

federal, algumas delas em conjunto com governos estaduais ou com a iniciativa privada, no

sentido de promover o povoamento e a ocupação econômica de vastas regiões do interior do

país, até então escassamente povoadas e precariamente integradas às áreas litorâneas brasileiras.

Entre estas medidas – colonização planejada, migração dirigida, experiências-modelo em

modernização agrícola, etc. -, a de mais largo alcance foi a criação da FBC.

Estas medidas guardaram relação com uma doutrina então em voga, tanto na Europa

como no Japão, da necessidade do “espaço vital”. Conforme esta doutrina, as áreas

semipovoadas e/ou economicamente mal aproveitadas do planeta deveriam ser ocupadas por

nações mais capacitadas que suas atuais detentoras, a fim de que fosse promovida uma

distribuição homogênea da população mundial e, bem assim, a exploração das potencialidades

econômicas de tais territórios, “em benefício dos povos”. (Varjão,1989:53-54) Mas aquelas

medidas relacionaram-se, também, com questões de política econômica, no Brasil, em face da

necessidade que se via, tanto no meio empresarial urbano como entre os grupos

“desenvolvimentistas” – intelectuais civis, secundados por alguns militares (Silva,1999) -, de se

promover a industrialização do país, o que exigia a formação de um mercado interno, seguida de

sua ampliação, mediante a incorporação, à economia nacional, de vastas regiões do país

potencialmente ricas em matérias primas e fontes de energia.

2. A EXPEDIÇÃO RONCADOR-XINGU E A FUNDAÇÃO BRASIL CENTRAL

Durante o tempo em que o Brasil esteve participando da segunda Grande Guerra (1942-

1945), João Alberto Lins de Barros exerceu uma excepcional gama de poderes, em função dos

papéis que protagonizou: negociador dos chamados Acordos de Washington (1942), em

decorrência dos quais o Brasil veio a ingressar na guerra, ao lado dos Estados Unidos; ministro

extraordinário da Coordenação da Mobilização Econômica, órgão centralizador dos esforços

nacionais de guerra; presidente do Conselho de Imigração e Colonização (CIC); presidente da

5
FBC; além de outros. Foi na função de coordenador da Mobilização Econômica que baixou a

Portaria No. 77, de 3 de junho de 1943, pela qual ficava determinada a organização da Expedição

Roncador-Xingu, entidade logo depois tomada como de “interesse militar” – Decreto No. 5.801,

de 8 de setembro de 1943.

A Expedição teria como tarefa o estabelecimento de uma rota terrestre, aérea e de rádio-

telégrafo entre as cidades do Rio de Janeiro e Manaus. A urgência desta medida decorria da

circunstância de encontrar-se o Brasil em guerra e, em conseqüência disto, acharem-se as suas

regiões litorâneas (assim, a navegação costeira) vulneráveis a ataques inimigos. Na época, a

navegação marítimo-fluvial era o único modo possível de se alcançar a região Norte do país, bem

como grandes porções da região Centro-Oeste.

O plano a ser executado pela Expedição consistia em, a partir de uma base de apoio

instalada em Uberlândia (estado de Minas Gerais), então ponto final da estrada de ferro Mogiana,

construir uma rota terrestre composta de um trecho de rodovia e outro de estrada carroçável –

por caminhões, equipamentos automotores de grande porte ou veículos de tração animal -, entre

esta cidade e a margem direita do rio Tapajós, a partir de onde, por via fluvial, alcança-se Manaus.

Ao longo desta rota, a expedição deveria instalar inúmeros postos de apoio à aviação, dotados de

campo de pouso, instalações para funcionamento de serviço de rádio-comunicação e um

conjunto de edificações rústicas, para abrigar equipes em serviço.

Para viabilizar o cumprimento da missão para qual foi criada a Expedição, João Alberto e

seus colaboradores empreenderam intensa campanha de mobilização de recursos, em forma de

dinheiro, veículos, artigos de campanha e outras, mediante doações de empresas, organizações da

sociedade civil, etc. Paralelamente a isto, a Coordenação da Mobilização Econômica realizou

atividades de recrutamento de recursos humanos, em grande número de indivíduos, desde

pessoal técnico em construção de estradas, pontes e outras obras de arte, a médicos, topógrafos,

sertanistas (atuais indigenistas), pilotos de avião, trabalhadores braçais, caçadores, cozinheiros,

6
etc. Para comandar a expedição, foi nomeado o tenente-coronel Flaviano de Matos Vanique, até

então chefe da guarda pessoal do presidente da República.

Em 11 de agosto daquele ano de 1943, os membros da Expedição, vindos em sucessivas

levas, acharam-se reunidos em Uberlândia. Nesta localidade, já antes se havia estabelecido uma

sofisticada base de apoio, cuja função inicial seria prover o abastecimento dos grupos

expedicionários, tanto os que iriam atuar no primeiro trecho da rota, entre Uberlândia e a região

do alto rio Araguaia (onde a este se junta o rio das Garças), em Goiás, como os que, a partir daí,

atuariam como vanguarda da Expedição, realizando reconhecimento de terreno e abrindo

picadas, em território até então desconhecido, no estado de Mato Grosso.

Havia já uma estrada, aberta pela iniciativa privada, entre Uberlândia e o ponto a ser

atingido pela Expedição, na margem esquerda do rio Araguaia. Em realidade, diversos trechos da

estrada existente não passavam de trilhas abertas por particulares, para o tráfego de carros de bois

e tropas de muares, as maneiras mais comuns pelas quais, na época, fazia-se o transporte de

cargas, em todo o estado de Goiás. Muito raramente, algum caminhoneiro (em geral, também

comerciante) aventurava-se a trafegar com seu veículo por aquelas paragens, sobretudo nos

últimos trechos da via. Os rebanhos de gado bovino, na época, a mercadoria de exportação por

excelência do estado de Goiás, transportados por seus próprios meios, seguiam principalmente

por este caminho, em direção a seus mercados, no estado de São Paulo.

Por esta estrada, chegaram à margem esquerda do Araguaia, transportados em caminhões,

os primeiros grupos de expedicionários, os quais se encarregariam de construir, além de toscos

abrigos para si próprios e para os materiais destinados à Expedição, também um precário campo

de pouso para aviões. No trajeto, passaram por diversos aglomerados urbanos do estado de

Goiás, alguns deles já tradicionais – Santa Rita do Paranaíba (atual Itumbiara), Rio Verde e Rio

Bonito (atual Caiapônia) -, outros ainda meros arraiais – Monte Alegre, Bom Jesus e Ibotim (atual

Bom Jardim de Goiás).

7
A localidade escolhida, em razão de suas boas condições de salubridade, para servir de

base avançada à Expedição, possuía já algumas construções rústicas, habitadas por uma pequena

população de garimpeiros; denominava-se Barra Goiana. Em frente a esta localidade, erguia-se do

lado mato-grossense do rio Araguaia, um povoamento relativamente consolidado, chamado Barra

Cuiabana, origem da atual cidade de Barra do Garças.

No dia 14 de agosto de 1943, o ministro João Alberto, havendo pousado no pequeno

aeroporto recém construído, escolheu, pessoalmente, a área na qual seriam construídas as

primeiras edificações permanentes da base de Aragarças, o novo nome por ele próprio dado

àquela localidade. Na ocasião, ali se erigiu um monumento, sob a forma de uma cruz esculpida

em madeira, o qual seria inaugurado a seguir, mediante cerimônia solene, a fim de que viesse a

representar o “marco zero” da rota a ser aberta até a margem direita do rio Tapajós, a oeste do

estado do Pará. O Boletim Geográfico noticiaria o evento histórico:

“Com a presença do ministro João Alberto e pessoas da caravana de jornalistas,


realizou-se uma missa campal, celebrada em ação de graças pelo início da construção da
cidade de Aragarças, nome que assinala a confluência dos rios Araguaia e Garças. A
cerimônia foi oficiada pelo padre Vitório, da ordem dos Salesianos que antes da missa
pronunciou uma oração, saudando o ministro João Alberto. O sacerdote rezou a missa
diante de uma bela cruz construída com madeiras da região...” 5
Em outubro daquele mesmo ano, no entanto, um novo órgão seria criado – Decreto No.

5.878, de 4 de outubro de 1943 -, para atuar na zona a ser percorrida pela Expedição. Tratou-se

da Fundação Brasil Central (FBC),6 instituição que além de tomar para si a missão antes àquela

atribuída, tinha por objeto, segundo seus estatutos – aprovados pelo Decreto No. 17.274, de 30

de novembro de 1944 -, “o desbravamento e a colonização das regiões do Brasil Central e

Ocidental, notadamente as dos altos rios Araguaia e Xingu.” Assumiu a presidência do novo

órgão, o ministro João Alberto Lins de Barros.

A FBC constituiu-se como entidade de dupla natureza jurídica. Conforme seus estatutos,

ela seria, de uma parte, instituição de direito público e, de outra, instituição de direito privado.

Graças a esta dupla condição, ela pode, por um lado, constituir e conservar um vasto quadro de

5
Boletim Geográfico, fevereiro/1945, p. 1549.
6
Um artigo de nossa autoria acerca da trajetória histórica da FBC acha-se relacionado na Bibliografia, ao final
deste trabalho. (Maciel,2005).

8
pessoal estável, remunerado com verbas do orçamento da União brasileira e, por outro, organizar

sociedades empresariais (duas limitadas e duas anônimas), além de explorar numerosos outros

negócios, tanto industriais como dos serviços. Ademais, a ela foi entregue, em regime de

administração delegada, a gestão de uma empresa da União, já antiga, a Estrada de Ferro

Tocantins – seu trecho inicial fora inaugurado em 1905. E a FBC conservaria sua dupla natureza

jurídica, ao longo de sua existência - até 1968 -, com um pequeno interregno, no começo dos

anos de 1950.7

Os investimentos empresariais realizados pela FBC foram de grande monta. Duas das

empresas fundadas, as sociedades anônimas, atuariam no ramo industrial da produção de açúcar e

álcool; foram elas: a Usina Central Sul-Goiana e a Usina Fronteira. A primeira foi instalada no

município de Rio Verde, no estado de Goiás (onde se acha a atual cidade de Santa Helena) e a

segunda instalou-se no município de Frutal, no estado de Minas Gerais. As duas outras empresas

foram: Entrepostos Comerciais Brasil Central e Companhia de Navegação Amazonas. A primeira

explorava o comércio, no atacado e no varejo, do ramo de “secos e molhados”, ou seja: tecidos,

armarinhos, calçados, chapéus, medicamentos, ferragens, ferramentas, produtos veterinários,

enlatados, bebidas, combustíveis, etc. Esta empresa instalou diversos armazéns, ao longo da rota

entre Uberlândia e Aragarças. A Companhia de Navegação foi criada para atuar na exploração

dos serviços de transporte, pelo rio Amazonas e seus principais afluentes da margem direita, no

trecho entre Manaus e Belém.

Nenhuma dessas empresas prosperou, duradouramente, sob a administração da FBC. As

duas primeiras, após sucessivas crises, foram transferidas à iniciativa privada, enquanto que as

duas últimas, em conseqüência de administrações negligentes ou despreparadas, foram extintas,

simplesmente. Apesar de tudo isto, foram grandes os benefícios que trouxeram, ao estado de

Goiás, as duas empresas que atuaram em seu território. A usina Sul-Goiana, instalação industrial

7
O atributo de entidade de direito privado foi-lhe retirado pelo decreto no. 29.176, de 19/1/1951, decisão
revogada pelo decreto nº. 29.835, de 1/8/1951.

9
modelo, no ramo de sua atuação, na nova condição de empresa estritamente privada, segue

prosperando até os dias atuais.

Os Entrepostos Comerciais, por seu lado, enquanto existiram, corresponderam

perfeitamente a um dos objetivos de sua criação; isto é: produzir, na população regional, hábitos

de consumo monetarizado, fator que, do ponto de vista das autoridades da FBC, teria como

resultados, de um lado, a abertura de novos mercados para produtos industriais e, de outro, a

modernização dos modos de vida da população interiorana.8 A Estrada de Ferro Tocantins (EFT)

esteve sob a administração da FBC entre 1944 e 1968, quando esta foi extinta. Localizava-se no

estado do Pará e estendia-se ao longo da zona encachoeirada do rio Tocantins – área atualmente

alagada, em decorrência da instalação, ali, da Usina Hidrelétrica de Tucuruí. Esta ferrovia, não

obstante o crônico estado de insolvência financeira em que se achou, ao longo desse tempo,

prestou relevantes serviços às economias das regiões banhadas pela bacia Araguaia-Tocantins -

dos estados do Pará, Maranhão, Goiás e Mato Grosso -, possibilitando o comércio entre estas

regiões e a cidade de Belém.

A FBC atuaria na condição de instituição de direito público, sobretudo, na missão que

herdara da Expedição Roncador-Xigu e em atividades dela derivadas, levadas a efeito nas regiões

dos estados de Goiás, Mato Grosso e Pará, próximas à rota projetada entre Uberlândia e o rio

Tapajós, onde hoje se acha a cidade de Jacareacanga. Acompanhando esta rota, a FBC construiu,

além das cidades de Aragarças e Xavantina e do núcleo urbano de uma colônia agrícola em Vale

dos Sonhos (origem da atual cidade do mesmo nome), numerosas estradas de rodagem9 e campos

de aviação10 - vários destes últimos tornaram-se núcleos urbanos iniciais de municípios

atualmente do mesmo nome. E, na execução das atividades concernentes a essa imensa área

8
Cite-se, a respeito deste ponto, João Alberto: “Penso que integrar aquelas populações brasileiras na civilização
para que elas se aproveitem das conquistas modernas incorporadas à nossa existência e tão imprescindíveis a
todo ser humano, é um dever primordial.” Boletim Geográfico, junho/1945, p. 1889.
9
Entre outras, Jataí-Aragarças, Aragarças-Baliza, Aragarças-Xavantina, Aragarças-Poxoréu, Piranhas-
Arenópolis, Xavantina-Cachimbo, Xavantina-Garapu, Xavantina-Cachoeira, Caiapônia-Rio do Peixe, Rio
Verde-Santa Helena de Goiás.
10
Em Aragarças, Cabroá, Caiapônia, Xavantina, Capitão Vasconcelos, Centro Geográfico (hoje, em território do
Parque Indígena do Xingu), Creputiá, Cururu, Diauarum, Flexal, Garapu, Ilha do Bananal, Campo dos Índios,
Koluene, Pindaíba, Piranhas, São Félix do Araguaia, Cachimbo, Tanguro, Vale dos Sonhos e Jacareacanga.

10
territorial, o papel desempenhado pela cidade de Aragarças, a principal base de apoio de que

dispunha a FBC, foi extraordinariamente relevante.

3. ARAGARÇAS: CIDADE MODERNA, PLANEJADA...!

Em junho de 1945, o coronel Mattos Vanique esteve na cidade do Rio de Janeiro, ocasião

em que concedeu entrevista à imprensa, contando episódios da marcha que vinha conduzindo,

pelo interior do Brasil. Nesta época, a base de Aragarças já se achava instalada e iniciavam-se as

primeiras edificações de uma base secundária, às margens do rio das Mortes, afluente do Araguaia

pelo lado esquerdo. Ponto de apoio para o avanço de uma nova etapa da marcha, em direção ao

rio Xingu, a esta base deu-se o nome de Xavantina, em homenagem aos índios xavantes, até

então senhores das terras daquela zona. Acerca deste ponto, veja-se depoimento de um jornalista

que anos antes excursionara pela região do rio das Mortes:

“Entre as regiões mais bárbaras do Brasil está o vale do Araguaia, onde perdura em
diversos afluentes e mesmo em distendidos trechos de suas margens um mundo bruto e
indevassado. Aí dominam até hoje tribos de índios absolutamente arredados dos olhos
dos cristãos, pois que nos recessos de suas amplitudes nem os catequistas, nem os
aventureiros penetraram.” (Silva, 1948: 21)

Naquela etapa da marcha da expedição não houve encontro com os xavantes, até a época,

tenazes defensores de seu território. Desta feita, em vez de oferecer combate, os xavantes

optaram por recuar para outras áreas do vale do Araguaia.11 Quanto às condições em que se

achavam as bases de Aragarças e Xavantina, na oportunidade acima mencionada, o coronel

Vanique fez as seguintes declarações à imprensa:

“Base de Aragarças já não existe. Onde ontem estavam as choças dos garimpeiros,
ergue-se hoje a cidade de Aragarças... Hoje, ela tem eletricidade, campo de aviação,
olaria de onde saem os tijolos, as manilhas e as telhas da novel cidade, além de uma
serraria que em breve atenderá não só Aragarças como todas as regiões circunvizinhas.
[...] Nosso primeiro cuidado foi o de escolher local para um campo de pouso em
Chavantina, (sic) que já tem uma pista de 1.250 metros... Já estão em funcionamento a
olaria e a serraria. Construímos também um curtume...”12

11
As relações entre os membros da Expedição e os numerosos grupos indígenas que habitavam as regiões por ela
percorridas são descritas no livro dos irmãos Orlando e Cláudio Villas Boas, A Marcha para o Oeste, 1994 e
também no texto Memórias de Orlando e Cláudio Villas Boas: trinta e dois anos de vida na selva, narrados por
Orlando a José Marqueiz, publicado na coletânea organizada por Valdon Varjão, intitulada Aragarças: portal da
Marcha para o Oeste, 1989, pp. 147-162.
12
Jornal A Noite, edição de 13/julho/1945.

11
Entre os dias 23 e 25 de junho daquele ano de 1945, o presidente da República Getúlio

Vargas, acompanhado de grande comitiva, esteve na região do Araguaia, em visita às duas bases

recém instaladas, de Aragarças e Xavantina. Fazia parte da comitiva o então ministro da Guerra, o

general Gaspar Dutra, personagem que, no ano seguinte, assumiria a presidência do Brasil, já

então, sob regime constitucional e democrático. O general Dutra era natural do estado de Mato

Grosso e, na ocasião, segundo consta, (Varjão,1989:117) manifestou seu contentamento em ver o

avanço que se realizava, no sentido de se levar “civilização” às regiões agrestes de seu estado

natal.

Na época, uma outra frente de trabalho avançava pela via já antes existente, entre

Uberlândia e Aragarças, de cerca de 800 quilômetros. Por ela, a FBC construiu uma rodovia, a

primeira digna deste nome, em Goiás. Nesta rota, a FBC instalou bases em Rio Verde e em

Caiapônia. Em Rio Verde, além da Usina Central Sul-Goiana, já mencionada, a FBC instalou uma

granja modelo, para experimentação e demonstração de novas técnicas de cultivo e criação de

pequenos animais. Em Caiapônia, entre outras medidas, construiu um importante campo de

pouso e instalou, na zona rural do município, uma olaria e uma moderna caieira (esta, na

localidade de Vila Maria), as primeiras indústrias destes ramos, de toda aquela região goiana.

Naquele ano de 1945, João Alberto falou à imprensa, acerca do empreendimento de que se

ocupava:

“As construções em Aragarças estão em andamento... Temos prontas e habitadas várias


casas... Outras se iniciam... Tanto em Aragarças como nas pequenas povoações situadas
ao largo da linha principal de penetração, vão surgindo novas indústrias. A primeira é a
de material de construção. Todo tijolo, telha, ladrilho, manilha deve ser produzido no
próprio local... Da mesma forma serraria e carpintaria...”13
O abastecimento de alimentos aos trabalhadores da FBC, assim como à própria

população local de garimpeiros e aos forasteiros que chegavam, vindos em busca de trabalho, de

negócios ou de tratamento de saúde – as instalações do serviço médico, ainda precárias, estavam

sempre lotadas -, constituiu-se em problema. A região sudoeste de Goiás era então ocupada por

fazendas esparsamente localizadas, nas quais se praticavam uma agropecuária para auto-consumo,

13
Jornal do Brasil, edição de 21/janeiro/1945.

12
achando-se despreparadas, portanto, para a produção imediata de excedentes comercializáveis. O

vale mato-grossense do Araguaia era habitado por grupos indígenas, arredios a contactos com

estranhos. Segundo o depoimento de João Alberto, na oportunidade mencionada acima, o

problema foi equacionado do seguinte modo:

“A população de Aragarças pode ser calculada em cerca de 2 mil habitantes. Nesse


número estão incluídos os 500 trabalhadores a serviço da Fundação. Os garimpeiros
constituem outro tanto. [...] Daqui levamos um hortelão competente, que lá ensinou sua
arte a mais dez... Não há hortas mais extensas e mais bonitas que as de Aragarças.
Matam-se, além disso, duas rezes por dia, para garantir o abastecimento. Há ainda, na
época propícia, muito bom peixe. A criação de galinhas... está se desenvolvendo... O
feijão, o arroz, a mandioca, os produtos do milho têm à tour de role o seu lugar...”14
Apesar de o regime do Estado Novo ter-se extinguido em 1945, João Alberto

permaneceria na presidência da FBC até 1947. Neste último período, todavia, sua atuação deixou

de ser efetiva, visto que se achava em missão diplomática no exterior. Em janeiro de 1948, tomou

posse neste cargo outro militar, o general Francisco Borges Fortes de Oliveira, que veio a

encontrar a instituição em grave crise, econômica e administrativa. E a crise na FBC, então

instaurada, tornar-se-ia crônica, pelo restante do tempo de existência da instituição, apenas

intercalada por curtos períodos de relativo equilíbrio.

Em 1951, tomaria posse na presidência da FBC o político mato-grossense Archimedes

Pereira Lima, nomeado por Getúlio Vargas, eleito presidente da República no ano anterior, desta

vez, pelo voto popular. O novo presidente da FBC tinha a intenção de transferir a sede da

instituição, da cidade do Rio de Janeiro para Aragarças. Embora esta medida não tenha se

efetivado, durante sua gestão – até 1954 -, o desenvolvimento de Aragarças retomou,

temporariamente, seu dinamismo.

Durante esta gestão, numerosas obras de construção civil e de embelezamento da cidade

foram realizadas, instalando-se também algumas infra-estruturas e serviços urbanos básicos.

Antes do mais, cite-se, destas atividades, o início da construção da ponte, hoje denominada João

Alberto, sobre o rio Araguaia. Obra de grande porte e complexidade técnica, somente viria a ser

concluída em 1958. Em razão de sua fundamental importância para o desenvolvimento de toda a

14
Jornal do Brasil, edição de 21/janeiro/1945.

13
região Centro-Oeste, inaugurou-a, nesse ano, o então presidente da República, Juscelino

Kubitschek.

Entre as obras executadas durante a gestão Pereira Lima, cite-se ainda as seguintes: uma

vila residencial, com 50 casas; um hospital, com capacidade para 70 leitos (o primeiro, em todo o

vale do rio Araguaia); uma escola primária; uma escola em nível ginasial; um hotel; um templo

católico; um clube recreativo; um estabelecimento industrial para beneficiamento de grãos; uma

usina hidrelétrica; uma estação de tratamento de água; uma central telefônica (rede local) - as três

últimas, com suas respectivas redes de distribuição. Ainda nesta gestão, o aeroporto foi dotado de

sofisticado sistema de rádio, de equipamentos de meteorologia e de uma moderna estação de

passageiros, a fim de que pudesse receber aviões de carreira e, bem assim, da Força Aérea

Brasileira (FAB) e do Correio Aéreo Nacional (CAN).

Em 1953, entrou em vigor o Código de Obras da cidade, baixado pela administração

pública municipal, então recém instalada – o município de Aragarças desmembrara-se do de

Baliza ano anterior -, elaborado em conformidade com um projeto urbanístico concebido por

encomenda da FBC, a uma empresa sediada na cidade do Rio de Janeiro, a Urbs Construções e

Urbanismo Ltda. O projeto urbanístico e o código de obras tinham por objeto o ordenamento

das edificações no perímetro urbano da cidade, sobretudo no concernente às edificações

particulares, visto que havia uma grande demanda de terrenos urbanos para esta finalidade. As

terras em que se achava implantada a cidade pertenciam à FBC.

O Plano Diretor de Urbanização de Aragarças, segundo seus autores, foi organizado de

modo a que todos os “cometimentos estivessem compreendidos em um Plano Geral de

Conjunto, formando elementos definitivos na futura cidade...”15 A elaboração do plano foi

antecedida de levantamento cadastral da área a ser edificada de imediato. As áreas necessárias a

extensão futura da cidade, embora não levantadas, caracterizavam-se, segundo o plano, por uma

15
Fundação Brasil Central, Administração Arquimedes Pereira Lima, Plano de Urbanização de Aragarças, p. 3.
Este documento e também o Código de Obras editado pela Prefeitura Municipal de Aragarças acham-se
guardados, juntamente com o restante do acervo documental da FBC, no Arquivo Nacional – Coordenação
Regional do Distrito Federal.

14
topografia bastante regular, “com ondulações e pequenos talwegs”. A planta cadastral então

elaborada compreendia uma área de 5.063352,00 m2, verificando-se que:

“Aragarças da atualidade compreende uma parte edificada nas condições das cidades de formação
garimpeira, com casas de palha e barro, ruas sem alinhamento..., um núcleo industrial composto de olaria,
oficinas, cooperativa, máquina de beneficiamento de arroz, usina de força e luz e almoxarifado geral; outra
parte consistente de núcleo residencial e instalação de aeroporto; e uma quarta parte composta de estaleiro,
serraria e [unidade] agro-pecuária. Esses elementos foram dispostos, salvo o primeiro, segundo um plano
pré-estabelecido [em 1943, por orientação de João Alberto].”16

O plano diretor geral de Aragarças, então concebido, compreendia uma área a ser

ocupada em 50 anos. Desta, a porção a ser edificada em 20 anos é que foi detalhada. Ela

compreendia 2 mil lotes urbanizados, prevendo-se a sua ocupação e uso por cerca de 10 mil

habitantes. Esta parte abrangia toda a rede viária, assim como a distribuição dos espaços livres e

os loteamentos das quadras, observando-se um esquema previamente definido de zoneamento. O

zoneamento deixava de estabelecer, no entanto, divisas de áreas perfeitamente definidas. Em

realidade, o zoneamento proposto era mais “um conselho ou um programa”. Caberia à

Prefeitura, “na medida das necessidades, sua adaptação no sentido de não prejudicar o

desenvolvimento da cidade, por condições rígidas de zoneamento.”17

O traçado urbano constante do projeto urbanístico de Aragarças pode ser descrito,

esquematicamente, como “um conjunto de vias anulares concêntricas, em torno de um baricentro

que é o centro administrativo e avenidas radiais, buscando em geral os pontos de acesso à cidade,

ou interligação dos elementos funcionais do plano.”18 Os elementos funcionais são aqueles que

definem as correntes de tráfego mais intenso. São eles que determinam as condições da rede

viária, considerando-se a exigência de “intercomunicação harmônica” das vias, a fim de se obter

uma distribuição homogênea do tráfego.

Os elementos funcionais considerados no projeto foram: a) o aeroporto – pela sua

extensão e, principalmente, devido ao transporte aéreo constituir-se em principal meio de

comunicações de Aragarças; b) o núcleo industrial, ponto inicial da implantação da cidade e onde

16
Trecho do Plano de Urbanização acima citado, p. 4.
17
Idem, p. 13.
18
Op.cit,loc.cit.

15
se achavam já construídos também um núcleo residencial, um pequeno porto e uma estação

geradora de energia elétrica; c) o conjunto edificado originalmente chamado Barra Goiana, onde

habitavam, naquela ocasião, cerca de 80% da população de Aragarças; d) a ponte em construção,

sobre o rio Araguaia. Outros elementos determinantes das correntes de tráfego, considerados no

projeto, foram: o Centro Esportivo, o Centro Administrativo, o Parque de Esportes (então

projetado) e a estrada que demandava a Uberlândia. As obras de alguns destes elementos

evoluíam concomitantemente à elaboração do plano, como explicam seus autores: “O... projeto

de urbanização de uma cidade nova e em plena evolução, como Aragarças, em que as obras

correm paralelamente com os projetos... não pode, como é usual, ser elaborado por completo

para depois ser executado.”19

A área da antiga Barra Goiana, agora denominada Bairro Popular, caracterizava-se por

uma elevada densidade demográfica e concentrava a maior parte do comércio local. Nesta área, as

edificações foram preservadas, corrigindo-se apenas os alinhamentos, para permitir a implantação

de vias de acesso à ponte. No projeto, a ponte constituía-se no elemento funcional mais

marcante, visto que, no futuro, seria ponto obrigatório de passagem para as estradas que

demandariam a Cuiabá, capital de Mato Grosso, e ao norte deste estado, via Xavantina: “duas

grandes vias de penetração, que drenarão um tráfego bastante intenso.”20

Pelo traçado definido, todas as vias de tráfego constituir-se-iam de duas mãos e seriam

dotadas de adequadas seções transversais. Os elementos funcionais seriam interligados por vias

dominantes, com seções transversais compatíveis, do seguinte modo:

“... as vias principais foram tomadas com 30 (trinta) metros de largura, em duas mãos,
com refúgio central ajardinado, ou vias de 23 (vinte e três) metros, com a Avenida
Perimetral, cuja capacidade de tráfego é a mesma da via de 30 (trinta) metros. Essa
seção menor foi adotada visando não sacrificar a parte existente da Barra, onde o
grande número de prédios comerciais nos leva a essa redução. As vias secundárias
foram tomadas em 15 (quinze) metros de largura.”21

19
Carta do dirigente da firma Urbs Engenharia ao presidente da FBC, datada de 7 de março de 1952. Faz parte
do acervo da FBC guardado no Arquivo Nacional – Coordenação Regional do Distrito Federal.
20
Plano de Urbanização de Aragarças, já citado, p. 10.
21
Idem, ibidem.

16
O plano incluía uma Avenida-Parque, de 60 metros de largura, que iria se constituir em

cinturão verde da cidade. Além de sua função distribuidora do tráfego, esta via faria ligação entre

os diferentes parques previstos, “formando o que os americanos chamam de parck-sistem, ligando

pois a zona non-edificandi, o Parque Zoológico e Botânico, Parque Municipal, bosque e Parque do

rio Rolas.”22 Pelo plano, o aeroporto seria circundado por vias marginais arborizadas, prevendo-

se sua futura transferência para outro local e a transformaçâo de sua área atual em um parque, a

ser loteado parcialmente. Na parte edificada entre os parques e a zona non-edificandi, previa-se a

formaçâo de áreas verdes no centro administrativo, na Avenida-Parque e em diversas praças,

estas, interpostas nas áreas residenciais. O tratamento paisagístico a ser dado às praças era o

seguinte: “uma distribuiçâo assimétrica de árvores de portes variáveis, sobre gramados simples, às

vezes com alguns lagos ou pequenos elementos ornamentais”.23

As zonas non-edificandi, por seu lado, deveriam ser “vegetadas” (sic) com árvores da região,

sem a preocupaçâo de simetria, a fim de que viessem a se assemelhar a bosques naturais. As

praças das zonas residenciais e os parques deveriam ser dotados de pequenos play-grounds. O

parque zoológico-botânico (não detalhado no plano) deveria ser constituído de alamedas e

canteiros (conforme classificações técnicas) e de instalações necessárias ao funcionamento das

suas seções. Aí seriam construídas as instalações do Museu de História Natural, já em

organização pelo naturalista alemão Elmut Sick, na época a serviço da FBC.

No plano concebido, os aspectos do esgotamento pluvial e saneamento não trouxeram

problema, uma vez que a topografia “sempre suave, com declive para o rio Araguaia, bem como

pequenos talwegs, como o do rio Pombas, permite que o esgotamento pluvial natural dispense

artifício de técnica.”24 As condições de salubridade de Aragarças, critério fundamental levado em

conta para a localizaçâo da cidade, seriam facilmente conservadas no futuro, mediante o

esgotamento das pequenas lagoas existentes em suas cercanias.

22
Idem, ibidem.
23
Idem, p. 11.
24
Idem, ibidem.

17
A questão dos serviços de utilidade pública seria equacionada de imediato, mediante a

adoção de uma série de providências, entre as quais, a ultimação das obras de uma estação de

tratamento de águas e da rede para sua distribuição. No concernente ao esgoto sanitário, a opção

adotada seria o sistema de fossas bacteriológicas, prevendo-se, para o futuro, o estabelecimento

de uma rede de esgotos sanitários que, como a rede de galerias de águas pluviais, não ofereceria

problemas, graças à topografia da área edificada da cidade, inclinada em direção ao rio Araguaia.

A rede a ser construída no futuro deveria conduzir a um lançamento a jusante da cidade.

Na época, Aragarças era servida de energia elétrica produzida por um grupo de geradores

a diesel, insuficiente para atender ao crescimento da cidade e seu desenvolvimento econômico.

Achava-se em estudo, porém, a construção de uma usina hidrelétrica que viria a solucionar o

problema, duradouramente. Naquela época, a coleta de lixo em Aragarças era já feita por veículos

adequados, devendo a administração da cidade, conforme prescrição contida no plano de

urbanização, prever a construção, em futuro próximo, de uma estação incineradora. Achava-se

então em andamento, por outro lado, a instalação de uma estação telefônica, com vistas ao

estabelecimento de uma rede local de telefonia.

O plano continha conselhos às autoridades da nova cidade, em relação a diferentes

elementos do projeto urbanístico a ser executado, como, por exemplo, à locação da rede viária,

definindo-se os alinhamentos a serem obedecidos: “Será de todo aconselhável o assentamento de

meios fios, que melhor definam os alinhamentos... [medida que] orienta a demarcação dos

lotes.”25 O plano de urbanização também continha conselhos com vistas ao adensamento das

construções, evitando-se, assim, a ampliação da área a ser servida por infra-estruturas e serviços

urbanos básicos: “... seria aconselhável ir sendo lançados por setores... Um primeiro setor deveria

compreender a estrada de Ibotim até a perimetral que passa em frente a Vila Presidente Vargas e

Hotel... O Bairro Popular pode ser dividido em dois setores, separados pelo Centro Social.”26 O

25
Idem, p. 16.
26
Idem, ibidem.

18
plano continha, ainda, conselhos em relação à apropriação e destinação dos recursos financeiros

advindos da venda dos lotes:

“Ao lançar a venda os terrenos ora loteados ficam os proventos com a Fundação. Esses
lotes, entretanto, têm determinado valor em face das obras públicas a serem realizadas.
Seria justo... pensar-se em um convênio segundo o qual parte dos resultados da venda
dos lotes caberia a Municipalidade... destinada a obras de urbanização... Poderá ainda
ficar a cargo da Fundação... o ônus das obras de urbanização, como proprietária da área
loteada, mediante condições a serem estabelecidas com a Municipalidade.”27
Planta apensa ao Plano Diretor de Urbanização de Aragarças – 1953

Autoria: Urbs Construções e Urbanismo Ltda.


Fonte: Arquivo Nacional – Coordenação Regional do Distrito Federal

27
Idem, ibidem.

19
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O planejamento e, particularmente, o planejamento territorial, levado a efeito no Brasil

principalmente na segunda metade do século XX, constituiu-se em extraordinária inovação

técnica na organização dos espaços, associando-se com a complexificação dos processos

produtivos em escala mundial. Sua prática correspondeu à exigência disso decorrente, de re-

configuração do território nacional brasileiro. O planejamento, então, tanto o regional como o

urbano, relacionou-se com as políticas econômicas daquele período, mediante a intervenção do

Estado no arranjo da divisão territorial do trabalho nacional, no sentido de ajustar o país à

dinâmica do desenvolvimento econômico mundial. (Lafer,1997:9-28)

A FBC esteve dispensada, ao longo do tempo de sua existência, de participação efetiva

em ações decorrentes de planos nacionais,28 ou regionais,29 de desenvolvimento econômico. Sua

atuação caracterizou-se, contrariamente a isto, pela improvisação e por direcionamentos

contingentes, conforme conjunturas políticas transitórias - isto não impediu, todavia, que

usufruísse benefícios, em forma de recursos financeiros, oriundos de políticas econômicas com

repercussões sobre o território.30

Pode-se dizer, entretanto, que a cidade de Aragarças, planejada e construída para lhe

servir de principal base de operações, prestou-se bem ao desempenho das funções dela esperadas,

ao longo do tempo em foco neste trabalho, quais sejam: servir de base de apoio às ações de

reconhecimento e exploração de um vasto território desconhecido, antes de sua instalação; servir

de ponto de apoio às operações da aeronáutica brasileira, no sentido de zelar pela segurança e

promover a integração do território nacional, notadamente, por meio dos serviços de

comunicação – freqüentemente, também de socorro, a populações isoladas -, propiciados pelo

28
Plano SALTE – Saúde, Alimentação, Transporte e Energia (1948-1951); Plano de Metas (1956-1961); Plano
Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social (1963-1965); Plano de Ação Econômica do Governo – PAEG
(1964-1966).
29
Plano de Valorização Econômica da Amazônia
30
A FBC recebeu recursos financeiros da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia
(SPVEA), ao longo da existência desta instituição – 1953-1966.

20
Correio Aéreo Nacional (CAN); servir de modelo de cidade moderna – logo seguido por outras,

da região Centro-Oeste -, dotada de requisitos técnicos e comodidades próprios de centros

urbanos localizados em regiões econômica e culturalmente desenvolvidas.

A cidade de Aragarças, ademais, devido a sua localização geográfica, no entroncamento

natural de rotas entre diferentes regiões brasileiras, veio a constituir-se em núcleo de apoio,

fundamental, para os movimentos (espontâneos) que se seguiram a sua implantação, de

povoamento e ocupação econômica do território sobre o qual atuou a FBC, principalmente no

estado de Mato Grosso. Neste território, graças à ação do órgão que a substituiu, a

Superintendência do Desenvolvimento da Região Centro-Oeste (SUDECO), a partir dos

primeiros anos da década de 1970, desenvolveu-se um processo de crescimento econômico

acelerado, promovido por medidas governamentais de incentivo à iniciativa privada, cujo

resultado pode ser observado nos dias de hoje; isto é: uma economia de base empresarial, em

agricultura e pecuária comerciais e em agroindústria, cuja produção destina-se, em grande parte, a

mercados internacionais, regidos pelos atuais ditames da economia globalizada.

No território em que atuou a FBC, numerosas cidades surgiram, em desdobramento a

atividades por ela executadas, sobretudo nas rotas em que atuou mais intensamente, em direção

norte, pelo vale mato-grossense do rio Araguaia, e em direção noroeste, em demanda ao rio

Tapajós, passando pela região do alto rio Xingu e, assim, atravessando largas extensões dos

estados de Mato Grosso e Pará. Todas essas cidades, atuais centros de apoio ao desenvolvimento

econômico de suas micro-regiões, dependeram, em maior ou menor grau, de recursos de toda

ordem oferecidos por Aragarças.

Apesar de tudo isto, esta cidade, passado o seu impulso inicial de crescimento, estagnou-

se, contrariamente ao que veio a ocorrer com Barra do Garças, atualmente, o mais importante

centro urbano do leste mato-grossense - isto é: centro bancário, comercial, industrial, de serviços

educacionais (inclusive de ensino superior), etc. Para explicar tais ocorrências, várias hipóteses

podem ser aventadas. Pode bem ser que, tal como ocorreu com outros centros urbanos

21
planejados do Brasil, o planejamento, a regulamentação e o controle da ocupação e uso do solo

urbano, pelo Estado (em suas diferentes esferas), tenham servido de obstáculos à livre iniciativa

de indivíduos e de empresas, quanto aos modos de se construir e exercer atividades nas cidades.31

Um outro fator que, bem provavelmente, veio conferir maior atração à cidade de Barra

do Garças, foi o fato de, em Aragarças, o solo constituir-se em propriedade da FBC, visto que

esta instituição, ao longo do tempo em causa neste trabalho, jamais ter instituído algum

mecanismo que pudesse facilitar a alienação plena de seus terrenos urbanos. Em razão disto, a

maior parte de seus habitantes construiu residências e/ou estabelecimentos comerciais ou

industriais, em terrenos dos quais eram meros posseiros.

ARAGARÇAS (1943 – 1968): THE MODERN TOWN ON THE ROUTE TO BRAZIL’S


CENTER-WEST

ABSTRACT:
The town of Aragarças was implanted in 1943 to serve as an advanced operational base for a new
institution, The Fundação Brasil Central (FBC), also established in that year, the objective of which was to
serve as a tool for the action of the federal government on the country’s Center-Western Region. In that
time, the region was still sparsely populated and precariously integrated into the rest of the country.
However, a large number of indigenous groups dwelt in the place. The implantation of the new town took
into account a customized urban project, according to the point of view which should come to perform
“civilizing” roles, as well as the coordination of westbound expansion movements of economic activities
then typical of Brazilian coastal cities. The new town was supplied with basic infra-structures and urban
services, in addition to other facilities of modern life, which rendered it singular in relation to all the other
settlements in the region.

Key words: Aragarças; Modern town; Center-West

BIBLIOGRAFIA

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LAFER, Betty Mindlin (Org.). Planejamento no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1997.
LÊNIN, V. I. O Estado e a Revolução. São Paulo: Hucitec, 1987.

31
Estudamos o caso de Goiânia (cidade planejada para servir de Capital para o estado de Goiás) em nossa
pesquisa para tese de doutoramento, intitulada Goiânia (1933-1963): Estado e capital na produção da cidade,
defendida na Universidade Federal Fluminense, em 1996.

22
LIMA FILHO. Manuel Ferreira. O desencanto do Oeste: memória e identidade social no médio Araguaia. Goiânia: Editora da
UCG, 2001.
LOJKINE, Jean. El marxismo, el Estado y la cuestión urbana. México: Siglo Veinteuno, 1986.
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Saraiva Livreiros Editores, 1948 (escrito em 1935).
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VILLAS BOAS, Orlando; VILLAS BOAS, Cláudio. A Marcha para o Oeste: epopéia da Expedição Roncador Xingu. São
Paulo: Editora Globo, 1994.

23

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