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A casa caiu

No calor da situação, a pena que sentira por Maggie temperou o amor do escritor
por algum tempo. De certo modo sentia-se um pouco mais herói de novo, ao aceitar que
sua parceira utilizava próteses. Mas que tolo, como não percebera. Ah, Maggie, que marota!
E que maduro ele era, quando garoto… Não sei não se aceitaria. Também as próteses e
evoluíram e… que incrível, nem se percebe diferença! Já não importava. A vida estava
definida, e era boa. Ele a admirava ainda mais pelo enfrentamento.de sua condição.
Olhar para a janela, contudo, continuou sendo um hábito, porque mesmo a boa
rotina, no final das contas… É uma rotina. A franja da moça a olhar para cima, para a
janela, para Phil, ainda lhe ocorria, embora menos. Até porque as cartas deixaram de ser
um problema. Maggie passou a cuidar delas pouco tempo depois, e apenas passava a
pauta do que fosse mais importante. Eventualmente, pedia que ele respondesse a uma ou
outra correspondência.
Numa tarde, porém, o escritor a atrasou para sua aula de pilates, porque queria ler
algo para ela, e saindo apressada, deixou a pilha de correspondência. “Quando chegar dou
um jeito”, avisou antes de bater a porta.
Normalmente, o escritor passaria direto pela escrivaninha. Mas em seu novo e rico
tédio, suas mãos mexeram na correspondência, enquanto suas memórias iam para o café…
Tanto tempo sem visitar… Do outro lado da cidade. Foi quando seus olhos viram um pedaço
de uma dessas cartas, e reconheceram a letra de mão. Violeta?! Apressado, tira a carta da
pilha, a letra cursiva apenas enuncia: “urgente””. O conteúdo da carta é, na verdade, um
protocolo de segurança a ser usado para reconfigurar filtros da Inteligência Artificial padrão
do usuário. Seguindo as instruções, o escritor vai ao banheiro, liga o chuveiro quente
criando um ambiente enfumaçado. Digita um longo código no lugar da senha do celular, e
abre-se um painel de controle: IA-NIt5Xe: logado a sua conta de usuário
padrão de Felipe Mascarenhas / Modo Encriptado. Um por um, o escritor
desativa funções de acordo com as instruções da carta. Alterações feitas, vai ao
computador, e na tela, chama pelo assistente virtual. Clicando em CONTROL, digita:
“atualizar últimos comentários sobre meus livros”, tendo como retorno: 3.425
resultados. Deseja filtrar por idioma, data ou outro? (clique
control e digite a resposta). “Geral, último mês, todas as línguas traduzidas”. Leu
as dez primeiras e de fato, havia algo bem errado. O escritor tinha lido todos os materiais
enviados pelas publicadoras digitais escritos em seu nome. Em alguns casos, parecia que
estavam falando de outro autor e de outras obras. Foi ao shopping virtual, pediu por livros
seus. Diversos títulos, inclusive em português, eram anunciados. Alguns deles pareciam
com “Sob os sóis de Sion”, outros com o nome originalmente pensado “Os sóis duplos de
Sion”, e ainda “Aventura no Deserto” e “A força quente do Amor”. A IA anunciou por sua
janela: “seu filtro de busca e leitura e edição/adequação de títulos
está totalmente desabilitado. Marque a opção de filtragem para
continuar ou pressione control e escreva”. Ignorando a janela: o escritor
adquiriu 3 títulos parecidos em versão virtual, baixou-os para seu dispositivo leitor offline,
por cabo, e descontectando-se pôs-se a ler. Números de páginas, índice, nomes dos
personagens, tudo com variações. O vocabulário também era outro. Mas algumas ideias
centrais de “Sion” apareciam em todas. O que afinal estava acontecendo? De volta ao
computador, escreveu: “me dê o resultado de críticas negativas não editadas desde a
assinatura de meu contrato”. O computador retornou com 18.952 entradas, 95% delas
realizadas por IAs, segundo o mesmo. “Mostre-me todo tipo de crítica ao livro feita apenas
por autores humanos, sem filtragens ou edições”. Apenas 12 resultados surgiram. Um deles
era de sua mãe, que logo que soube do lançamento previu “mais um fracasso do meu filho
que podia ter sido tanta coisa na vida”. Outros positivos ou negativos, de veículos de
imprensa humana desgastados e imerso em um ostracismo, pouquíssimos teriam lido…
Mas havia um pequeno blog, um blog com decoração floral, chamado Vblog. Nele, três
artigos críticos anônimos; em um deles, denunciava que o escritor estava sendo comprado
pelas IAs, e comparava a qualidade dos trabalhos anteriores com o atual; Em outro,
reclamava como aos pobres era vendido uma versão condensada e totalmente pobre em
vocabulário, cheio de pontas soltas no roteiro, e com título apelativo; o terceiro clamava pela
volta a escrita original, mesmo que defeituosa, humana”. O escritor já não sabia o que
pensar. Em uma hora, o que sabia sobre si e o que “produzia” havia desabado. Em quantas
pessoas o computador o havia transformado?! Habilitando os filtros, tudo voltou ao normal:
elogios, um título coerente e a clareza de que sua obra falava exatamente o que ele queria
ter dito.

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