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Revista
de estudos
ibericos
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Coordenação deste número
Rui Jacinto
Alexandra Isidro

Apoio à Coordenação
Ana Margarida Proença

Capa e conceção gráfica


Márcia Pires

Impressão
Marques & Pereira, Lda

Edição
Centro de Estudos Ibéricos
Rua Soeiro Viegas, 8
6300-758 Guarda
cei@cei.pt
www.cei.pt

ISSN: 1646-2858

Depósito Legal:

dezembro 2021

Os conteúdos, forma e opiniões expressos nos textos


são da exclusiva responsabilidade dos autores.
in
di
ce
Esperança, sonho e utopia incorporada no nosso presente 7
Rui Jacinto

TERRITORIALIDADES, PAISAGENS, COMUNIDADES: 13 > 193


UMA ARQUEOLOGIA DO DEVIR
Em torno dos II-I milénios a.C. na Beira raiana (Portugal Central). 15
Representações materiais e imaginadas, frentes e retaguardas,
num movimento perpétuo
Raquel Vilaça
Transpondo o Erges. O delinear de uma abordagem transfronteiriça 49
à paisagem proto-histórica entre o Tejo e o Sistema Central.
Pedro Baptista
Fronteiras auditivas, visuais e locomotoras na definição 69
dos territórios das sociedades do I milénio a.C.
Um caso de estudo no Alto Côa
Marcos Osório
No limiar. Diferentes escalas de análise da arte da Idade do Ferro 95
no limite ocidental da Meseta
Luís Luís
Los temas figurativos del arte rupestre Paleolítico en la Península 117
Ibérica: Estudio estadístico y modelos de distribución
Miguel García Bustos
Megalitismo(s) ― A Serra da Aboboreira como exemplo 139
de comportamento partilhado à larga escala territorial
Denise Maria Lima e Silva
Morir en Poniente. El conocimiento actual acerca del paisaje 161
funerario de la primera Edad del Hierro en el Suroeste Peninsular
Guiomar Pulido González
INOVAÇÃO E TERRITÓRIO 197 > 275

Migrações de Estudantes para as Regiões Periféricas como 199


fluxos de talento e inovação
Madalena Fonseca

Perceção sobre o Potencial da Raia: Uma Leitura 225


aos Olhos da População
Dora Ferreira, José Manuel Sánchez Martín

El Envejecimiento como Reto Actual: Aspectos Sociales 241


y Culturales para la Investigación Cualitativa.
Borja Rivero Jiménez, Luis López-Lago Ortiz, Beatriz Muñoz González,
David Conde Caballero, Lorenzo Mariano Juárez

O Contexto Cabo-verdiano como Ponto de Partida para 255


uma Urgente Reinvenção dos Recursos
Inês Alves, Lara Plácido

EDUARDO LOURENÇO 279 > 351

Prémio Eduardo Lourenço


Galeria de Premiados 280

Carlos Alberto Chaves Monteiro 283


Efrem Yildiz Sadak 287
Delfim F. Leão 289
Pedro Serra 291
Ángel Marcos de Dios 295

Homenagem a Eduardo Lourenço 307


José Manuel dos Santos 309
António José Dias de Almeida 311
Jorge Maximino 313
Fernando Paulouro 317
Rui Jacinto 321
Camila Valéria 343

CEI. ATIVIDADES 2021 255 > 391

Ensino e Formação 357


Investigação 371
Eventos . Exposições . Notícias 382
Edições 388
ESPERANÇA, SONHO E UTOPIA
INCORPORADA NO NOSSO PRESENTE

RUI JACINTO*

A presente edição da Iberografias. Revista de Estudos Ibéricos reflete as ini-


ciativas do Centro de Estudos Ibéricos um ano após nos despedirmos do Profes-
sor Eduardo Lourenço, seu mentor, patrono e Diretor Honorífico. Honrar o seu
legado é acreditar que “a esperança, o sonho, a utopia, que são a sua substância
já incorporada no nosso presente, coabitam connosco e guiam todos os nossos
passos e pensamentos”.
O ano foi marcado pelo lançamento do projeto “Leituras de Eduardo Louren-
ço”, promovido com aquele intuito e destinado a gerar um movimento cultural de
discussão e (re)leitura crítica do seu legado, bem como promover a reflexão em
torno dum pensamento vasto e labiríntico. O CEI associou-se a mais uma homena-
gem a Eduardo Lourenço, realizada em setembro, durante a 1ª Edição da Festa da
Literatura e do Pensamento ― Caravana Literária, e cujas intervenções integram
um capítulo da Revista.
As adversidades naturais inerentes às dificuldades e durezas do quotidiano
são agravadas pelas incertezas dum devir que os tempos de pandemia acentuam.
Embora sinta estes efeitos da crise que atravessamos, o CEI esforça-se para man-
ter os projetos iniciados sem abdicar do compromisso com os territórios mais
débeis nem com uma missão balizada pelo Conhecimento, Cultura, Cooperação.
Dois capítulos estruturantes desta edição testemunham este compromisso: oito
artigos analisam múltiplas facetas da arqueologia nos territórios da Raia Ibérica
Central; quatro textos abordam temas fulcrais para o desenvolvimento regional e
local: os fluxos de talentos e a inovação; o potencial da Raia percecionada pela
população; os aspetos sociais e culturais associados ao envelhecimento; a neces-
sidade de reinventar, criando valor aos recursos locais.
A certeza que “o caminho fica longe”, que importa enfrentar os desafios assumi-
dos e continuar a honrar a memória de Eduardo Lourenço o CEI só pode continuar
a alimentar “a esperança, o sonho, a utopia” “incorporada no nosso presente”.

*
Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território e Centro de Estudos Ibéricos.
Territorialidades,
Paisagens,,
Comunidades::
uma Arqueologia
do devir
TERRITORIALIDADES, PAISAGENS,
COMUNIDADES: UMA ARQUEOLOGIA
DO DEVIR

RAQUEL VILAÇA

Longe vai o tempo em que a investigação arqueológica encarava o espaço


como mero contentor, como cenário, circunscrito à sua condição física. Ultrapas-
sada essa visão dualista (sujeito-objecto) e naturalista, o espaço passou a ser
percebido numa perspectiva relacional, culturalista. Não há espaço sem huma-
nos, não há espaço sem movimento.
O espaço transformou-se em lugar, com sítios e paisagens carregados de
sentidos e significados, com os quais se estabelecem relações emocionais, com
memórias sociais e individuais fomentadoras de identidade (Tilley, A Phenome-
nology of Landscape, 1994). Geram-se sentimentos de pertença entre os huma-
nos, criam-se territorialidades entrelaçadas por redes de lugares e fronteiras
(físicas, conceptuais, simbólicas). Às dimensões da existência humana subjaz a
articulação de escalas.
Entre as muitas formas de fazer arqueologia — todas legítimas quando são bem
feitas — conta-se o trabalho de terreno. A par da realização de escavações, o nú-
mero de prospecções arqueológicas enquanto método científico tem vindo a co-
nhecer, já neste século, particular desenvolvimento. É esse trabalho de terreno que
emana dos sete textos reunidos neste dossier temático sobre Pré e Proto-história.
Apresentam-se as perspectivas de distintos investigadores e os resultados
de diversos trabalhos concluídos ou em curso, com particular ênfase para estes
últimos, enquadrados em projectos de doutoramento (e outros) desenvolvidos
nas Universidades de Coimbra e de Salamanca, ou que incidem numa área geo-
gráfica particular de perfil transfronteiriço: a Beira Interior.
O objectivo deste dossier é, justamente, o de demonstrar a riqueza temática e
as potencialidades metodológicas subjacentes a essa forma de fazer arqueologia,
quando o laboratório do cientista-arqueólogo é o próprio campo. O leitor encon-
trará contributos que diferem nas temáticas e problemáticas, nas metodologias e
ferramentas interpretativas, nas geografias e temporalidades. Contemplando co-
munidades muito distintas do ponto de vista social, económico e ideológico, é no
seu devir — o do ser e o do tornar-se —, que nelas se fixa com sentido perscrutan-
te, necessariamente de forma difusa e intermitente, o olhar do arqueólogo.

Novembro de 2021
EM TORNO DOS II-I MILÉNIOS A.C.
NA BEIRA RAIANA (PORTUGAL CENTRAL).
REPRESENTAÇÕES MATERIAIS E
IMAGINADAS, FRENTES E RETAGUARDAS,
NUM MOVIMENTO PERPÉTUO
RAQUEL VILAÇA*

1. PONTO DE PARTIDA E ALGUMAS REFLEXÕES


1
As reflexões contidas neste texto giram em torno do conceito de fronteira,
conceito que, é sabido, reveste-se de um sentido semântico muito rico, com
um percurso que se foi conceptualizando diferencialmente em função também
das diversas ciências sociais, podendo aplicar-se em domínios diversos e com
imensos desafios de abordagem.
O mais comum, o da sua dimensão político-administrativa, é algo anacróni-
co para as realidades que pretendemos analisar, que remontam aos II e I milé-
nios a.C. da Beira Interior. Mas já o conceito de fronteira como sinónimo do de
limite, e apesar de, justamente, poderem ter leituras algo distintas, parece ser
adequado como instrumento analítico na construção do conhecimento no que
à Pré e Proto-história diz respeito.
Tomamos como caso de estudo dessas realidades as produções cerâmicas
de excepção desta região, sem negligenciar, todavia, outros marcadores cultu-
rais. Tais cerâmicas são definidas pela perícia subjacente aos seus fabricos e
técnicas decorativas, para além do seu exotismo e do seu carácter residual em
todos os contextos observados.
Mas a questão da fronteira pode colocar-se igualmente em termos meto-
dológicos quando se analisam essas e outras categorias arqueográficas, trans-
fronteiriças ou não. O estudo separado, portanto, com fronteira, e exaustivo
de cada uma dessas entidades — fixas e móveis, artefactuais e construídas

*
Univ Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Instituto de Arqueologia, CEAACP. rvilaca@fl.uc.pt
A autora não escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990.
1
A versão inglesa deste texto estará disponível no livro resultante do Colóquio Internacional Romper fron-
teiras, atravessar territórios. Identidades e intercâmbios durante a Pré-história recente no interior norte da
Península Ibérica (Porto, 23-24 de Setembro de 2021, CITCEM - Grupo de investigação “Território e Paisagem”),
coordenado por Maria de Jesus Sanches, Helena Barbosa e Joana Teixeira.
16 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

—, que constituem a matéria-prima da “fábrica” do investigador-arqueólogo,


é absolutamente necessário. Essa análise atomizada permite dissecar em pro-
fundidade as características de cada uma, por exemplo quando estudamos um
tipo particular de cerâmica ou de arquitectura, mas empobrece a indispensável
visão de conjunto, digamos molecular. É essa perspectiva agregadora, sem
fronteiras, que consente o estabelecimento de elos de ligação, definir suas
potenciais combinatórias, perscrutar significâncias possíveis. Nesse processo
heurístico procura-se a arte do encontro entre entidades independentes, mas
não isoladas, e as linhas indispensáveis que as cosem — com que as cosemos
—, que lhes dão tessitura consistente, mas maleável.
Por outro lado, a noção de fronteira arrasta consigo a de território e a cons-
trução de territórios implica a necessidade de marcar barreiras, contornos,
físicos ou simbólicos, ou seja, não há fronteiras sem identidades territoriais.
E essas identidades só existem se e quando colocadas em relação com os
“outros”, com outras identidades. Como defini-las, como expressá-las? Quais
as formas de as materializar e de as representar quando falamos de socieda-
des sem escrita, essas que viveram naqueles dois milénios que antecederam a
nossa era? Eis um dos desafios maiores que nos interpela.
O grau de dificuldade é diverso e estabelece-se logo na posição de partida.
Se procurarmos grupos culturais pré-definidos com contornos estáveis,
moldurados geograficamente e modelados por um somatório de itens que se
especificam relativos aos sistemas de povoamento, às práticas funerárias, à or-
ganização sócio-política e económica, aos tipos de materiais, de crenças e até
de valores, e se lhes atribuirmos um nome, percorremos o caminho mais fácil
para encontrar identidades culturais, delimitá-las com fronteiras e represen-
tá-las cartograficamente. A esta posição que reclama grupos independentes
de recorte geográfico, com base em materialidades como marcadores iden-
titários culturais ou, por vezes, até de matriz étnica, assumindo-se a sua re-
presentação através de uma fronteira-linear (Fig. 1 A e B) (SENNA-MARTINEZ et
al., 2011: 412-413 e fig. 1 e 2; SILVA, 2005: II, mapa 7), valorizamos antes como
abordagem alternativa a que procura compreender, em vez de grupos culturais
ou étnicos discretos, dinâmicas culturais, com suas tensões e conflitualidade
internas, com suas inter-acções e mobilidades. Essas não têm como se repre-
sentar porque são abertas.
Problema distinto é o da importância, e indispensabilidade, da cartogra-
fia na reflexão arqueológica. Sendo imperfeitas, porque sempre incompletas
e deformadas, cativas do grau de visibilidade e conservação dos dados, do
avanço e rectificação do conhecimento, as cartas de distribuição de sítios e
achados facilitam na aproximação à demarcação de áreas de concentração,
de pontos dispersos, de vazios, de zonas indefinidas. E como a cartografia dos
EM TORNO DOS II-I MILÉNIOS A.C. NA BEIRA RAIANA (PORTUGAL CENTRAL)
17
Raquel Vilaça

sítios e materiais do quotidiano é ou pode ser distinta da dos materiais e locais


de excepção, e podendo ainda a distribuição de uns e de outros divergir da
do domínio da esfera ideológica, também ela identitária, logo aí se traçariam
fronteiras com limites necessariamente não sobreponíveis.

Fig. 1.
A. Delimitação da área do Grupo Cultural Baiões/ Santa Luzia
(segundo SENNA-MARTINEZ et al., 2011, fig. 1, adaptado);
B. Localização dos populi da Beira Interior (segundo SILVA, 2005, mapa 7)

Assim, esboçam-se espaços com nuvens de pontos, com pontos alinhados,


sem pontos, portanto de densidade heterogénea. A gradação desse pontea-
do tem sido igualmente mote para a criação de modelos culturais com zonas
nucleares, as mais densas, zonas de contacto, as mais esbatidas, e ainda as
regiões ditas exteriores (Fig. 1 C) (ABARQUERO MORAS, 2005, fig. 20; 2012). Neste
tipo de exercício podemos entrever fluxos entre regiões, troca de bens e de
matérias-primas, podemos delinear áreas de diferenciação territorial traduzíveis
em fronteiras-estilísticas, mas ir mais além quando exploramos as fronteiras de
sociedades agrafas, não estatais, pode transformar-se num exercício de risco
elevado, ou até mesmo com representações imaginadas.
18 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Fig. 1.
C. Dispersão dos achados cerâmicos relacionados com Cogotas I. Zona Nuclear (mancha mais
escura) e Zona de Contacto (mancha mais clara) (segundo ABARQUERO MORAS, 2005, fig. 20,
adaptado)

A natureza das fronteiras tem também implicação no modo como se per-


cepciona(ria)m e se assinala(ria)m. Físicas ou naturais, conceptuais, emocio-
nais e culturais, oferecem níveis de visibilidade muitíssimo variável, para nós e
para aqueles que estudamos.
O traçado da fronteira faz-se de modo linear, com o mur(o)alha que sepa-
ra os de dentro dos que estão do outro lado, convidando à transgressão ou
impondo respeito, portanto no limbo da estabilidade. Faz-se com o percurso
do rio, que pode oscilar, extravasando o seu leito, desviando-o ou anulando-o
consoante o caudal e, com ele, aquela vai variando; mas também há “rios que
unem” (RIBEIRO, 1986: 141), conectando as margens, além de serem grandes
eixos de mobilidade. Faz-se com a linha do horizonte riscada sobre o maciço
montanhoso, todavia com mutações em função da luz do dia e das estações do
ano, da altura das nuvens e neblinas.
Em alguns casos as fronteiras naturais são reforçadas com marcadores
antrópicos. Assim entendemos, por exemplo, o caso da linha de festo da
serra do Ralo (Celorico da Beira), de grande impacto paisagístico (Fig. 2 A), e
das duas estelas nela encontradas, perto uma da outra, estelas conceptual —
EM TORNO DOS II-I MILÉNIOS A.C. NA BEIRA RAIANA (PORTUGAL CENTRAL)
19
Raquel Vilaça

uma enaltece o valor guerreiro, a outra ignora-o — e talvez cronologicamen-


te diferenciadas que conferem espessura temporal ao lugar (Fig. 2 B e C).

Fig. 2.
A. Serra do Ralo (Celorico da Beira) (vista aproximada de Oeste/Sudoeste),
com indicação do local de achado das estelas
B e C. Estelas 1 e 2 de Pedra da Atalaia (fotos de Danilo Pavone)
20 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Estruturando-se como barreira num horizonte linear, constituindo uma


fronteira natural, a serra poderá ter demarcado territórios de comunidades
vizinhas (VILAÇA et al., 2011: 309-310). Vizinhas, mas não apartadas, porquan-
to as duas estelas, ao mesmo tempo que assinalariam um lugar de referência
para as comunidades, i.e., com “sentido de lugar” (FELD e BASSO, 1996: 11),
transformavam-no num lugar-fronteira. As fronteiras também podem (re)unir,
também podem aproximar.
As fronteiras conceptuais definidas por um grupo ou um conjunto de grupos
que se autorreconhecem como identidade diferenciada de outros (no domínio
económico-social ao político, do ideológico ao material, ou com tudo isto in-
corporado), i.e., com consciência e sentido de pertença (com um ethnos), difi-
cilmente se apreendem quando não temos textos nem os protagonistas para
dialogarmos. Essa consciência nem sempre teria de se expressar materialmen-
te (v.g. com tipos de artefactos, com modos de construir), tal como as mesmas
materialidades poderiam ser assimiladas por grupos distintos, grupos que pro-
curariam através de outros elementos intangíveis (v.g. divindades, condutas de
acção, valores) a sua diferença. A Etnoarqueologia assinala múltiplos exemplos
(v.g. HODDER, 1982), os quais poderão ser tomados como "inspiradores", mas
não como elementos directos de comparação entre o passado e o presente.
E, mesmo quando os textos existem, os riscos permanecem. Essa dificulda-
de transparece, por exemplo, das propostas dissonantes e irresolúveis feitas
por alguns investigadores — seguindo em boa parte os inspiradores e prístinos
trabalhos de Jorge de Alarcão, que se ultrapassa a si próprio com argumenta-
ção renovada (v.g. ALARCÃO, 2001; 2005) — no sentido de fixarem em sub-re-
giões com fronteiras demarcadas os diversos populi da Beira Interior referidos
em fontes escritas romanas e identificados com os Lusitanos (Fig. 1 B).
Mas aquela dificuldade, para além de decorrer do facto de pensarmos
que uma fronteira não deverá ser encarada como uma entidade estática, mas
oscilante, em função dos processos de inter-acção entre as comunidades (VILA-
ÇA, 2004: 52), resultará de um outro potencial factor: a hipótese de os limites
territoriais de cada grupo, mesmo se admitirmos uma certa estabilidade, não
se tocarem necessariamente entre si, ou seja, os distintos grupos estariam
separados por “no man’s land”, correspondendo a zonas destituídas de qual-
quer autoridade territorial (VILAÇA, 1995: 411),
Deveremos, pois, admitir a existência de mecanismos sociais de auto-regu-
lamentação por parte e entre grupos vizinhos, mecanismos que dariam origem
a franjas esbatidas e neutrais entre territórios, quer dizer, a terras de ninguém,
a “zonas tampão” (VILAÇA, 2004: 52). A fronteira de um não teria de coincidir
com a de outro, portanto a fronteira pode desdobrar-se numa linha avançada
e noutra de retaguarda. Assim, essa “almofada” territorial refrearia tensões,
sem, porém, as eliminar, ao mesmo tempo que proporcionaria condições para
EM TORNO DOS II-I MILÉNIOS A.C. NA BEIRA RAIANA (PORTUGAL CENTRAL)
21
Raquel Vilaça

o desenvolvimento controlado de (re)ajustes necessários. É justamente por


isso, pelas contradições e dialética inerentes aos grupos humanos, à sua re-
produção social, que não procuramos nem fronteiras estáveis nem fronteiras
traçadas com nitidez. Com baixa ou nula densidade de ocupação, essas franjas
de dimensão variável e elas próprias sujeitas a reconfigurações, sendo tenden-
cialmente neutrais, transformam-se no que podemos entender por fronteiras-
-passagem, permeáveis e com fluxos a diferentes escalas, embora de reduzida
visibilidade para o investigador.
Em suma, qualquer um dos planos aqui elencados — e foram-no só alguns
—, desde o mais convencional de âmbito político-administrativo, definido por
uma linha, ao cultural, que pode captar diferenças sem as conseguir fixar, a
fronteira é sempre uma construção, uma simulação: a realidade de uma fron-
teira é criada pelo significado que lhe é atribuído (HOUTUM, 2011: 50). Ou, se
quisermos, a fronteira foge à realidade, porque cada um apreende a sua reali-
dade. Assim sendo, os limites que estabelecemos e os sentidos que lhe damos
não têm, claro é, de ser os mesmos das entidades pretéritas — pessoas, objec-
tos, espaços e ideias —, tudo em conjunto, em (inter)acção, em que se perdem,
também aí, as fronteiras.
Se nos posicionamos na procura do entendimento das dinâmicas sociais,
então talvez faça mais sentido raciocinar em função não de fronteiras, mas de
processos de fronteirização num sentido sociológico (CARDIN e ALBUQUERQUE,
2018: 123). Estes e aquelas são, por natureza, abertos, não se deixando apri-
sionar num mapa ou num rol de itens que lhe traça um qualquer perfil. Esses
processos são movediços, reconfiguráveis, num perpétuo movimento.

2. UMA TESE E SEUS FUNDAMENTOS


Vinte anos passaram desde a publicação da primeira síntese onde se de-
fendeu para a Beira Interior a existência de processos de confluência e hibri-
dez cultural, no Calcolítico ( III milénio a.C.) e Bronze Final ( finais do II-inícios
do I milénio a.C.) (VILAÇA, 2000: 174, 178). Em textos posteriores o assunto foi
retomado com maior desenvolvimento (VILAÇA, 2005: 21-22; 2013a: 213-215),
tendo-se também assumido que esta faixa raiana entre o Douro e o Tejo foi
uma região de elevada permeabilidade, de transgressões culturais; dito de
outro modo, nela cabem muitas Beiras, que superam qualquer dimensão geo-
gráfica e lhe incutem um carácter multifacetado: a “Beira atlântica”, a “Beira
mesetenha”, a “Beira extremenha”, a “Beira mediterrânea”. Ao mesmo tempo,
advogou-se que esses fenómenos culturais de mestiçagem se desenrolaram
na longa duração, pelo menos desde o Calcolítico (2008a: 165-168). Mas esta
perspectiva não pode ser traduzida num fenómeno de tendência regular ao
22 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

longo dos III, II e I milénios a.C., desde logo pela insuficiência dos dados numa
ampla região com imensos vazios que fragmentam qualquer narrativa inscrita
no tempo linear.
Mas a tese, que tem como lastro distintas evidências empíricas resultantes
na sua esmagadora maioria de projectos próprios, ou de colaboração, focou-
-se em particular nos finais do II milénio a.C. e inícios do seguinte. Já antes,
uma das conclusões a que se chegara foi a de que se teria verificado uma
ausência de continuidade ocupacional entre o Bronze Médio e o Bronze Final
e entre este e a I Idade do Ferro, pelo menos nas áreas central e meridional da
Beira Interior mais intensamente exploradas (VILAÇA, 1995). Sublinhamos que
esta última consideração se reportava à I Idade do Ferro e não à Idade do Ferro
em termos genéricos. E, evidentemente, essas observações encontravam-se
condicionadas pelo estádio dos nossos conhecimentos da altura.
Questionava-se então se teria havido uma concentração populacional com
2
novos núcleos habitados, criados ou não de raiz, se esses povoados permane-
ceriam nos mesmos territórios dos do Bronze Final, ou se teria havido ocupa-
ção de novas terras antes não valorizadas (VILAÇA, 1995: 423). Por outras pala-
vras, ponderava-se se as descontinuidades na ocupação de povoados seriam
também acompanhadas por uma ruptura do modelo de ocupação do espaço.
O problema colocava-se ainda na definição de balizas cronológicas, na medi-
da em que se desconheciam testemunhos a nível arqueográfico caracterizadores
de uma I Idade do Ferro. Essa indefinição foi contornada através de um conceito
de recurso, logo provisório, o de “Proto-história Antiga”, que se aplicou às si-
tuações claramente anteriores aos sécs. V-IV a.C., mas não indiscutivelmente
inseríveis no Bronze Final, i.e., sécs. XII-IX a.C. (VILAÇA, 2000: 174, 176).
As questões para as quais este texto procura agora algumas respostas é
se existem motivos para manter as ideias antes expressas, se aquele perfil
culturalmente multifacetado deve ser reforçado ou reconsiderado, se é ou não
sustentável separar um Bronze Final de uma I Idade do Ferro, se o Bronze Final
emerge sem elos explícitos e directos de ligação à fase que o precedeu, se
prevalecem rupturas ou continuidades, seja em termos específicos dos lugares
habitados, seja do povoamento mais geral.
As respostas avançam-se já e argumentam-se a seguir.
Sim, a emergência de sítios do Bronze Final parece poder continuar a colo-
car-se num cenário sem pré-existências ocupacionais, ou, a terem-se verifica-
do — como já antes se reconheceu —, mediaram muitos séculos de abandono,
quer dizer, essas ocupações não são sequenciais. Não só não se conhecem
novidades inequívocas que alterem este quadro, como parece verificar-se
idêntico fenómeno no Norte da Beira Interior conforme transparece de síntese
recente (CARDOSO, 2014: 93).

2
Conceito utilizado de modo generalista e englobando situações muito distintas, correspondendo, tão-só a
lugares onde se viveu.
EM TORNO DOS II-I MILÉNIOS A.C. NA BEIRA RAIANA (PORTUGAL CENTRAL)
23
Raquel Vilaça

Sim, justifica-se falar numa I Idade do Ferro na região, para a qual existem
evidências empíricas a valorizar — vejam-se em especial os casos de Vila do
Touro (Sabugal), Cabeço das Fráguas (Guarda) e Cachouça (Idanha-a-Nova) —,
pelo que aquele conceito provisório perdeu o seu prazo de validade, ou, a
manter-se, que seja tão-só como reserva para situações dúbias. Este é um dos
campos mais ingentes da Proto-história da Beira Interior. A título de exemplo
entre essas evidências empíricas podem ser referidas as "cerâmicas peinadas"
de Vila do Touro (em estudo) e da Cachouça (VILAÇA, 2007), ou as cerâmicas
de fabrico a torno de matriz orientalizante deste último sítio (Vilaça e Basílio,
2000), ou as fíbulas de tipo Alcores e de tipo Bencarrón daquele primeiro (PON-
TE et al., 2017).
E sim, há motivos para continuar a defender, e reforçar, a ideia de que na
Beira Interior desenvolveram-se dinâmicas sociais multifacetadas com abertura
transcultural e transregional, e na longa diacronia, para as quais é agora possível
aduzir novos elementos que se estendem pela Idade do Ferro adentro.
Antes de passarmos à fundamentação, que privilegiará, como referimos no
início, apenas determinadas categorias de cerâmicas, importa lançar um breve
olhar sobre alguns dos traços naturais da região e da sua individualidade; impor-
ta porque lhes reconhecemos papel especial nos processos de inter-acção, de
“fronteirização”, das comunidades beirãs, as residentes e as de passagem.
Os traços geo-estratégicos da Beira Interior e a sua caracterização encon-
tram-se sistematizados em distintos trabalhos da autora (v.g. VILAÇA, 1995:
66-74; 2013a: 193-196), pelo que salientamos aqui apenas algumas linhas de
força: i) o posicionamento no interface litoral/ interior, entre o mundo atlântico,
a continentalidade mesetenha e, a sul, a “frente” peninsular mediterrânea; ii) a
partilha de territórios onde quase se tocam as bacias dos principais rios ibéri-
cos (Douro e Tejo) que correm em direcção ao Atlântico ocidental; iii) a orienta-
ção cruzada entre aqueles eixos fluviais — nascente/ poente — e os respectivos
afluentes — sul/ norte e norte/ sul; iv) o profundo contraste geomorfológico, com
planaltos e planícies a perderem-se de vista, com serras e montanhas rasgadas
por passagens naturais que se convertem em “corredores de circulação”; v) a
existência de cabeços isolados moldados pelo granito, que emergem amiúde,
consubstanciando expressivos marcadores referenciais, frequentemente antro-
pizados; vi) a diversidade e complementaridade de recursos de montanha, de
floresta, de planície, dos rios, proporcionando alimento e materiais de constru-
ção; vii) a particularidade ao nível de outros recursos estratégicos com repercus-
são trans-regional, em concreto os principais elementos da paleta de minerais
metálicos, aluvionares ou não: estanho, sobretudo (v.g. ribeira da Gaia, Guarda
e Alto Zêzere), cobre (v.g. Quarta Feira, Sabugal, Vila Velha de Ródão), ouro (v.g.
Alto Zêzere, Erges, Águeda), chumbo (v.g. Almofala, Figueira de Castelo Rodrigo)
e ferro (v.g. Salvador, Penamacor).
24 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Estes sete eixos que configuram na nossa visão o perfil da Beira Interior
enquanto região global, mas com toda a sua heterogeneidade interna, não
poderão ter deixado de se repercutir nas comunidades que aí habitaram e na
sua autonomia, bem como nas pessoas que nela se movimentaram em dis-
tintas direcções e, evidentemente, com ritmos de intensidade muito variável.

3. UM PERCURSO PELAS CERÂMICAS


Avaliemos então, e apoiando-nos nas cerâmicas, o peso argumentativo das
respostas supra-apontadas.
Embora o estudo de cerâmicas seja muito exigente no tempo que toma ao
investigador, é de importância inequívoca para aceder ao conhecimento das
técnicas de produção, das práticas de armazenagem, dos hábitos de prepara-
ção e consumo de alimentos, das redes de trocas das comunidades pretéritas,
etc. Por outro lado, as identidades estilísticas de determinadas cerâmicas reve-
lam diferenciação no modo de fazer, de conceptualizar, de expressar sensibi-
lidades estéticas, de marcar identidades e estratégias dos grupos (v.g. a nível
etário, de género, étnico) certamente também, e podem revelar-se ainda, para
o investigador, importantes marcadores crono-culturais.
A investigação em curso conjugada com o conhecimento produzido desde
o último quartel do séc. XX permite reconhecer para a Beira Interior um con-
junto de cerâmicas de particular personalidade estilística, de fácil reconheci-
mento pela sua feição, i.e., na simbiose da forma, das pastas, das técnicas e
composições decorativas, que lhes dão expressão textural, plástica, cromática,
visual. Utilizando as designações consagradas no vocabulário arqueológico,
elencamos como mais expressivos os seguintes grupos: cerâmicas de “tipo
Cogeces ou proto-Cogotas”, de “tipo Cogotas I”, de “tipo Lapa do Fumo”, de
3
“tipo Baiões”, de “tipo Carambolo”, cerâmicas “peinadas” ou “a peine” , cerâ-
micas a torno de matriz “orientalizante”.
Importa deixar claro que estas categorias não são representativas do uni-
verso cerâmico da região em apreço; pelo contrário, uma vez que todas elas,
independentemente das cronologias e da natureza dos sítios de proveniência,
são sempre minoritárias, por vezes residuais, nos respectivos contextos. Os
seus estilos e o seu registo percentual permitem classificá-las como cerâmicas
de excepção, independentemente de se tratar de importações, de produções
locais, de imitações, de re-invenções.

3
Optámos por manter a designação espanhola, distinguindo assim essas cerâmicas, da Idade do Ferro, das
cerâmicas “penteadas” calcolíticas; evitam-se equívocos, não raros quando alguns autores se referem a
cerâmicas penteadas sem as ilustrarem.
EM TORNO DOS II-I MILÉNIOS A.C. NA BEIRA RAIANA (PORTUGAL CENTRAL)
25
Raquel Vilaça

É também evidente, através da leitura da cartografia, que elas não se dis-


tribuem nem de modo homogéneo nem aleatório. Verificam-se tendências ao
mesmo tempo que são muitas as manchas vazias cujo significado pode e deve
ser diverso. Os dados reportam os resultados do que se conhece e estuda
e o que se tem estudado concentra-se essencialmente em três áreas, que a
síntese de 2005 já configurava: o baixo Côa, incluindo a área planáltica e mon-
tanhosa ocidental delimitada pelo Távora; a região da Guarda/ Sabugal, com
particular incidência nesta última; e a Plataforma de Castelo Branco (VILAÇA,
2005: fig. 1). Assim, se é prematuro avaliar o pleno significado dos grandes va-
zios que se registam no médio Côa, na zona entre o Côa e o Águeda (aqui com
“invasão” em território espanhol), ou no alto Zêzere, por exemplo, é também
imprescindível continuar a aprofundar, para consolidar ou rectificar, as leituras
desenvolvidas até ao momento.

CERÂMICAS DE “TIPO PROTO-COGOTAS” E “COGOTAS I”

Muito recentemente, foi possível fazer uma re-avaliação genérica das cerâ-
micas de “tipo proto-Cogotas” e “Cogotas I” na Beira Interior, a propósito do
estudo do sítio de Caria Talaia (Sabugal), com ocupação atribuível a meados
da segunda metade do II milénio a.C. e onde se recolheu, entre outros, um
expressivo recipiente de provável origem alógena (Fig. 3) (VILAÇA et al., 2020,
com bibliografia específica).

Fig. 3. Recipiente cerâmico de tipo Cogotas I de Caria Talaia (Sabugal)


26 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

É importante frisar que o reconhecimento de um sítio como este, alcan-


tilado e sobranceiro ao Côa, com ocupação atribuível à transição do Bronze
Médio para inícios do Bronze Final, nunca tinha ocorrido no Centro/ Sul da
Beira Interior. Deste modo, teremos de admitir que um dos mais expressivos
processos de territorialização desta região, que os povoados de altura e de
forte impacto visual do Bronze Final tão bem representam enquanto marcos
referenciais e identitários das comunidades (v.g. VILAÇA, 2000: 171; VILAÇA e
BAPTISTA, 2020: 26-28) poderá, afinal, ter tido a sua génese algum tempo an-
tes. Há que procurar, futuramente, outras situações que nos permitam avaliar
melhor esta consideração.
O tratamento conjunto daqueles dois tipos cerâmicos, com características
e cronologias, é certo, bem distintas, mas também com traços estilísticos resi-
lientes, distendidos ou reinventados ao longo do II milénio a.C., justifica-se em
parte porque a débil qualidade de alguns contextos (vários são os achados em
contexto de prospecção), ou a inexistência de dados publicados, nem sempre
proporcionam a segurança necessária para uma apreciação mais fundamenta-
da. Neste sentido, optámos também por não incluir toda a informação.
A sua distribuição com cerca de uma vintena de registos (Fig. 4) retrata as
considerações feitas no penúltimo parágrafo e o conhecimento de alguns dos
contextos de proveniência ou de deposição permite dizer que não se vincu-
lam a uma categoria específica de sítios. É verdade que sobressaem, cobrindo
genericamente todo o entre Douro e Tejo, os lugares considerados povoados,
com distinta variabilidade a nível cronológico, funcional e geo-morfológico,
ainda que frequentemente em cumeadas e lugares proeminentes e em regra
também de forte impacto visual, insistimos.
Depois, é fundamental sublinhar a especificidade da sua presença nos sí-
tios designados “recintos”, circunscritos à Beira transmontana (Castelo Velho
de Freixo de Numão e Castanheiro do Vento), no caso intensamente escavados
e onde podemos também encontrar os exemplares cerâmicos mais antigos de
âmbito proto-Cogotas (CARNEIRO, 2011; PEREIRA, 1999).
Por fim, importa chamar a atenção para a ausência, até ao momento, de sí-
tios de fossas com este tipo de cerâmicas, sítios e cerâmicas tão peculiares nos
contextos mesetenhos. A situação da Beira Interior deverá ser uma das “falsas
realidades” — arriscamos dizê-lo —, porque a explicação não poderá deixar de
estar associada às circunstâncias e condicionalismos dos (não) achados; veja-
-se, a propósito, o caso do sítio de fossas do Picoto (Guarda), mas já da Idade
do Ferro (sécs. VI-V a.C.), que nunca ou dificilmente teria sido detectado não
fora a construção do actual IP2 (PERESTRELO et al., 2003).
EM TORNO DOS II-I MILÉNIOS A.C. NA BEIRA RAIANA (PORTUGAL CENTRAL)
27
Raquel Vilaça

Entre os sítios de altura com cerâmicas de tipo Cogotas I, i.e., do Bronze


Final, encontra-se Vilar Maior (Sabugal) onde estas correspondem ao conjunto
mais numeroso e diversificado da Beira Interior (Fig. 5) (PERNADAS et al., 2016).
E, pela sua singularidade geográfica, porque a sul da Cordilheira Central, refi-
ram-se os casos do Monte do Frade (Penamacor) e da Moreirinha (Idanha-a-No-
va), onde aquele tipo de cerâmicas está presente, embora de modo residual
(VILAÇA, 1995: 154-155, 158, 231-233, est. LXXXIX-5, CV-2, CCXXIII-3). Neste
último, novos achados em curso de estudo permitirão aduzir outras reflexões.

Fig. 4. Carta de distribuição de cerâmica de tipo Proto-Cogotas e Cogotas I da Beira Interior


28 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Fig. 5. Cerâmica de tipo Cogotas I de Vilar Maior (Sabugal)

Em síntese, e nesta necessariamente muito sumária revisão do assunto,


parece fazer sentido notar que distintas comunidades ao longo do II milénio
a.C., com contextos sócio-económicos e ideológicos igualmente diversos, ma-
nipularam cerâmicas com um lastro estilístico comum e persistente, cerâmi-
cas justamente consideradas propícias a serem emuladas (BLANCO GONZÁLEZ,
2015: 47), mas das quais não transparece, nem seria necessário que transpa-
recesse, qualquer significado unitário do ponto de vista cultural (VILAÇA et al.,
2020: 112). Ainda assim, assinalam o que há de mais expressivo a nível das
materialidades da Idade do Bronze da parte ocidental da Meseta espanhola
EM TORNO DOS II-I MILÉNIOS A.C. NA BEIRA RAIANA (PORTUGAL CENTRAL)
29
Raquel Vilaça

que se estendem deste modo algo difuso e abrangente, mas não aleatoria-
mente, através da Beira Interior.

CERÂMICAS DE “TIPO BAIÕES”

Ao contrário daquelas cerâmicas, as de “tipo Baiões” identificadas inicial-


mente nos Alegrios (Idanha-a-Nova), nunca mereceram uma análise de conjunto.
Neste caso, foi possível caracterizar o seu contexto muito particular, um abrigo
natural, por certo de cariz ritual e onde o fogo parece ter desempenhado papel
importante (VILAÇA, 1995, 166; VILAÇA, 2013: 205, fig. 10).
Como se sabe, estas cerâmicas correspondem a um tipo estreitamente vin-
culado à Beira Central e a um dos sítios mais surpreendentes do Bronze Final
4
— Nossa Senhora da Guia de Baiões —, que lhe dá o nome .
A nível da gramática decorativa, na qual se contam mais de 50 padrões/
composições, partilha com outros grupos cerâmicos coevos (v.g. cerâmicas de
“tipo Lapa do Fumo” e de “tipo Carambolo”) a mesma matriz conceptual e
estética de recorte geométrico (Fig. 6), que também se replica no bronze e no
ouro (VILAÇA, 2013a: 214; VILAÇA et al., 2018: 58). Mas distancia-se radicalmen-
te destas pela técnica utilizada, que é a incisão pós-cozedura (embora também
se verifiquem casos em que a incisão é feita na pasta crua, mas numa fase de
extrema secura).
Esta peculiaridade técnica permite pensar, pelo menos como hipótese teórica,
que a cadeia de produção destas cerâmicas poderia desdobrar-se não só em dois
momentos sequenciais — manufactura e decoração —, mas a dois tempos com in-
tervalos distantes e interrompidos entre si. Ou seja, estas cerâmicas poderiam ser
produzidas, manipuladas e circular sem decoração, ocorrendo esta somente em
fase posterior e em espaços diferenciados, e até mesmo com outros intervenien-
tes, i.e., com outras histórias. Este distanciamento, se não provável, pelo menos
possível, permite encarar esta categoria de cerâmica de modo muito particular.
Os registos efectuados na Beira Interior e seus contextos (Fig. 7) dizem-
-nos ainda três coisas: que a sua ocorrência é muito escassa, que o número
5
de recipientes/ fragmentos por sítio é residual, que a sua distribuição é mais
expressiva em redor dos contrafortes orientais da serra da Estrela e a sul da
Malcata. Admitindo que elas deverão traduzir conexões entre a região onde
são mais expressivas e a que ora se analisa, é óbvio que estamos perante
percursos não só distintos como opostos aos que associamos às cerâmicas de
“tipo Cogotas I”.

4
Veja-se sobre o assunto síntese recente (VILAÇA, 2020).
5
Para o Cabeço das Fráguas não existe informação disponível, referindo-se genericamente a sua presença
(SANTOS e SCHATTNER, 2010: 103).
30 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Fig. 6. Cerâmica de tipo Baiões da Beira Interior: 1 e 2 Cachouça (Idanha-a-Nova); 3, 4 e 8 Alegrios


(Idanha-a-Nova); 5 Castelo Velho (Louriçal); 6 e 7 Monte Verão (Guarda); 9 Vilar Maior (Sabugal).
EM TORNO DOS II-I MILÉNIOS A.C. NA BEIRA RAIANA (PORTUGAL CENTRAL)
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Raquel Vilaça

Fig. 7. Carta de distribuição de cerâmica de tipo Baiões da Beira Interior

CERÂMICAS DE “TIPO CARAMBOLO”

Percorrendo agora o olhar pela distribuição da cerâmica de “tipo Carambo-


lo” (Fig. 8), que situamos entre o Bronze Final e a I Idade do Ferro com base em
bons contextos e datações absolutas (VILAÇA et al. 2018: 80-84), verifica-se,
no essencial, grande proximidade numérica dos registos e do mesmo padrão
de distribuição das cerâmicas de “tipo Baiões”, coincidência tão interessante
quanto o facto de sabermos serem as raízes de ambas igualmente bem di-
ferenciadas geográfica e culturalmente (estas da Beira Central e aquelas do
Baixo Guadalquivir).
32 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Fig. 8. Carta de distribuição de cerâmica de tipo Carambolo da Beira Interior

Designamos daquele modo as cerâmicas com pintura a vermelho conscien-


tes de que se trata de um conjunto não só com especificidades em relação ao
tipo próprio do Baixo Guadalquivir — por exemplo, estão completamente au-
sentes, entre outros, a decoração barroca e figurativa tão presente na região
andaluza —, como heterogéneo no seu todo e em cada contexto, o que se
verifica em especial nos casos da Moreirinha e de Vila do Touro (Fig. 9) (VILAÇA
et al. 2018).
EM TORNO DOS II-I MILÉNIOS A.C. NA BEIRA RAIANA (PORTUGAL CENTRAL)
33
Raquel Vilaça

Fig. 9. Cerâmica de tipo Carambolo da Beira Interior: 1 e 2 Vila do Touro (Sabugal);


4 e 5 Moreirinha (Idanha-a-Nova); 3 Cabeço da Argemela (Fundão).

Não obstante, o conjunto beirão comporta um lastro transversal pautado


por elevada qualidade de fabricos, com formas regionais sempre de pequena
capacidade volumétrica, as quais só poderiam ter servido para conter subs-
tâncias em quantidade ínfima e, nessa medida, também certamente raras e
de elevado valor social em sintonia, de resto, com os custos de fabrico. De
igual modo, a decoração, absolutamente dominada pela cor vermelha (de dis-
tintos matizes) e de traço linear geometrizante, confere identidade estilística
própria, embora também deva ser referida a existência de recipientes com a
34 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

aplicação compacta de pintura sobre as superfícies. Em termos técnicos, um


aspecto especial de elevado interesse foi o reconhecimento de que a decoração
pintada pode sobrepor-se à decoração de ornatos brunidos, ocultando-a total
ou parcialmente, o que abre um leque de possibilidades interpretativas a exigir
atenção futura (VILAÇA et al., 2018: 72). Uma delas passaria, por hipótese e em
linha com o que comentámos antes a propósito da cerâmica de “tipo Baiões”,
pela potencial presença de dois intervenientes distintos, que a decoração sobre
decoração denunciaria.
Sem descartar a possibilidade de as cerâmicas de “tipo Carambolo” do
grupo beirão terem distintas origens, hipótese fundamentada na sua hetero-
geneidade, não podemos deixar de considerar, também por isso, a existência
de prováveis (re)criações locais inscritas em práticas sociais de emulação por
parte das comunidades face a uma novidade estético-conceptual. Por conse-
guinte, encontrava-se assim em aberto um corredor de circulação que, mes-
mo incorporando percursos distintos e alternativos, todos se conjugavam num
mesmo sentido, de sul para norte, do mundo mediterrâneo para a área nuclear
do minério e metal beirão.
Outros bens terão feito o mesmo caminho no dealbar do I milénio a.C.,
incorporando esses fluxos entre o mundo atlântico — que é também o da Beira
Interior — e o mundo mediterrâneo, evidenciando-se entre eles novos mate-
riais, matérias, produtos, tecnologia, estilos (com recurso à cera perdida), sis-
temas de controlo (v.g. fíbulas, pinças, vidro, ferro, âmbar, ponderais) (VILAÇA,
1995: 323, 352; 2008b; 2013b, com bibliografia anterior). A eles deverá juntar-
-se ainda a técnica particular de dourar metais por difusão térmica que se iden-
tificou num cravo de bronze do Crasto de São Romão (Seia) e considerada ser
de origem mediterrânea (FIGUEIREDO et al., 2010). Neste último caso, porque
estaríamos no domínio específico de uma técnica importada do exterior, que
não apenas na de objectos, não deveremos deixar de considerar a eventual
presença de artesãos estrangeiros, que a dominassem, ou de alguém que, de
dentro, viu fora como fazer, na medida em que se os objectos podem ser imita-
dos, não o é a técnica. Esta aprende-se e aprende-se vendo-se fazer.
Todos eles e outros que, não sendo tangíveis, estão, todavia, presentes (v.g.
pentes, espelhos, capacetes) através da imagem em estelas e estátuas-menires
da região e que foram incorporando, metaforicamente, uma “onda mediterrâ-
nea”, onda que avançou e se dissolveu entre as comunidades beirãs, e não só.

CERÂMICAS DE “TIPO LAPA DO FUMO”

É nesta região Centro/ Sul da Beira Interior que se manifesta uma quarta
categoria de cerâmicas de excepção, as cerâmicas de ornatos brunidos ou de
“tipo Lapa do Fumo”.
EM TORNO DOS II-I MILÉNIOS A.C. NA BEIRA RAIANA (PORTUGAL CENTRAL)
35
Raquel Vilaça

Além de as considerarmos produções regionais, até porque muito superio-


res numericamente em relação às duas categorias antes referidas, é igualmen-
te reconhecido pela generalidade dos investigadores a forte ligação deste tipo
de cerâmicas ao Baixo Tejo, ao Alentejo, à região mais ocidental e meridional
da Península Ibérica (v.g. OSÓRIO, 2013: 137-138; 2017, com bibliografia; VILAÇA
e CARDOSO, 2017: 264-267). Porém, a identificação de duas variantes distintas
— sulcos brunidos e faixas brunidas, neste caso com potencial efeito bicromá-
tico —, variantes que se podem encontrar nos mesmos contextos, não deixam
de expressar tendências bem distintas na sua distribuição (VILAÇA, 1995: 283-
284, 297). Tanto quanto é possível perceber, e contando mais uma vez com os
constrangimentos dos dados, esta segunda variante vai-se dissipando à medi-
da que caminhamos para norte.
E, de novo, a tendência dessa clivagem parece emergir nas latitudes ad-
jacentes à Cordilheira Central. Esta percepção terá de ser validada quando
se conhecerem melhor as evidências empíricas que suportam a atribuição ao
Bronze Final de vários sítios, designadamente no Norte da Beira Interior. Em
síntese recente focada nessa região não se encontram assinaladas cerâmicas
com decoração brunida, em qualquer uma das variantes e em nenhum dos oito
sítios elencados (CARDOSO, 2014: 77, 79, quadro 2).

CERÂMICAS “PEINADAS” OU “A PEINE”

As cerâmicas de “tipo Lapa do Fumo”, que merecem muitas outras con-


siderações (OSÓRIO, 2013), desaparecem quando na Beira Interior começa a
circular uma outra categoria de cerâmicas a qual nos remete, de novo, para
a Meseta. Falamos agora das cerâmicas “peinadas” ou “a peine”, com uma
longa vigência ao longo da Idade do Ferro, pelo menos desde o séc. VII a.C.
até ao séc. II a.C. (ÁLVAREZ SANCHÍS, 2010; 2018: 94).
Com efeito, subjacente a estas cerâmicas estão realidades bem diversas,
desde logo as de fabrico manual e as de fabrico a torno, passando pelo menos
pela existência de três categorias distribuídas numa ampla região que deixam
entrever distintos ateliers com dimensão estilística e com repercussão a ní-
vel de demarcação de fronteiras, não fora este tipo cerâmico considerado um
“marcador móvel de etnicidade” (ÁLVAREZ SANCHÍS, 2010: 305-307; 310). Está
por definir se algum desses sub-grupos mesetenhos se espelha na Beira Inte-
rior, ou se nesta será possível reconhecer um novo sub-grupo.
Justamente, não é o momento para tecermos grandes considerações so-
bre as cerâmicas “a peine” da Beira Interior, uma vez que carecem de uma
abordagem sistemática e conjunta, portanto que coloque em confronto a fron-
teira material dos artefactos com seus contextos e face a outras entidades
36 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

arqueológicas. De todo o modo, numa apreciação genérica parece ser possível


identificar cerâmicas de cronologia variável, com formas e fabricos bastante
díspares, com padrões estilísticos claramente diferenciados, mas onde as pro-
ximidades estilísticas ao núcleo salmantino parecem ser expressivas (Fig. 10,
11 e 12).

Fig. 10. Cerâmicas peinadas da Beira Interior: 1 e 2 Cachouça (Idanha-a-Nova); 3 Alegrios


(Idanha-a-Nova)
EM TORNO DOS II-I MILÉNIOS A.C. NA BEIRA RAIANA (PORTUGAL CENTRAL)
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Raquel Vilaça

Fig. 11. Cerâmica peinada de Vila do Touro (Sabugal)


38 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Fig. 12. Cerâmicas peinadas da Beira Interior: 1, 2 e 3 Sabugal Velho; 4 e 5 Sabugal

São 9 os sítios para os quais existem dados seguros, todos de altura e vin-
culados a contextos habitacionais (COIXÃO, 2000; OSÓRIO, 2005; SOARES, 2019:
19; VILAÇA, 1995; 2007). É sobre alguns deles que neste momento trabalhamos,
designadamente sobre os dados aportados pelas escavações realizadas em
Vila do Touro e outros sítios sabugalenses, sendo possível vislumbrar, desde
já e em termos da sua distribuição, um modelo que mimetiza o traçado para
EM TORNO DOS II-I MILÉNIOS A.C. NA BEIRA RAIANA (PORTUGAL CENTRAL)
39
Raquel Vilaça

as cerâmicas de “tipo Cogotas I”: um traçado disperso e abrangente na Beira


Interior, mas não aleatório (Fig. 13).
Como é bem sabido, a linha que tem vindo a ser advogada por diversos in-
vestigadores é a de que a cerâmica “a peine” seria um elemento distintivo en-
tre Vetões e Lusitanos (v.g. ÁLVAREZ SANCHÍS, 2010). Chegou a ser proposto que
essa demarcação ocorreria pelo Alto Côa, embora de modo difuso (OSÓRIO,
2009: 103), ou de forma mais rígida, tomando-se o rio como linha de fronteira,
ainda que neste caso se reconheça a sua fragilidade, quer para época romana,
quer pré-romana (CARVALHO, 2007: 72).

Fig. 13. Carta de distribuição de cerâmica peinada da Beira Interior.


40 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Se subscrevêssemos esta linha de pensamento e face aos dados hoje co-


nhecidos, teríamos então de dizer que a “fronteira luso-vetónica” não só avan-
çou para ocidente, ultrapassando a linha do Côa e alcançando os territórios
a sul, como se densificou. E se considerarmos que os Lusitanos careciam de
materialidades exclusivas (v.g. cerâmicas, armas) de referência identitária (VI-
LAÇA, 2005: 21-22), expressando antes a sua identidade a nível ideológico e
religioso (ALARCÃO, 2001: 311 e segs.), então estamos a comparar grupos não
só distintos, mas com estratégias sociais de afirmação bem diferenciadas. Um
valorizaria a cultura material através das suas cerâmicas (e de outros marca-
dores, como os berrões ou os grandes povoados de cariz proto-urbano) como
forma de coesão social; o outro, que poderíamos equiparar a um “grupo étnico
escondido” no registo arqueológico (HODDER, 1982: 187), parece tê-la secun-
darizado, não sendo isso, todavia e necessariamente, sinal de maior lassidão
sócio-política.

4. EM RETROSPECTIVA
Numa visão global e valorizando os dados cerâmicos como marcadores
identitários e de contacto que prefiguram territórios estilísticos, poderemos
entrever a existência de duas tendências genéricas.
Uma é a abertura da Beira Interior à Meseta ocidental expressa num “so-
pro” muito dilatado no tempo, o mais dilatado e aparentemente sem grandes
rupturas, desde a 1ª metade do II milénio a meados do I milénio a.C., pelo me-
nos. Cerâmicas “proto-Cogotas”, “Cogotas I” e “a peine” constituem as mate-
rialidades dessa conexão, desse processo de fronteirização. Este é também o
movimento mais abrangente em termos territoriais, rasgando as próprias fron-
teiras internas da Beira Interior (onde há matizes distintos sendo que, a sul,
são mais esbatidos) e rompendo-as a norte, para além Douro. Sítios como a
Fraga dos Corvos (Macedo de Cavaleiros) (LUÍS, 2013; REPRESAS, 2013, SENNA-
-MARTINEZ, neste livro) ou a Foz do Medal (Vale do Sabor) (GASPAR et al., 2014)
contribuem para ampliar territórios estilísticos afins.
Outra tendência reafirma esse acolhimento cultural, que estende e di-
versifica os elos de aproximação da Beira Interior à Beira Central, daquela
ao Tejo, à Extremadura e Andaluzia ocidental e, por estas vias, ao mundo
mediterrâneo. Esta abertura mais tentacular intensifica-se (sem se iniciar) na
transição do II para o I milénios a.C. e é particularmente visível em torno e a
sul da linha de montanhas da Cordilheira Central, onde tão bem e também
estão presentes recursos de estanho e de cobre. Assim, enquanto as cerâmi-
cas de âmbito “Cogotas I” se manifestam de norte a sul da região em análise,
as de “tipo Baiões”, de “tipo Lapa do Fumo” e de “tipo Carambolo” parecem
EM TORNO DOS II-I MILÉNIOS A.C. NA BEIRA RAIANA (PORTUGAL CENTRAL)
41
Raquel Vilaça

ser mais “selectivas” na sua distribuição territorial. Mas não só. Estas dis-
tintas categorias, embora não se encontrem sistemática e simultaneamente
associadas entre si a nível local, não deixam de se entrelaçar a uma escala
regional (Fig. 14).
É nesta segunda tendência que se deverão enquadrar as primeiras cerâ-
micas de fabrico a torno de timbre “orientalizante”, de momento circunscritas

Fig. 14. Áreas de enlace das cerâmicas tipo Proto-Cogotas/ Cogotas I, de tipo Baiões, de tipo
Carambolo e peinadas na Beira Interior.
42 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

à Cachouça (VILAÇA e BASÍLIO, 2000; VILAÇA, 2007). Ainda que um sítio por si
só diga pouco, não deixa de ser notório que é o mais meridional e mais próxi-
mo das franjas daquele mundo peninsular temperado pelo Mediterrâneo que,
nesta região, nos convida ao exercício de um olhar bifocal, da Extremadura ao
Baixo Tejo, ou vice-versa. De novo, e mais uma vez, olhando sempre para lá
das fronteiras da Beira Interior.
Embora se reconheçam estas duas tendências genéricas, nenhuma delas
pode ser dissociada da ênfase colocada pelas comunidades nos contextos
domésticos, na casa, nos lugares de habitação, como centro de actividades
produtivas e de sociabilidade, como referenciais identitários e marcadores ter-
ritoriais na longa diacronia abordada neste texto.
Em outros referenciais (v.g. a metalurgia, as estelas e suas técnicas, as ar-
mas do Côa) seria possível — é possível — reconhecer essa multiculturalida-
de da Beira Interior, uma região arraçada, onde dificilmente se vislumbram
fronteiras, mas se entreveem expressivos processos de fronteirização filtrados
pelo poder agenciador das comunidades beirãs e das “outras”, em função do
6
devir do tempo e do movimento perpétuo de todas elas.

AGRADECIMENTOS
A Marcos Osório, a José Luís Madeira, a Inês Soares, pela ajuda nos ele-
mentos gráficos.

REFERÊNCIAS
ABARQUERO MORAS, F. J. (2005). Cogotas I. La difusión de un tipo cerámico durante
la Edad del Bronce. Monografías en Castilla y Léon 4.
ABARQUERO MORAS, F. J. (2012). Cogotas I más allá del território nuclear. Viajes, bo-
das, banquetes y regalos en la edad del bronce peninsular. In Rodríguez Marcos
e Fernández Manzano (eds.), Cogotas I. Una cultura de la Edad del Bronce en la
Península Ibérica, pp. 59-110.
ALARCÃO, J. (2001). Novas perspectivas sobre os Lusitanos (e outros mundos). Revis-
ta Portuguesa de Arqueologia, 4 (2), Lisboa, IPA, pp. 293-349.
ALARCÃO, J. (2005). Ainda sobre a localização dos povos, referidos na inscrição da
ponte de Alcântara. In Lusitanos e Romanos no Nordeste da Lusitânia, [2.ªs Jor-
nadas do Património da Beira Interior]. Guarda: Centro de Estudos Ibéricos, pp.
119-131.

6
Movimento Perpétuo, título da primeira obra do Poeta António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho
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las e estátuas-menires: da Pré à Proto-história, [Actas das IV Jornadas Raianas,
Sabugal], pp. 293-318.

Resumo:
Vinte anos passaram desde a publicação da primeira síntese onde a autora defendeu para
a Beira Interior a existência de processos de hibridez cultural durante o Calcolítico e o Bron-
ze Final. Em textos posteriores o assunto foi aprofundado e a argumentação consolidou-se
com o estudo de novas evidências empíricas e o cruzamento de distintas metodologias. Essas
evidências, de natureza e valor muito variável — cerâmicas, matérias e materiais exóticos,
tecnologia, marcadores territoriais, etc. —, permitiram, ao mesmo tempo, criar a ideia de um
mundo marchetado durante a Pré- e Proto-história daquela região, um mundo de fronteiras
indefiníveis, ou só vagamente perceptíveis. São fronteiras fluídas, de elevada permeabilidade,
e sempre imaginadas. No limite podem não existir.
Entretanto, dados mais recentes, alguns só parcialmente publicados, que ampliaram também
a escala cronológica, legitimam um novo inquérito no sentido de avaliar se tais evidências são
convergentes com a tese então defendida, reforçando-a, ou se, pelo contrário, apontam para
a conveniência da sua revisão. Este texto centra-se num período de cerca de mil anos, entre
meados do II e meados do I milénio a.C., e numa região, ela própria fronteira política e natural,
mas porosa, onde são notórios os contrastes geomorfológicos e mais subtis as manchas e os
vazios de povoamento. Como entendê-los?

Palavras-chave: Beira Interior; Idade do Bronze/Idade do Ferro; Cerâmicas; Hibridização cul-


tural; Fronteiras/ Fronteirização.

Around the II-I millennia BC in the borderlands


of the beira (central portugal). Material and imagined
representations, vanguards and rearguards in
perpetual motion

Abstract:
Twenty years have passed since the synthesis in which the author first defended the existence
of cultural hybridization processes during the Copper and Late Bronze Age was published.
EM TORNO DOS II-I MILÉNIOS A.C. NA BEIRA RAIANA (PORTUGAL CENTRAL)
47
Raquel Vilaça

Further papers have reapproached the issue, solidifying the argumentation, either through
the study of new empirical data or the application of innovative and distinct methods. This
data, of variable nature and significance – ceramics, exotic materials and artifacts, technology,
territorial markers, etc. –, allowed, at the same time, to create the idea of a patchwork-like
world during the regional Pre and Protohistory. A world of undefinable or vaguely perceptible
borders. These borders are fluid, highly permeable and always imagined. They might not even
have existed.
Meanwhile, more recent data, some only partially published, that has magnified the chronological
scale, requires us to inquire and evaluate if these evidences are convergent with the defended
thesis, reinforcing it, or, on the contrary, point to the necessity of its revision.
This contribution is focused on a period of around a thousand years, between the middle of
the II and of the I millennium BC, in a region that while simultaneously a political and a natural
border, is permeable enough to human mobility, and where even though the geomorphological
contrasts are clear, the settlement distribution patterns remains. How to understand them?

Key words: Beira Interior (Central Portugal); Bronze Age/Iron Age; Ceramics; Cultural hybridi-
zation; Borders/Fronteirisation
TRANSPONDO O ERGES. O DELINEAR DE
UMA ABORDAGEM TRANSFRONTEIRIÇA
À PAISAGEM PROTO-HISTÓRICA ENTRE O
TEJO E O SISTEMA CENTRAL
PEDRO BAPTISTA*

1. NOTA PRÉVIA
Em projetos de investigação de âmbito territorial, a questão da definição da
área de estudo é das primeiras que se levanta e que importa responder quanto
antes. E aqui não deixa de ser paradoxal que a arqueologia, ciência que estuda o
passado, esteja tão profundamente ancorada no presente. Mas não é surpreen-
dente – também a prática arqueológica é um resultado do tempo da sua agência.
Dizemos que está ancorada no presente porque sistematicamente se têm
compartimentado estudos em função de limites administrativos atuais; nós pró-
prios o fizemos no âmbito da nossa tese de Mestrado, tendo então reconhecido
que a ausência de dados geográficos do lado espanhol limitava em muito os
resultados obtidos (BAPTISTA, 2019, pp. 95-96). Mesmo assim, confessamos que
quando nos foi feito o desafio de abordar a Alta Extremadura conjuntamente
com a Beira Interior no âmbito do nosso projeto de Doutoramento, hesitámos.
Colocavam-se diversas questões sobre a exequibilidade do mesmo – qualidade
e compatibilidade de dados geográficos, acesso a informação arqueológica, au-
torizações para a realização de trabalhos de prospeção, etc.
No entanto, face às temáticas que pretendíamos abordar, intimamente rela-
cionadas com a mobilidade humana e a reconfiguração da paisagem durante a
Proto-história, insistir em manter este limite administrativo contemporâneo sig-
nificava transpô-lo no tempo, com toda a carga anacrónica que isso acarreta.
Com efeito, a fronteira que atualmente separa Portugal de Espanha na beira
raiana materializa se no curso do rio Erges. Nascido na Serra da Malcata, corre
em direção a sul ao longo de cerca de 50 km até à sua foz na margem direita do
Tejo. Embora decalque um limite natural, esta fronteira não é mais do que uma
construção antrópica, definida e mantida desde finais do séc. XIII.

*
Instituto de Ciências Arqueológicas, Departamento de Arqueologia Pré-histórica, Universidade Albert Ludwigs
Freiburg / CEAACP, Universidade de Coimbra. pedro-esb@hotmail.com
50 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

De certa forma, podemos afirmar que ainda que separe Portugal e Espanha,
não separa as regiões da raia – o afastamento geográfico em relação ao resto
do próprio país acaba por conduzir a uma maior proximidade entre comunidades
“de fronteira”, partilhando-se tradições, festividades e inclusive uma identidade
comum (cf. AMANTE, 2010, pp. 103-106; 2014, pp. 419-420, acerca da discussão
teórica em casos de estudo da Beira Interior Norte, e Rovisca, 2010, acerca das
práticas de contrabando na raia de Idanha-a-Nova).
1
Estas práticas , partilhadas entre ambos os lados da fronteira, testemunham
a discrepância entre as decisões de um estado e a agência da sua população,
resiliente neste caso a quase oito séculos de História. Mas mais do que isso,
dizem-nos muito sobre a natureza da própria fronteira e o seu papel no território;
o Erges é um rio de características torrenciais, de caudal reduzido no estio e
elevado durante a época das chuvas, mas mesmo então de travessia possível em
zonas como Monfortinho, Salvaterra do Extremo e Segura.
Assim, despindo o Erges dos significados que o devir histórico mais recente
lhe encarregou de suportar, encontramo-nos perante não um obstáculo intrans-
ponível, mas sim um dos muitos afluentes da margem direita do Tejo, dentro de
um território que importa então caracterizar para melhor compreender as comu-
nidades que o habitaram há cerca de três milénios.

2. O TERRITÓRIO
A nossa área de estudo corresponde à Beira Interior (Centro e Sul) e à Alta
Extremadura (Norte), corporizada na bacia hidrográfica norte do Tejo, desde Vila
Velha de Ródão até ao limite com a província de Toledo, e adicionalmente o con-
celho do Sabugal, já inserido no limite ocidental da plataforma da Meseta. Desde
logo, ocupa uma posição na Península Ibérica que, apesar de interior, lhe confere
um papel central no contacto entre diferentes regiões bem definidas, como são
a costa atlântica, a Meseta, o Alentejo e os vales do Guadiana e Guadalquivir
(MARTÍN BRAVO & GALÁN, 1998, pp. 305-306).
Os seus limites são assinalados por acidentes geográficos significativos e es-
truturais a nível ibérico, como são o caso do Sistema Central, a norte, e do rio
Tejo, a sul. Longitudinalmente, são as Talhadas-Muradal, a Gardunha e a Serra da
Estrela, a ocidente, e a fronteira com a província de Toledo, através de um pro-
longamento da Serra de Gredos para sul, a oriente, que fecham a área de estudo.
Mais do que limites artificiais – como são todos os que definem uma área de
estudo – são obstáculos que condicionam a mobilidade e/ou a visibilidade e que

1
De notar que além do contrabando, prática quase mitificada na raia e que detém um contexto histórico
muito específico durante o séc. XX, existiam festividades no verão que reuniam populações dos dois lados
da fronteira, por exemplo, em Monte Fidalgo e Cedilho (informação gentilmente cedida por Pedro Fonseca).
TRANSPONDO O ERGES. O DELINEAR DE UMA ABORDAGEM TRANSFRONTEIRIÇA
51
À PAISAGEM PROTO-HISTÓRICA ENTRE O TEJO E O SISTEMA CENTRAL _ Pedro Baptista

fazem com que o movimento seja canalizado através de portelas e vaus especí-
ficos que os permitam superar.

Fig. 1. Vista da área de estudo a partir do Miradouro da Serra das Talhadas (Proença-a-Nova)
e em direção a leste (Fotografia de Mário Monteiro).

Do ponto de vista geológico, trata-se de um território caracterizado pela con-


jugação de duas grandes unidades litológicas predominantes: o complexo xisto-
-grauváquico e as intrusões graníticas, ambas marcadas por cristas quartzíticas,
que definem relevos abruptos e escarpados de orientação NW-SE (cf. RIBEIRO
& LAUTENSACH, 1988, a propósito das unidades litológicas do lado português e
BARRIENTOS ALFAGEME, 1990, do lado espanhol).
A propensão ao movimento e à circulação de pessoas é reforçada pelas suas
características geomorfológicas; de feição tendencialmente aplanada, o relevo
marca presença, ora pontilhando o território, ora compartimentando-o. Nas pala-
vras de Orlando Ribeiro (1998, p. 2) “a montanha, quando não domina, avista-se
de todos os lugares”, servindo simultaneamente como marcador espacial e es-
paço preferencial para a fixação das comunidades humanas durante a Proto-his-
tória (VILAÇA & BAPTISTA, 2020, pp. 27-28).
Além disso, as suas falhas, como a do Ponsul ou a de Plasencia-Alentejo,
abrem no território importantes corredores de circulação naturais recorrente-
mente aproveitados pelo Homem ao longo da História.
Por sua vez, a rede hidrográfica drena em direção ao Tejo, dispondo-se os
seus afluentes na margem direita com uma orientação tendencialmente NE-SW.
52 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

De montante a jusante, destacam-se os rios Tiétar, Alagón, Erges, Aravil e Ponsul,


todos eles de carácter torrencial e com vales progressivamente mais encaixados
aquando da aproximação à sua foz, compartimentando o território e condicio-
nando a mobilidade de forma cíclica, em função da estação do ano. Dentro deste
quadro, são elementos multifacetados com especial personalidade, definindo
simultaneamente fronteiras e vias de comunicação, e disponibilizando não só
água potável, como também estanho e ouro aluvionar (cf. VILAÇA, 1995, p. 71).
Alguns deles foram inclusive “ritualizados” ao longo do tempo, ora através da
gravação de arte rupestre (HENRIQUES et al., 2013), ora da deposição de artefac-
tos metálicos (VILAÇA & ROSA, 2015; VILAÇA & BOTTAINI, 2021).
Além da riqueza aluvionar dos seus cursos de água, e de particular relevância
nos períodos em análise, é também de assinalar a presença de minério de cobre,
sobre a forma de filão, em Vila Velha de Rodão (CARVALHO & HAMILTON, 2020)
e no Sabugal (CORREIRA, 1988); uma ocorrência particularmente rara a norte do
Tejo.
Neste quadro natural perfilhado então entre o rio Tejo e o Sistema Central,
porém, desenham-se também diferentes unidades territoriais com característi-
cas próprias, estabelecendo entre elas uma complementaridade de recursos,
por vezes refletidas (ou intuídas) em diferentes formas de ocupação do espaço.
Não é, portanto, surpreendente que no alvor do I milénio a.C., estes mesmos
territórios, a Beira Interior e a Alta Extremadura, a par com as suas características
naturais partilhadas, perfilhassem uma identidade comum, expressa nos seus
padrões de povoamento, cultura material e repertório iconográfico.

3. O REGISTO ARQUEOLÓGICO PROTO-HISTÓRICO


A investigação arqueológica dedicada à Proto-história conduzida nestas
regiões viu-se condicionada pelas barreiras levantadas pelas suas fronteiras
geográficas e administrativas, seguindo caminhos divergentes, com diferentes
focos, metodologias e objetivos.
É certo que os limites administrativos não obedecem sempre aos mesmos cri-
térios – em alguns países assumem hoje um carácter quase linear e geométrico,
mas no caso que nos ocupa tendem a decalcar elementos naturais significativos
na paisagem, como são os rios e as cordilheiras montanhosas, que condicionam
a mobilidade ou fecham o horizonte. E estes limites não são estáticos, variando
em função da escala e objetivos da organização administrativa que os define,
podendo um mesmo país ter vários sistemas vigentes para diferentes fins.
O que nos interessa, porém, do ponto de vista epistemológico, é constatar
como é que estas divisões administrativas têm condicionado o estado da inves-
tigação arqueológica nestes territórios.
TRANSPONDO O ERGES. O DELINEAR DE UMA ABORDAGEM TRANSFRONTEIRIÇA
53
À PAISAGEM PROTO-HISTÓRICA ENTRE O TEJO E O SISTEMA CENTRAL _ Pedro Baptista

Confrontando as duas regiões que servem de base para o nosso estudo, o


maior contraste prende-se com o papel do Tejo. Fronteira meridional do lado
português, separando as Beiras do Alentejo; eixo central do lado espanhol, defi-
nindo com a sua bacia hidrográfica a Alta Extremadura.
Tal contraste reflete-se de forma marcante nas abordagens arqueológicas
regionalistas que se desenvolveram dos dois lados da fronteira.
Em Portugal, o marco de referência é a tese de Doutoramento de Raquel Vi-
laça (1995), dedicada ao povoamento do Bronze Final na Beira Interior Centro e
Sul. Embora a sua análise seja a este nível regional, assume como área central do
seu estudo o nordeste da Plataforma de Castelo Branco e o extremo ocidental do
Planalto da Meseta (VILAÇA, 1995, pp. 66-67), onde se situam os quatro povoados
intervencionados. Neste quadro, os dados obtidos são articulados em diferentes
escalas de análise, reconhecendo já então as afinidades culturais com as regiões
limítrofes e, particularmente, com o Nordeste Alentejano e Alta Extremadura (VI-
LAÇA, 1995, pp. 422-423).
Em Espanha, Almagro Gorbea (1977) é o primeiro a sistematizar e tratar
a informação disponível sobre o Bronze Final e o Período Orientalizante na
província da Extremadura. Mais recentemente, na década de ’90, dois outros
projetos de investigação encontram-se no Bronze Final da Extremadura. Ana
Martín Bravo (1995) estuda a Idade do Ferro na Alta Extremadura, recuando,
porém, ao substrato do Bronze Final, enquanto Ignacio Pavón Soldevila (1998)
estuda toda a Extremadura durante a Idade do Bronze, do II ao I milénio a.C.
Em qualquer dos casos, porém, o foco foi colocado na “mesopotâmia” entre
os rios Tejo e Guadiana, tendo sido nesta franja do território que se realizaram
com maior intensidade os trabalhos de prospeções e, inclusivamente, de es-
cavação arqueológica.
Daqui advém que a norte do Tejo, do lado espanhol, a quantidade e qualida-
de dos dados disponíveis seja mais reduzida, extrapolando-se as conclusões da
margem sul e, por extensão, da Baixa Extremadura a esta fração da província.
Só mais recentemente, com os trabalhos de prospeção intensiva desenvol-
vidos em Campo Aruañelo (GONZÁLEZ CORDERO, 2015) é que foi possível obter
dados específicos nesta franja do território, desenhando-se um primeiro esboço
do povoamento ao longo de toda a Idade do Bronze com base, sobretudo, em
cerâmica de influência mesetenha, de tipo proto-cogotas e cogotas.
Posto isto, não é novo o reconhecimento das afinidades culturais durante a
Proto-história entre a Beira Interior e a Alta Extremadura. Com base na análise
dos padrões de povoamento e das características tipológicas e arqueometalúr-
gicas dos artefactos metálicos, Martín Bravo e Galán (1998) argumentam que
durante o Bronze Final ambas as regiões perfilharam uma identidade comum, de
forte influência atlântica, mas que se afastou progressivamente a partir do séc.
VII a.C., fruto da crescente influência de Tartessos no Sudoeste da Península.
54 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Cremos, porém, que colocando o foco no Norte da Alta Extremadura e à luz


do atual estado dos conhecimentos, a questão do afastamento de ambas as re-
giões durante o início da Idade do Ferro deve ser matizada. Para tal, recordemos
então as características dos padrões de povoamento e da metalurgia proto-his-
tórica e observemos os contornos do fenómeno das estelas de guerreiro, cir-
cunscrevendo-nos à nossa área de estudo.

3.1. PADRÕES DE POVOAMENTO


Apesar de significativamente reduzida a amostra do lado espanhol, as afi-
nidades culturais durante o Bronze Final apontadas por Martín Bravo e Galán
(1998) continuam a verificar-se entre a Beira Interior e o Norte da Alta Extre-
madura, tendo-se reconhecido recentemente a continuidade de alguns traços
partilhados dentro do Ferro Inicial (MARTÍN BRAVO, 2016, pp. 83-84 e 91).
Com efeito, a grande maioria dos povoados do Bronze Final conhecidos ca-
racteriza-se pela ocupação de pontos destacados na paisagem, sejam eles parte
de uma cadeia montanhosa ou montes ilha isolados, com forte controlo visual do
território envolvente e boas condições defensivas naturais.
A sua distribuição aponta para um controlo partilhado do território, através de
relações de visibilidade solidária, permitindo não só a comunicação entre eles,
como também a cobertura visual de pontos chave do território, como são as
portelas, os vaus e os corredores de circulação naturais.
Outras formas de ocupação habitacional afiguram-se como mais raras; a ideia
de que as comunidades do Bronze Final habitavam em grutas não foi mais do que
o resultado de um incipiente estado da investigação no século passado e verifi-
cou-se a sua associação a povoados, como é o caso de Alegrios (Idanha-a-Nova)
e Valcorchero (Plasencia). Por outro lado, são exíguos os vestígios de ocupação
em planície, ao contrário do que se identifica nas regiões limítrofes, como o Médio
Tejo português ou a Meseta espanhola, situação que pode encontrar explicação
em diversos fatores, como a falta de prospeções intensivas ou os processos de
sedimentação, necessariamente mais acelerados em zonas de baixa altitude.
Embora apenas uma muito reduzida parte dos sítios conhecidos ter sido alvo
de escavações arqueológicas, os dados que possuímos apontam para que não
haja uma hierarquização entre os diferentes povoados, todos eles apresentando
vestígios de produção metalúrgica a uma escala doméstica, uma economia pre-
dominantemente baseada na pecuária e agricultura e uma seletiva incorporação
de influências forâneas, que vêm a anunciar a chegada de um novo mundo: o da
2
I Idade do Ferro ou do Período Orientalizante .

2
Utilizaremos doravante os termos de I Idade do Ferro / Ferro Inicial por os considerarmos mais apropriados
para a designação deste período cronológico, já que se encontram desprovidos de uma conotação exógena
logo à partida.
TRANSPONDO O ERGES. O DELINEAR DE UMA ABORDAGEM TRANSFRONTEIRIÇA
55
À PAISAGEM PROTO-HISTÓRICA ENTRE O TEJO E O SISTEMA CENTRAL _ Pedro Baptista

Posto isto, a transição para o Ferro Inicial continua a ser uma das grandes
questões em aberto, sendo muito reduzido o número de sítios conhecido que se
possam atribuir a esta cronologia. Com base nos dados dos territórios em redor,
as tipologias de assentamento diversificam-se e há uma aproximação a espaços
mais discretos na paisagem, próximos de cursos de água e com acesso a terras
com maior potencial agropecuário.
É certo que a partir do século VII, são claras as alterações de fundo que
estão em marcha e que conduzem ao abandono de sítios no final da Idade do
Bronze – por vezes definitivo como é o caso do Castelejo (Sabugal), Monte
do Frade (Penamacor), Alegrios e Moreirinha (Idanha-a-Nova) (VILAÇA, 1995, p.
423); por vezes com reocupações durante a II Idade do Ferro, como é o caso do
Cabeço da Argemela (Fundão / Covilhã) e, com base em recolhas de superfície,
da Quinta da Samaria (Fundão / Covilhã), Tapada das Argolas e Covilhã Velha
(Fundão) (VILAÇA et al., 2000, p. 193). Igualmente testemunho de um processo
de mudança em marcha é a ocupação do Cabeço das Fráguas (Guarda / Sabu-
gal) apenas a partir da fase derradeira do Bronze Final (séc. VIII a.C.) (SANTOS
& SCHATTNER, 2010).
São assim poucos os sítios que apresentam uma continuidade na ocupação
entre o Bronze Final e o Ferro Inicial. Excluindo desta discussão os sítios locali-
zados no extremo ocidental da Meseta, do lado português, apenas a Cachouça
(Idanha-a-Nova), El Perñuelo (Ceclavín) e La Muralla (Valdehúncar) é que se en-
quadram neste cenário.
Entre estes, apenas a Cachouça foi alvo de escavações arqueológicas, reve-
lando uma estratigrafia muito afetada e com mau estado de conservação, não
permitindo uma definição clara dos seus níveis de utilização (VILAÇA, 2007a, p.
67). Ainda assim, identificou-se cerâmica a torno cinzenta e cerâmicas penteadas
de âmbito mesetenho (VILAÇA, 2007a, p. 68), testemunhando uma vez mais o
carácter de confluência deste território entre a Meseta e o Sudoeste. E, com as
devidas reservas a que o registo estratigráfico nos obriga, não podemos deixar
de assinalar que estes materiais convivem com outros de fabrico manual em
tudo semelhantes aos que marcam os contextos do Bronze Final.
Do lado espanhol, os sítios de El Periñuelo e de La Muralla foram apenas alvo
de prospeções. Tratam-se de ocupações ainda em lugares destacados na pai-
sagem, cuja ocupação mais antiga é testemunhada ora por cerâmicas manuais
com perfis típicos do Bronze Final (PAVÓN SOLDEVILA, 1998, p. 284), ora por taças
carenadas e brunidas (MARTÍN BRAVO, 1995, pp. 156-157), respetivamente. Já do
Ferro Inicial, aponta-se cerâmica penteada e a torno e, no caso de Periñuelo,
alguns vestígios de adobes.
Com efeito, as ocupações atribuíveis ao Ferro Inicial na Alta Extremadura, a
norte do Tejo, remetem-nos, na sua maioria, para lugares ainda destacados na
paisagem, cujo amuralhamento não fez mais do que colmatar as lacunas entre
56 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

os afloramentos rochosos, sendo a única exceção o sítio de Peñas del Castillejo


(Acehuche) situado num pequeno promontório na margem direita do Tejo e já
enquadrado no que será o padrão predominante de ocupação durante o resto
da Idade do Ferro.

3.2. METALURGIA

A nível dos artefactos metálicos, a raridade destes testemunhos a norte do


Tejo na área extremenha apenas nos permite tecer algumas considerações
gerais e preliminares, já que, uma vez mais, a maior concentração destes se
localiza a sul do rio.
Regra geral, podemos apontar a disponibilidade local de minérios de cobre
e estanho, embora o primeiro esteja limitado aos atuais concelhos de Vila Ve-
lha de Ródão e Sabugal e esteja ainda por comprovar a sua exploração efetiva.
Ainda assim, existem indícios desta exploração, sendo o mais significativo o do
achado de um machado de talão de uma argola a 12m de profundidade na mina
de cobre do Vale da Arca (Quarta-feira) (VILAÇA, 1995, pp. 86, 397 e est. CCLV-1),
recentemente interpretado como um depósito (MELO et al., 2002; CARDOSO, in
VILAÇA, 2006, p. 122).
O predomínio de ligas de bronzes binários (Cu+Sn), com elevada proporção
de estanho e impurezas de chumbo e arsénio (VILAÇA, 1997), a par da presença
de moldes, cadinhos e restos de fundição aponta para a prática doméstica da
metalurgia (ALMAGRO GORBEA, 1977, p. 91; VILAÇA, 1995, pp. 414-417)
Assim, coexistem artefactos com tipologias de filiação local com outras exó-
genas, de influência atlântica, continental e mediterrânea (VILAÇA, 2007b; 2013a),
resultado dos designados “contactos pré-coloniais” durante o Bronze Final.
De âmbito local e de influência atlântica, são os machados os instrumentos
que melhor ilustram a proximidade entre ambas as regiões. Do lado da Beira
Interior, a questão tem sido sistematizada e atualizada nos últimos anos (VILAÇA
& ROSA, 2015; BAPTISTA, 2016; VILAÇA & BOTTAINI, 2021), valorizando-se particular-
mente a sua associação a depósitos em meio aquático.
Do lado espanhol, contamos com seis. Dois deles, de talão monofacial, são
atribuídos, com dúvidas, aos dólmens de Garrote e Guadancial (Garrovillas) e um
ao município de Descargamaría. Contamos ainda com os machados de apêndi-
ces: dois provenientes do depósito de Villar de Plasencia e um de Villareal de
San Carlos (ALMAGRO-GORBEA, 1977, p. 78)
Embora se desconheçam os contextos de achado destes instrumentos em
concreto, são diversos os contextos de utilização, deposição ou representação
de artefactos metálicos – povoados, depósitos, estelas e arte rupestre. Dentro
desta variabilidade, a prática da deposição em meio aquático não deixa de
TRANSPONDO O ERGES. O DELINEAR DE UMA ABORDAGEM TRANSFRONTEIRIÇA
57
À PAISAGEM PROTO-HISTÓRICA ENTRE O TEJO E O SISTEMA CENTRAL _ Pedro Baptista

marcar presença no lado extremenho, como revela a espada do Vado de Alco-


nétar, depositada num dos principais pontos de travessia do Tejo a cerca de 130
km a montante da rocha 53 do Cachão do Algarve, com representação de par
de espadas (GOMES, 2010, p. 498). Revela assim uma partilha do ideário subja-
cente a esta forma de amortização do metal por parte das comunidades locais
que através desta prática assinalam e ritualizam um ponto fulcral da mobilidade
regional (RUIZ-GÁLVEZ PRIEGO, 1998, p. 345).

3.3. ESTELAS DE GUERREIRO

Além dos padrões de povoamento e características da metalurgia do Bronze


Final, já comparados com maior profundidade (MARTÍN BRAVO E GALÁN, 1998),
cremos ser justo dedicar mais alguma atenção aos contornos que o fenómeno
das estelas de guerreiro assumiu nestes territórios.
Seguindo o zonamento de Celestino Pérez (2001), estes englobam a Zona
I – Serra da Gata e a parte norte da Zona II – Vale do Tejo / Serra de Montánchez.
Importa salientar que este zonamento não deve ser tido como absoluto ou fe-
chado, até porque entre eles existem várias permeabilidades e afinidades, mas
sim como uma possível unidade que facilite a análise e evidencie determinados
padrões em função da geografia.
Posto isto, e como já foi justamente assinalado (SANTOS et al., 2011, p. 325), a
Zona I não deve ser entendida estritamente como a Serra da Gata / Malcata, mas
sim como uma região geográfica mais ampla onde as estelas partilham uma série
de características comuns que as distinguem das restantes zonas, nomeadamen-
3
te a nível da predominância de exemplares de composição básica , ou seja, com
representação de escudo, espada e lança, e “ausência” de antropomorfo.
Estes elementos encontram-se representados nas estelas de forma padroniza-
da, denotando normas e regras vigentes – o escudo assume marcado protagonis-
mo, assumindo posição central na composição; espada e lança tendem a apresen-
tar o gume para lados opostos, sendo a ponta da lança, normalmente, orientada
com a escotadura do escudo (CELESTINO PÉREZ e SALGADO CARMONA, 2011, p. 426).
Em alguns exemplares, à composição básica, foram acrescentados outros
elementos, como o capacete, a fíbula ou o espelho, cuja distribuição parece mi-
metizar posição real no corpo – assim, o carácter antropomórfico residiria no
próprio suporte, sendo redundante a sua representação (CELESTINO PÉREZ e SAL-
GADO CARMONA, 2011, pp. 426-427).
De qualquer das formas, é nesta Zona I que se tem apontado uma possível
emergência das estelas de guerreiro, atendendo, por um lado, ao seu carácter

3
Tipo I de CELESTINO PÉREZ e SALGADO CARMONA, 2011.
58 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

mais básico e, por outro, à longa tradição de estátuas-menir e ídolos no território


(e.g. BUENO RAMIREZ et al., 2011, p. 39).
Independentemente dessa possível continuidade, cuja discussão não cabe
nos propósitos deste trabalho, importa assinalar a forma particularmente expres-
siva como na nossa área de estudo as comunidades do Bronze Final interagiam,
recorrendo às estelas de guerreiro, com vestígios de um passado mais recuado,
ora reapropriando os seus lugares, ora os próprios suportes.
As estelas de guerreiro de Zebros 2 e Hernán Pérez são ilustrativas desta pri-
meira situação: em ambos os sítios foram identificados monumentos funerários
de tipo mamoa, cuja cronologia precisa se desconhece, uma estela diademada
no caso de Zebros (CARDOSO, 2011) e seis ídolos-estela no caso de Hernán Pérez
(ALMAGRO BASCH, 1972). Estamos, pois, perante uma longa duração destes luga-
res, que em diferentes momentos da sua história ganharam especial significado
(VILAÇA, 2013b, p. 212).
Por sua vez, São Martinho e, possivelmente, o Telhado ilustram a segunda
situação.
A estela do Telhado porque o seu suporte evoca carácter para-megalítico,
podendo corresponder ao reaproveitamento de um antigo menir, tendo uma das
suas faces sido profusamente regularizada para a gravação dos seus motivos,
chegando a possuir um perfil barquiforme (VILAÇA et al., 2016).
E São Martinho porque aqui encontramos três monumentos – um menir
gravado e duas estátuas-menir. À luz dos vestígios arqueológicos identificados
ora em escavação, ora em prospeção, a ocupação do sítio durante o Bronze
Final é mais do que clara; menos claro é o papel destes monumentos neste
quadro.
Desde logo porque não correspondem a estelas de guerreiro na perfeita
acessão do conceito; o menir gravado representa antropomorfo em cena de
caça, figurando outros elementos iconográficos igualmente presentes em es-
telas de guerreiro, como são uma possível fíbula de cotovelo, uma lâmina de
punhal ou espada, um espelho e um quadrúpede, possivelmente canídeo. Já
no que toca às estátuas-menir, incompletas, uma delas figura antropomorfos
com escudos e capacetes com cornos, remetendo-nos para uma cronologia do
Bronze Final, mas de resto ambas partilham um reportório iconográfico adscri-
4
to a períodos mais recuados , já que representam cinturão, típico das estelas
“Hurdes-Gata” do Bronze Antigo e insígnia de poder como figura central (VILA-
ÇA et al., 2004, p. 160).
Ou seja, exemplos como estes obrigam-nos a refletir sobre a forma como
as comunidades do Bronze Final se relacionavam com o território e com o seu

4
Recentemente, os monumentos de São Martinho foram alvo de uma abordagem mais exaustiva que procura
relacionar alguns dos seus elementos com a tradição megalítica e várias influências do III ao II milénio a.C.
(cf. BUENO RAMÍREZ et al., 2019-2020).
TRANSPONDO O ERGES. O DELINEAR DE UMA ABORDAGEM TRANSFRONTEIRIÇA
59
À PAISAGEM PROTO-HISTÓRICA ENTRE O TEJO E O SISTEMA CENTRAL _ Pedro Baptista

passado – e aqui coloca-se uma questão fundamental: este passado era seu,
enquanto comunidades ou seu, do território que agora habitavam?
Isto porque desconhecemos em absoluto de que forma foi praticada esta rea-
propriação dos lugares e monumentos – terá sido mantida, de forma continuada,
de geração em geração ao longo de séculos, ou com hiatos temporais significa-
tivos que apagassem a sua memória e significados originais?
De resto, a questão não fica mais clara quando olhamos para os suportes
reaproveitados. Primeiro, porque também nestes casos se podem ter mantido
no seu lugar de origem. Segundo, porque, nas estátuas-menir de São Martinho,
os motivos mais antigos estão integrados de tal forma na composição que nos
levam a questionar se foram feitos “de raiz” no Bronze Final, assimilando e re-
concebendo arcaísmos de carácter local, ou se se tratam efetivamente de reutili-
zações (VILAÇA et al., 2004, p. 160). E terceiro porque casos como os do Telhado,
com uma preparação tão intensiva da superfície a gravar, podem testemunhar a
destruição de uma primeira fase de gravação; algo em sintonia com os contextos
onde se integram as gravações atribuídas ao Bronze Final no complexo de arte
rupestre do Tejo que recorrem sempre a painéis já gravados (GOMES, 2010, pp.
497-499; BAPTISTA, 2019, pp. 32-33 e 103)
Além deste carácter evocativo temporal, as estelas de guerreiro deste ter-
ritório perfilam igualmente afinidades a nível do seu contexto espacial, recor-
rentemente associado a corredores de circulação e portelas. Por um lado, a sua
distribuição espacial revela que estamos perante comunidades cujas vivências
não se cingem aos seus povoados; elas conhecem, vivem e reivindicam estes
territórios, explorando-os e circulando por eles, em contacto com outras regiões
e comunidades (BAPTISTA, 2019, pp. 37-41). Por outro, atrevemo-nos a dizer que
no quadro da mobilidade humana, ao assinalar onde as travessias são possíveis
e constituindo autênticos marcadores espaciais, parecem assinalar simultanea-
mente zonas de fronteira e de encontro entre diferentes unidades territoriais
(VILAÇA & BAPTISTA, 2020, pp. 29-30).

4. O PROJETO: PROBLEMÁTICAS, QUESTÕES, OBJETIVOS


E METODOLOGIAS
Ficam patentes os profundos vínculos socioculturais que uniram estas duas
regiões durante a Proto-história, resultado da fluidez e mobilidade que o ter-
ritório permite. Dependendo da escala de análise, podemos apontar que são
afinidades que se refletem igualmente noutras áreas da Península Ibérica, ou
até a nível pan-europeu, com maior ou menor intensidade, e testemunham o seu
importante papel no contacto entre elas.
60 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Mas cada história é uma história e daqui se depreende igualmente que coe-
xistiram durante os mesmos períodos e num mesmo território alargado diferen-
tes estratégias de ocupação, expressas na história singular e individual de cada
um destes sítios; história essa que só pode ser devidamente caracterizada com
recurso a escavações arqueológicas ou abordagens mais focadas que valorizem,
dentro da unidade, a diversidade.
À luz do estado atual dos conhecimentos, são várias as problemáticas em
aberto e questões que se levantam.
Na sequência do que foi explanado no ponto anterior, a disparidade no esta-
do de investigação entre a Beira Interior e a Alta Extremadura será das proble-
máticas mais significativas. Em termos quantitativos, do levantamento preliminar
que possuímos para o nosso projeto, contamos com 88 ocorrências do Bronze
Final no lado português e apenas 30 no lado espanhol, das quais apenas uma
ínfima minoria foi alvo de escavações arqueológicas.
Para a I Idade do Ferro, a discrepância é menos acentuada, mas reflete um
estado de investigação ainda mais incipiente. São apenas 5 e 7, respetivamente,
embora do lado português todos eles tenham sido identificados com base em
escavações.

Fig. 2. Mapa de distribuição de ocorrências do Bronze Final.

No que toca ao Bronze Final, não há motivos para crer que esta discrepância
se deva a um povoamento menos intensivo do lado espanhol ou uma forma de
ocupação do espaço diferenciada, desde logo se tivermos como representativos
os dados das prospeções intensivas realizadas em Campo Aruañelo (GONZÁLEZ
CORDERO, 2015).
TRANSPONDO O ERGES. O DELINEAR DE UMA ABORDAGEM TRANSFRONTEIRIÇA
61
À PAISAGEM PROTO-HISTÓRICA ENTRE O TEJO E O SISTEMA CENTRAL _ Pedro Baptista

Por outro lado, e aqui a questão é transversal a ambos os países, o núme-


ro reduzido de sítios escavados resulta num conhecimento muito superficial de
cada um deles, seja a nível da sua organização interna ou dos contextos crono-
-estratigráficos de utilização e deposição dos seus materiais.

Fig. 3. Mapa de distribuição de ocorrências do Ferro Inicial.

E é aqui que podemos explicar, pelo menos em parte, a grande dificuldade


de adscrever sítios ao Ferro Inicial; no caso da Beira Interior, estes sítios só fo-
ram identificados com base em contextos de escavação onde foram detetados
materiais atribuíveis a este horizonte, por vezes associados a outros do Bronze
Final. Ou seja, admitindo um arcaísmo da cultura material e a resiliência de de-
terminadas formas dentro do Ferro Inicial, dificilmente se poderão distinguir à
superfície as suas cronologias.
Neste sentido, e como já referimos anteriormente, a ideia do afastamento entre
a Beira Interior e a Alta Extremadura (Norte) durante o Ferro Inicial deve ser mati-
zada à luz dos parcos dados disponíveis. Não sendo ainda claras as relações que
se estabeleceram entre estas regiões e o sul do Tejo ou a Meseta, não deixa de
ser sugestiva a concentração de povoados e achados que, do lado extremenho, se
relacionam ora com as portelas do Sistema Central, ora com os vaus do Tejo.
Por outro lado, as formas de apropriação e marcação de lugares fora dos
espaços habitados, como os achados metálicos, estelas e arte rupestre, resul-
tam sobretudo de achados casuais, carecendo ainda de uma abordagem con-
junta, sistemática e integrada que os permita relacionar não só com o quadro
de povoamento e mobilidade coetâneo, como também com os vestígios de um
passado mais antigo.
62 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

5
Neste sentido, no âmbito do nosso projeto de Doutoramento , desenvolvi-
6
do em articulação com um projeto de investigação internacional dedicado às
estelas de guerreiro, propusemo-nos a desenvolver um ensaio de Arqueologia
da Paisagem regional sistemático e multiescalar, cuja linha orientadora se pauta
pela análise das relações estabelecidas entre comunidades indígenas e exóge-
nas e de que forma estas se manifestaram na reconfiguração do território, desde
o Bronze Final até ao Ferro Inicial.
Mas a compreensão das dinâmicas de reconfiguração identitária e territorial
por parte das comunidades indígenas só pode resultar de necessária postura
aberta, alicerçada numa perspetiva diacrónica e multiescalar, que em termos la-
tos, na nossa abordagem, radica da análise de três aspetos:
a) o quadro de povoamento e exploração do território, testemunhado pelo
registo arqueológico e a sua distribuição espacial;
b) os contactos vigentes, intra e interterritoriais, testemunhados pela cultura
material e pela circulação de matérias-primas, tecnologias e ideias;
c) a rede de corredores de circulação que atravessa a área de estudo e a re-
laciona com as regiões em redor, através de pontos específicos de travessia
dos rios e cordilheiras montanhosas, extrapolada através do registo arqueo-
lógico e das características do território com recurso a análises espaciais.

À parte do necessário e imprescindível levantamento bibliográfico, do ponto


de vista metodológico, prevê-se o recurso a prospeções, tanto extensivas, como
intensivas, que acabam por servir um duplo propósito.
O primeiro, de aprofundar o nosso conhecimento acerca do registo arqueo-
lógico e da ocupação do território, procurando não só identificar novas ocorrên-
cias arqueológicas, sobretudo nas áreas com menor densidade de sítios e/ou
prospeções arqueológicas, como também caracterizar mais aprofundadamente
os lugares de achados mais antigos. Nesta linha, pretende-se observar a relação
destes, por exemplo, com recursos naturais, aspetos geomorfológicos particula-
res, monumentos naturais e pré-existências antrópicas.
O segundo, paralelo, mas indissociável do conhecimento científico, de avalia-
ção do estado de conservação das ocorrências proto-históricas conhecidas. Com
efeito, tem-se assistido, com particular intensidade em Portugal ao longo dos
últimos anos, à destruição de sítios arqueológicos, sobretudo fruto do vazio legal
no que toca às medidas de minimização patrimoniais da exploração agroflorestal
intensiva. A situação é agravada no caso do período em análise visto que muitos

5
“Mundos em movimento, paisagens em transformação: dinâmicas de (re)configuração territorial na Beira
Interior e na Alta Extremadura entre o Bronze Final e o Ferro Inicial”, orientado pela Prof. Doutora Raquel
Vilaça (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra).
6
“As estelas ibéricas da Idade do Bronze Final: iconografia, tecnologia e a transferência de conhecimento entre
o Atlântico e o Mediterrâneo”, coordenado pelo Doutor Ralph Araque Gonzalez (Universidade de Freiburg),
financiado pela Deutsche Forschungsgemeinschaft DFG (AR 1305/2-1).
TRANSPONDO O ERGES. O DELINEAR DE UMA ABORDAGEM TRANSFRONTEIRIÇA
63
À PAISAGEM PROTO-HISTÓRICA ENTRE O TEJO E O SISTEMA CENTRAL _ Pedro Baptista

dos seus testemunhos se resumem a simples embasamentos pétreos, estruturas


negativas e restos de argila cozida, todos estes facilmente destruídos em ações
de revolvimento do solo e surriba. Neste sentido, torna-se fundamental esta ava-
liação no sentido de definir prioridades e equacionar futuras intervenções com
recurso a escavações arqueológicas.
Além das prospeções arqueológicas, o projeto prevê o estudo das proveniên-
cias de dois tipos de testemunhos: os artefactos metálicos e as estelas de guer-
reiro, cada um com metodologias e objetivos próprios, mas inter-relacionados.
Em ambos os casos, a determinação da proveniência da matéria-prima é sempre
potencial, devendo ser interpretada à luz dos dados histórico-arqueológicos co-
nhecidos.
Posto isto, a determinação de proveniência de cobre pauta-se pelo cruza-
mento e comparação das composições químicas dos artefactos metálicos entre
si e com jazidas de minério, onde se atenderá à presença de elementos residuais
(PERNICKA, 2014, pp. 250-259), e das assinaturas isotópicas de chumbo, con-
cretamente dos rácios 207Pb/206Pb, 208Pb/206Pb e 206/204Pb (STOS-GALE &
GALE, 2009, pp. 202-203).
A amostra que analisaremos é composta por um conjunto tipologicamente
diversificado de artefactos metálicos do Bronze Final da Beira Interior, composto
por objetos representados nas estelas (espadas, pontas de lança e fíbulas) ou
utilizados para o seu trabalho (cinzéis), de influência exógena (“pega” com mo-
tivos sardo-cipriotas) ou produções regionais (machados de talão unifacial), e li-
gados à cadeia operatória metalúrgica (aderências de metal em cadinhos, restos
de fundição). Adicionalmente, como referência, analisar-se-ão também amostras
de minério de cobre proveniente de jazidas da Beira Interior e com vestígios de
exploração antiga.
Pretende-se com estas análises caracterizar a rede de contactos vigentes
com base na circulação do metal, ou seja, procurar responder às seguintes ques-
tões:
a) se os recursos mineiros deste território eram efetivamente explorados e
até onde terão circulado;
b) se existem correlações entre as tipologias, cronologias, contextos de utili-
zação / representação e a proveniência dos artefactos;

Por sua vez, a determinação da proveniência das estelas será feita com base
em análises petrográficas, cujos resultados serão comparados com afloramentos
rochosos no território envolvente.
Com base numa análise da distribuição espacial das estelas de guerreiro e
da disponibilidade geológica da sua matéria-prima, tem-se defendido que os
lugares de procura e exploração dos blocos pétreos se encontram nas imedia-
ções dos seus lugares de implantação (VILAÇA E OSÓRIO, 2017). Neste sentido,
64 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

as análises petrográficas pretendem testar esta noção, localizando os aflora-


mentos e procurando indícios da sua exploração em campo.
Finalmente, e em linha com o que temos vindo a defender em trabalhos ante-
riores, a abordagem destes dados pretende-se holística e articulando diferentes
escalas de análise. Para tal, o recurso aos Sistemas de Informação Geográfica
afigura-se como imprescindível, contribuindo com um vasto leque de análises es-
paciais de acessibilidade e visibilidade que permitam relacionar os novos dados
empíricos e analíticos obtidos.
Em última instância, cada uma destas etapas contribui com dados importan-
tes cuja leitura conjunta permite o aprofundar do nosso conhecimento acerca
destes territórios e das comunidades que os habitavam entre a Idade do Bronze
e a Idade do Ferro.

5. NOTAS FINAIS
O nosso conhecimento acerca da Proto-história das regiões da Beira Interior
portuguesa e da Alta Extremadura espanhola conta com uma significativa base
empírica, fruto dos trabalhos e estudos desenvolvidos ao longo das últimas dé-
cadas.
Ainda assim, existem várias linhas de investigação possíveis, com focos, ob-
jetivos e metodologias próprias que permitem o seu aprofundamento. A que es-
colhemos seguir assume um carácter transfronteiriço, diacrónico, interdisciplinar
e necessariamente holístico.
Começámos este texto com uma alusão à arqueologia enquanto “ciência que
estuda o passado ancorada no presente” e rematamo-lo retomando essa mesma
ideia.
De facto, à semelhança dos dias de hoje, as comunidades que no início do I
milénio a.C. habitaram o interior da Península Ibérica experienciaram um período
de acelerada mudança, onde diferentes mundos “colidem”, marcados por novas
gentes, novos materiais e tecnologias, e novas ideias e cosmologias. O resultado
das suas escolhas marcou o seu devir histórico e lançou as bases para o que se-
ria o quadro socio-identitário que os romanos aqui viriam a encontrar, rompendo
em definitivo com o passado pré-histórico e iniciando o que seria de facto uma
nova era.

AGRADECIMENTOS
Ao Mário Monteiro, pela cedência da Figura 1, e ao Pedro Fonseca, pela par-
tilha de informações relativas aos costumes e festividades das comunidades de
Monte Fidalgo e Cedilho.
TRANSPONDO O ERGES. O DELINEAR DE UMA ABORDAGEM TRANSFRONTEIRIÇA
65
À PAISAGEM PROTO-HISTÓRICA ENTRE O TEJO E O SISTEMA CENTRAL _ Pedro Baptista

À Professora Raquel Vilaça, pelo convite para participar neste dossier temáti-
co e pelas revisões e sugestões que muito enriqueceram este texto.
À Deutsche Forschungsgemeinschaft DFG, no âmbito do financiamento do
projeto AR 1305/2-1.

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Resumo:
Dos dois lados da fronteira que atualmente separa Portugal de Espanha desenha-se um ter-
ritório partilhado entre a Beira Interior e a Alta Extremadura. Apesar das afinidades culturais
durante, pelo menos, o Bronze Final serem já reconhecidas desde a década de ’90, estas
regiões nunca foram alvo de uma abordagem arqueológica comum.
Neste sentido, apresenta-se de forma preliminar um projeto de investigação transfronteiriço
em curso sobre as dinâmicas de reconfiguração territorial durante a Proto-história Peninsular
nestes territórios, valorizando a sua posição de charneira entre várias regiões da Península
Ibérica, as suas singulares características naturais, e a riqueza e diversidade do seu registo
arqueológico.

Palavras-chave: Arqueologia da Paisagem; Arqueologia Transfronteiriça; Proto-história Penin-


sular.

Crossing the Erges. Outlining a cross-border approach


to the protohistoric landscape between the Tagus and
the Central System

Abstract:
From both sides of the border between Portugal and Spain, a territory shared by the Beira
Interior and the Alta Extremadura takes shape. It's somewhat surprising that these two regions
were never the focus of a joint, cross-border, archaeological approach; especially when we
consider that since the '90s their cultural affinities during (at least) the Late Bronze Age have
been recognized.
In this sense, we present a preliminary overview of an ongoing cross-border research project
regarding the territorial reconfiguration dynamics during the Peninsular Protohistory in these
territories. Through this, we intend to highlight its central position between several regions
of the Iberian Peninsula, its singular natural features, and the diversity of its archaeological
record.

Key words: Landscape Archaeology; Cross-border Archaeology; Peninsular Protohistory.


FRONTEIRAS AUDITIVAS, VISUAIS E
LOCOMOTORAS NA DEFINIÇÃO DOS
TERRITÓRIOS DAS SOCIEDADES DO
I MILÉNIO A.C. UM CASO DE ESTUDO
NO ALTO CÔA
MARCOS OSÓRIO*

1. A PROBLEMÁTICA DA DEFINIÇÃO DE TERRITÓRIOS


No decurso da nossa investigação na região do Alto Côa sobre as estratégias
ocupacionais em diversos povoados com ocupação do II e I milénio a.C., entre-
1
tanto abandonados e, posteriormente, reocupados na Idade Média , tornou-se
imprescindível conhecer devidamente as realidades envolventes a esses sítios
e perceber até que ponto o espaço periférico contribuiu para as dinâmicas de
ocupação humana observadas no registo arqueológico.
É sempre importante apurar os benefícios e as vantagens de viver num deter-
minado povoado, tendo particularmente em conta, a área circundante. Mas para
isso é necessário proceder a uma delimitação territorial, demarcando aquilo que
pertencia à comunidade, e era por ela controlado e explorado, em contraste ao
que já seria externo a esse mesmo grupo populacional.
Temos noção de que a definição de qualquer território antigo é uma tarefa
exigente, tratando-se obviamente de uma mera aproximação teórica (ENCARNA-
ÇÃO 1997: 80). Qualquer abordagem à envolvência de um assentamento popula-
cional, ocupado no II e I milénio a.C., depara com o problema dos limites, o que
não impede que se proponham hipóteses, pensadas em termos genéricos e não
baseadas em cálculos simplistas.
Contrariamente ao que sucede nos territórios de época romana e medieval,
dos quais possuímos algumas referências de autores clássicos, da epigrafia e da
paleografia, quando nos focamos no estudo das comunidades mais antigas essa
informação é inexistente e temos sempre de partir para a definição do espaço
envolvente cingidos à mera análise ambiental.

*
Município do Sabugal e CEAACP. arkmarcos@hotmail.com. ID ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4340-461
1
Temática sobre a qual versa a nossa Tese de Doutoramento, orientada pela Doutora Raquel Vilaça e Doutora
Helena Catarino da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
70 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Ao abordarmos o território em estádios de desenvolvimento civilizacional


destituídos de poder central, devemos considerá-lo sempre como um produto
das pessoas que nele habitaram e o delimitaram (GUATTARI E ROLNIK 1996: 323). A
ligação dos povos tradicionais ao seu espaço vivencial era mais intensa, porque
além de constituir a sua fonte de recursos, era igualmente objeto de uma forte
apropriação simbólico-religiosa (HAESBAERT 2004: 72).
Estas sociedades agrícolas, pastoris e metalúrgicas dependiam principal-
mente das condições físicas do seu entorno e empregavam as referências
espaciais do meio ambiente na construção da sua própria identidade. O seu
território definia-se sobretudo por um princípio cultural de pertença, fruto de
uma relação de carácter afetivo com o espaço vivido, mas também percebido,
que se sobrepunha à simples posse material (GODELIER 1986: 106; HAESBAERT
2004: 72). Ao passar bastante tempo num determinado espaço, as comunida-
des não só o ocupavam, exploravam e delimitavam, mas iam-se identificando
com ele e demarcando-o simbolicamente (DI MEO 1991: 273; SANCHES 2000:
133-137).
Nesse processo de apropriação humana do espaço, a perceção joga um pa-
pel muito ativo na sua legitimação, tanto para o interior da comunidade como
para o exterior, gerando vínculos coletivos, que criam esse espaço social que é a
paisagem (OREJAS et al. 2002: 301).
Por isso, o território não deve ser abordado como um objeto, nem sequer
como uma entidade em si, mas antes como um ato e uma relação, e comporta
simultaneamente repetidas dinâmicas de apropriação e despreendimento, gera-
das apenas por aqueles que o habitaram, exploraram e nele circularam (SANCHES
2000: 131; HERNER 2009: 167).
Assim, deve ser representado e construído de forma ampla, incorporando
diversas experiências corporais e oportunidades de movimento direcional, bem
como todas as formas de cognição humana e de perceção sensorial (GUATTARI
E ROLNIK 1996: 323; TSCHAN et al. 2000: 37). Esta necessidade de uma aborda-
gem mais holística ao Passado tem sido defendida por vários autores (WATSON E
KEATING 1999: 326; HAMILAKIS et al. 2002: 8; LLOBERA 2007a: 52), dado que as
vivências quotidianas são multissensoriais, sendo fundamental recorrer ao que
ouvimos, cheiramos ou tocamos, para além daquilo que observamos à nossa
volta (TILLEY 1994: 14; FELD 1996: 91; TSCHAN et al. 2000: 30; GASPAR 2001: 89;
FRIEMAN E GILLINGS 2007: 6-7; WHEATLEY 2014: 122).
Com esse intuito, recorremos aos conceitos de proximidade e afastamen-
to que estão na base de diversos exercícios de análise espacial na Arqueolo-
gia, por terem impacto nos atributos e nas relações sociais dos assentamentos
(WHEATLEY E GILLINGS 2002: 148), inspirados no trabalho do antropólogo Edward
Hall, que defende que os comportamentos de territorialidade fazem parte da
natureza humana, estipulando diversos círculos de entorno, abertos a distintas
FRONTEIRAS AUDITIVAS, VISUAIS E LOCOMOTORAS NA DEFINIÇÃO DOS TERRITÓRIOS DAS SOCIEDADES DO I MILÉNIO A.C.
71
Marcos Osório

pessoas (HALL 1966: 114-125, 128), variando igualmente no tamanho, de acordo


com a situação e o tipo de interações sociais (LAWRENCE E LOW 1990: 478).
Quando nós lidamos com os outros, a sua presença requer a definição daqui-
lo que é nosso e daquilo que é seu. Aquilo que está do lado de cá e o que está
do lado de lá. Estes limites podem não ser consensuais, nem rigorosos, e de es-
tabilidade muito relativa, mas de alguma forma eles tem de existir e estar estabe-
lecidos para que as sociedades vivam em equilíbrio num determinado território.
Por isso mesmo, a territorialização é um processo constantemente associado
ao domínio político, social e económico, sendo a dimensão política a que melhor
responde pela sua conceptualização. Isto significa que o território é a área que
se deseja ter sob influência, passando a ter fronteiras e a ser defendido, pela ex-
clusão e inclusão seletiva de algumas atividades, que contribuem precisamente
para o que querem defender (COX 2002: 3). Se não houver excesso populacional
e conflitos, os limites serão definidos consensualmente, por via natural ou antró-
pica (INGOLD 1986: 133).
A abordagem que fizemos a esta problemática partiu deste conceito bási-
co de que a localização de qualquer sítio arqueológico no espaço decorre das
experiências e significados diários acumulados, conceptualizados a diferentes
escalas, desde o nível individual e privado até ao âmbito comunitário e social. E
que o espaço apenas ganha significado a partir dos lugares, pois ele não existe
sem eles. O centro é o local habitado e a periferia e o tipo de atividades que aí se
desenrolam, são sempre definidas de dentro para fora (INGOLD 1986: 133).
O desafio seria encontrar os fatores de ordem natural que contribuíram para
estabelecer os limites do entorno de uma comunidade de cronologia pré e pro-
to-histórica. Para isso, decidimos incidir em três principais focos de reflexão e
experimentação prática, tendo em conta as propostas anteriormente apresenta-
das, por diversos investigadores, sobre este assunto.
Neste texto procuramos partilhar as conclusões que temos vindo a desenvol-
ver sobre este assunto, enunciando algumas ideias iniciais que visam suscitar
alguma ponderação em torno da problemática e que serão, futuramente, mais
desenvolvidas.

1.1. A COMPONENTE DA ACESSIBILIDADE

A primeira vertente que devemos privilegiar na tentativa de estabelecer


alguma delimitação territorial aos núcleos habitacionais do II e I milénio a.C.
é a área mais rapidamente acessível aos residentes num determinado povoa-
do, pois qualquer experiência humana no mundo físico tem como componente
fundamental a dinâmica corporal, movendo-se nas três dimensões espaciais, o
que constitui a mais elementar forma de perceção e de conhecimento humano
72 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

(FARNELL 1993: 361-362). Não há espaço sem experiência vivencial, o que implica
ação, e esta envolve sempre movimento (VILAÇA E BAPTISTA 2020: 15).
A mobilidade é indissociável da natureza do ser humano, estando presente
em todas as esferas da realidade humana, ao longo do tempo, mas não é um
processo tangível, afigurando-se como um fenómeno de difícil definição. Ela é
universal, pois todos se movem, mas é variável porque o fazem a escalas dife-
rentes e com múltiplas formas de expressão, que coexistem e se articulam entre
si e os pontos fixos (VAN DOMMELEN 2014: 480; BAPTISTA 2019: 7).
Mas é sempre um movimento com propósito, constituído pelas deslocações
realizadas pelos indivíduos no seu território ou com as comunidades das áreas
vizinhas, com objetivos próprios, articulados de forma complexa entre a esfera
social, económica e cultural (ADEY 2010: 34-35).
O ser humano sempre exerceu domínio sobre os terrenos que acede e ex-
plora. Ao percorrer a extensão máxima do seu território, o homem, tal como os
animais, constrói formas de posse e pertença com significados sociais próprios
(FERNÁNDEZ MARTÍNEZ E RUIZ ZAPATERO 1984: 59). Ainda que não nos possamos
esquecer que o Homem utiliza o território e os seus recursos, maximizando-os de
acordo com o mínimo esforço possível, não devem ser descartadas as situações
de índole ritual em que é manifesto não ter sido este preceito privilegiado e jus-
tamente o seu contrário (BINFORD 1988: 216; VILAÇA 1995: 66).

1.2. O CONTRIBUTO DA VISIBILIDADE

Em segundo lugar, deve-se ter em consideração a área que é alcançada e


controlada pela visão, pois esta é a faculdade sensorial mais importante da expe-
riência humana, e não poderia ser excluída desta reflexão, dado que nos propor-
ciona orientação no movimento e a disposição dos elementos que estão à nossa
volta, mas também concede a habilidade de descodificar os incontáveis detalhes
visuais da realidade envolvente (SKEATES 2010: 8).
Com ela construímos a representação do ambiente circundante, integrando
simultaneamente elementos de curta e longa distância, tornando-se uma das
performances humanas mais surpreendentes quando é exercida num vasto ho-
rizonte, não só pela diversidade de informação que retém, mas porque é capaz
de individualizar cada elemento, a partir da totalidade avistada (GIBSON 1950: 2).
A componente psicológica do processamento da informação obtida pela
visão é denominada como perceção visual. No decurso das nossas práticas
sociais, o espaço é apreendido pela visão, é dimensionado pelo movimento e
é interiorizado finalmente pela mente. Para uma observação bem-sucedida, é
necessário ver, conhecer e pensar simultaneamente (see, know, think). Deste
modo, toda a fisionomia da paisagem, da arquitetura e da cultura material envolve
FRONTEIRAS AUDITIVAS, VISUAIS E LOCOMOTORAS NA DEFINIÇÃO DOS TERRITÓRIOS DAS SOCIEDADES DO I MILÉNIO A.C.
73
Marcos Osório

sempre a visualização, o conhecimento e o pensamento (CRIADO-BOADO 2015:


67). Só assim, o espaço ganha forma, e se a forma é visível, então tudo o que é
visível é racional.
Embora desconheçamos se a importância que a visibilidade detinha para
as comunidades antigas se equipara à atual (TSCHAN et al. 2000: 44), é seguro
supor que ela detinha significados particulares e era usada como recurso para
determinados objetivos pretendidos, com auxílio dos agentes físicos e dos ele-
mentos construídos pelo homem (MURRIETA FLORES 2011: 28).
Estamos convencidos que as sociedades antigas geriram as suas pautas de
territorialidade com base em estratégias visuais próprias, de acordo com os ele-
mentos relevantes da paisagem, e que ela teve um papel determinante na defini-
ção das áreas de influência em torno de um local habitado (GARCÍA SANJUÁN et al.
2009: 172), constituindo um recurso defensivo face às ameaças externas ou um
meio de controlo das fontes de recursos económicos da envolvência (MURRIETA
FLORES 2011: 28).

1.3. A VERTENTE DA AUDIÇÃO

Por fim, dando ênfase ao papel das outras faculdades sensoriais desvalo-
rizadas pelo pensamento científico ocidental, achámos que seria fundamental
integrar nesta abordagem o alcance auditivo que é possível obter a partir de um
núcleo habitado.
A boa ou má visibilidade dos sítios arqueológicos tem sido demasiadamente
priorizada, esquecendo o contributo que os restantes sentidos deram para as
estratégias de povoamento (LUND 1998; HAMILAKIS et al. 2002; KELMAN 2010;
MILLS 2014; KOLLTVEIT 2014: 74). Contudo, embora o ser humano adote a visão
como instrumento privilegiado, esta capacidade sensorial está dependente de
um conjunto de condicionantes, especialmente de luz (GIBSON 1950: 1). Por isso,
a força da visão desvanece ao anoitecer, quando os outros sentidos ganham pre-
ponderância e resta-nos apenas a capacidade auditiva (tal como a olfativa), que
é a última a fechar-se, ao adormecer, e é também a primeira a despontar, quando
acordamos (SCHAFER 1977: 11; SKEATES 2010: 8).
A faculdade da audição tem sido uma dimensão perdida do enfoque tradicio-
nal às sociedades antigas, mesmo sabendo que o som aporta informação social
e cultural sobre os seus emissores. Elas praticavam inúmeras atividades notur-
nas de caça e de vigilância, onde a audição era imprescindível (SCHAFER 1977: 11).
Raramente os lugares habitados pelo homem estão isentos de som, pois ele
está presente em todos os aspetos da vida comunitária, desde o discurso falado
às tarefas diárias, onde se produziam informações acústicas fundamentais para
as relações sociais (WATSON E KEATING 1999: 325; MILLS 2010: 181 e 184).
74 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

O sistema auditivo coloca o corpo no centro da ação, à medida que os sons


o alcançam provindo das inúmeras fontes sonoras envolventes. Os diferentes
estímulos audíveis influenciam os padrões de comportamento na gestão e ex-
ploração dos recursos envolventes e contribuem para a leitura, interpretação e
memória dos lugares (GASPAR 2001: 91; HAMILAKIS et al. 2002: 8; FELD 2003: 226;
MILLS 2010: 180; MILESON 2018: 713).
É verdade que, embora os ouvidos desempenhem uma função universal,
eles são empregues de forma díspar no meio geográfico, e o significado dos
sons também variou ao longo dos séculos. O desafio para ultrapassar a barreira
do tempo é aferir a nossa perceção moderna com aquela que é especifica das
comunidades estudadas, culturalmente distintas da nossa, mas não necessaria-
mente desiguais (MILLS 2010: 179; KOLLTVEIT 2014: 74).
A probabilidade de sermos capazes de compreender os fenómenos auditivos
pretéritos, por meio da Arqueologia, suscita muita controvérsia. No entanto, não
devemos olhar para esse obstáculo como uma impossibilidade (HODDER 1992:
153; HAMILAKIS et al., 2002: 8). E, apesar da literatura científica raramente incluir
análises de âmbito acústico, pelo facto de que os sons não são detetáveis no
registo arqueológico (LUND 1998: 17), a Arqueologia tem potencial para se afir-
mar como uma disciplina que estuda efetivamente a relação entre o corpo, os
sentidos e a cultura material das antigas comunidades (MILLS 2014: 22).

2. O CÁLCULO DOS TERRITÓRIOS ACESSÍVEIS, VISÍVEIS


E AUDÍVEIS
Podemos utilizar diversos recursos técnicos e digitais, recorrer a cartogra-
fia detalhada e a ortofotos para estabelecer diversas considerações sobre os
territórios das sociedades do I milénio a.C., mas a demarcação natural do ter-
ritório envolvente, através desta vertente ergonómica e sensorial só é possível
reproduzindo o mesmo gesto e padrão de comportamento ancestral. E, qualquer
abordagem à realidade ancestral é feita através do corpo humano, como padrão
universal da perceção e um meio privilegiado de configuração do entorno atra-
vés da ação combinada de todas as suas ferramentas sensoriais (SKEATES 2010:
2; MILLS 2014: 38 e 82).
Os programas informáticos permitem hoje fazer estes cálculos, de modo ins-
tantâneo, mas revelam algumas incertezas que perturbam estas análises, pois
estão dependentes da qualidade da informação espacial empregue, das versões
do software, da potência do hardware e da habilidade do utilizador.
Desta forma, preferimos proceder a esta abordagem complexa aos territó-
rios dos povoados do II e I milénio a.C., através de exercícios práticos nestas
três componentes da definição de áreas de influência, que nos facultassem
FRONTEIRAS AUDITIVAS, VISUAIS E LOCOMOTORAS NA DEFINIÇÃO DOS TERRITÓRIOS DAS SOCIEDADES DO I MILÉNIO A.C.
75
Marcos Osório

uma perceção do espaço dominado pelos habitantes de um povoado, desde o


centro do território, para a periferia, por meio dos principais órgãos sensoriais e
locomotores. Com esta metodologia pretendeu-se a reprodução e compreensão
mais aproximada das situações experienciadas pelo sujeito, na linha das propos-
tas fenomenológicas (TILLEY 1994: 12; FRIEMAN E GILLINGS 2007: 7).

Fig. 1. Povoado proto-histórico de São Cornélio (Sortelha, Sabugal)

A componente experimental desta abordagem foi baseada em diferentes ti-


pos de ações, que estabelecessem os limites máximos da capacidade destas
três vertentes humanas. Fizeram-se exercícios de deteção e reconhecimento
visual na paisagem, testes de audição ambiental e os tradicionais cálculos do
custo de deslocação, cujos resultados foram georreferenciados, e dos quais se
pode agora estabelecer algumas considerações teóricas sobre a sua eficiência.
Os três exercícios práticos de perceção corporal e sensorial desenvolvidos
nesta investigação somente foram aplicados, nesta fase, nos povoados do São
Cornélio, Vila do Touro e Alfaiates (Sabugal) (Fig. 1 e 2), porque reúnem caracte-
rísticas únicas para a sua concretização. Por isso, somente estes sítios possibi-
litaram uma abordagem aprofundada a esta problemática, na reunião de todas
as valências físico-sensoriais com potencial de interferir na área periférica de
76 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

um local habitado, e são, por agora, suficientes para retirar algumas ilações no
confronto entre os modelos reproduzidos informaticamente e a realidade huma-
namente experimentada no terreno. Os outros assentamentos, por insuficiência
de tempo e por diversos condicionalismos geográficos, não foram sujeitos a es-
tes ensaios.
Não iremos detalhar aqui a metodologia, os resultados e as contrariedades
sentidas em cada exercício, pois isso ficará para o estudo mais aprofundado que
iremos apresentar posteriormente, mas apenas pretendemos descrever suma-
riamente os procedimentos básicos realizados.

Fig. 2. Povoado proto-histórico de Alfaiates (Sabugal) e a paisagem em torno

2.1. CÁLCULO DOS TERRITÓRIOS DE MARCHA

Para calcular a área mais facilmente acessível em torno dos primitivos nú-
cleos de ocupação humana, existiam alguns métodos tradicionais que foram
sendo melhorados com o recurso à tecnologia SIG.
Para a delimitação do território acessível encontra-se o conceito agregado de
distância e intervalo de tempo, cuja premissa é que uma área acedida em pouco
tempo será, naturalmente, mais facilmente controlada, explorada e defendida
(VITA-FINZI E HIGGS 1970: 7).
FRONTEIRAS AUDITIVAS, VISUAIS E LOCOMOTORAS NA DEFINIÇÃO DOS TERRITÓRIOS DAS SOCIEDADES DO I MILÉNIO A.C.
77
Marcos Osório

Tradicionalmente, a Arqueologia usou o pressuposto que o domínio sobre o


território é exercido em função da área a que os indivíduos podem aceder, do
centro para a periferia, no espaço de tempo suficiente para ir e regressar com
o menor custo energético (BETTINGER E BAUMHOFF 1982: 486-487). Assim, quan-
to mais afastados do núcleo habitado estiverem os recursos económicos, mais
dispendiosa será a sua exploração, havendo algures um ponto em que os custos
excedem os ganhos, constituindo esse limite a possível fronteira do território
ótimo explorado pelo grupo (CONOLLY E LAKE 2006: 214; GARCÍA SANJUÁN et al.
2009: 168).
Estabeleceu-se na arqueologia tradicional uma base consensual de referên-
cia de 1 hora de caminhada desde o habitat para atividades ligadas à agricultura
e 2 horas para atividades de caça, por analogia com populações agrícolas atuais
(BINTLIFF 1977: 112). Se efetuarmos esse exercício numa superfície completamen-
te plana, atingimos sensivelmente 5 km de extensão (VITA-FINZI E HIGGS 1970: 7
e 36).
Esta tem sido a fórmula empregue pela Arqueologia, nas últimas décadas
(DAVIDSON E BAILEY 1984), para demarcação empírica das áreas de influência ter-
ritorial das populações pré e proto-históricas, baseada em cálculos de distância/
custo. Com o advento dos SIG introduziram-se novos parâmetros e afinou-se o
modelo, permitindo a produção de inúmeras análises dos denominados territó-
rios de marcha (OSÓRIO 2017: 49-52), através de um simples “push bottom”, que
nos parece ser insuficiente para determinar, de forma correta, o espaço detido e
explorado por uma antiga comunidade.
As mais recentes investigações que têm sido desenvolvidas sobre este tema
procuraram conduzir o cálculo para além das modelações digitais, rumo a uma
apropriação da paisagem, sabendo que esta adquire significado através das pró-
prias atividades humanas (LOCK 2009: 81). A forma prática de reproduzir esse
fenómeno é visitar o sítio e fazer caminhadas, ao menos, nos vários quadrantes
espaciais, a partir do assentamento, durante 60 ou 120 minutos, unindo os pon-
tos máximos de deslocação, com a ajuda de cartografia topográfica (HIGGS E
VITA-FINZI 1972: 30; HIGGS 1975: 233).
Nesse sentido, decidimos proceder à experimentação prática dos modelos
teóricos e dos resultados informáticos com um trabalho de validação física e cor-
poral destas metodologias e procedimentos informáticos dos SIG, movendo-nos
pelo espaço envolvente, de forma a perceber a sua eficiência e se esses limites
eram reais.
Para isso, traçámos sobre a ortofoto 12 linhas orientadoras na paisagem, nas
diversas direções, de forma a realizar percursos de caminhada, divergentes e con-
vergentes, sempre a partir de um ponto central. O objetivo era cronometrar a dis-
tância percorrida ao longo do eixo, aos 15, 30 e 60 minutos de marcha, assinalando
o respetivo ponto por meio de coordenadas. Os traçados foram estipulados de
78 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

forma aleatória, tendo apenas em consideração as zonas que seriam mais propí-
cias à experimentação, pela menor presença de estruturas antrópicas recentes.
Posteriormente, em ambiente SIG, fez-se a ligação de todos os pontos de
marcha obtidos dentro da escala definida, assinalando a área perimetral de iso-
cronas alcançada no mesmo espaço de tempo (Fig. 5).
Desta forma pudemos, em primeiro lugar, validar os resultados informáticos,
se eles se aproximam da realidade prática, obtendo igualmente uma ótima per-
ceção da paisagem, dos marcos naturais e das estruturas humanas atuais, das
dificuldades de circulação, dos declives, do potencial hídrico, da vegetação, da
presença de animais selvagens, que nos permitiram ter um conhecimento pro-
fundo da realidade envolvente ao povoado, que geralmente nunca se chega a
realizar, no decurso da escavação arqueológica dos sítios.

2.2. CÁLCULO DA BACIA VISUAL

A determinação da área visível no horizonte, desde um ou vários pontos de


observação, constitui uma variável aplicada, há anos, pelos estudos arqueológi-
cos, graças ao seu importante papel na estruturação da paisagem humana. Estes
cálculos sempre foram essenciais na análise e interpretação arqueológica, sen-
do considerados a chave que responde a diversas questões sobre a fundação de
um sítio num determinado lugar (WHEATLEY E GILLLINGS 2002: 201-202).
A observação presencial, subindo aos cumes elevados ou percorrendo o en-
torno de um sítio, foi, desde sempre, o único recurso que o investigador tinha
para compreender a visibilidade de um local (OSÓRIO 2017: 46). Todavia, essa
perceção obtida no terreno estava condicionada por vários fatores, tornando-a
irrepetível e impedindo a sua rigorosa cartografia (WHEATLEY E GILLLINGS 2002:
203). Com o advento do processamento digital da informação altimétrica e o
desenvolvimento de novos algoritmos SIG, capazes de analisar grande volume
de dados geográficos, surgiram novas ferramentas que reproduziam o ato de
observar em ambiente virtual (WHEATLEY E GILLLINGS 2002: 201).
Consequentemente, as análises de visibilidade foram-se expandindo na in-
vestigação arqueológica, independentemente do período cronológico em causa,
para explicar a localização e o domínio territorial dos sítios, a sua conexão visual
com outros locais habitados e a imponência que detinham à distância (FISHER et
al. 1997: 583; WHEATLEY E GILLINGS 2000: 1-2; LLOBERA 2007: 51).
Os arqueólogos deram sempre ênfase à visibilidade e à intervisibilidade
máxima a longa distância. No entanto, descuraram a visibilidade mais próxima,
que interfere muito mais com a vida quotidiana da comunidade. A vigilância da
presença de estranhos, a observação do movimento do gado e dos rebanhos a
pastar, a identificação de perigos inesperados para os elementos da comunidade
FRONTEIRAS AUDITIVAS, VISUAIS E LOCOMOTORAS NA DEFINIÇÃO DOS TERRITÓRIOS DAS SOCIEDADES DO I MILÉNIO A.C.
79
Marcos Osório

(nas suas rotinas diárias no exterior), a deteção de caça ou de animais ferozes, o


controlo de um caminho ou a passagem de um rio, a vigilância dos terrenos de
cultivo e das zonas de exploração mineira, são exemplos privilegiados da visibi-
lidade a curta distância.
Por isso, ultimamente tem-se discutido sobre o que era verdadeiramente vi-
sível desde um sítio arqueológico (OGBURN 2006: 407) e existe um grande de-
sejo em clarificar a distância em que determinados elementos culturais podem
ser vistos ou reconhecidos, algo que depende das características do objeto em
questão, por exemplo (MURRIETA FLORES 2011: 28-29). Já alguns autores contri-
buíram para esta problemática ao definir três âmbitos de resolução da visibilida-
de em foreground, middle background e background (HIGUCHI 1983: 12).
Mais recentemente, Fabrega-Álvarez e Parcero-Oubiña (2019) foram mais
longe e conjugaram as propostas anteriores, abordando a visibilidade, não de
objetos, mas de seres móveis, e procuraram gerar bacias de visão mais elabo-
radas, criando aquilo que nós consideramos neste momento o melhor procedi-
mento de cálculo sobre o real controlo visual de qualquer posto de observação.
Os seus resultados práticos demonstraram a existência de uma progressão
na forma de visualização, a longa distância, separando os limiares visuais em
deteção (quando é possível observar pelo menos um indivíduo movendo-se), re-
conhecimento (refere-se à capacidade de caracterizar minimamente o indivíduo)
e identificação humana (quando se pode descrever completamente o agente e
o que traz com ele). Segundo estes autores, a partir dos 2500 m deteta-se na
paisagem a presença de uma entidade em movimento; sendo reconhecido como
ser humano, a partir dos 1200 m; mas só sendo possível caracterizar o seu com-
portamento, a 600 m. Já o limite de reconhecimento individual detalhado ocorre
somente aos 225 m; e só a poucos 60 m é possível a total identificação da pessoa.
Foram testes práticos de visibilidade no campo, semelhantes a estes, que
realizámos no cimo dos povoados, numa campanha específica envolvendo alu-
nos do Instituto de Arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade de Coim-
bra, como alvos móveis de observação, a vários pontos de distância, para tentar
avaliar o seu avistamento desde o topo do povoado. Sempre que se detetava,
reconhecia e identificava cada indivíduo e os seus adereços, foi-se georreferen-
ciando a sua posição, para proceder ao cálculo final das respetivas distâncias em
torno do povoado (Fig. 4), através do qual obtivemos indicadores da capacidade
máxima de deteção, reconhecimento e identificação de indivíduos.

2.3. CÁLCULO DA BACIA AUDITIVA

Para este último âmbito de ação, existiam menos trabalhos de referência


e tivemos de procurar as nossas próprias soluções para compreender quão
80 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

efetivo era o som como meio de comunicação e qual o seu impacto no ambiente
circundante.
Da mesma forma que se criam bacias de visão digitais (viewsheds), admiti-
mos que também se pudessem produzir bacias de propagação sonora (sound-
sheds: DÍAZ-ANDREU et al. 2017: 196) que delimitam a extensão máxima onde a
voz humana ou qualquer dispositivo sonoro pode ser escutado, numa determi-
nada paisagem.
Conhecem-se alguns algoritmos computacionais que intentam definir a área
de impacto auditivo de uma determinada fonte sonora, inclusivamente em con-
textos antigos (MLEKUZ 2004; MILESON 2018: 714). A mancha obtida é uma fer-
ramenta útil para determinar o papel do som no entorno dos núcleos antigos
estudados, mas este cálculo requer alguns procedimentos complexos, que de-
pendem de variáveis difíceis de estimar, em que a distância é apenas uma deles,
juntamente com o tom e a potência da fonte de ruído (MLEKUZ 2004).
Ora, era muito difícil simular informaticamente a experiência passada, dado
que na zona onde desenvolvemos os nossos exercícios práticos não possuímos
registos paleoambientais que permitam reconstruir esse contexto físico original.
Como solução alternativa ao procedimento informático, optámos pelo exercício
de experimentação prática e de perceção sensorial no terreno, permitindo obter
uma «consciência da experiência viva» (JIMÉNEZ PASALODOS 2012: 444).
Foi com base neste princípio que partimos para a marcação no terreno das
isófonas esquemáticas dos núcleos populacionais estudados, assinalando o limi-
te máximo auditivo de contato entre o interior e a periferia do povoado, através
de testes que validassem essas trocas de sons no entorno do cabeço habitado,
com recurso a instrumentos similares aos usados no passado.
Para testar a audição tivemos que estabelecer uma fonte sonora humana,
posicionada no topo do povoado que, para além da voz e do assobio (meios de
comunicação comuns entre as comunidades ancestrais, a curta e a média distân-
cia) (LUND 2010: 237), recorreu a um dispositivo sonoro semelhante aos antigos
aerofones, feito a partir de um corno de bovino.
No exercício de campo, as emissões sonoras desenrolaram-se pela constante
sequência de voz, assobio e aerofone, pelo mesmo indivíduo, para dar maior
uniformidade dos resultados, projetando o som desde o interior do recinto, com
vários recetores no exterior. Os testes tiveram de realizar-se, naturalmente, em
períodos de bom tempo, evitando dias nublados ou ventosos.
As equipas recetoras fizeram trajetos radiais em torno do assentamento, dis-
tanciando-se ou aproximando-se da fonte emissora, para tentar obter a posição
exata em que o som era audível, registando a audição dos sons provenientes do
povoado e dando a respetiva resposta vocal. Os limites de propagação sonora
foram assinalados por GPS na cartografia digital, definindo assim a área máxima
audível na envolvência dos sítios estudados. No final, conectaram-se os pontos
FRONTEIRAS AUDITIVAS, VISUAIS E LOCOMOTORAS NA DEFINIÇÃO DOS TERRITÓRIOS DAS SOCIEDADES DO I MILÉNIO A.C.
81
Marcos Osório

na base cartográfica SIG, criando o perímetro de isófonas com o mesmo índice


auditivo (Fig. 3).

Fig. 3. Mapa dos pontos georreferenciados dos testes de audição realizados no entorno
do povoado de São Cornélio (Sortelha, Sabugal)

3. RESULTADOS DOS EXERCÍCIOS PRÁTICOS


Os exercícios realizados com estas 3 metodologias de definição do âmbito
de apropriação humana, direta ou indireta, do território envolvente aos assen-
tamentos proto-históricos estudados, proporcionaram importantes dados preli-
minares que demonstram que os limites de locomoção e os alcances visuais e
auditivos não são idênticos e, nem sequer os que esperávamos.
Embora não tenham sido ainda testadas todas as vertentes de análise pre-
vistas, em todos os povoados, mesmo assim é possível avançar já com algumas
ideias genéricas sobre a problemática.
82 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

O meio de apropriação do território envolvente que define as fronteiras mais


longínquas de um povoado é a locomoção energicamente rentável. Mas em ter-
mos de segurança e controlo imediato haveria outros limites mais curtos que
podiam ser controlados desde o interior do habitat, simultaneamente pela visão
e pela audição.
Uma das constatações mais interessantes desta abordagem é a noção de
que não podemos separar a mobilidade, da capacidade de visão e de audição,
nos processos de definição dos raios de influência. Por outro lado, verificámos
que a visão não tem tanto poder controlador do território como supúnhamos.
Por esse facto, julgamos que qualquer proposta de definição territorial para
um povoado pré ou proto-histórico baseada apenas nos limites do tempo de
marcha ou na respetiva bacia de visão é nitidamente insuficiente e gera terri-
tórios ilusoriamente extensos. Apenas a conjugação destes vários âmbitos de
locomoção e perceção sensorial nos permitirá ter uma noção da verdadeira área
de influência na envolvência de um núcleo populacional.
Constatamos igualmente que estes âmbitos de influência auditiva, visual e
locomotora não geram perímetros regulares em torno dos povoados, mas pos-
suem irregularidades, dependentes das condições ambientais e físicas do en-
torno, especialmente da topografia. São territórios grandemente assimétricos e
distintos entre si. Qualquer barreira topográfica diminui a fronteira visual de um
sítio, mas não limita a bacia auditiva, nem a distância acessível. Por outro lado,
um grande curso fluvial impede a rápida progressão na marcha, mas não blo-
queia a visibilidade e audição dessa área envolvente. Por isso, os três âmbitos
devem ser sobrepostos, na tentativa de procurar aquelas áreas que facultam um
controlo e apropriação do território nas 3 vertentes, em simultâneo, tratando-se,
provavelmente, das zonas preferenciais de atividade da comunidade.

3.1. LIMITES AUDITIVOS

A primeira conclusão desta reflexão é que se quisermos efetivamente definir


o âmbito proxémico mais íntimo de qualquer comunidade pré ou proto-histó-
rica, teremos de ter em consideração os sons escutados, porque a audição é
a perceção sensorial mais elementar, que decorre de forma inconsciente e em
permanência. As suas únicas barreiras são as más condições climatéricas ou a
vegetação densa.
Ouvir e ser ouvido, constituiu sempre uma segurança para qualquer grupo
humano. Por isso, deveria existir um espaço em torno do local habitado cujos
sons aí produzidos seriam escutados no interior do núcleo habitado, prevenindo
a intromissão de agentes externos indesejados e, paralelamente, notificando da
atividade quotidiana dos membros da comunidade, fora do local habitado.
FRONTEIRAS AUDITIVAS, VISUAIS E LOCOMOTORAS NA DEFINIÇÃO DOS TERRITÓRIOS DAS SOCIEDADES DO I MILÉNIO A.C.
83
Marcos Osório

Neste primeiro círculo de proximidade comunitária poderiam realizar-se ati-


vidades que envolviam maior número de pessoas, inclusivamente as crianças
(BINFORD 1982: 7), cujo limite não seria ultrapassado, caso contrário passariam a
estar mais expostos a potenciais perigos animais ou humanos.
Claro que a audição do som não proporciona tanta informação sobre o emis-
sor como a sua observação. Mas, ainda assim, os exercícios revelaram que até
um máximo de 750 m de distância, pode-se distinguir vocalmente o género do
indivíduo e obter informações sobre a sua faixa etária, onde já não é possível
determiná-lo visualmente (só a menos de 400 m).
Os exercícios permitiram concluir que o perímetro de audição vai mais além
do limite no qual se podem identificar visualmente os indivíduos e obter noção
sobre a sua idade ou género, sobre os objetos que transporta e as suas inten-
ções, mas ficando aquém dos limites potenciais que permitem detetar visual-
mente o movimento de qualquer ser humano (2 a 2,5 km).

Fig. 4. Mapa dos pontos georreferenciados dos testes de deteção e identificação visual
de indivíduos nas proximidades do povoado de São Cornélio (Sortelha, Sabugal)
84 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Em determinados pontos testados, verificámos que, não só a voz era audível,


como uma frase gritada podia ser compreendida, o que permite deduzir que o
raio de transmissão de mensagens orais é muito maior do que imaginávamos.
Desta forma, o estabelecimento de comunicação vocal entre pessoas da mesma
comunidade, ou com estranhos, era viável a uma distância onde a identificação
física e visual desses mesmos indivíduos ainda não era possível.
Por fim, concluímos que, nos povoados de forte pendente, o perímetro au-
ditivo abarca perfeitamente a área acedida em 15 minutos de marcha, podendo
chegar quase até ao limite de 30 minutos de caminhada. Assim, dentro da área
de maior importância na exploração de recursos e de controlo das terras envol-
ventes, pelo rápido acesso a elas, conseguia-se estabelecer um contacto sonoro
mínimo com os elementos da comunidade que aí se encontravam e obter mais
informações sobre eles ao nível auditivo, do que visualmente.

3.2. BALIZAS VISUAIS

Mais além do círculo de proximidade sonora encontra-se aquilo que se po-


deria chamar o âmbito de controlo da visibilidade. Corresponde a um outro nível
sensorial, que já não se processa de forma inconsciente e também não é perma-
nente. Dura o ciclo diurno e apenas funciona com boas condições atmosféricas.
A visibilidade constitui o segundo nível proxémico, um aro de maior afas-
tamento e menor intimidade, com um alcance superior ao som, controlando e
apropriando-se daquele território que já não se escuta, mas que apenas se vê.
Dele não provêm tantas informações pormenorizadas sobre os indivíduos avista-
dos, mas tem-se algum domínio sobre quem se aproxima ou afasta do povoado.
As barreiras topográficas, vegetais e antrópicas são os principais fatores que con-
dicionam a amplitude de visibilidade em qualquer caso analisado, fazendo-se sentir
especialmente nos povoados de pouca altitude e encaixados em vales fluviais.
Num sítio elevado como o povoado do São Cornélio, com 1008 m de altitude,
a vigilância das ações dos elementos da comunidade em torno do assentamento
só é assegurada, com recurso à visão, até a um máximo de 2 km de distância
(Fig. 4). A deteção da aproximação indesejada e inesperada de um indivíduo,
numa perspetiva de controlo do território imediato ao povoado, apenas será
possível a partir dos 400 m, muito aquém do ponto de audição máxima (Fig. 4).
Contudo, o reconhecimento de uma ameaça externa composta por maior núme-
ro de elementos ― como uma matilha de lobos ou um grupo de combatentes,
pode dar-se um pouco mais além dos 2 km, dado que se distingue facilmente a
mancha de integrantes do grupo, em movimento.
O facto mais curioso é que, onde não sabíamos se era um animal ou um
ser humano que se aproximava, podíamos confirmar auditivamente tratar-se da
FRONTEIRAS AUDITIVAS, VISUAIS E LOCOMOTORAS NA DEFINIÇÃO DOS TERRITÓRIOS DAS SOCIEDADES DO I MILÉNIO A.C.
85
Marcos Osório

voz humana. Não esperávamos que a figura humana isolada fosse visualmente
pouco distinguível, enquanto o som vocal ainda se mantinha reconhecível, ape-
sar das barreiras topográficas. O limite sonoro de audição e compreensão de
palavras não fica pois aquém do espaço onde é possível o reconhecimento dos
indivíduos, antes quase se sobrepõe.
Se tivermos em consideração a distinção entre a visibilidade defensiva (de
ameaças humanas e animais) e o controlo visual das atividades dos elementos
da comunidade, verificamos que estes factos testados parecem ser prejudiciais
para quem vigia o povoado, pois o invasor tenderia a manter-se silencioso, antes
de ser detetado visualmente, ao passo que já seria fundamental para efeitos de
segurança dos elementos da comunidade, em atividades no exterior do espaço
habitacional, mesmo quando a perda de contacto visual era substituída pelo con-
tacto sonoro.
Para além desta visibilidade curta, temos aquela que permite atingir uma ex-
tensão de área mais distante do que o território que se escuta. Em alguns casos
ela pode chegar aos territórios das comunidades vizinhas, como acontece no
São Cornélio, onde a visibilidade máxima vai para além do aro de proximidade
e acessibilidade de uma comunidade, imiscuindo-se em terras das restantes co-
munidades. Esta visibilidade intrusiva é de pouca resolução, mas existia e permi-
tia obter algumas informações sobre as comunidades vizinhas, instalando-se em
locais elevados como este.

3.3. FRONTEIRAS LOCOMOTORAS


Por fim, para além da área que se escuta e visualiza, encontra-se o espaço a
que se pode aceder durante o tempo suficiente para concretizar uma atividade
desejada e regressar ao núcleo habitacional. Este constitui o derradeiro círculo
proxémico.
Essa área máxima de acessibilidade, apesar de estar no domínio efetivo da
comunidade, é onde ela já se sente desconfortável. Daí não provêm sons audí-
veis, e mal se avistam ou distinguem os indivíduos, fruto da perda de resolução
visual ou dos inúmeros obstáculos que se vão interpondo pelo caminho. É o der-
radeiro aro de controlo da paisagem, explorado com objetivos essencialmente
económicos, e com uma fronteira mais permeável e indefinida.
Há décadas que vários autores têm tentado definir os limites desta esfera de
acessibilidade humana, sugerindo distâncias e áreas abrangidas pela marcha,
como já vimos. Os nossos exercícios de replicação da marcha humana revelaram
distâncias de deslocação humana maiores do que as isocronas obtidas pelos
algoritmos da simulação informática. Os testes parecem revelar territórios de 30
minutos (equivalentes mais ou menos a 2,5 km) bastante extensos, correndo-se
86 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Fig. 5. Mapa dos pontos georreferenciados de 15 e 30 minutos nos 12 traçados de marcha


à volta do povoado de Alfaiates (Sabugal)

o risco de chegar, em 1 h de caminhada, a zonas controladas e exploradas por


comunidades vizinhas.
No nosso exercício de validação dos tempos de marcha, os percursos segui-
ram, de forma bastante rígida, as linhas traçadas previamente na cartografia, ape-
sar dos diversos obstáculos naturais e humanos que deparámos. E embora essas
condicionantes possam ter interferido nos resultados, a verdade é que se verificou
uma certa coerência nas distâncias percorridas, coincidente com a facilidade de
deslocação pelo terreno, de acordo com a topografia e as linhas de água (Fig. 5).
No proeminente cabeço de São Cornélio verifica-se que as isócronas de 30
minutos pouco ultrapassam os territórios escutados e de reconhecimento visual
próximos, como era expectável, enquanto nos povoados de curto alcance visual,
as isócronas de 15 minutos são as que reuniram maior coincidência com os terri-
tórios escutados e visíveis.
FRONTEIRAS AUDITIVAS, VISUAIS E LOCOMOTORAS NA DEFINIÇÃO DOS TERRITÓRIOS DAS SOCIEDADES DO I MILÉNIO A.C.
87
Marcos Osório

Fig. 6. Fotografia da vertente sudeste do cabeço de São Cornélio, assinalando os limites de 15,
30 e 60 minutos de marcha, em linha reta

Nos percursos de marcha


de 30 minutos, rapidamen-
te nos colocamos para além
das áreas onde os sons não
chegam ao assentamento e
onde a resolução visual não
se atinge, por diversos obstá-
culos físicos ou por perda de
nitidez e focagem (Fig. 6).
O tempo que demoraria
chegar ao ponto onde se deu
o reconhecimento visual de
uma ameaça externa a apro-
ximar, a menos de 3 km de
distância, é sensivelmente de
20 a 30 minutos.
Mas a ausência de visibi-
lidade a tão longa distância,
a partir dos 45 minutos de
descida, leva-nos a ques-
tionar se não seria mais im-
portante que o território de
exploração fosse também,
em grande parte dos casos,
o território audível e visível.
Porque, para além desse aro
visual e audível, a exploração
era arriscada, se existissem
fortes ameaças externas no entorno, havendo zonas completamente invisíveis
aos observadores.

4. TERRITÓRIOS MULTISSENSORIAIS
Tendo em consideração o que foi exposto, ficou patente a necessidade de
conjugar sistematicamente estes três âmbitos de perceção na demarcação de
qualquer área de ação em torno dos núcleos de povoamento pré e proto-histó-
rico – definindo aquilo que denominámos como um sensorious catchment ― de
88 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

onde procedem estímulos de variada ordem e amplitude e onde todos os senti-


dos estariam envolvidos (ver FRIEMAN E GILLINGS 2007: 10).
Ao espaço controlado pela ação conjunta destas aptidões físicas e senso-
riais denominámos de “territórios multissensoriais”, onde se podem definir
diversos índices proxémicos das áreas de apropriação e exploração direta
ou indireta pelas comunidades. Estes resultados constituem uma nova visão
holística para a mais completa e equilibrada definição do território de um
povoado.
O domínio de um território pelos mecanismos de deslocação humana é feito,
simultaneamente, em interação com os sentidos, o que permite que o indivíduo
exerça um controlo visual e auditivo desse mesmo espaço percorrido (MURRIETA
FLORES 2011: 29). Neste processo de deslocação pelo terreno, temos noção dos
nossos limites fisiológicos e percetuais, obtemos sinais sonoros da envolvência,
avistamos e recebemos sensações olfativas e todos estes sentidos, conjunta-
mente, dão-nos a perceção do terreno que percorremos e contribuem para defi-
nir aquilo que é o entorno da comunidade.
Embora a visão desempenhe o papel mais importante, é sabido que a audi-
ção e o olfato têm igualmente grande importância na atividade humana quotidia-
na. Por exemplo, prestar atenção aos ruídos é fundamental para evitar perigos,
e o cheiro do fogo ou da comida cozinhada pode ser um bom indicador de proxi-
midade a um núcleo habitacional.
Se atentarmos de forma analítica para o nosso entorno, conseguimos dis-
tinguir entre aquilo que vemos, cheiramos e ouvimos. As impressões olfativas
e auditivas deixam impressões fortes na memória dos lugares e dos momentos,
e podem ser ordenados espacialmente, variando de lugar para lugar (GASPAR
2001: 89). Em cada experiência diária no ambiente natural, a presença acústi-
ca revelada está sempre em tensão com a realidade visual escondida (THOMAS
2008: 10; FELD 2003: 227).
Desta forma, qualquer análise espacial que combine visibilidade, audição e
olfato, será sempre muito mais reveladora, especialmente naqueles assenta-
mentos populacionais que estavam escondidos e dissimulados na paisagem,
mas que seriam identificados por virtude dos ruídos e dos cheiros que aí eram
produzidos (TSCHAN et al., 2000: 46; GASPAR 2001: 89).
Mas, a perceção territorial através dos sentidos é um campo muito subjetivo
onde existe sempre a possibilidade de erro, porque além dos estímulos senso-
riais serem experienciados de modo diferente, por cada pessoa, a capacidade
dos sentidos também varia em função de fatores naturais e humanos externos, o
que limitará o seu carácter universal.
A análise aos territórios escutados, visíveis e acessíveis que desenvolvemos
nestes povoados, visaram compreender o entorno dos sítios, percebendo as po-
tencialidades ocupacionais destes locais. O estudo permite-nos acreditar que
FRONTEIRAS AUDITIVAS, VISUAIS E LOCOMOTORAS NA DEFINIÇÃO DOS TERRITÓRIOS DAS SOCIEDADES DO I MILÉNIO A.C.
89
Marcos Osório

estas propostas se aproximam bastante daquilo que seria a realidade do II e I


milénio a.C.
Ora, tendo em conta as considerações sobre os diferentes índices de apro-
priação e controlo do espaço envolvente de qualquer comunidade, que diferem
de acordo com os sentidos e a disposição corporal dos indivíduos, bem como
dos entraves e obstáculos que se deparam a cada ato de perceção desse espa-
ço, é justificável que se definam agora as categorias genéricas de proximidade
de qualquer sítio habitado, que constituem círculos proxémicos humanos, mas
agora numa perspetiva comunitária.
Nesse escalonamento espacial daquilo que é a área de influência dos po-
voados, podemos agora aplicar os mesmos princípios dos círculos proxémicos
individuais propostos pelo antropólogo Edward Hall (1966) e definir diferentes
categorias de territórios a uma escala comunitária, de acordo com o grau de in-
timidade que eles tinham com o espaço envolvente e com os seus componentes
paisagísticos.
Estas categorias serão geradas pela conciliação possível entre os vários
exercícios e abordagens realizados nestes assentamentos do Alto Côa, mas que
podem constituir categorias universais a serem replicadas, ou não, em outras
regiões e períodos cronológicos distintos.
Neste sentido, o círculo mais próximo seria, naturalmente, a paisagem sonora
mais íntima em torno dos lugares, onde o homem ouvia os seus sons familiares,
e o espaço onde se podia identificar visualmente qualquer ser vivo móbil. Nele
caberiam também os territórios olfativos, que nós não podemos incluir nesta in-
vestigação, pela dificuldade de replicar o fenómeno.
Esse território de controlo auditivo, que é um pouco menor que o de controlo
visual do movimento, seria aquele mais seguro e mais ligado aos habitantes. O
perímetro onde se ouve reciprocamente, onde se vê e se identifica o movimento
na paisagem, e onde acedemos rapidamente, em cerca de 20 minutos, teria
sensivelmente um raio de 600 m.
Uma vantagem deste raio euclidiano é que está pouco dependente das va-
riações hídricas, topográficas e da vegetação. Para fora desse âmbito territorial
entramos em áreas onde os dispositivos percetuais começam a diminuir drasti-
camente, onde eu ouço, mas não reconheço visualmente nada, apenas distin-
guindo o movimento dos indivíduos, que pode englobar um total de 2 km de
distância.
Por fim, num terceiro nível de afastamento, entramos em espaços onde eu ace-
do e regresso menos rapidamente, mas não vejo e nem ouço. Um espaço onde não
estaríamos ainda em território de qualquer comunidade vizinha, mas que é uma
área menos controlada, mais insegura, que poderia ser deixada apenas para ativi-
dades esporádicas e extremamente essenciais, requerendo até meios adicionais
de proteção, de comunicação e adereços para facilitar a visualização e colmatar o
90 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

menor controlo por parte da comunidade. Cremos que este círculo compreende
a extensão territorial distante do povoado entre 3 e 4 km.
Estas áreas, assim definidas, podem constituir, agora, um novo paradigma
na compreensão das diferenças de apropriação e controlo dos territórios, com
base em fatores de audição, visualização e acessibilidade da paisagem destes
povoados.

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Resumo:
Neste artigo realizou-se uma abordagem à problemática da definição dos limites das áreas de
influência ou territórios das sociedades do II e I milénio a.C., das quais não possuímos qual-
quer outra informação, a não ser o atual meio ambiental onde o sítio se encontra. Desta forma,
o autor defende a necessidade de realizar exercícios práticos com vista a definir esses limites,
pela repetição dos mesmos gestos e apropriação do território envolvente, por meio de três
âmbitos de reflexão e prática: a deslocação pelo terreno, a visibilidade obtida desde o local
habitado e o espaço auditivo obtido desde esse ponto. A conjugação destas três ferramentas
físicas e sensoriais permite propor categorias de proximidade que intentam delimitar o espaço
vivido, explorado e apropriado por essas comunidades proto-históricas.

Palavras-chave: Territórios; Fronteiras; Proto-história; Visibilidade; Audição; Locomoção.

Auditory, visual and locomotor boundaries in defining


the territories of societies of the 1st millennium BC. A
case study in the Alto Côa.

Abstract:
This paper presents an approach made to the problem of defining the limits of the areas of in-
fluence or territories of societies from the 2nd and 1st millennium BC, of which we do not have
any other information, except the current environment where the site is located. In this way, the
author defends the need to carry out practical exercises to define these limits, by repeating the
same gestures and appropriating the surrounding territory, through three areas of reflection
and practice: the displacement through the terrain, the visibility obtained from the inhabited
place and the auditory space obtained from that point. The combination of these three physical
and sensory tools allows us to propose categories of proximity that intend to delimit the space
experienced, explored and appropriated by these protohistorical communities.

Key words: Territories; Frontiers; Protohistory; Visibility; Audition; Locomotion.


NO LIMIAR. DIFERENTES ESCALAS DE
ANÁLISE DA ARTE DA IDADE DO FERRO
NO LIMITE OCIDENTAL DA MESETA
LUÍS LUÍS*

1. A IDADE DO FERRO NO CONTEXTO DA IDENTIFICA-


ÇÃO DA ARTE DO CÔA
A divulgação da descoberta da arte rupestre do Vale do Côa em finais de
1994 abriu caminho a um debate de proporções nacionais e internacionais acer-
ca da preservação do maior conjunto de arte paleolítica ao ar livre do mundo.
Na verdade, a região era já conhecida pela sua arte rupestre desde 1981.
Nessa altura foi identificado o sítio do Vale da Casa (também conhecido por da
Cerva ou de Canivães), que viria a ficar submerso pela albufeira da barragem do
Pocinho, que submergiria igualmente o curso final do rio Côa (BAPTISTA 1983).
Durante esse ano e no seguinte viriam a identificar-se no Vale da Casa 23 rochas
gravadas por incisão e picotagem em suportes horizontais de xisto, associadas
a um conjunto de cistas cobertas por mamoa, mais tarde datadas de entre 2880
e 2500 a.C. (CRUZ 1998). Para além de algumas representações modernas, de-
finiu-se um primeiro momento de produção artística, composto essencialmente
por picotagens, eventualmente associado à ocupação do espaço como necró-
pole, seguido por outro momento, caracterizado pela representação de figuras
animais (cavalos, cães e veados), humanas e armas, através de incisão fina, atri-
buído à Idade do Ferro.
Estas descobertas prévias viriam a influenciar o contexto da descoberta
1
e divulgação da arte paleolítica do Côa, a partir de novembro de 1991. Se as
gravuras inicialmente identificadas foram sobretudo paleolíticas, já antes de
março de 1993 se havia descoberto uma rocha próxima do Orgal (certamente
a rocha 1 do Meijapão), logo se estabelecendo a sua relação estilística com as
gravuras do Vale da Casa (REBANDA 1994: 4). Em novembro de 1994, aquando
do alargamento da prospeção para a área da confluência do Côa com o Dou-
ro, identificam-se novas gravuras atribuídas à Idade do Ferro no Vale de José

*
Arqueólogo. Fundação Côa Parque. luisluis@arte-coa.pt
1
Embora o início da descoberta esteja datado de finais de 1992 (REBANDA 1995), existe nos arquivos da Fundação
Côa Parque uma fotografia de campo da rocha 1 da Canada do Inferno com a data de 20 de novembro de
1991.
96 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

2
Esteves (REBANDA 1995: 8). É por esta altura que se divulga a descoberta da
arte do Côa e se inicia o debate e a luta pela sua preservação. Na sua sequência,
na primeira publicação relativa à arte do Côa, o ciclo artístico do Ferro já surgia
referido, embora não ocupasse mais do que dois parágrafos (REBANDA 1995: 14).
Enquanto as equipas de investigação se concentravam no estudo dos pai-
néis paleolíticos nas imediações da barragem, alguns fozcoenses iniciavam por
sua conta a prospeção de áreas mais distantes. Para montante, Adriano Ferreira
descobriria em janeiro de 1995 as gravuras paleolíticas da Quinta da Barca e

Fig. 1. Arte rupestre do Vale do Côa na Idade do Ferro e respetivo contexto arqueológico.

2
Nesta publicação estes achados são dados como os primeiros, o que é contradito pelo que se expôs
anteriormente.
NO LIMIAR. DIFERENTES ESCALAS DE ANÁLISE DA ARTE DA IDADE DO FERRO NO LIMITE OCIDENTAL DA MESETA
97
Luís Luís

Penascosa. Para jusante, nos vales tributários do Douro mais próximos de Vila
Nova de Foz Côa, José Constâncio descobriria logo a seguir as gravuras da Idade
do Ferro de Vale de Cabrões (REBANDA 1995: 8).
O facto da esmagadora maioria das rochas atribuídas ao Ferro se situarem
fora da área submergida pela barragem, associado à particular importância da
descoberta da primeira arte humana em contexto de ar livre, fez com que esta
arte não tenha entrado na polémica da preservação da arte do Côa, marcando
igualmente a história da sua investigação até aos dias de hoje.

2. UMA ARTE NA PAISAGEM


Tal como a esmagadora maioria da arte paleolítica da região, a arte rupestre
da Idade do Ferro inscreve-se nas típicas superfícies verticais de xisto da região,
com a exceção dos painéis do Vale da Casa e da rocha 6 do Vale do Forno, que se
encontram em superfícies horizontais. As superfícies verticais correspondem a
planos de diáclase resultantes da tectónica frágil tardi-hercínica, que definiu uma
estrutura com uma direção dominantemente NNE-SSW (AUBRY, LUÍS & DIMUCCIO
2017). Essa estrutura irá condicionar o encaixe fluvial do Côa e será durante esse
processo que as superfícies verticais irão ficando expostas, num processo con-
tínuo, que prossegue na atualidade. Elas começarão a ser gravadas a partir do
Pleistoceno superior.
A arte rupestre da Idade do Ferro insere-se neste processo histórico e a sua
distribuição pelo vale obedece tanto a motivações antrópicas, como a razões de
formação e preservação dos suportes, que condicionam a realidade que hoje
nos é dada a conhecer.
Conhecem-se hoje 537 painéis gravados com arte atribuída à Idade do Ferro
no Côa (Fig. 1), distribuídos por 51 núcleos distintos, um valor apenas suplantado
3
pela arte paleolítica. Ambas as fases se distribuem pelos últimos quilómetros do
rio Côa e em grande medida nas mesmas áreas e painéis (AUBRY, LUÍS & DIMUC-
CIO 2017: 143-144), o que se deve às características estruturais de formação e
preservação das superfícies de diáclase onde se inscrevem. No entanto, a maior
concentração da arte proto-histórica na confluência do rio Côa com o Douro e
nos vales adjacentes – a montante e a jusante –, faz supor igualmente a existên-
cia de critérios culturais na sua distribuição.
Ainda assim, a sua distribuição encontra-se fortemente condicionada pela
disponibilidade de superfícies de diáclase e sua preservação. Por isso, tal como a
restante arte rupestre da região, a arte sidérica encontra-se em áreas de verten-
te acentuada (exceto o Vale da Casa) nas encostas do Côa (Foz do Côa, Moinhos

3
Estes valores correspondem à base de dados da Fundação Côa Parque à data de 5/5/2021, fruto dos trabalhos
de prospeção arqueológica, da responsabilidade de Mário Reis.
de Cima), mas sobretudo nos íngremes e encaixados vales que descem desde o
planalto do limite ocidental da Meseta ibérica (~400 m) até ao fundo dos vales
(~120 m) (Vale de José Esteves, Vale de Cabrões, Vale do Forno), pois é aí que as
superfícies de diáclase têm condições naturais para a sua exposição ao longo do
processo de encaixe fluvial.
Este facto não explica porque é que toda a arte rupestre do Côa se situa es-
magadoramente em vertentes voltadas a sudeste (mais de 50% no caso da arte
do Ferro), este e sul (22% e 11%, respetivamente). Se a orientação da estrutura
tectónica determina a orientação dos painéis, eles serão expostos tanto para SE,
como para NW. No entanto, a presença da arte sidérica nas vertentes voltadas
a NW é residual (-10%), o que se relaciona com a preservação da superfície dos
painéis pós-exposição, por ação da água e colonização vegetal em áreas um-
brias de baixa exposição solar (AUBRY, LUÍS & DIMUCCIO 2017). Ainda assim, a arte
4
proto-histórica é mais frequente nestas zonas umbrias do que que a azilense ,
que só se preserva nestas áreas em condições microtopográficas excecionais.
Este dado explica-se pelo facto da arte azilense ter um tempo de exposição aos
elementos 20 vezes superior ao da arte do I milénio a.C., encontrando-se mui-
to mais degradada. Esta diferença fundamental explica também porque é que
a arte do Ferro se encontra geralmente em áreas mais altas e vertentes mais
íngremes do que as fases mais antigas da arte paleolítica. Este dado é aparente-
mente contraditório com o facto de que o encaixe fluvial determina a exposição
das superfícies a gravar, pelo que as superfícies expostas mais recentemente se
encontrarão no fundo do vale. Sendo verdadeira, esta realidade contrasta com
a natureza da erosão das vertentes, que, fruto da ação da gravidade (toppling),
é mais acentuada no topo da vertente e em áreas mais declivosas, diminuindo a
sua preservação a longo termo.
Apesar dos contínuos avanços na prospeção (REIS 2012, 2013, 2014), esta
arte mantém-se em grande medida desconhecida. A título de exemplo, refira-
-se que o relatório que fundamentou a decisão da preservação da arte do Côa
publica apenas um painel gravado com arte sidérica (Penascosa 14) e um detalhe
de um outro (Vermelhosa 1), com a representação da sobreposição de um cava-
leiro da Idade do Ferro a uma cabra azilense (ZILHÃO 1997: 33 e 406). Este exem-
plo explica a secundarização do estudo desta arte em face da arte paleolítica.
Os únicos trabalhos arqueológicos especificamente dedicados ao seu re-
gisto e estudo não foram além da notícia preliminar (ABREU et al. 2000). Tem-
-se vindo a realizar, desde os tempos do Centro Nacional de Arte Rupestre
(1997-2007), um relevante trabalho de decalque dos painéis gravados, embora
secundarizado pelo estudo da arte paleolítica. Maioritariamente inéditos, en-
contram-se desenhados integralmente cerca de cinco dezenas de painéis com

4
Fase final da arte paleolítica do Vale do Côa, datada de entre os 12 000 e os 10 0000 antes do presente.
NO LIMIAR. DIFERENTES ESCALAS DE ANÁLISE DA ARTE DA IDADE DO FERRO NO LIMITE OCIDENTAL DA MESETA
99
Luís Luís

motivos atribuídos a este período cronológico e mais dezena e meia de subpai-


néis ou detalhes de rochas.
Pela nossa parte temos vindo a procurar definir o que entendemos por arte
rupestre da Idade do Ferro no Vale do Côa, descrever a sua iconografia, datá-
-la através de comparações estilísticas e iconográficas, buscar pistas para a sua
interpretação e contextualizá-la no espaço onde se insere (LUÍS 2008, 2009a,
2015, 2016).
Na sua primeira definição, a arte do Ferro do Côa foi definida como um “ex-
pressivo conjunto” de figuras gravadas de “homens, animais e símbolos, de li-
nhas angulosas, com elevado grau de estilização”, gravadas por incisão filiforme,
com paralelos no Vale da Casa (REBANDA 1995: 14).
A partir dos dados conhecidos, nomeadamente dos decalques realizados
até ao momento, os motivos dominantes desta fase artística correspondem a
zoomorfos, que perfazem mais de metade das figuras representadas conheci-
das. Devido à sua natureza sumária e estandardizada, uma grande parte destas
representações é de difícil determinação quanto à espécie representada. Inde-
pendentemente da espécie, trata-se de figuras de longos corpos, de tendência
retangular, patas curtas, pescoços compridos e grandes orelhas. As espécies
distinguem-se por alguns detalhes (caudas, garras, crinas), mas sobretudo pelo
contexto em que surgem figuradas. A espécie mais representada é o cavalo, que
surge com alguma frequência montado. Seguem-se os canídeos, geralmente in-
terpretados como domésticos, e os cervídeos, distinguindo-se machos e fêmeas.
Como espécies minoritárias surgem algumas aves, javalis, peixes e um eventual
touro. Regista-se ainda a presença de algumas figuras fantásticas (LUÍS 2016).
A figura humana tem menor expressão numérica do que as animais, mas é
central na arte sidérica do Vale do Côa, seja pelo seu contexto nos painéis, es-
pecificamente no seio das cenas narrativas, seja pelo grau de detalhe com que
surge representada. Trata-se exclusivamente de figuras masculinas (contra REIS,
2021), sobretudo guerreiros, definidos pela panóplia que se lhes associa, sur-
gindo a cavalo ou apeados. Um grupo particularmente significativo de figuras
humanas são as representações de antropomorfos com cabeça de pássaro.
As armas mais comuns são as lanças, frequentemente representadas com lâ-
mina de nervura central e conto na extremidade oposta. Como armamento ofen-
sivo surgem ainda punhais, falcatas e uma espada. Relativamente a armamento
defensivo refira-se os escudos circulares, em perspetiva frontal ou de perfil, al-
guns casos de couraças, cnémides (proteções das canelas, ver VILAÇA 2012: 37)
e alguns possíveis capacetes.
Refira-se, finalmente, a presença de inúmeros signos geométricos estrutu-
rados (circulares, retangulares, preenchidos, meandriformes, etc.). De entre os
signos, tem particular importância o alfabeto grego identificado na rocha 23 do
Vale da Casa (GOMES 2013), assinalando o fim da Pré-história no vale.
100 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Estas quatro grandes categorias de motivos surgem frequentemente asso-


ciadas nos painéis do Vale do Côa em densas sobreposições, cuja leitura se vê
dificultada pela transparência dos corpos e por uma emaranhada teia de traços
“parasitas”, que por vezes correspondem a figuras incompletas. Embora respei-
tem estes mesmos princípios, algumas associações destes motivos em cenas
narrativas apresentam melhor legibilidade. Essas composições centram-se na
figura do guerreiro que surge a cavalo, exibindo as suas armas, ou em atividade
cinegética. Em todas estas representações, a figura animal está subordinada à
humana: os cavalos são montados e os veados caçados com o auxílio dos cães.
Quando apeados, os guerreiros combatem em duelos corpo-a-corpo, armados
de lança e escudo.
O movimento encontra-se por vezes representado sob as duas formas iden-
tificadas na arte paleolítica do Côa (LUÍS 2012). Por um lado, pode ser sugerido
pelas poses da figura, como no caso da extensão das patas dianteiras do cavalo
montado da Vermelhosa 1. Mais extraordinária é a decomposição do movimento
em fases sucessivas no duelo da Vermelhosa 3, onde cada um dos guerreiros já
arremessou uma lança, que se encontra no ar, enquanto brande a segunda.
As representações proto-históricas foram quase exclusivamente represen-
tadas através de traço linear, verificando-se alguns preenchimentos ortogonais
reticulados ou sinuosos. Na gravação ter-se-á recorrido a utensílios metálicos,
identificados pelo registo de sulcos em U ou de secção quadrangular superficial,
como determinado experimentalmente (AUBRY & SAMPAIO 2012). A diferença na
força aplicada sobre o utensílio durante o processo de gravação produz uma
variabilidade gráfica, que vai desde figuras com traço profundo (por ex. falcatas
do Vale da Casa 6), às inúmeras gravuras que hoje nos surgem incompletas. Mais
do que figuras deixadas incompletas, julgamos que se trata antes de gravuras
intencionalmente gravadas de forma superficial (LUÍS 2015).
A raspagem superficial da película sílicometálica que cobre as diáclases do
xisto regional provoca um imediato contraste cromático entre a linha clara e a
superfície mais escura da rocha. Com o evoluir do processo de meteorização
pós-gravura, verifica-se a reformação desse verniz superficial e a cor da linha
volta a aproximar-se da cor da superfície rochosa. É por esse facto que as in-
cisões mais antigas são hoje difíceis de perceber. No caso da arte da Idade do
Ferro, vemos ainda hoje motivos que mantêm a linhas claras (por ex. cavaleiro
da Vermelhosa 1). Noutros casos, a cor das linhas gravadas já se homogeneizou
com a superfície. Esta grande variedade depende de fatores como a orientação
e exposição dos painéis à luz solar e humidade, onde a microtopografia tem um
papel relevante (AUBRY, LUÍS & DIMUCCIO 2017). Tendo tudo isto em conta, consi-
deramos que o grande número de figuras incompletas poderá estar relacionado
com uma raspagem muito superficial, que apenas tocou a superfície da película,
sem, contudo, gravar verdadeiramente. Criou-se assim um contraste cromático,
NO LIMIAR. DIFERENTES ESCALAS DE ANÁLISE DA ARTE DA IDADE DO FERRO NO LIMITE OCIDENTAL DA MESETA
101
Luís Luís

que acabou por desaparecer durante o processo de meteorização e a formação


da patine.
Para além da sua provável natureza metálica, desconhecemos o tipo de uten-
sílios utilizados nesta gravação. No entanto, o estilo anguloso de algumas das
representações, sugere a utilização de um utensílio longo, que dificultaria o con-
trolo da sua extremidade ativa.
A questão da datação desta arte parietal não se colocou com a mesma ur-
gência que se colocou para a arte paleolítica do vale, pela sua suposta cronolo-
gia recente. Ainda assim, ela sofria das mesmas dificuldades que a datação da
arte paleolítica, dada a impossibilidade da sua datação direta e inexistência de
um contexto estratigráfico. Também esta arte foi inicialmente datada através da
comparação estilística.
Para essa atribuição contribuíram a tipologia das armas (falcatas, lanças e
uma espada) e algumas características morfológicas das figuras, como o desen-
volvimento dos gémeos das figuras humanas e a sinuosidade do pescoço dos
5
cavalos (BAPTISTA 1983).
Pela nossa parte, procurámos identificar estilos e motivos na iconografia pré-
-romana ibérica, gravada em estelas, pintada em recipientes cerâmicos ou lavra-
da em joalharia, que nos permitissem inseri-la num contexto cronológico mais
preciso. Essa análise levou-nos a propor uma cronologia entre os séculos III-II e I
a.C., podendo mesmo chegar a momentos posteriores à ocupação romana (LUÍS
2008, 2009a).

3. DA PAISAGEM PARA O ESPAÇO DOMÉSTICO


Sendo a comparação estilística um dos métodos mais comuns na datação
artística, esta cronologia revelava-se demasiado genérica, pois baseava-se em
comparações com achados oriundos de contextos distintos, geograficamente
distantes e frequentemente não datados arqueologicamente. Ela demonstra um
substrato comum, que as fontes clássicas expressam, mas impede uma periodi-
zação mais fina, com uma evolução interna, que só a ligação com as populações
que a produziram e usaram permitirá.
Foi esse, aliás, o percurso desenvolvido para a datação da arte paleolítica do
vale. Por razões várias, algumas delas compreensíveis, o investimento feito no es-
tudo do Paleolítico não se estendeu à Idade do Ferro. Tirando casos muito pontuais
(COSME 2008; MARTINS 2008), não se verificou até hoje nenhum projeto inteira-
mente dedicado ao contexto arqueológico desta arte na região, o que resultou
num profundo desconhecimento da ocupação humana contemporânea da arte

5
Esta característica serviu aliás para contrariar a cronologia paleolítica então recentemente acabada de atribuir
ao cavalo de Mazouco (Jorge et al., 1981), que viria mais tarde a ser confirmada com a descoberta do Côa.
102 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

(LUÍS 2005: 46). Ainda assim, um conjunto de vestígios materiais insuficiente-


mente caracterizados, faz presumir uma ocupação baseada nos típicos povoa-
dos fortificados no cimo de elevações como N.S. do Castelo de Urros (MARTINS
2008), Castelão (LUÍS 2008: 425), Castelo dos Mouros (PERESTRELO et al. 2005),
Monte Meão, Monte do Castelo (COSME 2000) e Longroiva. A estes dados asso-
ciam-se interpretações documentais que identificam dois topónimos pré-roma-
nos nos três últimos sítios mencionados: Coniumbriga (CURADO 1994), Calabriga
(CABRAL 1963) e Langobriga (GUERRA 1998: 176), respetivamente.
Direcionada para a Pré-história, a prospeção arqueológica das equipas do
Parque Arqueológico do Vale do Côa não identificou no Baixo Côa sítios com uma
clara ocupação sidérica. Para ocidente, já no início das montanhas ocidentais,
sítios como S. Jurge (Meda) demonstraram essa ocupação (NALDINHO 2004). Em
2009, no contexto da construção do IP2, foi identificado e escavado o sítio do
Folhal 2 (CNS 33800), que apresentava um conjunto de estruturas em fossa, bem
como evidências de edificado, incluindo um eventual celeiro, atribuídos à Idade
do Ferro. A natureza discreta dos vestígios em termos topográficos e arqueológi-
cos, veio comprovar a existência de uma rede secundária de povoamento, para
além dos conspícuos castros, bem como da necessidade de trabalhos arqueoló-
gicos dedicados ao estudo desta ocupação, que aparentemente só os estudos
de minimização poderiam proporcionar.
Isso mesmo se veio a comprovar a partir de 2010, com os trabalhos relaciona-
dos com o Aproveitamento Hidroelétrico do Baixo Sabor, que veio trazer a lume
um conjunto notável de achados (Fig. 1).
Embora situada a cerca de apenas 20 quilómetros a norte do Côa, a arte
rupestre proto-histórica identificada no Sabor resumiu-se a três painéis do Vale
de Figueira (Torre de Moncorvo), ainda insuficientemente conhecidos, mas cuja
iconografia os aproxima do Côa (SILVA, XAVIER & FIGUEIREDO 2016).
Mais relevante foi a identificação e escavação de povoados ocupados duran-
te a Idade do Ferro, salientando-se Crestelos (Mogadouro) e Castelinho (Torres
de Moncorvo). Ambos os sítios se situam em pequenas elevações, localizadas
junto ao rio, em áreas do vale encaixado na superfície da Meseta. O facto de não
se ter escavado nenhum sítio mais proeminente no planalto relaciona-se com a
área de incidência dos trabalhos, que, motivados pela construção da barragem,
se circunscreveram à área a inundar.
A Quinta de Crestelos começou a ser escavada enquanto ocupação romana,
o que permitiu a identificação de estruturas e ocupações mais antigas. O sítio di-
vide-se entre a Quinta propriamente dita, localizada na zona mais baixa, com um
conjunto de estruturas de habitação proto-históricas, e uma zona alta, sobran-
ceira ao rio, cercada por um fosso, circunscrevendo diferentes plataformas, com
duas entradas, no interior do qual foi identificado um enterramento de uma crian-
ça. Dentro desta área não foram identificadas estruturas de habitação evidentes,
NO LIMIAR. DIFERENTES ESCALAS DE ANÁLISE DA ARTE DA IDADE DO FERRO NO LIMITE OCIDENTAL DA MESETA
103
Luís Luís

mas sim mais de 30 celeiros. Para além de sementes e cerâmica, nomeadamente


com decoração penteada, o sítio permitiu a identificação de fíbulas, moedas ro-
manas e facas afalcatadas (SASTRE 2014).
Por volta do século I a.C., o fosso foi preenchido com um grande número de
lajes de xisto, uma grande parte delas decoradas com gravuras de cavaleiros e
outros antropomorfos, bem como outros zoomorfos e sinais geométricos (SAS-
TRE: 84-85). Aí se identificaram igualmente alguns painéis com representações
gravadas, incluindo um cavalo (SILVA, XAVIER E FIGUEIREDO 2016: 71). Para além
das placas detetadas na plataforma mais elevada (72), surgiram algumas outras
na zona mais baixa (31). Dominam os motivos geométricos, abstratos e indeter-
minados. Nos figurativos salientam-se os zoomorfos, sobretudo cavalos e um
canídeo, inserido numa provável cena de caça a cavalo, onde se associam a
antropomorfos (SILVA, XAVIER E FIGUEIREDO 2016: 68-70).
O povoado do Castelinho apresenta características semelhantes, mas uma
maior complexidade. Trata-se igualmente de um sítio localizado numa eleva-
ção no fundo do vale do Sabor, desta feita na margem direita, abaixo da su-
perfície do planalto. Apesar da sua localização algo discreta, o sítio poderia
ser interpretado como um clássico castro, pela imponência e complexidade de
muralhas e fossos que o circundam (SANTOS et al. 2012). Contudo, as estruturas
identificadas no seu interior compunham-se sobretudo de estruturas elevadas
de celeiro, tal como no alto de Crestelos. Aí ter-se-á guardado trigo, cevada e
painço (SEABRA et al. 2020). Para além de uma cerâmica pouco expressiva, o
sítio apresenta uma moeda de Cástulo, fíbulas e a escultura de uma cabeça
humana, para além de armamento composto por facas afalcatadas, bem como
pontas e contos de lança.
Os trabalhos no Castelinho permitiram a identificação de mais de 500 placas
de xisto gravadas (NEVES & FIGUEIREDO 2015). Comprovado pelo seu estado es-
magadoramente fragmentário, estas placas aparentam ter sido identificadas em
contextos secundários, nomeadamente fossos, áreas de circulação e muros, so-
bretudo na área Norte e Sul, em zonas defensivas e de acesso ao recinto (NEVES
& FIGUEIREDO 2015).
Entre os motivos identificados, dominam os geométricos e abstratos, segui-
dos pelos figurativos, sendo os alfabetiformes residuais. Entre os figurativos des-
tacam-se os zoomorfos e antropomorfos, nomeadamente cavalos ― montados
ou não ―, cervídeos ― designadamente em cenas de caça ―, suínos, aves, caní-
deos e bovídeos. Associado aos antropomorfos surge um conjunto variado de
armas, nomeadamente punhais, espadas e lanças (NEVES & FIGUEIREDO 2015).
Com alguma variação na proporção, estes são os motivos identificados na
arte da II Idade do Ferro do Vale do Côa. Nota-se uma eventual sobrerrepresen-
tação de bovinos e suínos, contrastando com uma sub-representação de caní-
deos. Por outro lado, identifica-se pelo menos uma representação de zoomorfo
104 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

em perspetiva zenital (SANTOS et al. 2012: fig. 21), típica da iconografia sidérica
peninsular (BLANCO GARCÍA 1997), ainda desconhecida no Vale do Côa. Para além
dos motivos, também o estilo com que foram executados corresponde generica-
mente às representações do Côa.
A deposição das placas no fosso norte do sítio foi datada dos séculos II a I
a.C. (SANTOS et al. 2012). No entanto, a natureza secundária dos contextos onde
foi identificada e a fase preliminar do estudo em que se encontram dificulta a sua
datação precisa, para além de uma localização genérica entre o Bronze Final e
os primeiros séculos da nossa Era (NEVES & FIGUEIREDO 2015: 1602).
Se a iconografia que discutimos se encontra multiplicada por diferentes su-
portes e materiais por toda a Península Ibérica, pouco conhecemos do contexto
primário da utilização desta arte móvel. A exceção serão as lajes do Castro de
Formigueiros (Samos, Lugo). Neste povoado fortificado, datado de entre o séc. III
a.C. e o I d.C., foram identificadas seis lajes de xisto gravadas com dois cavalos,
três peixes e um conjunto de motivos geométricos, nomeadamente círculos (sim-
ples, radiados e com decoração labiríntica). Todos estes motivos, que apresen-
tam evidentes semelhanças na arte do Côa (nomeadamente no tratamento inter-
no dos peixes da Vermelhosa 3), encontravam-se gravados em lajes de xisto que
definiam um pavimento de um pátio entre duas casas e num banco adossado a
uma das construções em torno desse pátio. Estas manifestações foram datadas
de uma fase tardia da ocupação do povoado (CAMESELLE, VILASECO VÁZQUEZ &
BLASZCZYK 2009).
Ainda antes dos trabalhos do Sabor, conheciam-se já na região alguns acha-
dos de uma arte proto-histórica móvel em contextos domésticos, embora des-
contextualizados.
As gravuras do povoado de Yecla de Yeltes (Salamanca) foram identificadas,
tanto em suportes fixos de granito, como em blocos desta mesma rocha que
fazem parte das muralhas (MARTÍN VALLS 1983). Entre as representações figura-
tivas, dominam os zoomorfos, interpretados como cavalos, sobretudo pelo facto
de dois deles surgirem montados, um dos quais no que se afigura um contexto
de caça (inscultura 12). Não se identificam cervídeos machos. Entre os motivos
geométricos destacam-se os círculos labirintiformes e espiralados. A semelhança
estilística entre estas representações e alguns dos petróglifos galegos poderá
suscitar alguma dificuldade na atribuição cronológica. Contudo, o facto de a ocu-
pação conhecida do povoado datar de entre a II Idade do Ferro e a Romanização
parece ser um forte argumento para a sua restrição cronológica. Por outro lado,
chamamos a atenção para que, apesar da natureza mais grosseira do traço e de
um menor detalhe figurativo, as representações apresentam fortes semelhanças
com algumas das representações do Côa, e até com os círculos labirínticos do
castro de Formigueiros. Atribuímos as diferenças estilísticas (traço grosso e me-
nor detalhe) à diferente natureza do suporte, pois, enquanto as representações
NO LIMIAR. DIFERENTES ESCALAS DE ANÁLISE DA ARTE DA IDADE DO FERRO NO LIMITE OCIDENTAL DA MESETA
105
Luís Luís

que temos vindo a tratar se inscrevem em rochas de grão fino (xisto), o suporte
de Yecla de Yeltes é granítico, cujo grão grosso impossibilita qualquer detalhe.
Mais próximo do Côa e já em ambiente xistoso, foi identificada no Olival dos
Telhões (Vila Nova de Foz Côa), em contexto de escavação, uma placa com a re-
presentação de dois zoomorfos numa pequena placa, interpretados como cavalos
(COSME 2008). Se o estilo aproxima estas representações da arte de que vimos
tratando, já o contexto arqueológico as afasta, pois, a placa foi identificada num
muro datado do séc. III/IV d.C. Tratar-se-á assim de um contexto secundário, pre-
sunção reforçada pela existência de ocupações romanas anteriores no sítio e pela
sua proximidade do Monte do Castelo, onde se supõe uma ocupação pré-romana.
Mais fortuito foi o achado das duas placas do Paço (Vila Nova de Foz Côa).
Apesar de fragmentada, a mais decorada apresenta dois cavaleiros com lanças,
um deles com caetra, dois peões com lanças e punhal e dois zoomorfos de cau-
da curta, profundamente gravados (LUÍS 2016). O contexto do achado dificulta
uma datação, mas o sítio, localizado na vertente norte do castelo de Foz Côa, é
conhecido desde há longa data pela presença de vestígios de ocupação romana
(Leal 1886).
Finalmente, refira-se o achado de um seixo de quartzito no Alto das Malhadas
(Vila Nova de Foz Côa), no Monte Meão, já em contexto granítico, com vestígios
de ocupação pré-romana, que apresenta um conjunto de traços geométricos
gravados (REIS 2014: 26-27).

4. ARTE MÓVEL E ARTE RUPESTRE NO LIMIAR DO ESPA-


ÇO DOMESTICADO
É assim cada vez mais evidente a existência de uma arte móvel sidérica,
a par da arte rupestre (Fig. 1). Por arte móvel entendemos a produção de
grafismos sobre suportes líticos móveis, passíveis de serem transportados.
Isto não significa que de facto o fossem. Tal como demonstra a arte rupes-
tre paleolítica, nomeadamente no Fariseu (SANTOS et al. 2018), os suportes
deste tipo de representações são frequentemente locais, pelo que não se pro-
va qualquer transporte. Aliás, nos raros casos onde estas representações foram
identificadas em contexto primário (Formigueiros ou Yecla), o seu contexto não
facilitaria qualquer tipo de mobilidade.
Nos restantes casos, sobretudo nos achados fortuitos e descontextuali-
zados, poderíamos ser levados a considerar estarmos em presença, não de
verdadeiros objetos móveis, mas de fragmentos de suportes rupestres. Dois
argumentos invalidam esta consideração. Em primeiro lugar, ao contrário da
arte rupestre, esmagadoramente gravada na superfície formada pela diáclase,
todas as representações em xisto desta arte móvel foram gravadas na superfície
106 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

da xistosidade. Expostas aos agentes de meteorização, estas superfícies não re-


sistem com facilidade, desconhecendo-se, por exemplo, qualquer representação
paleolítica nelas, com a exceção também da arte móvel. O mesmo acontece com
6
a arte proto-histórica. Por outro lado, apesar de frequentemente fragmentada,
inúmeros são os casos em que a organização da composição das representa-
ções se conforma aos limites do suporte, que já estaria assim destacado do aflo-
ramento antes do momento da gravação.
Julgamos estar perante uma diferente componente da arte sidérica gravada
sobre suportes líticos nesta região. Não conhecemos ainda o suficiente de ambas
as artes para lhes distinguir subtilezas cronológicas ou iconográficas. Pelo que,
do ponto onde nos encontramos percebemo-las contemporâneas e ligadas por
uma mesma ideologia. Distingue-as radicalmente o contexto. Se a arte rupestre
ocupa os vales profundos do Côa e Douro, a arte móvel associa-se a ambientes
domésticos. Estes ambientes parecem-nos também geralmente restritos, e en-
contram-se distantes das áreas ocupadas pela arte rupestre.
Parece-nos que a arte móvel vem trazer para o espaço doméstico imediato
uma expressão gráfica, que no seu formato rupestre se afasta destes meios.
Não nos podemos esquecer que pela sua própria natureza, a distribuição da
arte rupestre se encontra fortemente condicionada pelas condições materiais da
disponibilização de suportes (AUBRY, LUÍS & DIMUCCIO 2017). Essa limitação não
impede, contudo, o engenho humano na criação de condições para a expressão
destes grafismos: a arte móvel vem responder a essa necessidade, em locais
7
afastados das grandes áreas de concentração rupestre.
Já noutro local explorámos a noção de land art relativamente à arte rupestre
(LUÍS 2009a: 218, 2009b). Tal como a corrente artística contemporânea, a arte
rupestre apresenta uma ligação indissociável ao contexto onde foi produzida,
domesticando o espaço natural e conferindo-lhe sentidos, com a vantagem, so-
bre outros elementos de ordenação do espaço, de preservar a sua localização
original (por ex. estelas, marcos, inscrições). Esta íntima relação espacial per-
mitiu-nos refletir sobre esta arte na perspetiva de fronteira (LUÍS 2008, 2009a,
2010).
Definimos assim três níveis de fronteira: entre territórios de povoados, entre
povos e entre vivos e mortos (LUÍS 2008, 2009a). Os dois primeiros justificam-se
pela localização geográfica, à escala local e regional, e o terceiro pela interpre-
tação iconográfica. Os dois primeiros relacionam-se com a noção de território

6
Refira-se o excecional caso da rocha do Vale de Junco (V.N. de Foz Côa) gravada na xistosidade e que foi
atribuída à Idade do Ferro, apesar dos seus motivos não encontrarem paralelos próximos na arte do Côa
(PINA & REIS 2014).
7
Note-se que os quatro painéis de arte rupestre em Crestelos se encontram nas paredes do fosso 1 (SILVA,
XAVIER & FIGUEIREDO 2016: 70), o que nos leva a supor que tenham sido expostos no momento da sua
escavação. Desta forma, sendo natural, o seu suporte foi disponibilizado naquele local pela ação humana,
aproximando-se assim da arte móvel.
NO LIMIAR. DIFERENTES ESCALAS DE ANÁLISE DA ARTE DA IDADE DO FERRO NO LIMITE OCIDENTAL DA MESETA
107
Luís Luís

enquanto espaço de interação social e de exploração económica e o último com


a paisagem, enquanto construção cultural (LUÍS 2009a: 217).
Pelo desconhecimento da realidade arqueológica regional, o primeiro nível
era o que nos parecia mais mal definido. Os achados de Yecla de Yeltes, Olival
dos Telhões e do Paço, sobretudo a distinta natureza do seu suporte, traziam já
elementos de reflexão (LUÍS 2009a: 218), que as escavações intensivas no Baixo
Sabor vieram justificar. Ainda em estudo, esta arte móvel transpõe para o espaço
construído, a iconografia que conhecíamos na arte rupestre. Com as cautelas
que o estado de conhecimento preliminar em que nos encontramos nos impõe,
ela concentra-se nos limites literais desse mesmo espaço doméstico, seja nos
fossos (Crestelos e Castelinho), seja nas muralhas (Yecla). Curiosamente, este
espaço construído domesticado parece relacionar-se sobretudo com a explora-
ção económica e a concentração de riqueza agrícola, associada à presença do
mesmo armamento presente na arte.

5. NO LIMIAR ENTRE NÓS E OS OUTROS, À ESCALA DA


MESETA
Arte móvel, arquitetura e arte rupestre fazem parte do mesmo plano icono-
gráfico. A arte rupestre fica para lá do espaço arquitetado, desconhecendo-se
até ao momento qualquer vestígio de ocupação humana nas suas imediações.
Mas não é por isso que ela não participa desta domesticação do espaço através
da iconografia. Em contexto indiscutivelmente primário, a arte rupestre parece
relacionar-se sobretudo com o segundo nível de fronteira que definimos para
esta arte: a fronteira entre unidades étnicas.
Sem querer entrar na acesa discussão da paleoetnologia pré-romana e dos
seus limites, procurámos, numa primeira tentativa, identificar esta realidade atra-
vés da delimitação entre unidades étnicas vertidas na geografia administrativa
romana (LUÍS 2005: 45). A conjunção desta ideia com a geomorfologia levou-nos
mais longe (LUÍS 2009a). A nossa interpretação baseia-se sobretudo no facto de o
rio Côa marcar o limite ocidental da Meseta Norte, através de um vale com mais de
150 metros de encaixe, imediatamente antes do início das montanhas ocidentais
e dos planaltos centrais (FERREIRA 1978) (Fig. 2). A superfície da Meseta segue um
pouco para ocidente do rio, até à falha Bragança/Vilariça/Manteigas (BVM), que é
aliás responsável pela formação das diáclases que servem de suporte à arte ru-
pestre. Este limite geomorfológico foi historicamente apropriado até ao tratado de
Alcanizes (1297), mas os dados arqueológicos apontam para a natureza fronteiriça
deste território desde o Paleolítico Superior, nomeadamente a partir do estudo das
fontes de matérias-primas siliciosas que chegaram ao Vale do Côa (AUBRY, LUÍS,
MANGADO & MATIAS 2012). Para Norte do Côa, esse limite chega ao rio Sabor.
108 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Para além dos sempre discutidos limites étnicos, o rio Côa parece marcar, a
sul do Douro durante o I Milénio a.C., o limite ocidental de um conjunto de mate-
riais arqueológicos passíveis de serem interpretados como marcadores étnicos,
como as cerâmicas “a peine” e Cogotas I (VILAÇA 2005) e os berrões (ÁLVAREZ-
-SANCHÍS 2004).

Fig. 2. O Vale to Côa no limite ocidental da Meseta Ibérica


(berrões e cerâmica a partir de ÁLVAREZ-SANCHÍS 2004).

5. NO LIMIAR ENTRE OS MORTOS E DOS VIVOS


A iconografia desta arte rupestre e móvel remete-nos para o terceiro e último
limiar, o limiar entre os mortos e os vivos.
Pela sua iconografia, a arte do Ferro no Vale do Côa e Sabor apresenta todas
as características da expressão de uma ideologia guerreira, que heroiciza e imor-
taliza na rocha as virtudes desta elite. Trata-se de uma arte que exalta as virtudes
da virilidade, notando-se o apagamento da representação feminina. Interpreta-
mos a única cena conhecida de coito identificada como um coito posterior de
natureza homossexual (Vale de Cabrões 3), o que reforça um ensimesmamento
viril desta iconografia (LUÍS 2010: 61). O mesmo se diga das representações com
NO LIMIAR. DIFERENTES ESCALAS DE ANÁLISE DA ARTE DA IDADE DO FERRO NO LIMITE OCIDENTAL DA MESETA
109
Luís Luís

vasos à cabeça (Vermelhosa 3), uma prática etnograficamente feminina, mas que
aqui surge em figuras masculinas (LUÍS 2008: 420 contra REIS 2021).
Estes homens são guerreiros que surgem a praticar as atividades típicas des-
ta classe: combater e caçar. A caça é ao veado e faz-se a cavalo, com o auxílio
de cães, correspondendo à atividade do aristocrata quando não combate, a sua
atividade principal. Esse combate faz-se a pé, em duelos de lança e escudo, bem
exemplificado na literatura clássica, como a forma por excelência de resolução
de conflitos sem combate generalizado (Ilíada 3, 86-94; Apiano, História Romana
6, 53), ou como forma de homenagem aos grandes chefes mortos (Apiano, His-
tória Romana 6, 75; Tito Lívio, Ab Urbe Condita 28, 21). Em plena Meseta Norte, o
cerco de Intercatia, relatado por Apiano (6, 53) esclarece-nos quanto à natureza
das figuras armadas a cavalo. De facto, não existe qualquer exemplo de combate
a cavalo, apesar dos cavaleiros surgirem retratados brandindo lanças e escudos,
de braços abertos, e até aparentemente de pé sobre o dorso do cavalo, “numa
posição ousada” (NEVES & FIGUEIREDO 2015: 1601). Estas representações são me-
ras exibições de poder, à maneira dos índios das planícies norte-americanas,
onde o guerreiro exibe a sua força e destreza, ofendendo e desafiando o adver-
sário para o verdadeiro combate, a pé (LUÍS 2008: 421).
Uma percentagem importante das representações humanas do Côa, mas
também do Sabor, apresentam o que chamámos de cabeças em forma de bico
de pássaro. Estas representações ornitocefálicas remetem-nos para uma mitolo-
gia de raiz céltica. O diadema de Mones (Piloña, Espanha) e a sua interpretação
(MARCO SIMÓN 1994) afiguram-se-nos como a chave para a compreensão des-
tas representações e de grande parte da iconologia desta arte, cujo exemplo
maior no Côa é a rocha 3 da Vermelhosa. Exatamente na zona de confluência das
águas das canadas, que descem do planalto do limite ocidental da Meseta, com
o rio Côa e o Douro, assistimos à representação do trânsito aquático dos guer-
reiros heroicizados pela morte em combate, a caminho da Imortalidade. O limiar
entre os mortos e vivos é o último limiar da arte do Côa e do Sabor, no limite
ocidental da Meseta. Estamos perante a catábase, o caminho do guerreiro e seus
companheiros psicopompos para o Outro Mundo (cavalo, cão, aves necrófagas
e peixes anádromos) (LUÍS 2009a: 233-234). Desses companheiros, a arte móvel
do Castelinho apresentou-nos a primeira figura em perspetiva zenital, como se
a víssemos cá de cima. No limiar entre este mundo e o outro, a arte espelha as
duas realidades (OLMOS 1996), e por isso nos surgem também figuras espelha-
das, de forma evidente no Vale de José Esteves 18 (Fig. 3).
Estas figuras alertam-nos para que, se a fronteira é um limite (limes), ela é
também ponto de ligação, um território defronte (frontaria) (COELHO 2004). A
ligar o território dos vivos e dos mortos, o nosso e o dos outros, encontramos
cenas como a monomaquia da Vermelhosa 3. Ela remete para uma iconografia
comum na Península: La Osera (ÁLVAREZ-SANCHÍS 2004: 310), Tona (Sanmartí i
110 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

Fig. 3. Figura espelhada do Vale de José Esteves 18 (foto e desenho de André Santos).

Grego, 2007, fig. 10), Numância (SOPEÑA 2005: 375) e particularmente Las Rue-
das (Valhadolid) (SANZ MÍNGUEZ 1997: 86-88). A maçã naviforme do punhal do
túmulo 32 de um guerreiro nesta necrópole vaceia foi decorada com duas cenas
espelhadas de duelo, idênticas à monomaquia da Vermelhosa (aí associadas a
javalis, aves e animais em perspetiva zenital). Ora, como um espelho, ligando o
centro e o limite da Meseta Norte, os mortos e os vivos, no maior detalhe e com-
plexidade da representação do Côa, vamos encontrar, na cintura do guerreiro
de maiores dimensões, a representação de um punhal com maçã igualmente
naviforme, como o de Las Ruedas (Fig. 4). A 250 quilómetros de distância, a cena
contida no punhal contém o mesmo tipo de punhal.
Esta ideologia guerreira atinge assim o auge da autorreferência. No entanto,
por baixo desta superestrutura ideológica, começamos a descobrir outras rea-
lidades arqueológicas. Até aos dados arqueológicos do Baixo Sabor, tínhamos
“apenas uma sociedade de guerreiros, que não comeram, não viveram, nem
morreram, mas apenas gravaram nas paredes” (LUÍS 2008: 438). As escavações
arqueológicas mostraram-nos que, para além dos guerreiros, houve homens e
mulheres que trabalharam a terra, cultivaram, comeram e guardaram cereais,
que também gravaram em pequenas placas, abandonadas nos locais onde vive-
ram. Desenha-se assim um panorama mais complexo, mais próximo da realidade
histórica, que ao mesmo tempo se subordina a uma mesma ideologia expressa
graficamente, mas que, por outro lado, a desmonta, ao mostrar-nos uma realida-
de muito mais diversificada. A continuação dos estudos e trabalhos arqueológi-
cos ajudar-nos-á a franquear o limiar último do seu conhecimento.
NO LIMIAR. DIFERENTES ESCALAS DE ANÁLISE DA ARTE DA IDADE DO FERRO NO LIMITE OCIDENTAL DA MESETA
111
Luís Luís

Fig. 4. Inter-relação iconográfica entre A) a cena do duelo da Vermelhosa 3 [desenho Fernando


Barbosa] e B) o punhal com maçã naviforme de Las Ruedas [a partir de Sanz Mínguez, 1997, fig.
77]. A B A.

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Resumo:
Analisa-se a relação entre a arte rupestre do Côa e o território envolvente a diferentes escalas,
a partir de uma perspetiva de fronteira. Partimos da sua relação com os territórios de explora-
ção, integrando a arte móvel recentemente identificada no Baixo Sabor. Esta arte móvel vem
trazer para a esfera do povoado a iconografia da arte rupestre, que, devido a condicionantes
geológicas, se afasta deles.
Seguimos para uma interpretação da localização desta arte da Idade do Ferro no extremo
ocidental da Meseta Norte, que coincide com o limite de outros materiais arqueológicos, suge-
rindo limites culturais mais alargados.
Finalmente, atingimos a paisagem mental do domínio da ideologia, que parece perceber-se a
partir de uma iconografia relacionada com a heroicização dos guerreiros e o mundo da morte.

Palavras-chave: Vale do Côa; Baixo Sabor; Arte rupestre; Arte móvel; Paisagem.
116 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

At the threshold. Different scales of analysis for the Iron


Age Rock Art at the western limit of the Iberian Plateau

Abstract:
This text analyses the relation between the Côa Valley rock art and the surrounding landscape
at different scales, from a border perspective. We begin by its relationship with exploitation
territories, integrating the recently discovered Lower Sabor’s portable art, which transports
to the settlement the rock art iconography that, due to geological constraints, is located far
from them.
We move to the analysis of the placement of this Iron Age rock art at the edge of the Iberian
Northern Plateau, coinciding with other archaeological materials, suggesting broader cultural
limits.
Finally, we achieve the mental landscape expressed by ideology, gathered from its iconogra-
phy expressing warrior heroization and the otherworld.

Key words: Côa Valley; Lower Sabor; Rock art; Portable art; Landscape.
LOS TEMAS FIGURATIVOS DEL ARTE
RUPESTRE PALEOLÍTICO EN LA PENÍNSULA
IBÉRICA: ESTUDIO ESTADÍSTICO Y
MODELOS DE DISTRIBUCIÓN
MIGUEL GARCÍA-BUSTOS*

1. INTRODUCCIÓN
La actividad gráfica desarrollada durante el Paleolítico es una de las mani-
festaciones culturales más importantes del Homo Sapiens. La falta de restos
arqueológicos, en comparación a otras etapas de la humanidad, hace del arte
paleolítico un medio idóneo a partir del cual aproximarse a la incipiente capaci-
dad cognitiva del ser humano, al desarrollo cultural y social de los pueblos caza-
dores-recolectores, las redes de intercambio y la difusión territorial de diferentes
innovaciones técnicas o formalismos.
Precisamente este último punto ha experimentado en los últimos años un
gran crecimiento, convirtiéndose en uno de los temas más populares y prolíficos
de la actualidad. Sin embargo, no fue hasta los años 90’ cuando se considera
el potencial del arte paleolítico para el estudio del territorio desde el punto de
vista arqueológico. Esta irrupción vino pareja a la introducción de estudios in-
terdisciplinares y aplicaciones de nuevas técnicas con las que abordar aspectos
marginales, aunque complejos, como la mentalidad simbólica o las relaciones
sociales (ORDOÑO 2008).
Esa década supone el pistoletazo de salida para un cada vez mayor número
de estudios que ponen el foco en la relación entre la actividad gráfica paleolítica
y el territorio. Dicha relación se ha abordado de diversas maneras: mediante el
estudio de la técnica (GARATE 2006; RIVERO 2010), a través de las convenciones
y formalismos (BOURDIER 2010, 2012, 2013; BOURRILLON et al. 2012; FRITZ et al.
2007; GARATE et al. 2020; HERNANDO 2011a, 2011b; PETROGNANI Y ROBERT 2019;
RIVERO 2009; SAUVET 2019a, SAUVET et al. 2013) o desde el punto de vista de la
difusión del arte mueble (CATTELAIN 2005; FUENTES et al. 2019; RIVERO Y ÁLVARE-
Z-FERNÁNDEZ 2009; VILLAVERDE 2005).

*
Universidad de Salamanca. Becario por el Programa VIII Centenario de Retención de Jóvenes Talentos. Este
trabajo se ha realizado bajo la financiación de la Universidad de Salamanca y la Fundación Salamanca Ciudad
de Cultura y Saberes. miguelgarbus@usal.es.
118 Iberografias Revista de Estudos Ibericos

El estudio del territorio también se ha abordado desde uno de los más im-
portantes criterios de análisis de este fenómeno artístico: la temática represen-
tada. Si algo caracteriza al arte paleolítico es la restricción iconográfica, que se
traduce en una “escasa variabilidad y una gran uniformidad a nivel europeo”
(Rivero 2020: 229). Entre los motivos figurativos se pueden distinguir animales,
la mayoría mamíferos, y antropomorfos. Como tendencia general, el artista esco-
gía los mismos temas para llevar a cabo su actividad, aunque no los representa
en igual porcentaje (PAILLET 2017; RIVERO 2020; SAUVET 2019b). Este hecho, que
se extiende regularmente durante todo el Paleolítico superior, hace pensar que
se trata de una norma establecida por los grupos cazadores-recolectores, tal y
como defienden corrientes interpretativas como el estructuralismo (e.g. LAMING-
-EMPERAIRE 1962; LEROI-GOURHAN 1958, 1965).
En palabras de M. Lorblanchet: “les choix des animaux figurés est influencé
par les données chronologiques, les impératifs culturels particuliers à chaque
groupe, la spécialisation des sites et le mode d’expression artistique, mobilière
ou pariétale” (LORBLANCHET 1995: 49). Si se sigue la interpretación de este últi-
mo autor, entonces es posible hablar de “varias zonas de repartición” temática
(PAILLET 2017: 72) y la posibilidad de que representen una “marca identitaria”
(SAUVET 2019a: 194) de un tipo de territorio o demarcación geográfica cultural.
A. Leroi-Gourhan (1965, 1984), A. Roussot (1984) o G. Sauvet (SAUVET 1988;
SAUVET Y SAUVET 1979; SAUVET Y WLODARCZYK 1995, 2000-2001) son los ejemplos
más notables de autores que llevaron a cabo un estudio de las distribuciones
geográficas de los temas paleolíticos representados. El trabajo de este último
autor es posiblemente de los más importantes ya que ha podido demostrar me-
diante un gran corpus y un análisis estadístico que se trata de un sistema jerar-
quizado cuyos valores temáticos fluctúan en función de la cronología y la zona
geográfica (SAUVET 1988, 2018; SAUVET Y SAUVET 1979; SAUVET Y WLODARCZYK
2000-2001).
Para el caso particular de la península ibérica apenas existen publicaciones
que recojan sistemáticamente sus representaciones figurativas. En los trabajos
de A. Leroi-Gourhan y G. Sauvet, dicha península forma parte de una base de
datos geográficamente extensa donde se incluyen otros territorios como, por
ejemplo, los Pirineos franceses o la Dordoña. Sin embargo, este marco geográ-
fico no aparece como tal sino bajo una diferenciación entre el Cantábrico y el
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