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De lamelas e tutanos

Marcela Antelo

"Conceito entulho"*, o destino da pulsão está comprometido e desta vez, não devido a
sua atávica porfia. Tratado como resto da grande inserção da natureza na ordem simbólica,
este artifício limítrofe do soma e da psiqué, perde potência descritiva quando o soma se
desvanece da teoria e esta passa a referenciar-se no sujeito anti-substancial do inconsciente e
ponto. O sujeito instaurado pelo significante perde sua verdade como conceito se
desconhecemos a complementaridade de gozo que parasita seu corpo.
A conjura do conceito de pulsão, hoje tão em voga em certa psicanálise acadêmica no
Brasil, pode ser pensada com recurso a mesma teoria pulsional tal como o ensino de Lacan a
funda.
Freud alertava que "a doutrina das pulsões é a peça mais importante, mas também a
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mais inconclusa, da teoria psicanalítica. " Maltratado por seu pé na biologia e na fisiologia da
época da sua invenção, o Trieb de Freud é tomado também como cúmulo da escuridão mais
especulativa. Tanto um como o outro preferiram envolver este objeto teórico inquietante com a
doçura formal, infantil, dos mitos. Fabricam seres míticos a partir do Panteão grego ou da mãe
natureza: ameba voraz, vesículas indiferenciadas de substância excitável, Eros barulhento e
Tanhatos silencioso, uma libido que se diverte burlando a repugnância, a lamelle, lamela
indestrutível.
Tanto em Freud como em Lacan podemos encontrar evidências de que o conceito de
pulsão gera e gerou resistência entre analistas e não analistas. Tratar o real com fabulas e
paródias, matemas animados, diz JAM, pode servir para corroer denegações estéreis, facilita o
operar+perceber, o oppercevoir que inventou Lacan pela via do meio dizer. Os mitos podem
entrar nessa série. Masotta advertia há anos que não tínhamos a menor chance de descobrir o
que é a libido abrindo o Laplanche e Pontalis.
Acaso o avanço enérgico do Trieb na trama hierárquica da teoria não lhe custou a
cabeça ideal do movimento? A cabeça de Jung rodou quando a lamela acéfala colou-se no eu
inaugurando o narcisismo. Parece mais um chiste de Freud ter-se introduzido ao narcisismo
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para declarar a guerra ao teólogo do Um, nome do gozo com que Masotta batiza a Jung.
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Há quem afirme que o corrosivo mito da lamela foi o artificio de Lacan para contrapor-
se aos pos-freudianos, à sua ignorância a respeito do plano de corte entre o sujeito e o objeto,
sua divisão real.

Brotos e mudas

Escrito a lápis durante uma viagem em trem o manuscrito sem título que hoje
chamamos Projeto de uma psicologia par neurologistas registra o Trieb pela primeira vez,
pouco antes de introduzir a experiência de satisfação. Dois meses depois de concluído, Freud
se perguntava pelo enigma do seu estado de ânimo quando “incubava” o Projeto, 1895. Um
Trieb traumático desde o começo.
O manuscrito retornou ao real em 1950 e através das vicissitudes da transferência. A
princesa Marie Bonaparte, paciente e discípula de Freud, compra-o num sebo e o conserva,
negando-se a entregá-lo a Freud, ou seja ao fogo, que era o destino que Freud queria para seu
Projeto.
Apesar de Freud considerar seu Projeto um fracasso: "conceber as idéias
armazenadas em células e as excitações como seguindo o curso das fibras nervosas fracassou
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por completo " trata-se de verdades que triunfam ao fracassar. Podemos hoje encarar o Projeto
como antecedente fundamental da teoria econômica do gozo, se acompanhamos o
deslizamento de uma economia energética para uma economia política índice da pós-moderna
atualidade da sua hipótese econômica surgida por imposição da clínica.
A construção da hipótese procede da observação clínica da histeria e da obsessão.
Encontra nestas estruturas representações hiper-intensas onde o caráter quantitativo se
destaca. Idéias pesadas, carregadas de Triebverzicht.
Estimulação, substituição, conversão e descarga são os processos observados nestes
transtornos que levam a pensar a excitação, o Kern unseres Wesens da cura, a Triebverzicht,
substância da vesícula indiferenciada que Freud pensa ser o organismo, como algo que flui. A
excitação é fluente, como alíngua de alguns. Quantidades fluentes que, depois da lamelle, não
podemos pensar líquida, se deslocam de uma representação a outra, as substituem, invadem
órgãos como cenário de operações para uma e outra vez tramar-se um destino quando a
evacuação é freada por alguma barreira. A primeira a constitui sua própria superfície. A borda
exterior da vesícula por meio da morte, cria um calo de defesa frente a novas quantidades, se
satura ao tempo que limita os destinos da excitação endógena. Freud atribui este limite a
transgressão do princípio de constância que reconhece a Fechner, autor da Outra cena.
Fechado em um circuito e por meio de montagens sucessivas que detalhara nos Três ensaios
e uma gramática que só pudera escrever em 1915 o Trieb de Freud encontra sua satisfação
inevitável.
Jacques-Alain Miller tem sublinhado a simplicidade desta teoria sobre a equivalência
das satisfações em Freud:
"Não importa o objeto, a finalidade libidinal se obtém custe o que custar e é sempre a
mesma como tal. Este é o ponto simples e essencial que assinalava. O gozo é o gozo. A
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pulsão não conhece o "semblante de gozar". A satisfação pulsional é um real..."
Freud parte do real, da experiência de satisfação, a incuba e é no Projeto/fracasso que
a pulsão estréia com o prazer, a dor, a próton pseudos, a satisfação alucinada, o objeto no
vestido de Ema. Freud nomeia Trieb o broto de um excesso, um derivado dos instintos, uma
constante.
"Quando a via de condução se satura, o sistema psi φ se encontra a mercê da
quantidade (Q) e surge no interior do sistema o impulso que sustenta toda a atividade psíquica.
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Conhecemos esta força na forma da vontade, derivado, broto dos instintos" , Trieb no original.
Miller nos últimos anos, não cede em extrair as conseqüências clínicas do
desvanecimento da pulsão freudiana, até do vocabulário da teoria das pulsões, registrando a
demonstração da inexistência do objeto que operou Lacan nos tempos do todo significante e
da teoria pura do sujeito. Hoje, não retomar o último Lacan, o Lacan versus Lacan, conduz à
denegação do osso duro do real e falha em conseqüência o âmago da cura consistente em
retificar o estado de satisfação, na produção de diferenças absolutas quanto aos destinos da
pulsão no sujeito do indivíduo deveríamos dizer, "O que constitui o um do indivíduo é que há
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signos de que ele goza" .
A psicanálise detida neste ponto simpatiza com o campo da neopragmática. As ironias
de Rorty por exemplo investem contra nosso caro impossível a dizer e obviamente a boa
conversação como destino utópico da pulsão é predicada. O significante nunca diz Adeus,
fonte de otimismo eterno. Quando há o adeus, quando já não sabemos quem fala, é a
presença da pulsão que se deduz.
O anti-essencialismo politicamente correto, é verdade, perde o ponto fundamental tanto
do Trieb de Freud como da teoria lacaniana do gozo (misses de point) e a clínica se reduz a ser
uma experiência narrativa, ficcional e o referente o mito individual. Miller fala do fenômeno no
seu último seminário .

Substância gozante

O último Lacan introduz o substrato, o Hypokeímenon de Aristóteles, a matéria prima, a


substância gozante à qual lhe atribui modo de gozar. Os modos de gozo se predicam desta
substancia, acessível à experiência. "Se há algo que pode definir-se como o corpo, não é a
vida....a definição mesma de corpo é que seja uma substância gozante...Como é que nunca
ninguém o enunciou? É a única coisa fora de um mito, verdadeiramente acessível à
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experiência." . Numa investigação recente e necessária para alimentar um debate que na
Bahia já acontece, podemos ler:
"O conceito de Hypokeímenon no seu sentido original, explica Lacan, não implica
nenhuma natureza essencial, senão o isto, o indivíduo como corpo, como superfície na que se
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inscreve o gozo ".
O gozo é evacuado do corpo por inércia, porém a transgressão contingente, produz
como efeito a função sujeito e os destinos da substância. O sujeito é esta falta que se liga a
pontos da superfície onde se armazena gozo, que são os (a). Sujeito é uma função entre o
corpo e o gozo, que enlaça a falta com os resíduos da evacuação. O sujeito tem por função,
que não cessa de fracassar, manter os resíduos à distância. Porem os resíduos são pontos de
gozo atávicos enquanto haja vida. O gozo é periférico, fragmentado e nas bordas do corpo, e
deve ser considerado como fundamentalmente fora-corpo. Vem de fora a bater às portas.
Há também certo evolucionismo do pulsional que não deixa resto, que não leva em
conta a natureza conservadora da pulsão freudiana, sua tendência à fixação e sobretudo que
extrai suas conclusões sobre um assassinato da Coisa que perpetuou-se de uma vez e para
sempre. A foraclusão e seus retornos permanecem impensáveis e tanto o velho Trieb como a
lamela podem ajudar a problematizar o real que se apresenta sem sentido. A causalidade, o
real como causa precisa de um tempo lógico. Somente o secundário nos permite ler o primário
e entender por exemplo a afirmação de Lacan, que Philip Dick gostaria de ter feito: o recalcado
vem do futuro e não do passado.
A causa como real implica que ela é produzida, secretada, pelos seus próprios efeitos.
O trauma é o efeito retroativo da sua simbolização falida. A instauração da ordem simbólica cria
a totalidade pré-simbólica que a precede, funda o que lhe escapa. O fora-corpo como destino
do gozo secreta a substância gozante. O sexo como osso traumático é o efeito, a secreção da
sexualidade entendida como prática discursiva. Não há real prévio, primário, a não ser como
produção da lógica do secundário.

A lamela

O mito da lamela inventado por Lacan em Posição do inconsciente tem força probatória
antecipada, das suas últimas articulações. Como se a lamela mesma fosse secretada por um
Lacan posterior.
Quando Zizek encontrou a figuração da lamelle lacaniana em Alien, (L'Âne), homologia
figurada apontada posteriormente por outros autores, não sabia que o parentesco era tal que a
lamela não cessaria de voltar; filmou-se recentemente "Alien  a (quarta) ressurreição".
Pode ser de interesse opor o caráter moderno do mito da lamelle apontado por
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Alexander Stevens e o que Zizek diagnostica como obsessão pós-moderna com a Coisa, com
o corpo estranho, de fabulosa imprecisão, como disse Freud respeito da libido, que ameaça o
tecido social. Lembremos que para Lacan, se o Trieb não é o instinto é porque tem relação com
a Coisa, com das Ding enquanto ela é diferente do objeto.
A lamela de Lacan como vida pura irreprimível da substância imortal se obtém
quebrando ovos. Alguma coisa se esvai quando a membrana do ovo que contém o feto se
rompe. Tão fácil quanto fazer um hommelette se faz do homem esta lamela. Em princípio é um
pouco mais complexa que a ameba e se move em todas as direções. É algo que está
relacionado com o que o ser sexuado perde em sexualidade. Da mesma forma que a ameba de
Freud sobrevive a todas as divisões e qualquer tentativa de cortá-la fracassa. Lacan já dizia
que uma batalha contra um ser assim é irresistível porém não conveniente. "Essa lâmina, esse
organismo cuja característica é não existir é a libido....a libido como puro instinto de vida, vida
imortal ou vida irreprimível que não precisa de nenhum órgão. É exatamente o que é subtraído
do ser humano em virtude do feto estar sujeito ao ciclo da reprodução sexual. É disto que todas
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as formas que podem ser enumeradas, do objeto a são os representantes, os equivalentes. "
Agora bem, a sacada de Lacan não consiste nesta cinematográfica descrição, senão
em "imaginar" o retorno deste troço imortal para acima de nós. Imagina este órgão que é a
libido cobrindo-nos o rosto, invadindo superfícies. Algo retorna do assassinato da coisa e
provoca uma guerra impossível, como se a Coisa não estivesse suficientemente morta.
A sociedade nega o gozo do sintoma, o gozo da alíngua e dá boas-vindas aos
obscurantismos. Como vimos em Alien, o único tratamento possível da lamelle é ético. O mito
de Lacan contém chaves que ainda não começamos a usar. A invenção de um sinthome, como
particular absoluto funda a política do real que só é possível resgatando o Trieb dos entulhos
numa sociedade que nega o gozo do sintoma.

1
Freud, Sigmund. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Vol.7. Rio de Janeiro: Imago, 1972-80.
p.171
2
Masotta, Oscar. A dualidade psíquica: modelo pulsional (tradução Claudia Berliner). Campinas, SP: Papirus, 1986.
3
Stevens, Alexander. La lamelle como mito moderno. Quarto 60. Revue ECF-ACF en Belgique. Juillet 1996.
4
Correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhem Fliess. Carta 52 , dezembro de 1896. Rio de
Janeiro:1986.
5
Miller, Jacques Alain. Sobre Die Wege Der Symptombildung, Freudiana 19. EEP-Catalunya: 1997.
6
Freud, Sigmund. Projeto de uma psicologia para neurologistas.
7
Lacan, Jacques Sem.XXI Les noms dupes errent, inédito, 21/1/76.
8
Giussani, Diana "En qué sentido introduce Lacan el hypokeímenon? El caldero de la escuela N’ 58, EOL, 1998)

10
Zizek, Slavoj. Conferência no Corte Freudiano no Rio de Janeiro. Inédito (9/4/1992)
11
Lacan, Jacques. Posición del inconsciente, Escritos II. Buenos Aires: Siglo XXI, 1981.

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