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“As Mil e uma Noites”*

“O INCONTIDO DESEJO DE NARRAR EM: AS MIL E UMA NOITES”

... Contam que, num reino distante, governava


um soberano, com austeridade e justiça. Todos os
dias, na sala de audiências, o bobo-da-corte oferecia
ao rei uma maçã e esse, com indiferença, mandava-lhe
jogá-la fora. O bobo-da-corte, no período de um ano,
jogou sempre a maçã no mesmo local. Certa manhã,
quando o rei ganhou novamente a maçã, um macaco
pulou na sala de audiências, pegou a maçã e a
mordeu. Naquele momento, o rei e todos os presentes
ficaram admirados porque, dentro da maçã, havia
uma pedra preciosa. O monarca, entusiasmado,
perguntou ao bobo-da-corte onde estavam as maçãs
jogadas fora. Indo ao local, o soberano pode
constatar que, dentro de cada fruto havia uma pedra
preciosa, de valor inestimável ...

O homem, desde a mais tenra idade, sempre ouviu histórias, que lhe foram acumulando na
memória. Como no relato da maçã, encontrar tais narrativas é descobrir as riquezas do saber
tradicional... (in: Naghan, Neuza Neif. 1990, p.25).

Em “As mil e uma noites”, ‘falava, narrava-se até o amanhecer para afastar a morte, para adiar o
prazo deste desenlace que deveria fechar a boca do narrador’. (Michel Foucault, in: Jarouche,
Mamede Mustafa. 2006).
Todorov afirmou, a propósito de Sahrazad, em As mil e uma noites, que “contar é igual a viver”.
(1970, p. 127 in: Guieiro, Noé Amós, 2004, p.155).

Nesse sentido, procurarei demonstrar o incontido desejo de narrar dos protagonistas em algumas
“versões” desta mesma obra. A preocupação com a expressão da palavra é um tema muito presente.

Na antiguidade clássica a memória (recordação) era um instrumento essencial do que se costuma


chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos
indivíduos, o que acontece inclusive nas sociedades de hoje. Mas a memória coletiva não é somente
uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder. São as sociedades cuja memória
social é sobretudo oral ou que estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita que melhor
permitem compreender esta luta pela dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da
memória. Desta forma, ao relatar as vivências, o indivíduo traria perenidade ou mesmo imortalidade
à imagem destacada. Sahrazad além de afastar a morte, de certa forma, através de suas narrativas
traz perenidade a todos e a tudo na obra.
As mil e uma noites constitui uma obra circular e aberta: como produto do saber tradicional,
essas narrativas reproduzem o espírito e a concepção do mundo islâmico, através de seus
discursos, vigorosos e simbólicos, caracterizando-se como uma obra circular. Por outro lado, a
atemporalidade dessas fábulas, identifica que o fenômeno de transmigração do conto oral,
define esta obra como aberta.

Como acontece com muitas obras antigas de quase todos os povos, os textos que hoje lemos eram,
no ínício, histórias contadas oralmente através dos tempos, passadas de geração a geração. O
aspecto oral em As mil e uma noites é revelado pela multiplicidade de contadores de suas histórias.
Nos contos, o rei, a esposa, o vizir, o médico, o pescador, o carregador, o gênio, todos sabem
contar; os personagens, a sua maneira, utilizam-se da narrativa, para relembrarem histórias
edificantes, fábulas, relatos de viagens e até fatos históricos. A palavra narrada se manifesta como o
produto do saber tradicional.

A arte da narrativa (expressão popular), é utilizada pelo homem como um instrumento desvelador
do mito e da realidade. O contador de histórias, através da linguagem simples e vigorosa, narra
acontecimentos provenientes do saber tradicional e retrata dois universos: o real e o imaginário. Nos
contos de As mil e uma noites, reis, princesas, escravas sedutoras, gênios e fadas habitam palácios
luxuosos e exóticos, e se transferem para cidades longínquas num toque de mágica. Nesse mundo
de riquezas e fantasias, há uma sociedade onde os valores morais e a ética social são vivenciados
pelos personagens.

Estes contos, ao longo dos séculos, imigram, fazendo parte da tradição oral de diferentes sociedades.
Adaptando-se ao novo meio, essas narrativas são assimiladas como forma de expressão do
conhecimento popular e adquirem uma cor local. A obra, na forma e no conteúdo, inspira também
poetas e escritores, do Oriente e do Ocidente, que vê em As mil e uma noites, a musa inspiradora.

A multiplicidade de leituras dessa obra decorre do extenso caudal de narrativas que compõe As mil
e uma noites. As histórias, contadas por Sahrazad ao rei Sahriar, não estão agrupadas num texto
fixo, o qual possa ser considerado canônico. O número de manuscritos e edições de texto em língua
árabe, assim como as traduções européias - de Galland (1704-1717) a Khawam (1986-1987) -
revelam, em média, cento e setenta (170) histórias. A oralidade se manifesta nesta obra através da
arte de contar, da linguagem simples e da temática social, como fruto do real e do imaginário
coletivo. O traço oral destas narrativas é marca definidora da cultura árabe. O próprio Alcorão, livro
sagrado dos muçulmanos, foi revelado pelo Profeta Maomé através da recitação.

Um outro aspecto importante na tradição oral, é a forte ligação entre a palavra e o homem. A
palavra é um agente mágico, não sendo empregada com imprudência. Nos contos de As mil e uma
noites, há inúmeras manifestações do compromisso e do respeito à palavra. Na história “O mercador
e o gênio”, o mercador cansado de sua viagem, senta-se à sombra de uma árvore para descansar,
saciando-se da sede e da fome. Ao comer algumas tâmaras, jogou os caroços, sem perceber aonde
caíram. Logo após, aparece um gênio mau (ifrit) querendo matá-lo por vingança. O mercador
assustado, perguntou sobre tal decisão e este informou que os caroços atingiram seu filho, matando-
o. Apesar de o mercador ter implorado clemência, o gênio não lhe perdoou. O mercador então lhe
pediu o prazo de um ano antes do cumprimento da vingança, para arrumar a vida de sua família,
assim como pagar suas dívidas, e o gênio concordou. Passado esse ano, o mercador retornou ao
lugar marcado para a sentença de morte. Antes de reencontrar o gênio, aparecem três xeiques que,
admirados com o cumprimento da palavra empenhada por parte do mercador, procuram salvá-lo da
sentença de morte, comprometendo também a palavra do gênio, através das magníficas histórias
que esses senhores lhe contaram.

“N’As mil e uma noites, a técnica das fábulas apresentada como narrativas de encaixe, tem seu
modelo nos livros que nasceram na Índia, como Panchatantra, Hitopadecha e Bidpai,
conhecidos através dos árabes por Calila e Dimna; nessas obras as histórias se entrelaçam e os
enredos se complicam, nascendo outras histórias com fundo moral e pedagógico. As fábulas das
Noites Árabes revelam o saber chinês, judaico-cristão, persa, hindu, e até mesmo do grego. No
entanto, o discurso dessas narrativas se define a partir do conhecimento do Islão, (...)
destacando, que o espaço recriado tem um fundo e uma forma à maneira do homem
muçulmano”. (in: Naghan, Neuza Neif. 1990, p.59)

Um dos traços peculiares das Noites Árabes refere-se à inexistência de um texto canônico. O
conjunto de histórias, que faz parte da obra, não representa um número fixo e acabado, nem uma
ordenação comum. A quantidade de manuscritos e das edições de texto em língua árabe e também
extrangeiras, despertam grande interesse entre os orientalistas. Considerando diversos estudos,
entende-se que As mil e uma noites é uma obra inacabada. O percurso secular dessas narrativas não
permite definir o conteúdo programado e o número de histórias existente na obra. A universalidade
da obra é confirmada com a tradução desses contos, nas diversas línguas e para diferentes culturas.

A multiplicação dessas traduções seguiu paralelamente ao desenvolvimento dos estudos críticos


sobre a obra. Comparando duas versões d’As mil e uma noites: uma com contos selecionados de
Paulo Sérgio de Vasconcellos e a versão ‘completa’ traduzida do árabe por Mamede Mustafa
Jarouche, verificamos diferenças nas mesmas histórias, na abordagem dos temas das narrativas, na
imagem dual da mulher e o amor, no tipo de linguagem empregada (a versão do Prof. Mamede é
muito mais sensual; a paixão erótica está mais evidente). Nas traduções e adaptações também
percebemos alterações nos termos árabes e até no sentido das histórias.

Uma característica comum entre as diversas versões é o conto-prólogo. Ainda que se apresentem
com nuanças diferentes, contam a história do rei da Sassânida, dos seus filhos Sahriyar (mais velho)
e Sahzaman, das respectivas esposas traidoras, do vizir e suas duas filhas: a “heroína narradora”
Sahrazad e Dinarzad. Deste tronco comum (semelhante à uma árvore) brotam as narrativas, as quais
se repetem, modificando os personagens, multiplicam-se as histórias nas noites infinitas.

A própria denominação As mil e uma noites, representando um universo fabulário, sugere através do
título um número indefinido: “Mil histórias sem fim”. O título da obra define o traço essencial de
sua composição: a inesgotabilidade das narrativas. Juntamente com a sedução do maravilhoso, as
narrativas de As mil e uma noites revelam um mundo real e fascinante de outra civilização e cultura,
bem diferentes da cristã, tal como se consolidara durante a era clássica.

Contar histórias é um ato lúdico e de reflexão. O universo imaginário do ser humano abstrai
exemplos do cotidiano e os reproduz simbolicamente como forma de categorização de seus valores
sociais. As fábulas narradas têm um fundo moral, onde os percursos gerativos dos discursos
revelam a oposição entre o bem e o mal. A experiência do indivíduo, como produto de sua vivência
cultural, modela-o com valores representativos de sua sociedade que podem ser considerados
universais. No ato de contar, visto como um espaço lúdico, o indivíduo reproduz os sonhos e as
fantasias, ao mesmo tempo em que manifesta aspectos valorativos de sua cultura.
“Os contadores de histórias das Noites Árabes, revelando o saber oral tradicional, manifestam
através de sua arte uma sincronia entre o real e o imaginário, o social e o mito, o fabuloso e a
experiência cultural. Os temas que remontam a uma tradição persa, hindu, chinesa, judaica, cristã e
até mesmo grega, adquirem uma cor local, onde o ambiente dessas narrativas é envolvido pelos
mistérios e pelos encantos do Oriente Árabe”. (in: Naghan, Neuza Neif. 1990, p.344).

As mil e uma noites, entendida como uma obra aberta e circular, é perene. Os contos chegam ao
ocidente, revelando mistérios e os encantos do oriente árabe, sendo recontados ou reproduzidos
através do texto escrito. Tradição e modernidade definem o caráter secular da obra. O velho se torna
novo e as histórias imigram como o resultado das trocas entre as culturas.

Referências Bibliográficas
COELHO, Nelly Novaes. “Panorama histórico da literatura infantil e juvenil.” São Paulo, Ática, 1991.
JAROUCHE, Mamede Mustafa (introd., notas, apêndice e tradução do árabe). “Livro das mil e uma noites.”
- 3 ed. São Paulo, Globo, 2006.
NABHAN, Neuza Neif. “As mil e uma noites e o saber Tradicional - Das narrativas Árabes à Literatura
Popular Brasileira.” Tese apresentada ao Dep. de Líng. Orientais da FFLCH-USP. São Paulo, 1990.
VASCONCELLOS, Paulo Sérgio de. (Organizaç.) “As Mil e Uma Noites.” São Paulo, Ed. do Objetivo.

*Texto de Danilo Orion Faloppa Nº USP – 2207373


Literatura Inf./Juvenil: Linguagens do imaginário I
1º sem./2008 - Profa. Dra. Maria Zilda da Cunha

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