Coordenação:
Rui Jacinto
41
IberografIas
Âncora Editora
Avenida Infante Santo, 52 – 3.º Esq.
1350-179 Lisboa
geral@ancora-editora.pt
www.ancora-editora.pt
www.facebook.com/ancoraeditora
O Centro de Estudos Ibéricos respeita os originais dos textos, não se responsabilizando pelos conteúdos, forma e opiniões neles expressas.
A opção ou não pelas regras do novo acordo ortográfico é da responsabilidade dos autores
Apoios:
reserva de Imaginário
85
Fernando Paulouro Neves
Fotografia e Paisagem
89
Jorge Gaspar
Paisagem e Território
115
Messias Modesto dos Passos
Los Lugares, Territorios de Memoria y Identidad. Por una Geografía Activa y Cultural 431
del Lugar
Valentín Cabero Diéguez
Rui Jacinto
Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT);
Representante da Universidade de Coimbra na Comissão Executiva do CEI
Em memória de
António Gama
José Aldemir de Oliveira
Neli Aparecida de Mello-Théry
1
Os catálogos, relativos aos anos de 2008, 2011, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020, estão
disponíveis em: https://www.cei.pt/transversalidades/.
Rui Jacinto
Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT); Representante
da Universidade de Coimbra na Comissão Executiva do CEI
“Fotografar é também resistir e cada um resistirá conforme a sua pessoa. Não é huma-
namente possível fotografar tudo; há que escolher, portanto há que excluir. Mas também
não é possível reduzir o mundo à sua representação fotográfica. Tendo a acreditar que a
fotografia está para a realidade como o mapa está para o território. Um minuto depois do
“clic”, o mundo já não é exactamente assim. Um dia depois do temporal, o mapa já não
espelha fielmente o terreno” (Castello-Lopes, 2004: 121).
(Sontag, 1986: 18), permitindo visitar lugares e estabelecer uma nova empatia com esses
recônditos territórios.
A génese deste projecto é indissociável dum envolvimento comprometido com a Raia
Central, espaço tocado pela ausência dos que partiram, silenciado e remetido a um pro-
gressivo esquecimento, votado a uma discriminação negativa pelos meios de comunica-
ção dominantes, a que não foi alheio, também, o conhecimento dum trabalho exemplar
(Maillo, 2007), realizado por colegas espanhóis, parceiros da aventura colectiva que tem
1
http://fr.wikipedia.org/wiki/Jacques_Ardoino
2
http://www.educabrasil.com.br/eb/dic/dicionario.asp?id=70
Referências
As paisagens naturais e humanas a que nos fomos afeiçoando não ficaram imunes à
sucessão de acontecimentos que culminaram na crise que estamos a atravessar, responsável
pelos novos mapas, de contornos ainda indefinidos, que estão a redesenhar as emergentes
geografias locais, regionais e globais. Duas décadas de apregoada globalização aceleraram as
mudanças económicas, sociais, culturais e políticas, comprimiram o tempo, desregularam
os frágeis equilíbrios ambientais, alimentares, energéticos e financeiros que colocaram a
generalidade dos territórios à mercê de voracidades predadoras e pouco éticas, expondo-os
a incertezas, precariedades e angústias insuportavelmente pesadas e injustas.
As tensões conflituantes entre tradição e modernidade, arcaísmo e inovação, conti-
nuidade e mudança, inerentes aos actuais processos de reestruturação económica, social
e territorial, proporcionam imagens representativas de fenómenos novos que podem ser
captados nas mais populosas metrópoles, nos espaços mais despovoados, recônditos e re-
motos, ou nas mais longínquas e profundas regiões de fronteira. A imagem adquiriu, por
outro lado, enorme centralidade nas sociedades contemporâneas, tornou-se decisiva para
ler o mundo e interpretar as mudanças que nele se estão a operar, factos que acabaram
por condenar vastas áreas do globo à exclusão visual, essa forma eficaz de marginalização,
por ausência de imagens, em que os média se especializaram. Difundir fotografias que
evidenciem a diversidade de um mundo em mutação, que mostrem as desigualdades, as
diferenças e as clivagens que conduzem à exclusão de populações e de lugares não deixa de
contribuir para a reconstrução dos mapas mentais onde se pode alicerçar uma nova cultura
territorial e uma geografia mais responsável e inclusiva de pessoas e territórios.
Tentando superar o conceito para onde o termo nos remete, Transversalidades não
se limita à simples compilação de material para alimentar um banco de imagens sobre as
transformações em curso, usa-as como “cada família constrói, através da fotografia, uma
21 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
crónica de si mesma, uma série portátil de imagens que testemunha a sua coesão”. Não
existe, pois, a preocupação exclusiva de recordar através das imagens, mas “restabelecer
simbolicamente a precária continuidade e o progressivo desaparecimento da vida familiar”
e, assim, assegurar “a presença simbólica dos parentes dispersos”, valores que conferem
à fotografia tanto “a posse imaginária de um passado irreal” como “ajudam a dominar o
espaço em que as pessoas se sentem inseguras” (Sontag, 1986: 18).
O Centro de Estudos Ibéricos (CEI) procura superar, através deste projecto, o seu âm-
bito de actuação mais imediato, confinado à Raia portuguesa e espanhola, alargando este
espaço a países de outros continentes onde perduram marcas da presença ibérica. Sem per-
der de vista o compromisso histórico que mantém com os territórios de baixa densidade,
O mapa não é o território como a imagem não é, também, a coisa que retrata. Esta
evidência, que nos obriga reconhecer que a fotografia não é testemunha absoluta de nada,
não nos impede constatar que o conhecimento ainda se constrói, em boa medida, a partir
de imagens, porque “muitos são os objectos, os processos, os fenómenos, os lugares, os
rostos aos quais só elas permitem o acesso” (Sicar, 2006: 15). Estamos submersos em ima-
gens, oriundas de muitas fontes e das mais variadas proveniências, fruto da simplificação
e da democratização do acesso à fotografia e da evolução técnica, industrial e artística que
massificou a respectiva produção e difusão. Omnipresente, a fotografia é substituída a cada
22 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
instante por outra fotografia, tornou-se num divertimento banal e numa forma de arte de
massas que invadiu os espaços públicos e a esfera privada.
Ninguém contesta, apesar desta expansão, que a fotografia, sob múltiplos aspectos, se
afirmou “como uma forma de expressão, de informação e de comunicação total, essencial e
específica”, um importante “testemunho artístico ou jornalístico sobre o mundo” (Bauret,
2000: 9). Ao retratar pessoas e lugares que acaba por impor ou iconizar, a fotografia veicula
mensagens, influencia comportamentos, molda a visão do mundo, concorre para impor a
ditadura da imagem que, hoje, nos esmaga. A fotografia não é, como nunca foi, uma pro-
dução simples, inocente, casual ou mecânica de imagens, nem, “como muitos pensaram
durante muito tempo, uma simples reprodução da “natureza”, do mundo que nos rodeia,
Tudo o que existe no mundo só existe para vir a acabar num livro, afirmação que,
abusivamente generalizada, permite pensar que “hoje em dia, tudo o que existe, existe
para vir a acabar numa fotografia” (Sontag, 1986: 32), suporte, cada vez mais virtual, onde
terminam paisagens distantes, cidades longínquas, pessoas e lugares que nos são próximos,
experiências e momentos marcantes, individuais ou colectivos. A relação entre a imagem
24 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
e a escrita, contudo, foi mudando desde o tempo em que os textos explicavam as imagens
e as desmitificavam. “Doravante, as imagens ilustram os textos, remitificando-os. Os ca-
pitéis românticos serviam aos textos bíblicos com o fim de desmagicizá-los. Os artigos de
jornal servem às fotografias para os remagicizarem. No curso da História, as imagens eram
subservientes, podia-se dispensá-las. Actualmente, os textos são subservientes e podem ser
dispensados” (Flussel, 1998: 76).
As fotografias contidas no catálogo, resultantes duma apertada selecção feita entre as
submetidas a concurso, esboçam um roteiro que tem por coordenadas lugares e pessoas
dispersas no mapa e perdidos no tempo, desenham a cartografia possível das desigualda-
des e diferenças que fracturam o mundo, das clivagens abertas pelas novas fronteiras que
“O que quer isto dizer? Que verdade é esta que uma película não erra? Que certeza
é esta que uma lente fria documenta? (…) A realidade verdadeira dum objecto é apenas
parte dele; o resto é o pesado tributo que ele paga à matéria em troca de existir no espaço.
Semelhantemente, não há no espaço realidade para certos fenómenos que no sonho são
palpavelmente reais. Um poente real é imponderável e transitório. Um poente de sonho é
fixo e eterno. Quem sabe escrever é o que sabe ver os seus sonhos nitidamente (e é assim)
ou ver em sonho a vida, ver a vida imaterialmente, tirando-lhe fotografias com a máqui-
na do devaneio, sobre a qual os raios do pesado, do útil e do circunscrito não têm acção,
dando negro na chapa espiritual” (Fernando Pessoa, Livro do Desassossego).
fotógrafo.
“Exclusão seria o que o fotógrafo não gosta, não quer, não pode ou está proibido de
fotografar. Razões endógenas (não gostar, não querer), razões exógenas (não poder, ser in-
terdito). (…) Fotografar é também resistir e cada um resistirá conforme a sua pessoa. Não
é humanamente possível fotografar tudo; há que escolher, portanto há que excluir. Mas
também não é possível reduzir o mundo à sua representação fotográfica. Tendo a acreditar
que a fotografia está para a realidade como o mapa para o território. Um minuto depois
do “clic”, o mundo já não é exactamente assim. Um dia depois do temporal, o mapa já
não espelha fielmente o terreno. Tudo isto me leva a concluir que a fotografia é sempre
3
Photovoice (http://www.photovoice.org), projecto lançado por Carolina C. Wang (Universidade de
Michigan) e Mary Ann Burris (Universidade de Londres); Sofi a Rodrigues & Liliana Sousa, Comunicar
com famílias pobres: o Photovoice (www.ua.pt/cs/ReadObject.aspx?obj=15508)
Todos nós fotógrafos: participação e cultura territorial. A nossa relação com a fo-
tografia mudou, deixamos de ser meros espectadores, de ter a posição passiva de simples
consumidores para sermos, também, protagonistas e produtores de imagens. Cada um à
sua maneira, hoje, é caçador casual de imagens, faz registos para alimentar a memória e
mais tarde recordar, faz apontamentos mais intencionais destinados a partilhar causas ou
transmitir sentimentos.
Os 166 participantes no concurso, que submeteram 841 imagens, são predomi-
nantemente jovens, do sexo masculino, oriundos de meios urbanos, com qualificações
compreender melhor o mundo e o tempo em que vivemos, peças dum complexo mosaico
com que vamos construindo um pequeno atlas imagético do mundo.
Referências
A relação antiga, íntima e cúmplice, que a geografia mantém com a fotografia não se
resume a uma afinidade etimológica que remete para a descrição da terra, num caso, e, no
outro, para escrever com a luz. Ao advertir que “a geografia do mundo melhor se aprende
vista no mesmo mundo que pintada no mapa” (Sermões: 137), Padre António Vieira
apenas visionou que a prática de qualquer daquelas artes exige trabalho de campo e de
gabinete, ir ao terreno, estar no sítio certo à hora certa, se houver a intenção de observar a
paisagem ou determinado acontecimento a partir do ângulo adequado.
Tal nomadismo é inerente à condição de qualquer explorador que tenha por missão
(d)escrever o planeta e imprescindível para o (foto)geógrafo que pretenda captar o exato
momento em que a luz e a terra se (con)fundem. Depois da sua invenção no século XIX,
a fotografia passou a testemunhar a passagem por lugares exóticos, paisagens deslumbran-
tes, acontecimentos invulgares, modos de vida diferentes. A sua descoberta, além de abrir
novas perspetivas de trabalho para a geografia, habilitou o geógrafo a apresentar evidências
das suas deambulações, a cumprir o que alguém lembrou ser uma das exigências da sua
profissão: “E o geógrafo, depois de abrir o livro de registos, pôs-se a afiar o lápis. As desco-
bertas dos exploradores são primeiro anotadas a lápis. Só são passadas a tinta depois de o 35 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
outros projetos de envergadura, como o iniciado em 1909, pelo banqueiro Albert Khan,
que patrocinou o levantamento fotográfico e cinematográfico, Les Archives de la Planète,
cuja direção científica entregou, em 1912, ao geografo Jean Brunhes, iniciativa que havia
de terminar devido á grande crise financeira de 1929 (Gaspar, 2013: 29).
Muitos destes projetos, mais ou menos utópicos, respondem ao desejo de evasão e
descoberta que povoam o nosso imaginário, quase sempre alimentados por imagens cap-
tadas em viagens feitas a lugares recônditos e exóticos, o que testemunha a capacidade
que a fotografia encerra para desocultar espaços marginais e inacessíveis. Assim se explica,
também, o sucesso dos grandes livros de viagens (Odisseia, Lusíadas, etc.), onde estão
plasmadas imagens escritas que oscilam entre realidade e ficção, a longevidade da National
imagem adquire valor próprio que a aproxima de qualquer outra expressão artística, reúne
condimentos estéticos e condensa sentimentos que, podendo não ser diretamente apreen-
didos, nos permite recrear espaços e emoções que o seu autor nunca terá imaginado.
A fotografia tem a virtude de nos confrontar com a complexidade plural do mundo
que nos rodeia, situada algures entre o real e o imaginário. Deste modo, através das
imagens fotográficas acabamos por ficar “confrontados com as estranhezas do mundo.
E mais ainda: em seu frescor, em sua atividade própria, a imaginação torna estranho o
familiar. Com um detalhe poético, a imaginação coloca-nos diante de um mundo novo.
Consequentemente, o detalhe predomina sobre o panorama. Uma simples imagem,
se for nova, abre um mundo. Visto de mil janelas do imaginário, o mundo é mutável”
Referências
considerando o seu volume em vez do seu conteúdo” (Botton, 2004: 126). Contudo,
nunca deixou de existir um entendimento, porventura mais romântico, arcaico e telúrico,
para quem ”o viajar é viver”, “é ampliar de um modo indefinido a existência”, pois “a imo-
bilidade pertence aos túmulos: à vida pertence o movimento” (Herculano, [1853-1864]:
185-8). Os que cultivam esta perspetiva continuam a acreditar que “de vez em quando,
em viagem, acontece alguma coisa inesperada que transforma toda a natureza da vida e fica
com o viajante” (Theroux, 2012: 355).
Os motivos e as formas de viajar sempre foram muitas e variadas: sem recuarmos
a um tempo mais longínquo, lembremos a viagem de Alexander von Humboldt pela
rem são os que executam este ofício./ São os homens e as mercadorias/ que conservam a
estrada” (Tavares, 201: 210). Visitar velhos itinerários é, por vezes, expressar o desejo de
regressar ao lugar de partida, como se depreende das imagens que as comunidades em
diáspora partilham nas redes sociais. São imagens de virtuais viagens às respetivas origens,
exercício de memória contra o esquecimento, afirmação de pertença contra a perda de
referências dum território e duma comunidade a que se continua umbilicalmente ligado.
“Eis como funciona a memória: recolhe na imensidão extensa lenta da diversidade os pon-
tos de referência vivos e densos necessários à cristalização, reconstituição, e fortalecimento
das recordações. A substância da recordação é aquilo que deslumbra o espírito depois de
abandonada a geografia” (Onfray, 2009: 52). Assim se combate a ausência e se alimenta a
“A paisagem está lá, para dizer que o mundo exterior existe e nos escapará sempre
um pouco, à revelia dos nossos desejos e dos nossos talentos. Talvez então a paisagem não
seja senão a metáfora de uma exterioridade distante e maior, muito maior, que as leis e
os livros. À apreensão do espaço que a paisagem é, talvez não possa afinal aplicar-se nem
a mediação do peso da história nem a das narrações, mas tão-só esse outro mistério que
a intuição é. O espaço percebido deixará então de oferecer-se como representação para
revelar-se como imagem, imagem do próprio espaço” (Carvalho, 2005: 129).
estética que passa pelo recurso mais expressivo a imagens a preto e branco e a retratos de
pessoas deslocadas no tempo, marcadas pela ausência e por modos de vida que nos pare-
cem distantes.
. Cidade e processos de urbanização. As topografias da memória e as contradições urba-
nas estão plasmadas em imagens que mostram o contrate entre o novo e o velho, o antigo e
o moderno, sinais do passado e da modernidade que se espelham tanto na nova arquitetura
como nos vazios e espaços abandonados que proliferam. As cidades estão em permanente
transformação, coexistindo espaços públicos novos ou renovados paredes-meias com va-
zios e ruínas - alguns centros históricos são situações paradigmáticas -, que o colorido dos
graffiti assinalam e destacam. As paisagens, os ambientes e as vivências urbanas mudam ao
Referências
“As imagens são mediações entre o homem e o mundo. O homem «existe», isto é, o
mundo não lhe é acessível imediatamente. As imagens têm o propósito de lhe representar
o mundo. Mas ao fazê-lo, entrepõem-se entre mundo e homem. O seu propósito é serem
mapas do mundo, mas passam a ser biombos. O homem, ao invés de se servir das imagens
em função do mundo, passa a viver o mundo em função de imagens. Cessa de decifrar as
cenas da imagem como significados do mundo, mas o próprio mundo vai sendo vivencia-
do como um conjunto de cenas.” (Flusser, 1998: 29)
“Pretendemos examinar imagens bem simples, as imagens do espaço feliz. Nessa pers-
petiva, nossas investigações mereceriam o nome de topofilia. (…) O espaço percebido
pela imaginação não poder ser o espaço indiferente entregue à mensuração e à reflexão
do geómetra. É um espaço vivido. É vivido não em sua positividade, mas com todas
as parcialidades da imaginação. (…) Mas as imagens não aceitam ideias tranquilas,
nem sobretudo ideias definitivas. Incessantemente a imaginação imagina e se enrique-
ce com novas imagens. É essa riqueza do ser imaginado que gostaríamos de explorar”
(Bachelard, 2005: 19).
Referências
pós-viagem, em criar um património afectivo que possa partilhar com amigos, de construir
um legado íntimo que seja a narrativa pessoal da sua passagem pelo mundo. Através das
imagens também nos apropriamos dos territórios, mesmo os marcados pela ausência, na
tentativa de os resgatar do esquecimento a que foram votados pelos poderes dominantes,
políticos ou dos meios de comunicação.
A fotografia peca por se centrar, cada vez mais, na interacção com os gadgets que
com as pessoas e as paisagens que retrata. Contudo, mantem intacta a capacidade de dar
visibilidade a territórios e notoriedade a pessoas, de quebrar o isolamento das mais exclu-
ídas e integrar as mais marginalizadas, continua a ser um auxiliar importante para (des)
escrever o mundo que nos rodeia. Por outro lado, quem trabalha na área da comunicação,
Referências
“De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que / se perdia nos longes da Bolívia /
E veio uma iluminura em mim. / Foi a primeira iluminura. / Depois botei meu primei-
ro verso: / Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem. / Mostrei a obra para
minha mãe. / A mãe falou: / Agora você vai ter que assumir as suas / irresponsabilidades.
/ Eu assumi: entrei no mundo das imagens” (Manoel de Barros).
o leva a concluir que os nomes atribuídos pela geografia são redutores e empobrecerem as
imagens captadas pela observação: “O rio que fazia uma volta / atrás da nossa casa / era a
imagem de um vidro mole... / / Passou um homem e disse: / Essa volta que o rio faz... / se chama
enseada... / / Não era mais a imagem de uma cobra de vidro / que fazia uma volta atrás da
casa. / Era uma enseada. / Acho que o nome empobreceu a imagem”.
Resistir e pugnar pela coesão também pode passar por fotografar os mais excluídos e
invisíveis, sejam pessoas ou territórios, subtrair ao esquecimento quem permanece oculto
sob o manto diáfano das mais densas penumbras. Fotografar esses territórios e essas pesso-
as é, porventura, mais difícil que fotografar o silêncio.
o satélite substituiu o avião e se passam a captar imagens com maior detalhe e georrefe-
renciadas com mais precisão, não só as saudosas fotografias aéreas são relegadas para os
arquivos como se pode navegar com precisão pelos recantos mais recontos do planeta.
Por outro lado, o facto de passarem a ser obtidas em tempo real, vai permitir que as mu-
danças que se operam no mundo que nos rodeia estejam em permanente monitorização.
Concomitantemente, a digitalização que se esconde sob o manto frio e rigoroso da ma-
temática, potencia a emergência dum novo paradigma de interação com as imagens que
tanto democratiza a produção e o consumo como generaliza o acesso à emissão e à receção
de imagens.
“Como potenciais consumidores de imagens, nosso olhar, nossa atenção e nosso inte-
resse são solicitados permanentemente nesse desfile ininterrupto de formas, cores e signifi-
cados. Há uma imensa competição dessas imagens pela captura atenta dos olhares. Não
apenas dos olhares: algumas imagens deliberadamente procuram, sobretudo, atrair nossa
atenção. Em um universo de múltiplas e contínuas possibilidades colocadas ao olhar, as
imagens que conseguem prender nosso interesse estabelecem para si um campo de visibi-
lidade privilegiado.
Ao mesmo tempo, essas imagens, objetos centrais de nossa atenção, tornam as outras
desinteressantes ou despercebidas, ou seja, paralelamente se estabelece um campo de re-
lativa invisibilidade. Assim, existem aquelas imagens que, por conseguirem se extrair do
fluxo da continuidade, se singularizam; mais do que percebidas, elas são individualiza-
das e recebidas com destaque” (Gomes, 2013).
Referências
Armand Frémont (1980 [1976]). Região, espaço vivido. Coimbra: Livraria Almedina.
José Gil (2018). Caos e ritmo. Lisboa: Relógio d’ Água.
Manoel de Barros (2000). Ensaios fotográficos. In Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2011.
Paulo Cesar Costa Gomes (2013). O lugar do olhar: elementos para uma geografia da visibilidade.
Rio de Janeiro: Bertrand.
“o olho que vê a fotografia, justamente por ser fotografia o que vê, não é o mesmo,
ainda que o mesmo seja, que olhou e viu uma parte do mundo para fotografá-la”
(Saramago, 1996: 25).
não incluiu as numerosas figuras que o autor havia planeado, como referiu no prefácio: “a
ilustração é mais pobre do que a teria querido Vidal de la Blache, mas, ainda assim, pu-
demos reproduzir os quatros grandes planisférios que ele próprio havia estudados até aos
últimos pormenores”. Alfredo Fernandes Martins, que fez a tradução desta obra editada
mais tarde em Portugal (Edições Cosmos, 1954), justificaria porque a ilustrou com 84 fi-
guras, criteriosamente selecionadas, incluindo alguns admiráveis desenhos e 4 planisférios,
feitos pelo seu próprio punho, a que acrescentou 61 fotografias: “embora correndo o risco
de discordância com o plano de ilustração gráfica foi aumentada com alguns mapas, vários
desenhos e fotografias. Não teriam sido esses os documentos escolhidos por La Blache?
geral. É natural constatar, por isso, a relutância de muitos geógrafos em relação às imagens,
tendência que as concebe como “distorção e como produto de uma ideologia falsificadora.
Até mesmo os mapas, tão valorizados em geral na Geografia, foram vistos com muita sus-
peição” (Paulo César, 2012).
Assim se explica a desvalorização e perda de centralidade da imagem nos trabalhos
científicos realizados pela comunidade geográfica, sobretudo entre os mais focados na ver-
tente humana, a partir dos anos 70, onde o uso da fotografia e do próprio mapa está,
por vezes, ausente ou utilizado com desconfiança e parcimónia. A retoma da imagem vai
acontecer mais tarde com a exigência “que esse olhar e as formas que ele contemplava de-
veriam ser formalizadas, geometrizadas ou matematizadas. Os esquemas gráficos passaram
“Os olhos não vêem coisas mas sim figuras de coisas que significam outras coisas”
(Calvino, 1990: 18).
pandemia imaginada por José Saramago levou o autor do Ensaio sobre a Cegueira a enfa-
tizar a importância do olhar ao ponto de colocar, na portada deste romance, uma citação
lapidar: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. A acreditar na convicção de Saramago
que ”a cegueira também é isso, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança”,
olhar com olhos de ver o que se passa à nossa volta pode ser, também, uma forma de re-
sistir àquela fatalidade, de questionar a persistência de tais invisibilidades e de tamanhas
desigualdades.
A literatura, que revela uma capacidade ímpar de fornecer coordenadas para a leitura e
a interpretação do mundo, quando se conjuga com a imagem, sobretudo com a fotografia,
. “Na parede húmida estava ainda uma fotografia sua, em moldura de madeira.
Aquela era sua única imagem. Por isso, lhe ocorreu levar a foto consigo. Quando a re-
tirava viu que, no papel amarelecido, ela já não estava sozinha. Em redor do rosto dela
estavam desenhadas figurinhas várias, tantas que pareciam mover-se e trocarem de posi-
ção. Sorriu, decidida a devolver a moldura à parede. Aquela era obra de Virginha, pondo
vida em seu retrato. (…) / Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas
e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de
me roubarem do presente” (Mia Couto, 1992).
. “Eram papéis em branco. /– Não está nada escrito aqui. /– Exatamente. E veja
as fotos!/ Eram papéis de fotografia, mas em branco. Era esse o mistério – aqueles papéis
e aquelas imagens não eram virgens. Até ali estavam maculados por letras, por imagens
gravadas” (Mia Couto, O último voo do flamingo, 2005).
70 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
. “Agora, meu neto, me chegue aquele álbum. / Aponta um velho álbum de fotogra-
fias pousado na poeira do armário. Era ali que, às escondidas, ela vinha tirar vingança
do tempo. Naquele livro a Avó visitava lembranças, doces revivências. / Mas quando o
álbum se abre em seu colo eu reparo, espantado, que não há fotografia nenhuma. As pági-
nas de desbotada cartolina estão vazias. Ainda se notam as marcas onde, antes, estiveram
coladas fotos. / – Vá. Sente aqui que eu lhe mostro. / Finjo que acompanho, cúmplice
4
Dobras Visuais (https://www.dobrasvisuais.com.br/tag/mia-couto/). Algumas citações foram recolhidas
neste endereço; os anos remetem obras referenciadas no final.
Este exercício de memória é semelhante ao que resta aos lugares e grupos sociais que se
encontram submersos sob o manto diáfano da invisibilidade, confrontados com o parado-
71 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
xo embaraçoso dum apagão visual em tempos que se caracterizam pela omnipresença da
imagem. Este fatalismo, análogo ao da metafórica cegueira, é o fardo que carregam, que os
condena ao esquecimento e coarta a esperança num futuro mais promissor. Isto acontece
no justo momento em que se insinuam, discretamente, perante os nossos olhos, imagens
que são manipulações intencionais, distorções grosseiras ou, mesmo, mentiras descaradas.
É uma situação que, não sendo nova, atingiu enormes proporções, facto que valida a
convicção dos que vinham avisando não ser possível continuar a depositar fé absoluta nas
imagens, que a fotografia não passava duma grotesca imitação da realidade. “Ver para crer”
ou “uma imagem vale mais que mil palavras” são expressões que viraram, cada vez mais,
simples retórica.
“Ao ler as imagens destes fotógrafos dou-me conta de que, para além da visão, outros
sentidos são convocados. Eu não apenas vejo. Eu ouço a fotografia. O contacto visual
acorda em mim sons que deveriam ter rodeado o momento fixado em imagem. Apto ape-
nas para inscrever a imagem, o papel não foi capaz de expulsar as vozes” (Mia Couto,
2005: 75).
Referências
Jorge Gaspar
Geógrafo; Professor Emérito da Universidade de Lisboa
Chegado a esta fase da minha vida é já muito difícil ver alguma coisa que não pelo
filtro da Geografia, do onde das coisas e das pessoas, que com as coordenadas definem os
lugares. Mas hoje, quis a sorte, ou seja, a mão do meu querido amigo Rui Jacinto, que
não ficasse com os lugares, nem com as paisagens, nem norte nem sul, nem este ou oeste,
mas com os rostos: uma coleção de rostos que pelo que ficou dito, são necessariamente
rostos de geografias. Desde logo, numa primeira viagem a galgar páginas, a galgar imagens,
encontro duas geografias muito evidentes: uma geografia do sofrimento e uma geografia
da melancolia.
Rostos que são os mapas das geografias do poder, os mapas que os impérios desenham
e depois dominam, exploram, à escala natural, à escala um para um: um ser humano, um
ser explorado, um ser descontado, um espaço vazio, pronto para novo ciclo. Rostos que
traduzem as ações de abuso. São fotografias implacáveis, na denúncia, mas também na
77 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
exaltação da desgraça, da iniquidade, do fim sem retorno, sem paraísos ocultos, sem terras
prometidas.
Na sua crueza, no seu isolamento, estes rostos são representantes de geografias des-
locadas, são imagens descoordenadas, sem azimute. Olhando estas imagens verificamos
que na sua maioria parecem deslocadas das geografias originais, pertencem a viajantes
errantes, surpreendidos numa estação da sua deambulação. Por isso, num primeiro im-
pulso de organização taxonómica, procurei agrupá-los por tipos de passageiros: estantes,
migrantes, turistas e deslocados, sem terra, sem pão, sem, sem, sem nada. São cenas da
“marcha da Humanidade” que prossegue inexorável, desenhando mais e mais labirintos,
jogos para cegos. Detenho-me na profunda melancolia inscrita nos olhares a que eu me
o atlas escolar
Lembro-me do Atlas Escolar Português do Professor João Soares, uma versão por-
tuguesa, excelente, de um Atlas do Instituto Agostini de Novara. Quantas viagens ma-
ravilhosas me proporcionou esse Atlas. No final tinha uma rica ilustração fotográfica e a
série que mais me animava era a dedicada às raças humanas: rostos de gentes dos cinco
continentes.
Nós, crianças, viajávamos no Mundo através daqueles rostos amigos, dos nossos irmãos
europeus, dos nossos irmãos africanos, asiáticos, oceânicos, das fadas da Nova Zelândia e
da Austrália, aos exóticos papuásios/novaguineenses. Aos queridos chineses de olhos em
bico, que nos ofereciam/vendiam gravatas na Baixa de Lisboa - já tinha passado o tempo
do “perigo amarelo”, juntavam-se os índios que nos arrepiavam nos ecrãs dos cinemas,
onde os heróis eram os vaqueiros e pistoleiros brancos, por vezes com as fardas das tropas
da União e, aí, já metia cornetas e clarins. Índios que ali nas belas páginas daquele adorado
Atlas também se tornavam figuras familiares, com seus adornos, colares e coifas de penas
de aves exóticas. E as viagens tornavam-se mais locais, com os rostos a afeiçoarem-se às
78 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
aldeias e às cidades.
Rezem irmãos, ao Senhor dos Aflitos, à Senhora das Candeias à Virgem de Guadalupe,
ao grande Haddad, senhor do tempo, das trovoadas e das chuvas, a Baal que comanda o
trovão e protege os navegantes e os comerciantes, a Yu Shi, o mestre das chuvas que nos
dá a água e nos defende das secas, a Indra o Rei dos Deuses, o rei da luz e do trovão, da
chuva e dos rios: Mestres do Tempo e do Clima, que são também os Mestres do Futuro
que agora nos atormenta.
De facto, a grande utopia de Zeca Afonso torna-se enorme necessidade face a estes
rostos que nos contemplam a lembrar a tábua cronológica e o Atlas da Humanidade.
Temos que fincar bem os pés no futuro para ver que a nova Amaurota poderá mesmo ser a
Grândola que, como sinal, até encerra nos seus limites geográficos uma Aldeia do Futuro.
Terra da Fraternidade
Em cada rosto igualdade
“Hoy se venera la salvación del mercado como instantánea, porque cada vez hay
menos distinción entre la realidad virtual y la realidad. El futuro se ha eliminado”.
John Berger, Luz de Candil, 1995
memoria. Nuevas fisonomías se construyen sobre los despojos en los bordes de la ciudad
o en medio de paisajes residuales y lugares olvidados. Y allí, los artilugios desechados por
la sociedad, herrumbrosos y carcomidos por el óxido de la intemperie, se transmutan
1
SONTAG, Susan: Sobre la fotografía, Edhasa, Barcelona, 1996, p.190: “Las imágenes son más reales de
lo que cualquiera pudo haber imagina-do. Y como son un recurso ilimitado que jamás se agotará con el
despilfarro consumista, hay razones de más para aplicar el remedio conservacionista. Si acaso existe un modo
mejor de incluir el mundo de las imágenes en el mundo real, se necesitará una ecología no solo de las cosas
reales sino también de las imágenes”.
2
Ver con más detalle Valentín CABERO DIÉGUEZ, “El Palimpsesto del paisaje y la memoria del lugar”, en
León, Palimpsesto. Forcal, 2008.pp.31-41.
É um mundo à parte. O tempo cavou a margem e o homem criou dentro dela um uni-
verso, uma identidade, um viver. Poiso os olhos na “manta de retalhos” que é a Beira, tal
como a configurou a geografia de Orlando Ribeiro, e, tributário da Meseta, subo à Estrela
para a cartografia do imaginário - olhar os horizontes infinitos recomendados por Torga,
ou descobrir os azuis sobrepostos das montanhas, oceano imaginário onde porventura
Vergílio Ferreira consubstanciou a metáfora que sintetiza a aventura intemporal de uma
pátria: “Da minha Língua vê-se o mar”,
No pino do Verão, o verde pinho mal se agita, imóvel parece estar este “reino de silên-
cio, luz e pedra”. Respira-se claridade por todo o lado, a luz incendeia e fixa os contrastes.
Pedras, muros, muitos muros de pedras com a cor do tempo, às vezes alfaias de lavoura
abandonadas: a imensa solidão dos campos à espera de gente que partiu um dia em busca
do pão elementar.
85 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
Para se abarcar toda a imensidão da paisagem é preciso andar por caminhos que, às
vezes, parece quererem tocar os céus, de onde apenas se divisam serranias, e ir mais longe
à procura de aldeias fora do mapa, onde, se tivermos sorte encontramos velhos sentados à
soleira da porta olhando para antigamente, crianças que montam cavalos imaginários que
correm à desfilada do futuro, ou até o sagrado e o profano de mãos dadas numa festa do
santo padroeiro com banda filarmónica a preceito.
Aqui e ali ainda se descortinam feridas de incêndios que calcinaram tudo, até o chão,
mas a vegetação rasteira, às vezes estevas e flores silvestres, impõe o seu ciclo de renovação
vegetal. De longe, quando a brisa do fim de tarde sopra de mansinho e o sol se afasta no
horizonte, a caminho de outro dia, as copas das árvores ondulam suavemente e a terra de
trar pelas janelas sem vidros e pela porta que a cravelha trancou quando o último morador
morreu.
Estão espalhados pelo vasto território da periferia transfronteiriça estes lugares.
Viveram tempos de isolamento, numa hibernação profunda, a relação entre os povos ou
com o mundo era coisa nenhuma, os caminhos de andar muito penosos, até a morte, às
vezes, fardo difícil de descartar. Não havia nada, ou apenas migalhas de vida. O progresso
era utopia que morava longe, morria-se por dá cá aquela palha, os “anjinhos” (eufemismo
da mortalidade infantil) partiam para o céu em mortes anunciadas. Terras de gente que
morria cedo e aldeias povoadas de “mulheres de preto, vestidas de sombra até à alma”
(Eugénio de Andrade).
Lourenço, Eduardo - O Outro Lado da Lua. A Ibéria segundo Eduardo Lourenço, Edição e entrevista
de Maria Manuel Baptista, Campo das Letras e Centro de Estudos Ibéricos, 2005.
88 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
Jorge Gaspar
Geógrafo, Professor Emérito da Universidade de Lisboa
Fotografia e paisagem são dois termos que aparecem frequentemente associados. Num
artigo de 2001 em que defendíamos a ideia de que o interesse da Geografia pela paisa-
gem se tinha renovado, escrevíamos: “Mas o regresso à paisagem não é só apanágio da
Geografia, manifesta-se em vários outros domínios onde é necessário apreender a luz, as
formas, os ambientes, para compreender os lugares e o sentido do espaço e do tempo; daí
as novas paisagens da pintura, da literatura, da arquitetura e a continuidade renovada da
fotografia.”. Assim se tem verificado.
A fotografia de certo modo veio “democratizar” a arte e ao mesmo tempo dar outra 89 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
amplitude àquele que era um dos grandes desideratos das artes visuais – o permitir a ob-
jetivação/concretização/materialização da memória. Se a pintura, a escultura, a tapeçaria,
tinham permitido sobrelevar determinados factos e personagens memoráveis, a fotografia
permitiu o crescente alargamento dessa memória material para as pessoas, as coisas, as
experiências, as vivências, os acontecimentos banais. Assim, com a fotografia, também a
imagem da paisagem se banalizou e, sobretudo, deixou de ser necessária ao que continua a
ser um domínio maior da fotografia: o retrato – do retrato de pose, intencionalmente en-
cenado, ao retrato de identificação pretensamente objetivo: dos arquivos (civis, militares,
judiciais, prisionais), ao passaporte, bilhete de identidade, entre outros.
Acabo de ler que no dia 25 de Abril p.f. o pároco de Fátima irá celebrar uma missa
às escuras dedicada aos invisuais; todos poderão assistir, desde que coloquem vendas que
serão distribuídas. Olho agora para estas fascinantes 44 fotografias que já me levaram em
múltiplas viagens (à volta do meu quarto…) e procuro imaginá-las às escuras, feitas numa
noite de lua nova e com o céu carregado de nuvens baixas, sem luzes.
serenidade e grandeza.
Dia a dia recebemos testemunhos, também através das leituras fotográficas, das con-
tradições resultantes dos movimentos que se operam nas infinitas dimensões do Planeta,
que por um lado se encolhe e achata e, por outro, nos mostra o crescendo explosivo das
rugosidades da paisagem.
E aquelas ovelhas, exibindo a pele da sua pele, paisagens mutantes, paisagens do corpo,
que virão a transmutar-se em pele de outros corpos. Lembro-me de David Mourão Ferreira
“Quem foi que à tua pele conferiu esse papel de mais que tua pele ser pele da minha pele”.
De facto, não podemos deixar de ter presente, entre outros, dois factos que colocam
limites à capacidade da fotografia captar as paisagens. Por um lado, a paisagem é a síntese
Paisagem
Desejei-te pinheiro à beira-mar
para fixar o teu perfil exacto.
Desejei-te encerrada num retrato
para poder-te contemplar.
Desejei que tu fosses sombra e folhas
no limite sereno dessa praia.
E desejei: «Que nada me distraia
dos horizontes que tu olhas!»
Mas frágil e humano grão de areia
não me detive à tua sombra esguia.
(Insatisfeito, um corpo rodopia
na solidão que te rodeia.)
David Mourão-Ferreira, in “A Secreta Viagem”
Se cada um de nós sente espontaneamente que está numa paisagem, mais difícil
será encontrar a definição capaz de agregar a diversidade dessas peculiares experiências
do mundo. O que é uma paisagem? A linguagem parece deter-se numa impossibilidade,
relegando-a para a esfera do que se pode sentir e pensar, mas não efectivamente conhecer.
Também aqui, como na confissão agostiniana acerca do tempo, se não nos perguntam,
sabemos; se nos perguntam, deixamos de saber.
Na busca de respostas à complexa questão da essência da Paisagem entendida como
uma das grandes categorias do pensamento humano, uma das mais fecundas tem sido a
associação à noção de horizonte.
O geógrafo Eric Dardel usou a metáfora da janela aberta para acentuar que a paisa-
gem nunca é uma coisa, um objecto parado à nossa frente, mas um lugar que se abre para
outros lugares, uma realidade que se expande para fora dela, sendo meramente aparentes
95 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
e transitórias as suas fronteiras: “A paisagem não é um círculo fechado, mas um desdobra-
mento. Uma janela sobre possibilidades ilimitadas: um horizonte. Não uma linha fixa, mas
um desdobramento, um impulso.”
Não há aqui um espaço fechado sobre outro igualmente fechado – quando uma sala
confina com outro compartimento; a janela não é aquela moldura de um interior de onde
se avista qualquer coisa lá fora, mas já lugar situado, a “céu aberto” que constantemente se
abre e que nesse estender-se ganha temporalidade.
A mesma ênfase colocada nesse misto de densidade (intrínseca) e irradiação (centrífu-
ga) subjaz ao entendimento, proposto por Michel Corajoud, de um lugar onde céu e terra
se tocam. Unidade dinâmica resultante da conjunção do múltiplo, é sempre mais que a
Referências:
A imagem diz o indizível: as plumas leves são pedras. Há que retornar à linguagem
para ver como a imagem pode dizer o que, por natureza, a linguagem parece incapaz de
dizer (PAZ, 1996, p 44).
Na união entre Geografia e Arte, o olhar geográfico percorre diversas manifestações ar-
tísticas, ávido por decifrar como o espaço pode despertar os sentidos humanos e acumular
significados e simbolismos que contribuem para a compreensão da sociedade. Através da
combinação de palavras ou de sucessivas imagens, o ato criativo transfere a sensibilidade
do artista para sua obra, e esta passa a carregar informações preciosas para pesquisadores 99 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
Ufú é a capital de Ifi, a nação mais rica de que a história tem notícia. Naturalmente,
Ufú é a mais vasta cidade que os homens já construíram, e continua a crescer. Seu núcleo
é constituído de vários núcleos menores divididos em centenas de avenidas vastíssimas,
a tal ponto que ninguém nunca percorreu qualquer delas de uma ponta a outra, muito
embora os habitantes de Ufú quase nunca andem a pé; passam boa parte de sua vida em
ônibus, trens, subterrâneos, automóveis ou helicópteros (GULLAR, 1997, p.7).
Assim, a paisagem literária, mesmo quando fictícia, como é o caso da cidade de Ufú
101 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
imaginada por Ferreira Gullar, torna-se uma ponte que nos induz à compreensão da
realidade.
Godofredo Filho, professor, poeta, nascido em Feira de Santana, que adotou Salvador
como sua cidade, encantou-se pela Ladeira da Misericórdia, cuja idade é da fundação da
cidade de Salvador e, tomou-se de afetividade, fazendo dela um poema onde a memória
passeia, ora pela realidade com a presença dos escravos, nobres e figuras históricas, ora pela
ficção.
Tanto as paisagens da cidade de Salvador quanto as do Recôncavo Baiano, da Zona
do Cacau e do Sertão Baiano, aparecem descritas nas obras de grandes nomes tais como,
Jorge Amado, Godofredo Filho, Dorival Caymmi, Vasconcellos Maia, Hélio Simões,
Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do mato
Da Caatinga do roçado
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigos
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado
Por ser de lá
Na certa por isso mesmo
Não gosto de cama mole
Não sei comer sem torresmo
Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão boiada caminhando a esmo
(GIL, n.p.)
102 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
Em palavras como estas, o artista reflete as relações que os espaços estabelecem entre
si em diálogo com os personagens, relatando experiências de vida. Nesse sentido, cabe
ressaltar a importância de obras literárias que permitem acesso a paisagens menos visíveis,
aquelas que nem sempre aparecem em cartões postais ou propagandas de turismo, mas que
são igualmente animadas pelas pessoas que vivem ali.
Prosseguindo pela literatura brasileira, é preciso citar os clássicos que elegem como
cenário a paisagem do sertão, dentre os quais podemos destacar: Grande Sertão: Veredas
de Guimarães Rosa, Vidas Secas de Graciliano Ramos, e Os Sertões de Euclides da Cunha,
cada um representando o sertão de uma parte do interior do Brasil.
BESSE, Jean-Marc. Ver a terra: seis ensaios sobre a paisagem e a geografia. Tradução de Vladimir
Bartalini. São Paulo: Perspectiva, 2014. DARDEL, Eric. O homem e a terra. São Paulo:
Perspectiva, 2011.
GIL, Gilberto. Lamento sertanejo. [s.n.]. Não paginado. Disponível em: <http://letras.mus.br/
gilberto-gil/46212/>. Acesso em: 31 ago. 2015. GULLAR, Ferreira. Cidades Inventadas. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1997.
MARANDOLA JÚNIOR, Eduardo. Geograficidades vigentes pela literatura. In: SILVA, Maria
Auxiliadora da; SILVA, Harlan Rodrigo Ferreira da (Orgs.). Geografia, literatura e arte: refle-
xões. Salvador: EDUFBA, 2010. p. 21-32.
Quando se fala de paisagem vem imediatamente à ideia, para o comum das pessoas, a
visão de um espaço, mais ou menos afastado do observador, mas onde este consegue dis-
tinguir os seus elementos constitutivos, permitindo que, a qualquer momento, a descreva
e distinga de outra qualquer. Porém, a paisagem é mais do que um cenário estático, não se
pode caraterizar apenas pelo que é visto num determinado momento. Qualquer paisagem
carrega uma história repleta de eventos com maior ou menor grau de traumatização, diga-
-se de transformação rápida, intercalados com tempos de maior estabilidade, mesmo as
paisagens ditas naturais. Ou seja, a paisagem é dinâmica, e esta é mais ampla do que aquilo
que é deduzido pela observação do resultado visto num determinado momento. Significa
que cada paisagem resulta da transformação, natural ou humana, de outras paisagens que
a antecederam. Ora, há elementos destas que vão ficando preservados, restantes. Cabe,
105 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
então, ao observador mais atento e desperto para esta realidade identificá-los e, se esse for
o seu intento, salientá-los como resquícios patrimoniais, naturais ou culturais, consoante
o caso, capazes de traduzir ou representar cada uma das paisagens desaparecidas e, se possí-
vel, reproduzi-las, embora concetualmente, por comparação com casos por si conhecidos.
A paisagem, porém, também é caraterizável pelos outros sentidos (do som, do cheiro,
do gosto, do tato). Os dois primeiros, em especial, podem ser muito impressivos. Há sons
e cheiros que se identificam com certas paisagens, de modo que quando são sentidos por
quem foi marcado por eles, têm o condão de lhes fazer reviver ou rever essas paisagens.
Para além do aspeto sensorial, tangível, das caraterísticas da paisagem, há as compo-
nentes emocional e simbólica que, em regra, são tanto mais fortes e arreigadas quanto o
paisagem. É desejável que mostre a sua alma, o espírito do lugar, o seu caráter, aquilo
que a singulariza ou pelo menos a torna tão valiosa ao olhar do mais exigente observa-
dor. E aqui entra a subtileza, a finura, de observação do fotógrafo que vê mais do que
aquilo que a sua vista alcança, vê umas vezes com a razão, outras vezes com o coração.
A subtileza manifesta-se muitas vezes no elemento que na fotografia é “puxado” para
primeiro plano porque protagoniza toda a evolução, todas as condições que explicam a
composição daquela paisagem. Uma simples construção humana – um marco, um cru-
zeiro, uma cabana – inserida no meio de uma matriz florestal igual a tantas outras, nou-
tras áreas, pode ser o elemento distintivo e valorativo daquela paisagem. A rugosidade da
face tisnada de um agricultor ou de um pescador mostra a exposição frequente e longa
Lúcio Cunha
Professor Catedrático no Departamento de Geografia e Turismo da Faculdade
de Letras de Coimbra da Universidade de Coimbra; Centro de Estudos de
Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT)
Ser Humano vai tendo para se adaptar e viver com qualidade numa Gaia em distúrbio e
que de natural vai tendo cada vez menos. Claro que a maior parte das vezes, os problemas,
bem localizados ou mais generalizados, estão, apenas, no mau ordenamento ou no mau
uso que fazemos do território, ou seja no modo como não entendemos o funcionamento
e, consequentemente, subestimamos a força da Natureza natural.
Ainda assim, alguns equilíbrios são possíveis e multiplicam-se os exemplos recentes de
situações de boa articulação entre Sociedade e Natureza, que promovem a sustentabilidade
ambiental e lhe dão novos significados. O uso crescente dos recursos renováveis (hídricos,
energéticos, bióticos), bem como o valor social e cultural das paisagens de base natural e do
Helena Freitas
Professora Catedrática da Universidade de Coimbra; Coordenadora do Centro
de Ecologia Funcional
mas agrícolas de tipologia diversa, com a requalificação dos cursos de água e dos ambientes
costeiros, e promovendo os consumos de proximidade, e uma utilização mais eficaz dos re-
cursos. Portugal beneficiará ainda com um combate activo à fragmentação e uma abolição
progressiva das fronteiras virtuais que tanto têm condicionado o progresso, inviabilizando
soluções articuladas entre freguesias, municípios e regiões, e inibido a aposta nas políticas
públicas integradas que o país tanto precisa.
“É inútil sonhar com uma rusticidade distante de nós. Isso não existe. O que inspira
tal sonho é o charco que há em nosso cérebro e em nossas entranhas, o vigor primitivo da
Natureza existente em nós.
Nunca encontrarei nos ermos de Labrador rusticidade maior que em qualquer lugar
de Concord, pois para cá a trago”.
Henry David Thoreau in Simon Schama: “Paisagem e Memória”.
Uma paisagem nasce, toda vez que um olhar cruza um território, pois a paisagem
nasce da interação de dois elementos: (a) o objeto - um determinado espaço geográfico;
(b) o sujeito - o observador, isto é, o homem com sua sensibilidade, seus projetos, etc..
O mais importante é o que existe entre os dois. Paisagem é um processo! Um modo de
representação sócio-cultural de um espaço. A cada um a sua paisagem.
A paisagem é um tema transversal. Abordar a paisagem como uma questão transversal
– e de travessia– suscita muito mais interrogações que afirmações: “Le paysage revient inat-
tendu dans le vide où le système comme un arc-en ciel dans le pré” (“ A paisagem retorna para o
vazio ou o sistema como um arco-íris no prado”) (Michel Serres, Les cinq sens, Grasset, 1985:
229), coloca as questões essenciais inerentes à paisagem e nos interpela sobre alguns pon-
tos: o retorno da paisagem, tendo sido preciso esperar o fim dos Trinta Gloriosos para que
se tivesse um olhar de interesse pela paisagem, há muito tempo esquecida, notadamente
pelos gestores do território; a relação entre paisagem e sistema; a abordagem sensível, po-
ética e cultural, que marca o retorno da paisagem através da imagem, da espetacularização
das catrástrofes ambientais...
A primeira dificuldade desde que se fala de paisagem é lhe dar uma definição. Segundo
117 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
um provérbio chinês “a paisagem está ao mesmo tempo na frente dos olhos e atrás dos olhos”.
Cada um de nós tem uma imagem associada à paisagem e a define através de suas próprias
referências. Mais, todos os povos não exprimem da mesma maneira a noção de paisagem.
Esta concepção vaga tem um sentido diferente em função das línguas e das culturas. Os
rurais não falam de paisagem, falam da terra: “a gente cultiva a terra” e “a gente olha a
paisagem”.
Além do debate em torno das definições se coloca a questão do “retorno” da paisagem.
Há muito tempo esquecida, a paisagem tornou-se atualmente uma preocupação tanto eco-
lógica e econômica como cultural, interferindo com as problemáticas do meio ambiente e
da gestão do território. Mas este novo interesse suscita outros problemas e interrogações.
Depois de criar o canto, o verso, a rima, a poesia e as rezas de sol da missa do vaquei-
ro, sou também um vaqueiro montado na beleza e na grandeza dessa gente, ativado num
calor de vaquejada, cavalgando por seus cantos e seus recantos, recolhendo no chão, no
ricos, médios e pobres, privatização dos serviços públicos etc. Não regulada, a liberdade
não termina a história das paisagens, ela cria pela revolta possível as condições de sua
transformação.
Paisagem de uns, território de outros: a participação. As questões econômicas e políticas
se traduzem por questões de poder sobre a paisagem (BERDOULAY, V. et SOUBEYRAN,
0., 1992). A paisagem pode ser analisada a diferentes escalas, da unidade de paisagem ao
elemento da paisagem; mas, igualmente ser protegida a diferentes escalas, do parque regio-
nal à praça. A qual escala serão tomadas as decisões? Quem decidirá sobre a paisagem e a
qual nível de análise do pesquisador ela é integrada?
Referências:
dos Passos)
ERVIN, S.M., 1994: Images, texts et videos…Cahiers de l´Institut d´Aménagement et d´Urbanisme de
la Région d´Îlle-de-France, n. 116, pp. 84-90.
SERRES, M. Les cinq sens (Os cinco sentidos), Grasset, Paris, 1985.
SCHAMA, S. Paisagem e Memória. São Paulo: Editora Schwarcz/Companhia das Letras, 2009
(Tradução: Hildegard Feist).
O equilíbrio
A descoberta do fogo e da fusão dos metais, que consumiu florestas e os animais que
as habitavam, levou à primeira destruição do equilíbrio entre o ser humano e o patrimó-
nio natural do seu biótopo. Depois, as revoluções agrícola e, sobretudo, industrial, que
progressivamente integraram poluentes, levaram à desertificação de alguns biótopos. As
experiências nucleares, a aviação e a disrupção da atmosfera, tal como o uso de químicos
letais nas guerras dos séculos XX e XXI. O aumento da população e a necessidade de espa-
ço saudável para produzir alimentos suficientes, destruiu os biótopos de muitos seres vivos
que actualmente se encontram em perigo ou em vias de extinção.
Por outro lado, as migrações globais dos povos, milenares, contribuíram para o au-
mento da biodiversidade e para o conhecimento e a difusão de muitas espécies animais e
vegetais desconhecidas em outras latitudes, regiões e continentes. E, os mais raros e os mais
úteis, ao chegarem, foram sendo plantados em espaços onde eram protegidos, aclimatados,
e estudados os seus hábitos e o seu uso.
Desde a Antiguidade Clássica, os jardins eram (e ainda são!), pelo exotismo das suas
plantas, sinais exteriores de riqueza. A sua aquisição era dispendiosa, mas além do valor
ornamental, também eram a grande fonte dos remédios, e, portanto, o interesse medicinal,
já teorizado por Hipócrates (cinco séculos antes da Era Comum), levou ao seu cultivo em
Para além dos jardins botânicos, os jardins urbanos, públicos ou de acesso ao público,
e até os privados, são espaços de conhecimento, lazer e conservação de muitas espécies
nativas e introduzidas.
As cidades e demais aglomerados urbanos não têm só espécies cultivadas. Têm vegetação
nativa e até infestante introduzida, que nasce onde encontra condições para isso. De todos
os níveis taxonómicos, das algas simples às angiospérmicas de flores mais complexas. São o
quebra-cabeça das autarquias, mas a sua existência e diversidade indicam que o meio urbano
não é, naturalmente, estéril, e suporta ecossistemas específicos de elevada resiliência.
pátio. Um exemplo é a parte mais nova do Restelo. Não há limoeiros (o mais frequente nos
jardins de Lisboa) nem laranjeiras (Alvalade). Porém, num bairro como Alvalade, no sector
oriental do bairro, do fim de 1950 e década de 1950-60, cujos donos eram funcionários do
ministério da Agricultura, em Angola, o jardim está na frente da casa, que mal se vê da rua,
escondida por enormes e frondosas abacateiras, bananeiras e até goiabeiras e mangueiras
(estas não frutificam). No jardim de trás, o quintal, há, sim, limoeiro, a laranjeira, nespe-
reira e uma horta. O similar, na relação do dono com a terra de origem, e sem comparação
com o nível económico deste bairro, era um pequeno bairro social que já não existe, no
Rego, por trás dos edifícios do Tridente, onde as casinhas de madeira e todos os materiais,
feitas pelos próprios, tinham, na frente um jardim-quintal, de um a dois metros de largura,
importância dada presentemente à imagem cria a convicção que, em certa medida, ela está
a substituir o verdadeiro prazer de andar no campo.
Observar, assim como fotografar, implica andar, fazer longos trajetos, percorrer difíceis
acessos, pois o fotógrafo, como o geógrafo, tem de trilhar caminhos para mostrar espaços
não conhecidos por outrem. Só assim se pode revelar as marcas de vida nas paisagens, nas
faces, nos lugares diversos, enfim, no mundo por onde andou o (foto) geógrafo. A foto-
grafia registra e apresenta as diferentes faces da Terra e do mundo num dado momento,
permite aceder ao desconhecido e a imagens impactantes, dum mundo diverso e profun-
damente desigual.
que cotidiano promoveu nesses rostos essas marcas? A fotografia nos instiga a refletir sobre
a dinâmica da natureza, sobre a sua humanização e sobre a naturalização do humano, além
de convidar a pensar sobre as marcas sociais que se inscreveram nos rostos e nas paisagens,
algo que, embora o possamos conceber como natural, não deixa de ser o resultado das
contradições de ordem (ou desordem) social em que vivemos.
As fotografias revelam tanto o olhar de quem as construiu como os processos e co-
tidianos comuns, do norte ao sul, do ocidente ao oriente, com matizes diferentes, mas
que se fundam, certamente, numa luta cotidiana na e com a natureza para dela extrair o
sustento – subsistir –, seja colhendo cana, cuidando os animais ou cultivando. O universo
infindo de possibilidades analíticas aberto pela observação dessas fotografias é o mesmo
Para Érico Veríssimo existem duas categorias principais de viajantes: os que viajam
para fugir e os que viajam para buscar. Entre os que buscam estão eles – os fotógrafos e os
geógrafos fotógrafos.
Referências
A terra das águas. As várzeas do Solimões ainda estão no ventre da mãe d’água que
engole casas, bichos, plantas, campos de bola e de gado. As escolas estão fechadas, as fes-
tas rarearam, pois as sedes como a terra estão em pousio. Não há barcos nos portos, pois
portos não há. A água que no início de agosto ainda está grande, faz mudar as gentes que
encaixotam os santos que os protegem e se vão para as periferias das cidades. Antes apenas
os encantos que pululavam nas mentes ficavam debaixo d’água, agora é tudo.
Passando no rio, à primeira visão, tudo é igual e vazio, é um mundão de água, a mata
ao fundo e um céu limpo e azul que, no horizonte, abraça as águas num contraste de cores.
Aqui e acolá o barco para, e a primeira visão se esvai, pois ainda há homens que ficam em
suas casas penduradas em nada. Num canteiro flutuante extenso - alguns medem mais de
50 metros de comprimento - plantam hortaliças de onde tiram o sustento nestes tempos
de vacas na maromba, e preparam as mudas, guardam a maniva para quando a água baixar
e a terra sair fértil recomeçar a vida. 135 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
O velho e o lugar. O velho volta ao lugar. Aquela casinha de madeira coberta de zinco
ainda está lá, o pé de coqueiro na frente também e, de tão velho, vergou, mas não caiu.
É um lugar perdido na curva do rio cuja correnteza já não fertiliza a terra como antes de
tão constante que são as enchentes. As chuvas, antes regavam as plantas, agora degradam
o solo desprotegido por causa do desmatamento. As abelhas e os besouros não polinizam
as flores, trabalho feito pelas mãos delicadas das mulheres em longas jornadas diárias, pas-
sando os dedos nas flores de maracujá. As lagartas já não se transformam em borboletas
de todas as cores a enfeitar os jardins, foram mortas por inseticidas que fazem adoecer os
homens. As sementes não são guardadas para o próximo plantio, são compradas em casas
136 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
da agricultura na cidade e são cada vez mais caras. As histórias contadas pareciam tão reais,
hoje ainda são contadas, da “boca pra fora”, sem nenhum realismo, não assustam e não
encantam os meninos que se entretêm com seus brinquedos eletrônicos. Rios e lagos já não
comportam as cidades encantadas.
Do lugar, quase nada restou, especialmente na alimentação, nas formas de trabalho e
nas festas, desde que o futuro foi embora. O quebra-jejum é café com leite em pó e pão
com margarina, bem diferente da primeira refeição de antes, com café retirado de uns pou-
cos pés cultivados ali mesmo ao redor da casa, temperado com mel de cana, acompanhado
de leite de vaca, fruto da ordenha de umas vaquinhas de curral que não eram muitas, mas
o suficiente para fornecer o leite aos pequenos. O café era acompanhado com biju, cara,
O barco. Durante o dia o horizonte é água barrenta, à noite as luzes são iguais. Num
como noutro as horas passam lentamente sem pressa de chegar. Escuta-se o tempo que não
137 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
corre e o vento que zumbe na sanefa. Há um emaranhado de redes em todos os lados. São
homens e mulheres, velhos e moços, gente do beiradão, de rostos queimados e um olhar
de intensa profundidade. Gente de longe, aventureiro que vai conhecer ou se defender
ganhando algum trocado.
De modo geral há precariedade no transporte fluvial do Amazonas quanto à seguran-
ça, rapidez, higiene e preço das passagens. Todavia é importante reconhecer que do meu
tempo de menino para o nosso agora as mudanças foram grandes para o bem e para o mal.
Agora os donos dos barcos se organizam como empresas e fazem pesados investi-
mentos. Os barcos são de ferro, feitos a partir de projetos assinados por engenheiros na-
vais e, embora incipiente, já existe preocupação com o ambiente, tratamento de esgoto,
Sobre cidades e espelhos: à guisa de introdução. Valdrada, uma das “cidades in-
visíveis” de Calvino (1990), fora construída pelos antigos à beira de um lago. Essa sua
condição impressionava os visitantes que, ao chegarem a ela, deparavam-se, na verdade,
não com uma, mas com duas cidades: a primeira, emersa, às margens do lago; a segunda,
submersa, a imagem da primeira refletida de forma invertida nas águas. Para as pessoas que
ali viviam, a Valdrada espelhada nas águas, mesmo que de cabeça para baixo, era, como
em uma fotografia, a imagem da cidade que se queria repassar para os que nela não habi-
tavam; daí a intenção de sempre fazê-la espetacular. Esta consciência, todavia, impedia
que seus moradores, mesmo que por um só instante, deixassem-se abandonar ao acaso e
passassem a viver mais espontaneamente, tal a preocupação que tinham com as imagens a
serem projetadas.
No mundo de hoje um anseio semelhante se faz perceber em cidades que buscam,
por meio de políticas urbanas, tornarem-se competitivas. Neste caso, o espetáculo pro- 141 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
porcionado é marcado por contrastes e cisões, um atributo recorrente da vida cotidiana
dita moderna, na qual “o mais comum é que a consciência do espectador passe do real ao
imaginário, evadindo-se nas imagens do fascínio de uma outra vida que lhe é inacessível”
(NUNES, 2009, p. 45). É dessa forma que cidades contemporâneas parecem replicar,
pelos quatro cantos do mundo, a Valdrada de Calvino (1990).
E assim o fazem incorporando muitas vezes paisagens naturais - concebidas por plane-
jadores, Estado e empreendedores urbanos - como sendo verdadeiros patrimônios e partes
de suas histórias.
Em razão disso, desenham-se novas imagens para elas, incorporando-se os “espe-
lhos d’água” naturais existentes em suas margens. Prevalece, com isso, o princípio da
se estendem a diferentes pontos do planeta, seja por meio de uma urbanização mais difusa
e pontual, seja através de grandes aglomerações, que incluem espaços reconhecidamente
dinâmicos do ponto de vista econômico, mas que também alcançam realidades mais longe
desses epicentros da economia mundial, a exemplo da floresta amazônica (SOJA, 2013).
Considerando a importância do componente natural que muitas vezes constitui essas
novas paisagens urbanas, cabe perguntar: de que natureza se está a falar? Evidentemente
que os “espelhos d’água” não nos remetem a uma natureza intocada do passado, mesmo
que assim o pretendam; nem, tampouco, à natureza de múltiplas e intensas relações com
a vida local e regional que ainda acontece em vários cantos do planeta, como se vê no
interior da Amazônia. Isso porque o sentido que a natureza assume ao longo da existência
Referências:
BOURDIN, Alain. Usages du droit et production de la confiance dans les grands projets urbains
français. In : BOURDIN, Alain; LEFEUVRE, Marie-Pierre ; MELÉ, Patrice (Dir.). Les régles
du jeu urbain: entre droit et confiance, 2006. p. 93-125.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. São Paulo:
Boitempo, 2017.
CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
HARVEY, David. Rebel cities: from the right to the city to the urban revolution. London: Verso,
2012.
LA BLACHE, Paul Vidal de. Princípios de geografia humana. Lisboa: Cosmos, 1946.
LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. 4e. ed. Paris: Anthropos, 2000.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Moraes, 1991.
LEFEBVRE, Henri. From the city to urban society. In: BRENNER, Neil (Edi). Implosions/explo-
sions: toward a study of planetary urbanization. Berlin: Jovis, 2014. p. 36-51.
LEFEBVRE, Henri. Dissolving city, planetary metamorphosis. In: BRENNER, Neil (Edi).
146 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
Roberto Verdum
Professor Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS; Porto
Alegre)
o Pampa, revelando que compor clima, relevo e solos em diversas escalas gera adaptações
e socializações entre plantas e animais que fogem a qualquer monotonia ao olhar obser-
vador, interessado em reconhecer esta diversidade. Ou seja, reconhecer o diverso numa
monotonia velada.
O registro arqueológico2, mais antigo no estado do Rio Grande do Sul, mostra que
os primeiros povoadores viveram na transição entre os períodos do Pleistoceno e do
1
Pastizales Pampeanos, Pastizales del Río de la Plata, Província Bonariense, Pradera Papeana, Ecorregión de
las Pampas.
2
A arqueologia classifica essas populações de acordo com a cultura material. A cultura material desses povos
foi classificada de acordo com os objetos líticos encontrados nos sítios arqueológicos e não aos povos que as
fabricavam.
Bibliografia:
SILVEIRA, E. da; OLIVEIRA, L. D. de. (orgs.) Etnoconhecimento e saúde dos povos indígenas do Rio
Grande do Sul. Canoas: Editora da Ulbra, 2005.
SUERTEGARAY, D. M. A. Monocultura de eucalipto em áreas em processo de arenização: reestrutura-
ção econômica do Pampa. In.: MEDEIROS, Rosa M. V.; FALCADE, Ivanira (orgs.). Expressões
da re-territorialização do campo brasileiro. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2013.
CRAWSHAW, D. et al. Caracterização dos campos sul-rio-grandenses: uma perspectiva da ecologia
da paisagem. Boletim Gaúcho de Geografia. BGG no 33. Porto Alegre. Páginas 233 – 252,
dezembro 2007.
TORRES, L. H. A colonização açoriana no Rio Grande do Sul (1752-63). Disponível em https://
www.seer.furg.br/biblos/article/download/421/105. Acesso em 14 de junho de 2017.
Introdução
Até o momento são reconhecidas 3347 espécies vegetais, sendo 962 gêneros e 153
famílias, das quais 526 espécies e 29 gêneros são consideradas endêmicas (FERNANDES
et al., 2020), números que fazem da Caatinga a floresta tropical sazonalmente seca mais
extensa e ecologicamente mais diversa do mundo (LESSA et al., 2019).
A flora da Caatinga apresenta biodiversidade diretamente relacionada aos elementos
chuva e solos. O primeiro, no que diz respeito a quantidade e distribuição espacial, o que
nos remete diretamente a dinâmica regional das massas de ar nessa parte do Brasil, assim
como as influências locais ligadas ao relevo. O segundo, quanto a capacidade de acumular
recursos hídricos, além de sua fertilidade. Nesse último caso, a estrutura geológica apre-
senta papel fundamental, fazendo com que se apresentem conjuntos de paisagens distribu-
ídos, de forma generalizada, entre terrenos cristalinos, sedimentares e inselbergs, criando
padrões de diversidade de espécies e paisagens heterogêneas (MORO et al., 2016a).
Como regra, solos derivados de rochas cristalinas são mais ricos em nutrientes, embora
também sejam rasos e pedregosos, o que limita a retenção de água, enquanto solos deriva-
dos de rochas sedimentares são pobres em nutrientes, apresentando maior profundidade,
portanto, capacidade mais elevada de retenção de água que os primeiros. Nos inselbergs,
os solos estão diretamente relacionados a topografia (MORO et al., 2014; MORO et
al., 2016b), havendo grande diversidade de microhabitats onde, em alguns casos, ocorre
maior concentração de sedimentos e água o suficiente para se estabelecer uma vegetação
156 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
Todo esse rico e ainda pouco conhecido patrimônio vem passando historicamente por
diversas ameaças. Mais recentemente, Antongiovanni et. al. (2018) identificaram que 90%
dos remanescentes vegetais da Caatinga apresentam tamanho inferior a 500 ha., submeti-
dos a elevada pressão antrópica, onde se destacam o extrativismo vegetal e a expansão da
agropecuária.
Em 1818, ao atravessar parte do sertão da Bahia, Martius comentou que a Caatinga,
denominada por ele de Hamadryades e de silva aestu aphylla, em função da aparência de
morte da maioria das espécies vegetais, devido a ausência de folhas na estação seca, estava
contida em uma região pobre de água e com florestas ralas, descrevendo uma natureza
de grande hostilidade, a ponto de também denominá-la de silva horrida (LAHMEYER,
2017). Essa foi a primeira descrição de impacto dessa região a ser levada mundo afora, o
que causou grande curiosidade no mundo acadêmico e popular, sendo também decisivo
na criação de uma impressão até certo ponto estereotipada, ainda hoje dominante.
Entretanto, baseado no que já comentamos sobre o conhecimento atual desse bioma,
é provável que as paisagens observadas por Martius e do seu parceiro Spix tivessem sido
submetidas anos antes a elevadas taxas de desmatamento, devido ao uso histórico da
madeira para a produção de cercas das propriedades, carvão, lenha, uso na construção
civil e principalmente para expandir as lavoras de algodão, do qual o semiárido brasileiro
foi grande produtor desde o século XVIII até a metade do XX (JOFFILY, 1902; 1910;
157 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
LUETZELBURG, 1922).
Esse conjunto de ações acabou fazendo com que, basicamente nas áreas de relevo com
topografia mais íngreme e solos com elevada pedregosidade e rochosidade, ao dificultarem
o uso mais intenso dos recursos naturais, venham a se constituir a muito tempo como
os poucos lugares em que ainda sobrevivem os maiores remanescentes de uma Caatinga
mais original, compondo verdadeiramente uma mata de aparência esbranquiçada (dado o
xerofilismo dominante e os caules de cor clara de várias plantas), conforme o significado
desse nome indígena.
Contribuindo decisivamente para esse quadro, temos mais recentemente a questão
fundiária. De acordo com o último Censo Agropecuário, 75,1% do total de propriedades
Bibliografia
Lúcio Cunha
Professor Catedrático no Departamento de Geografia e Turismo da Faculdade
de Letras de Coimbra da Universidade de Coimbra; Centro de Estudos de
Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT)
Dos muitos conceitos geográficos, o conceito de lugar é dos mais utilizados, dos mais
bem percebidos por cientistas e leigos, mas também dos que, porque polissémicos, são
mais difíceis de definir rigorosamente.
No entanto, é fácil chegar ao conceito de lugar, através das fotografias deste catálogo.
Aqui se encontram as articulações entre a sociedade e natureza, necessárias ao conceito,
aqui se encontra a escala local de observação que convém à percepção do lugar, aqui se
encontra, finalmente, o sentimento, o sentido que permite a verdadeira apreensão do es-
pírito do lugar.
Os lugares são, na sua essência, uma construção humana, são espaços com significado,
são espaços com alma. Construção física ou mental, o lugar pode ser uma cidade ou uma
aldeia, pode ser grande ou pequeno, pode ser artificial ou natural. Tudo depende do modo
como a sociedade o percebe e sente, como com ele se identifica, como o dá a conhecer ao 161 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
outro, tudo depende, ao fim e ao cabo, do modo como é construído o espírito do lugar, de
cada lugar, sempre diferente, sempre específico, sempre particular.
A Natureza e os seus elementos desempenham um importante papel na construção
dos lugares, pelo que representam como quadro de suporte para a sua construção física,
mas também, muitas vezes, por si próprios. Há paisagens naturais, serras e vales, rios e
matas, penedos e árvores que, de per se, pelo significado que assumem em cada momento
da história de uma sociedade, são também lugares. Embora não tenha sentido, invocar
a este propósito a “Natureza natural” de Ivette VEYRET1, os modos de organização da
1
VEYRET, Ivette (2000) - Géo environnement (2a ed.). Armand Colin, Paris, 186 p.
cia quotidiana de cidadãos. Nalguns casos podem, mesmo, assumir relevância ao nível
religioso, como acontece com a Senhora da Estrela, o Castelo de Monsanto ou muitos pe-
quenos santuários, ermidas e capelas, situadas quase sempre em locais altos, panorâmicos,
rochosos, imponentes, que emprestam o misticismo natural necessário a uma melhor e
mais completa reflexão interior por parte de quem os procura. Emprestam, pelo menos, o
mistério do que não controlamos em plenitude ou do que não conhecemos bem e nos faz
sempre, perante a incerteza, querer ver mais, saber melhor, perceber tudo.
2
CLAVAL, Paul (2001) - Épistémologie de la géographie. Coll. Fac, Nathan, Paris, 266 p.
3
FIGUEIREDO, Rui e CUNHA, Lúcio (2004) - Rotas de transumância serrana para a Beira Baixa.
Itinerários e património associado. Iberografias, CEI, Guarda, 8, pp. 305-327.
4
ALVES, Manuel Costa (2002) - Mudam os ventos, mudam os tempos. O adagiário popular meteorológico.
Gradiva, Lisboa, 149 p.
5
ABRANTES, Leonel (1997) - Novas portas de acesso à Serra da Estrela. Folgosinho, 277 p. A Pedra Furada
é um grande bloco granítico que a erosão desenhou com a forma de um enorme cão da Serra, descansando
sobre as patas traseiras.
Muda, assim, a percepção do lugar na Raia. Um pouco por todo o lado surgem, sob a
forma de percursos, de mapas, de livros, de guias, novas leituras do território e dos lugares,
porque destinadas a novos usufrutuários.
No que diz respeito à Natureza, o estado de abandono da agricultura e a diminuição
clara da pressão sobre a Terra promovem a recuperação do coberto vegetal autóctone, mas
6
SANTOS, Norberto e CUNHA, Lúcio (2008) - Novas oportunidades para o espaço rural. Análise exploratória
no Centro de Portugal. Actas do VI Congresso da Geografia Portuguesa, Associação Portuguesa de Geógrafos,
Lisboa (no prelo).
7
CRAVIDÃO, Fernanda (2006) - Turismo e cultura: dos itinerários ao lugar dos lugares. Desenvolvimento e
Território: espaços rurais pós-agrícolas e novos lugares de turismo e lazer. Livro de Homenagem à Professora
Doutora Carminda Cavaco. CEG, Lisboa, pp. 269-278.
8
CARVALHO, A. M. Galopim (1999) - Geomonumentos. Lisboa, 30.
9
GRAY, Murray (2004) - Geodiversity. Valuing and conserving abiotic nature. Wiley, John Wiley and Sons,
Londres, 434
10
BARBOSA, Angelina e CORREIA, António (1998) - À descoberta da Estrela. Grandes rotas pedestres. Parque
Natural da Serra da Estrela, Manteigas, 120 p. Ver p. 88.
11
FERRREIRA, Narciso e VIEIRA, Gonçalo (2000) - Guia geológico e geomorfológico do Parque Natural da
Serra da Estrela. Locais de interesse geológico e geomorfológico. Parque Natural da Serra da Estrela, Lisboa, 112
p. Ver p. 89.
Lúcio Cunha
Professor Catedrático no Departamento de Geografia e Turismo da Faculdade
de Letras de Coimbra da Universidade de Coimbra; Centro de Estudos de
Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT)
Natureza e Sociedade são indissociáveis! No plano científico, apenas por conforto te-
órico ou por necessidade analítica as separamos uma da outra, para logo as juntarmos
quando queremos entender uma ou outra, quando queremos lê-las ou, mesmo, quando
temos necessidade de, com qualquer uma delas, nos envolvermos emocionalmente. “Não
há Homem que não seja natural, nem Natureza que não seja humana”, escreveu o filósofo
João André, em 1996. E, de facto, se a força do Ser Humano e a estrutura das suas orga-
nizações radicam e se regem, muitas vezes, por leis físico-químicas, biológicas e naturais, a
Natureza tal como a sentimos, vivemos e utilizamos hoje, mais não é do que uma criação
da inteligência humana, um modo de o Ser Humano olhar para fora de si mesmo, de sen-
tir e perceber um entorno, um meio, um ambiente de que depende, com que se relaciona
e do qual, mesmo querendo estar fora, ao fim e ao cabo, faz parte integrante.
Talvez por isso, num Mundo cada vez mais terciarizado e urbanizado, a Natureza 167 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
assume uma valorização crescente não só nos planos emocional e afectivo, mas também
nos planos económico, social e cultural. O urbanita procura trazer para a cidade e manter
sempre junto a si elementos fundamentais da Natureza, quer se trate de bosques relíquia
de um tempo pré-urbano, de parques, jardins ou simples alinhamentos de árvores cuida-
dosamente planeados e tratados, ou das simbólicas hortas urbanas com que se procura
recriar o ambiente rural no entorno próximo, ao mesmo tempo que, naquilo que pode re-
presentar um esforço de reconciliação com o passado rural e com a vivência mais próxima
da Natureza, nos tempos livres, nos fins de semana ou nas férias procura espaços rurais,
territórios abertos e silvestres onde a presença da Natureza é mais forte e mais esmagadora
ou mais tranquila e acolhedora.
mais convencionais, renováveis e não renováveis, da pedra para a construção à água que
bebemos todos os dias e à madeira com que fazemos os nossos utensílios, do ar que respi-
ramos e que necessitamos limpo e puro à energia que consumimos desabridamente, temos
de acrescentar, hoje, novos recursos em relação com a procura incessante da Natureza para
actividades de lazer, de desporto e de turismo. É o caso do património natural, nas suas
vertentes geológica, geomorfológica, hidrológica e biótica, dos monumentos naturais, das
paisagens de sabor natural que, ao justificarem a presença de parques naturais, geoparques
ou áreas de paisagem protegida, dão corpo a esta necessidade social de convívio, utilização
e protecção dos espaços naturais. Por outro lado, a Natureza também tira ou, pelo menos
pode afectar e condicionar fortemente as actividades humanas. A dinâmica natural, por
Não seria exagerado afirmar que a concepção de mundo natural ainda se pauta numa
dualidade herdada das concepções físicas do universo, que remontam à renascença, quan-
do das descobertas científicas de Galileu Galilei e Nicolau Copérnico e, das matrizes sub-
jetivas contemplativas que nos foram legadas pelo idealismo romântico, personificado por
Alexander von Humboldt.
A dualidade Racionalismo - Romantismo, quando tratamos de nossa relação com a
natureza nos confronta a todo instante. A concepção física do universo e o sentimento do
mundo nos confundem, nos unem e nos separam - pois há uma enorme gama de tons e
matizes que possibilitam representam esta dimensão do conhecimento e dos sentimentos.
Se a racionalidade científica nos obriga a decompor os elementos e as dinâmicas da na-
tureza, o idealismo romântico nos concede o privilégio de experimentar uma subjetividade
artística e estética que nos possibilita senti-la e contemplá-la. 171 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
“Aquilo que hoje morre não é a noção de homem, mas sim uma noção insular do
homem, retirado da natureza e da sua própria natureza; aquilo que deve morrer é a
auto-idolatria do homem, admirando-se na imagem pomposa de sua própria racionali-
dade” (Morin, 1973: 199).
A Natureza, em toda sua amplidão e beleza, tem um tempo que lhe é próprio, propi-
ciado pelas dinâmicas e processos intrínsecos aos fenômenos que marcam sua lenta evolu-
ção. Os animais selvagens, as montanhas, as espécies vegetais, o solo, o orvalho, a chuva,
175 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
o sol, enfim, são alguns dos componentes de inúmeras paisagens que, não obstante a pre-
sença do homem e de sua capacidade de intervenção e modificação expressam uma lógica
e um tempo que escapam a compreensão humana.
Na escala temporal da Natureza, aquele que envolve o tempo longo, nas palavras de
Braudel (1979), o homem, a Sociedade - entendida como uma relação de caráter mais
econômico e contratual - somente há muito pouco passou a alterar essa lógica, inicial-
mente adaptando-se a ela, para depois de conhecê-la, modificá-la, rompendo o equilíbrio
até então existente. Uma lógica e um equilíbrio em que a Natureza e sua beleza selvagem,
com toda sua diversidade, complexidade e delicadeza, passou a ser controlada, dominada
e apropriada para atender os interesses da sociedade, convertendo-se em recursos naturais.
palmente nos grandes centros urbanos, esse tempo lento esta presente no cotidiano daqueles
que permaneceram e, ao mesmo tempo, envelheceram. Ele se expressa tanto por meio de
marcas em suas paisagens - como nas casas e sua forma de organização e disposição, nos ca-
minhos tortuosos, no carroção de madeira, na capela, no fogão e forno à lenha, no armazém
e seus poucos itens - quanto nas relações sociais - marcadas pela proximidade entre os mo-
radores que cultivam o hábito de conversar amistosamente, de valorizar a música que alegra
a vida, de se vestir com simplicidade, de rezar para agradecer por si e pelos outros. Nesses
lugares, os conflitos e as diferenças estavam e ainda estão presentes, porém não foram e não
são a base, a essência, da vida. A palavra dada ainda tem grande valor e os compromissos são
assumidos de maneira informal, tendo o aperto de mãos grande significado.
Referências:
BRAUDEL, Fernand. Le temps du monde. Tomo 3 de Civilisation matérielle, économie et capitalisme: 177 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
Jorge Paiva
Professor da Universidade de Coimbra; Centro de Ecologia Funcional
A Biodiversidade. Todos sabemos que precisamos de comer para viver e crescer e que
a comida é constituída por material biológico (vegetal, animal ou de outros organismos).
Também toda a gente sabe que qualquer motor para trabalhar precisa de um combus-
tível que, através de reacções químicas exotérmicas (combustão) liberta calor (energia) su-
ficiente para que o motor funcione. Os carburantes (gasolina, gasóleo, álcool, gás, etc.) são
compostos orgânicos com Carbono (C), Hidrogénio (H2) e Oxigénio (O2). Os produtos
resultantes da combustão são expelidos pelos tubos de escape, sendo até, a maioria deles,
poluentes, como, por exemplo o gás carbónico (CO2) e o monóxido de carbono (CO).
O nosso corpo tem vários “motores”. O coração é um desses “motores” que está sem-
pre a “bater” (trabalhar) e que não pode parar. Quando pára, morre-se. Se o coração é
um motor, tem de haver um combustível para que este motor funcione. Esse combustível
179 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
é a comida, que não é de plástico, nem são pedras, mas sim produtos vegetais, animais
e outros seres vivos, como, por exemplo, fungos (cogumelos e leveduras). Essa comida
que ingerimos é transformada no nosso organismo em energia (calor), através de reacções
exotérmicas (digestão) semelhantes à referida combustão, que vai fazer com que os vários
motores do nosso corpo, entre os quais o coração e os pulmões, trabalhem e nos mante-
nham vivos.
Na comida estão as substâncias combustíveis com Carbono (C), Hidrogénio (H2) e
Oxigénio (O2), como são os hidratos de carbono (açucares, farinhas, etc.), lípidos (gordu-
ras, como o azeite, a manteiga, etc.) e proteínas (na carne, no peixe, nas leguminosas, como
o feijão, a fava, a ervilha, etc.). As proteínas (C,H,O,N) são necessárias aos seres vivos, pois
A Água. É, também, do conhecimento geral, que sem água não há vida e que o corpo
dos seres vivos é maioritariamente constituído por água. Por exemplo, numa pessoa com
70 kg de peso, 42 kg são de água, 12 kg de gorduras, 12 kg de proteínas, 2 kg de açúcares
e 2 kg de outras substâncias. Isto é, a maior parte do meu corpo (cerca de 60%) é água.
É fácil demonstrar que sem água não há vida. Se deitarmos sementes em dois vasos
com terra, mas só regarmos um deles, apenas nascerão plantas no que foi regado. Assim,
Conclusão. Qualquer pessoa sabe que precisa de comer para viver e crescer e que a
comida é constituída por material biológico; que a água potável é imprescindível à vida
humana; que as florestas tropicais são extremamente relevantes; que não se pode viver no
seio do lixo; que a actividade industrial tem de ter regras de conduta para não poluir; que
a atmosfera terrestre está repleta de gases tóxicos e que a concentração de gás carbónico
(CO2) tem vindo a aumentar desmesuradamente, com o consequente efeito de estufa; etc.
Praticamente toda a gente tem alguma consciência do que está a acontecer no Globo
Terrestre, com o consequente risco de sobrevivência da nossa espécie, mas, a maioria das
pessoas, não só não tem a educação ambiental necessária para entender o que se está a
passar, como também para perceber que tem de mudar a sua maneira de estar na Terra.
Não podemos continuar a poluir o Globo Terrestre como temos vindo a fazer, pois
podemos atingir um estado de poluição tal que não será possível a vivência humana nesta
gigantesca gaiola que é Terra.
Enfim, há uma enorme falta de civismo, fundamentalmente por culpa dos políticos
mundiais, que se preocupam essencialmente com o desenvolvimento económico.
É fundamental parar ou regulamentar para que este desastre não continue. Isso é pos-
182 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
sível. Apenas são necessários políticos conscientes, assim como vontade política.
Ana Monteiro
Professora Catedrática do Departamento de Geografia da Universidade do Porto
saparecimento dos ursos polares, o degelo dos glaciares, o aumento do buraco na camada
do ozono, a maior frequência de extremos de temperatura, a desorganização das estações
do ano, etc., os seres humanos sentem-se preocupados, mas, não percebendo a mecâni-
ca do sistema climático, consideram-se totalmente impotentes para evitar estes desfechos
indesejáveis.
Uma boa parte do tumulto em torno dos comportamentos do sistema climático resulta
da escala espacial de abordagem preferida – a escala global.
Apesar das múltiplas definições sobre risco e consequentemente sobre risco climático,
talvez seja preferível simplificarmos. O risco climático que nos importa é aquele que provo-
ca perdas e danos. Então, basta-nos a equação simples R=ExV em que R significa o risco,
E traduz o evento climático e V a vulnerabilidade.
Se adotarmos esta definição e recordarmos a maioria dos riscos climáticos com que
temos sido confrontados nos últimos anos, somos levados a perguntar se o foco não tem
sido dirigido demasiadamente para o comportamento dos elementos climáticos e muito
menos do que devia para a vulnerabilidade.
Sabendo que o sistema climático é intrinsecamente variável, fará sentido esperar um
comportamento da temperatura, da precipitação ou do vento próximo da normal cli-
matológica? Não. Esse valor na maioria dos casos nem coincide com algum dos registos.
Então como definimos uma variação plausível de uma excecional? Em suma, quando é
que podemos científica e legitimamente culpar o clima pelas perdas e danos resultantes de
temperaturas extremas, precipitações intensas, secas ou ventos fortes?
A investigação científica tem produzido evidência neste domínio temático que ajuda a
encontrar alguns limiares de variabilidade para cada lugar, mas verificamos que a maioria
das perdas e danos resultantes dos riscos climáticos decorrem muito mais do incremento
da vulnerabilidade do que da excecionalidade. Mais, parece muito mais eficaz agir sobre as
vulnerabilidades do que sobre o sistema climático.
Assim, neste domínio onde tem predominado no planeta o que Alexandre O’Neill
descrevia no País Relativo como um “.... país engravatado todo o ano e a assoar-se na gra-
vata por engano...” (O’Neill, 1965), parece que começa a ficar muito claro como é urgente
definir novos marcos geodésicos, acreditar na importância das combinações locais people &
place, das soluções à medida e das lógicas da economia circular que nos podem permitir
retirar alguns sinais de trânsito a que nos habituamos, mas que não têm passado de obstá-
186 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
1
Fritz, C.E. (1961). Disasters. In: Merton, R.K., Nisbet, R.A. (Eds.), Contemporary Social Problems.
Harcourt, New York, p. 651–694
2
Barkun, N. (1974). Disaster and the Millennium. Yale Univ. Press, New Haven.
3
Westgate, K.N.; O’Keefe, P. (1976). Some Definitions of Disaster. Disaster Research Unit Occasional Paper
No. 4, Department of Geography, University of Bradford.
4
Bower, A., Blok, J., Dali, M., Faivre, N., Fell, T., Ghislain, P., Happaerts, S., Kavvadas, I., Kockerols, P.,
Molnar, A.M., Quevauviller, P., Villette, F. (2017). Current status of disaster risk management and policy
framework. In: Poljanšek, K., Marín Ferrer, M., De Groeve, T., Clark, I. (Eds.). Science for disaster risk ma-
nagement 2017: knowing better and losing less. EUR 28034 EN, Publications Office of the European Union,
Luxembourg.
costeira), nomeadamente junto das grandes aglomerações urbanas e nas áreas litorais. Por
outro lado, atividades antrópicas desajustadas (e.g. abertura de taludes em vertentes poten-
cialmente instáveis, impermeabilização de pequenas bacias hidrográficas sujeitas a cheias
7
Alcántara-Ayala, I. (2002). Geomorphology, natural hazards, vulnerability and prevention of natural disasters
in developing countries. Geomorphology 47, p.107–124.
8
Henson, R. (2006). The Rough Guide to Climate Change. Penguin Books, London.
9
IPCC (2012). Managing the Risks of Extreme Events and Disasters to Advance Climate Change Adaptation.
A Special Report of Working Groups I and II of the Intergovernmental Panel on Climate Change [Field,
C.B., V. Barros, T.F. Stocker, D. Qin, D.J. Dokken, K.L. Ebi, M.D. Mastrandrea, K.J. Mach, G.-K.
Plattner, S.K. Allen, M. Tignor, and P.M. Midgley (eds.)]. Cambridge University Press, Cambridge, UK,
and New York, NY, USA, 582 pp.
10
IPCC (2018). Summary for Policymakers. In: Global warming of 1.5°C. An IPCC Special Report on the
impacts of global warming of 1.5°C above pre-industrial levels and related global greenhouse gas emission
pathways, in the context of strengthening the global response to the threat of climate change, sustainable
development, and efforts to eradicate poverty [V. Masson-Delmotte, P. Zhai, H. O. Pörtner, D. Roberts, J.
Skea, P.R. Shukla, A. Pirani, W. Moufouma-Okia, C. Péan, R. Pidcock, S. Connors, J. B. R. Matthews, Y.
Chen, X. Zhou, M. I. Gomis, E. Lonnoy, T. Maycock, M. Tignor, T. Waterfield (eds.)].
11
Dore, M.H.I. (2005). Climate change and changes in global precipitation patterns: What do we know?
Environment International, 31, p. 1167 – 1181.
12
Dosio, A., Fischer, E.M. (2017). Will half a degree make a difference? Robust projections of indices of
mean and extreme climate in Europe Under 1.5°C, 2°C, and 3°C global warming. Geophysical Research
Letters, 45.
Carminda Cavaco
Geógrafa; Universidade de Lisboa
Insista-se, por último, na precaução a ter na comparação dos espaços rurais. José Maria
Arguedas, antropólogo e escritor peruano, num estudo publicado inicialmente em 1968,
comparou a zona espanhola de Sayago – que faz fronteira com Portugal – com comuni-
dades dos Andes. Constatou que havia tantas semelhanças entre o comunero de Sayago e
o andino que lhe causava “um absurdo assombroso quando (os de Sayago), em vez desse
castelhano puríssimo, não se expressavam em quechua”. Acrescentava, no entanto, uma
diferença decisiva: “Já não existe entre eles (os de Sayago) o vínculo mágico que une o
comunero índio com a natureza”.
Álvaro Domingues
Professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto
Não se sabe o que seja a ruralidade de tanto que o tema se foi expandindo do real para
o imaginário, ou do discurso científico para a poesia e para todas as artes, mensagens pu-
blicitárias, novelas, calendários e prospectos turísticos. Da enxurrada de assuntos pode-se
pescar qualquer coisa, desde a denúncia política da miséria dos camponeses de África no
limiar da auto-subsistência, às místicas da permacultura ou à síntese perfeita da comunhão
dos homens com a natureza, sustentável, claro, seja lá o que isso for.
Na cultura europeia convivem raízes e representações distintas e contraditórias sobre
o mundo rural e os rurais, ora uma espécie rústica de infra-humano, grosseiro, andrajoso,
embriagado, ora uma entidade quase metafísica, sabedora das coisas do céu e da terra,
dono de segredos ancestrais e da alma da nação.
No classicismo das éclogas e das bucólicas, o campo, espécie de geografia metafísica,
povoa-se de pastores e pastoras, prados floridos – como encontraremos também nas can-
tigas de amigo – deuses gregos e romanos e outros adereços sentimentais para compor
203 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
poesia sobre prazeres inocentes saturados de lirismo, faunos e metáforas. De tão afastadas
dos rigores da vida dos camponeses, estas construções literárias dizem-nos apenas do nulo
interesse que esse mundo representava para a cultura erudita então acantonada numa élite
por entre clérigos e aristocratas. Que poderiam os rústicos adiantar nos brilhos dos salões
que não fosse boçalidade e cheiro a esterco? Pois se até confundiam deus com bruxedos e
esconjuros…
Rousseau (Émile ou De l’education, publicado em 1762) e outros filósofos e escrito-
res muito influentes na cultura europeia, mudam estas tonalidades de forma radical. J.
Gottfried Herder (1744-1803, o inventor do volkgeist), os irmãos Grimm (os contos dos
irmão Grimm são publicados pela primeira vez em 1812) e toda a geração do romantismo,
cias de estetização dos campos, desde as paisagens de Poussin ou Lorrain ainda no séc. XVII,
com os campos a servir de fundo para cenografias mitológicas, até ao misticismo de Millet
no célebre Angelus (1857), representando a oração do fim da tarde. Para além disso, a festa, o
trabalho, os trajos, as procissões foram ganhando popularidade e a vulgarização da fotografia
deu asas e popularidade ao pitoresco como regime de visibilidade dominante. Entretanto, o
desenvolvimento da etnografia mais ou menos científica deu uma outra seriedade à questão.
Fora do campo das ciências sociais e das humanidades, é na literatura e em autores como
Aquilino Ribeiro que encontramos peças magistrais sobre a condição camponesa.
1
António Oliveira Salazar (1936) «As grandes certezas da Revolução Nacional» - Discurso pronunciado em
Braga, no 10º aniversário do 28 de Maio, in «Discursos», Vol. II, págs. 128-129.
Asa Branca
Quando olhei a terra ardendo
qual fogueira de São João
Eu perguntei a Deus do céu,ai
por que tamanha judiação
Que braseiro, que fornalha,
nenhum pé de plantação
Por falta d’água perdi meu gado,
morreu de sede meu alazão
Inté mesmo a Asa Branca
bateu asas do sertão
Entonce eu disse: adeus Rosinha,
206 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
No início dos anos 2000, escrevíamos “geógrafos têm um olhar muito próprio sobre
o mundo que os cerca: apaixonam-se por povos, culturas, paisagens, lugares… Olham as
estruturas para desvendar o poder que as sociedades têm de criar e transformar territórios;
olham as marcas deixadas nas paisagens para enxergar os processos que ali ocorreram.
Interpretam os ambientes que os cercam… Geógrafos têm a inquietude de estar sempre
procurando descobrir o novo, ou o velho que pode se transformar e criar novamente algo
novo. De pesquisar, de se colocar questões muitas vezes não respondidas, de decodificar
processos sejam eles sociais, econômicos ou naturais. De buscar a compreensão das rela-
ções dos seres humanos entre si e com seus territórios, sejam elas produtivas, sociais, cul-
207 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
turais, religiosas. Sejam da natureza que for… De ver o eterno movimento de transformar,
da vida, da sociedade, das relações. A cidade lhes encanta, atrai e entristece; o campo apela
pela majestade dos grandes espaços ou a beleza da tradição, e ambos lhes enchem de ques-
tionamentos, o inexplicável continua suscitando indagações…” (Mello & Théry). Mais
de uma década depois, esta visão persiste, mas as realidades vêm sendo permanentemente
visualizadas com imagens digitais, obtidas pelos satélites ou pelos milhões de aparelhos
inteligentes que captam o instantâneo, para ser esquecido segundos depois. Imagens ana-
lógicas, zooms das máquinas fotográficas, álbuns de fotografias parecem obsoletos.
Em 2017, Rui Jacinto afirmava que “a fotografia peca por se centrar, cada vez mais,
na interação com os gadgets do que com as pessoas e as paisagens que retrata”, mas, apesar
Fernando Pessoa dizia que “tudo em nós está em nosso conceito de mundo; modificar o
nosso conceito do mundo é modificar o mundo para nós, isto é, é modificar o mundo, pois ele
nunca será para nós, senão o que é para nós...” Conceitos evoluíram e referenciais se altera-
ram ao longo da história da humanidade. Métodos e mecanismos para sua compreensão
refletem tais mudanças. Políticas e ações públicas devem ser refeitas ou adaptadas em
função destes novos rumos. O conceito de transição ecológica tem ganhado força na últi-
ma década e se consolida nos muitos meios sociais e técnicos. O mesmo, segundo alguns
cientistas, pode revelar uma mudança social, tecnológica, institucional e econômica.
Mas, comportamentos são difíceis de serem alterados e, especialmente, os setores agrí-
colas demoram muito mais. Pesquisadores e suas redes contribuem para os avanços dos
210 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
conhecimentos assim como das sociedades, com sua capacidade de resiliência. Estudos
fornecem importantes conclusões sobre a situação da Amazônia brasileira e sobre as con-
dições socio-ecológicas da região, às quais as especificidades naturais, biológicas e sociais
devem ser adaptadas. As noções de sustentabilidade, de transição, de circularidade da eco-
nomia, de segurança alimentar podem ser movimentos em direção a uma nova visão de
mundo. Então, podemos nos perguntar porque tanta dificuldade em implanta-los? No
mundo do virtual, as informações são em tempo real, permitindo seu confronto com a
realidade. Estas realidades são sensíveis na práxis da Geografia, na paisagem e no mundo
virtual. Os paradoxos opõem paisagens concretas com as virtuais e discursos com ações,
com comportamentos arcaicos ou inovadores.
Referências:
DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. Tradução Cid
Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
JACINTO, Rui. https://fr.scribd.com/document/367161398/Catalogo-Transversalidades-2017
[consultado 15 setembro 2018]
MONBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. Tradução Ary França e Raul de Andrade
e Silva. São Paulo: Hucitec/Polis, 1984.
PESSOA, Fernando. «Citações e Pensamentos de Fernando Pessoa». Paulo Neves da Silva (org.).
Alfragide, Portugal: Casa das Letras, 9ª edição.
RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo: Editora Ática, 1993.
João Guerreiro
Geógrafo; Professor na Universidade do Algarve
A especificidade que encontrávamos, no passado, nas dinâmicas das áreas rurais e ur-
banas foi sucessivamente abalada por episódios que facilmente se conseguem identificar.
Deixaram de ser ambientes sociais estanques; criaram entre si graus de dependência que
não mais deixaram de aumentar. Primeiro foi a absorção de ativos através de um verdadei-
ro abalroamento que o mundo urbano provocou junto dos espaços rurais, responsável por
um enorme fluxo migratório que dos campos se dirigiram para as cidades. A este anáte-
ma sucedeu-se a adoção de dinâmicas empresariais inexoráveis que impuseram também o
abandono das atividades destes espaços rurais, após verificarem que, para o êxito das suas
lógicas privadas, a concentração urbana seria um fator determinante.
E com esta evolução nas áreas rurais, foi-se perdendo capacidade de produzir riqueza
com expressão mercantil.
Os espaços rurais passaram a ser objeto de enormes controvérsias, através de refle- 213 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
xões diversas e de propostas, quase sempre de pendor voluntarista, mas, na sua maio-
ria, desajustadas às realidades. Estes espaços eram considerados no passado como fiéis
depositários das virtudes sociais; mas foram paulatinamente evoluindo para territórios
aparentemente inanimados, embora escondam padrões alternativos e interessantes de
desenvolvimento.
Na maior parte dos países, as áreas rurais correspondem a um mundo difícil de integrar
nas categorias que têm prevalecido para avaliar os processos de desenvolvimento. O produto,
medido em unidades monetárias, desce; o emprego definha; a presença de idosos e reforma-
dos amplifica-se nas comunidades locais; e a vulnerabilidade a riscos naturais aumenta. O
cántaros. Por eso los hombres se aseaban con el agua contenida en una palangana, y nada
se despilfarraba porque nada sobraba.
El esfuerzo era un esfuerzo físico, porque las máquinas eran escasas, y el duelo era
constante con esa naturaleza que sólo a medias parecía domeñada. Por eso las fórmulas de
aprovechamiento tradicional se caracterizaban por un complejo entramado de delicados
equilibrios que se reflejaban en unos sistemas de organización del espacio que hoy nos
parecen un rompecabezas y en unos modelos de articulación social sutiles y pautados.
En aquel tiempo casi todas las familias de T. se dedicaban principalmente a la labranza.
Ese era el caso de Agustín, que en el cerco del pueblo disponía de algunos pequeños peda-
zos de huerta donde recogía a lo largo del año berzas, coles, puerros, fréjoles, calabacines,
Luciano Lourenço
Professor Catedrático no Departamento de Geografia e Turismo da Faculdade
de Letras de Coimbra da Universidade de Coimbra; Centro de Estudos de
Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT)
fauna e da flora, de geomonumentos), sempre que tal se justifique, por exemplo com a
manutenção de galerias ripícolas junto a linhas de água, que também podem servir como
corredores ecológicos e de faixas naturais (aceiros verdes), para defesa da floresta. A floresta
de uso múltiplo permite que, além dos três tipos de floresta antes mencionados, se lhe
associem outras atividades, como sejam a silvo-pastorícia, a apicultura, a caça e a pesca
nas águas interiores, ou o recreio e o turismo, devidamente enquadrado e com valorização
da paisagem, ou, ainda, o sequestro do carbono. Com efeito, a floresta de uso múltiplo
parece-nos aquela que, em termos de futuro, se tornará mais viável, se for desenvolvida em
unidades com dimensão suficiente para serem autónomas e auto financiáveis, desde que
sejam geridas com uma dinâmica empresarial, capaz de gerar riqueza.
O capitalismo mergulhou, a partir de 2008, numa crise profunda. Os países não con-
seguem mais se reerguerem com as mesmas facilidades de outrora. Soma-se a crise estru-
tural, a situação grave da pandemia da Covid-19. No Brasil fala-se claramente em como
sair dela, como superá-la.
Assim, o país vai sendo tragado pelo avanço descomunal da dívida pública interna que
não apresenta, sequer pequenos números, que indiquem uma diminuição de seu tamanho.
Em 2019, o Brasil tinha a dívida pública interna era de R$ 4,248 trilhões. O que equivale
a dizer, que o país atingiu o percentual de 90,2% do total. Ou seja, a previsão para 2023,
será de 96,3%, e, por volta de 2025, o total será 100%. Os sinais do futuro são negros para
todos os brasileiros.
Soma-se a essa questão do endividamento interno, a questão dos dados do Censo
Agropecuário de 2017, que indicou para o país 5.073.324 estabelecimentos contra um 227 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
total de 5.175.636 que havia em 2006, período do último censo. Uma diminuição de
102.312 estabelecimentos, ou seja, de menos de 1,98%. Porém, esta diminuição no nú-
mero de estabelecimentos não significa que esteja diminuindo o número dos proprietários,
pois, estes aumentaram de 3.946.411, em 2006, para 4.108.639 proprietários, em 2017,
ou seja, um total de 162.228 estabelecimentos a mais que 2006, ou 4,11% de aumento.
1
A grilagem de terras é a falsificação de documentos para, ilegalmente, tomar posse de terras devolutas ou de
terceiros, bem como de prédios ou prédios indivisos. O termo também designa a venda de terras pertencen-
tes ao poder público ou de propriedade particular mediante falsificação de documentos de propriedade da
área. Os agentes de tal atividade são chamados grileiros.
Entretanto, não foi somente do governo do Partido dos Trabalhadores que partiu este
lema antirreformista, mas, foi também, do principal movimento popular de luta pela re-
forma agrária, que veio a segunda derrota. Sim, foi do agora Movimento dos Sem Terra,
que havia mudado sua orientação política no ano de 2007. E trocou seu histórico lema
de luta pela reforma agrária já, pelo lema da luta pela reforma socialista para o futuro. Foi
o que sucedeu deste período até hoje, despencou o número de ocupação/retomada e de
novos acampamentos, e, no inverso, aumentou o número de conflitos por terra no Brasil.
Foram os seguintes dados em 2008, o número de famílias envolvidas em conflitos por terra
foi de 42.531, sendo que aquelas envolvidas nas ocupações/retomadas foram de 25.559
famílias, e, aquelas relacionadas nos novos acampamentos foram apenas 2.755 famílias. E,
comparando-se com os dados de 2019, ocorreu o total de 144.537 famílias envolvidas em
230 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
conflitos por terra, e, somente 3.476 famílias entre aquelas das ocupações/retomadas, e,
apenas 1.064 entre aquelas dos novos acampamentos.
É o final de um tempo em que se lutava pela reforma agrária tendo como esteio o
Movimento dos Sem Terra, agora, segue-se a luta pela reforma agrária, mas, sem um movi-
mento que dê o norte ao processo geral. Mas, uma coisa é certa, a luta pela reforma agrária
continua cada dia mais forte.
Visando, melhor mostrar, esta mudança na orientação política que o MST conheceu
nos últimos treze anos, apresento, agora, os dados sobre conflitos em um gráfico de cur-
vas sobre cada um dos três dados básicos. Observando-se o gráfico 02, verifica-se que a
curva dos conflitos por terra tem uma trajetória completamente diferente das duas outras:
Gráfico 02
É curioso observar que de 1996 a 2000 foi um período de domínio do MST no campo
brasileiro, pois, ele atingiu no primeiro ano (1996) o total de 653 conflitos no campo com
255 conflitos por terra e 398 ocupações/retomadas. Essa hegemonia do MST no campo no
país, continuou em 1997 com 658 conflitos no campo, sendo que 195 conflitos por terra e
463 ocupações/retomadas; em 1998 os números foram 751 conflitos no campo e 152 con-
flitos por terra e 599 ocupações/retomadas; em 1999 foram 870 conflitos no campo, sendo
Gráfico 03
232 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
2. Os assassinatos no campo
As veredas são típicas dos topos dos relevos tabulares de topografias elevadas, 900
metros, mas, também podem ser registradas em vertentes, nas proximidades de escarpas e
ainda em superfícies planas, rebaixadas. Em geral, são desenhadas pela natureza nos locais
onde as camadas de rochas argilosas são sobrepostas por sedimentos arenosos. A publica-
ção de BOAVENTURA, R. (2007) mostra, com lindo levantamento fotográfico e texto, a
importância do Cerrado como “berço das águas”.
No Cerrado do Triângulo Mineiro predomina a vegetação intercalada em fundos de
vales por mata subdecídua e, especialmente nos topos planos, pelas exuberantes veredas.
Há trechos de vegetação arbórea identificada como “relito” de Mata Atlântica. Esses topos
de relevo tabular, recobertos por Cerrado e Veredas, onde se localizam berços de água e
rios, foram ideais para fixação de viajantes que conquistavam o interior do Brasil. Assim é
que os Bandeirantes, saídos de São Paulo, fizeram por essas áreas suas entradas e trajetórias.
Os topos tabulares deram origem ao que recebeu o nome de Chapadas. Nessa Chapada
localizada entre Uberlândia e Uberaba, o escritor Mário Palmério encontrou referências
para escrever seu livro A Chapada dos Bugres. Como o autor não localizou com precisão
a área por ele assim denominada, é possível se estender sua localização reconhecendo por
237 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
aqui também um trecho da Chapada dos Bugres, certamente onde viveram povos nativos,
expulsos e exterminados pela chegada do homem branco, conquistador e “produtor de
território”.
Outra componente da história de ocupação dessa Chapada é a sua identificação como
Chapada da Farinha Podre. Há quem suspeite que essa denominação foi dada pelo fato de
que em áreas desse topo os viajantes deixavam sacos de farinha que, com o passar do tempo
e expostas ao relento, apodreciam. Há também a suspeita de que com os Bandeirantes e
após eles, estiveram pela Chapada portugueses vindos da região central de Portugal, perto
de Coimbra, onde ainda se localiza a freguesia de São Pedro da Farinha Podre. Daí, ter sido
atribuída a essas áreas a denominação de Chapada da Farinha Podre.
da Área de Proteção Ambiental na Chapada dos Bugres foi apresentada para ser incorpo-
rada pelo CBH-Araguari, como instrumento de influência nas políticas de ordenamento
do território, sob as origens populares. A incorporação, pelo Comitê, dessa proposta, seria
uma inovação nos processos de gestão dos territórios. Não haveria impedimento de pro-
dução, mas estabelecimento de limites que garantissem a proteção e recuperação de áreas
antes ocupadas pelo Cerrado e, por consequência, garantia da disponibilidade da água
necessária para todas as políticas de desenvolvimento regional. Acatar essa proposta tam-
bém teria o cunho inovador, tendo em vista que as práticas de planejamento territorial no
Brasil, quase sempre, são desenvolvidas para atender os interesses dos privados.
Referências
BOAVENTURA, S.. Vereda, berço das águas. Fotografias de Cyro José Soares. Belo Horizonte.
Ecodinâmica, 2007. 264p.
BRASIL. Lei nº 9433, de 08 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos,
cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do
art. 21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei nº 8.001, de 13 de março de 1990, que
modificou a Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989. Brasília: Casa Civil, 1997. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9433.htm. Acesso em: 5 ago. 2017.
FUNDAÇÃO BIODIVERSITAS. Mapa das Áreas Prioritárias para Conservação da Biodiversidade
de Minas Gerais. 2 ed. Belo Horizonte: Fundação Biodiversitas, 2005. Disponível em: http://
www.biodiversitas.org.br/atlas/mapasintese.asp. Acesso em: 01 ago. 2017.
MAURO, C.A. DI; VIEIRA; A.W.; BUENO,G.O; ZUZA, M.L.R.; SILVA, A. M. Outorga:
instrumento de gestão de recursos hídricos na Bacia do Rio Uberabinha, Minas Gerais.
240 // Geografia sem Fronteiras. Diálogos entre Portugal e o Brasil
Pedro Hespanha
Centro de Estudos Sociais (CES) - Universidade de Coimbra
abundante: o trabalho voluntário não pago, incluindo o daqueles que estão fora e podem
ser convocados para ajudar. Outros recursos, mesmo que escassos, são postos ao dispor da
comunidade e multiplicados na ação coletiva, pois tudo se aproveita. E o dinheiro sempre
vai aparecendo, nem que se tenha de correr seca e meca, pois a obrigação de ajudar conta
muito na economia moral das aldeias e prestigia os doadores independentemente das suas
motivações.
Em muitos outros casos, o impulso veio de fora mas foi incorporado pela comunidade
da aldeia e transformou-se num projeto de todos. Mas nem sempre as coisas se passam
1
http://www.asas.com.pt/
1
Mudanças nas relações sociedade - natureza e seus reflexos na Geografia. In Geografia sempre. O homem e
seus mundos. Edições Territorial, Campinas, 2008, pp. 81-82.