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LINHAS DE FUGA: APONTAMENTOS DELEUZIANOS PARA (RE)PENSAR

AS AÇÕES DAS MINORIAS

Fernando Bagiotto Botton – Mestrando - Universidade Federal do Paraná/CNPq

Orientadora: Roseli Boschilia

Não importa se só tocam


O primeiro acorde da canção
A gente escreve o resto em linhas tortas
Nas portas da percepção
Em paredes de banheiro
Nas folhas que o outono leva ao chão
Em livros de histórias seremos a memória dos dias que virão
Se é que eles virão

Não importa se só tocam


O primeiro verso da canção
A gente escreve o resto sem muita pressa
Com muita precisão
Nos interessa o que não foi impresso
E continua sendo escrito à mão
Escrito à luz de velas quase na escuridão
Longe da multidão

Somos um exército, o exército de um homem só


No difícil exercício de viver em paz
Sem bandeira
Sem fronteiras
Pra defender

Não importa se só tocam


O primeiro acorde da canção
A gente escreve o resto e o resto é resto
É falsificação
Sangue falso, bangue-bangue italiano
Suingue falso, turista americano
Livres desta estória, a nossa trajetória não precisa explicação
E não tem explicação

Não interessa o que o bom senso diz


Não interessa o que diz o rei
Se o jogo não há juiz
Não há jogada fora da lei
Não interessa o que diz o ditado
Não interessa o que o Estado diz
Nós falamos outra língua
Moramos em outro país
(Composição:Humberto Gessinger / Augusto Licks)
Gilles Deleuze e Félix Guattari são pensadores ainda pouco conhecidos no
cenário historiográfico brasileiro, temos com essa exposição o intuito de trazer algumas
discussões políticas e práticas desses filósofos, nosso objetivo é pensar as possibilidades
de ações das minorias a partir de alguns conceitos de Deleuze e Guattari.

O tema das minorias foi uma ideia de abertura para nosso debate e foi inspirado
pela proposição do evento. Pretendemos seguir por alguns outros caminhos – muitas
vezes tortuosos – proposto pela filosofia e pela política dos dois filósofos. Mas antes de
iniciarmos, temos que ter alguns cuidados para não perdermos de vista as peculiaridades
dos referidos intelectuais, especialmente se temos em mente que eles não trabalham
com sistemas conceituais fechados ou com determinações categóricas universais. Suas
proposições tem uma carga política e estratégica, mas sempre estão aliadas às
singularidades, casos e acasos, então não poderíamos tratar seus conceitos como
universais e meramente “aplicáveis” a qualquer esfera da história ou da sociedade,
antes, esses conceitos devem ser pensados como sinédoques, ou seja, é a atribuição do
todo pela parte, como se cada conceito fosse uma microcélula de um processo maior, de
capitalismo e esquizofrenia. Se para os pensadores a filosofia é “criar conceitos”, então
esses conceitos devem ser pensados não por eles mesmos, mas a partir deles, de suas
singularidades.

A partir desses pequenos cuidados que temos que tomar com a obra dos
pensadores, passemos agora ás primeiras possibilidades de articularmos uma ideia de
“minoria” para os filósofos. Essa será uma leitura muito particular e pautada por nossa
demanda a responder questões políticas e historiográficas contemporâneas, a saber,
como articularmos ações da minoria. Para isso iniciamos pelos comentários de Deleuze
e Guattari sobre Kafka, na defesa de uma “literatura menor”. Nessa brilhante crítica
literária e filosófica os pensadores comentam que “menor não qualifica mais certas
literaturas, mas as condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que
chamamos de grande” (ou estabelecida) (1977: 28). Importante perceber que Deleuze e
Guattari não estão falando apenas sobre literatura, já que para eles “a literatura tem a
ver é com o povo” (1977: 27), já que se refere a “agenciamentos coletivos de
enunciação”. A ideia de “menor” para eles perde toda a conotação clássica que temos de
que é a parte menos grande ou menos poderosa. Sofre uma inversão, e passa a tratar de
condições revolucionárias, ou seja, a minoria para Deleuze, Guattari e também para
Nietzsche é o local da força, é a potência para a mudança e para a diferença. Se um dos
grandes poderes da literatura menor é a “desterritorialização da língua” (1977: 28) no
sentido de tirar da língua uma oficialidade conferida pelo território, então um dos
grandes poderes das minorias seria a “desterritorialização dos órgãos de poder
institucionalizados e territorializados”.

Assim temos as primeiras imagens de como é proposta uma ação política pela
minoria, mas para definir melhor a ideia de minoria temos que recorrer ao conceito mais
famoso de Deleuze e Guattari, a saber, o rizoma (2010a). Se os filósofos pensam em
uma minoria a partir de uma ideia de literatura e de povo, essa ideia não tem relação
com um estado ou uma organização social representativa, pelo contrário, o povo ou a
minoria seriam a desorganização social, a ausência de uma hierarquia, a inexistência de
um centro de poder ou de um ponto fixo de verdades, assim, a (des)organização das
minorias seria rizomática. Da mesma forma que uma raiz aérea, o rizoma tem linhas que
se expandem e se entrecruzam sem um centro de força, nessas linhas as energias se
deslocam de um lado para outro, para alem de qualquer hierarquia ou posto. Um rizoma
é impossível de ser controlado ou organizado, a ordem está ausente do plano rizomático,
a perspectiva particular de cada ponto em relação ao outro são os terminais de força.
Assim o rizoma obedece alguns princípios básicos numerados no primeiro volume dos
mil platôs, como o fato de serem heterogeneamente conectados, isso é, cada conexão
entre cada dobra de um rizoma é fundamental para sua existência. Além disso, o rizoma
é múltiplo, não se funda em nenhuma categoria de unidade, de identidade, de sujeito, ou
mesmo de território, fazendo com que o fluxo de cada circunstância determine todo o
tipo de relações que irão se estabelecer. O rizoma também não é uma estrutura e não
pode ser explicado por uma ideia estruturante ou um modelo sistemático fechado,
escapa de qualquer universalização (2010a). A partir dessas características do rizoma
podemos traçar metonimicamente a ideia de sociedade e de minoria, ou seja, não
podemos pensar as minorias sociais como os negros, as mulheres, os queer, e os
próprios homens brancos desviantes às normas sociais... a partir de uma relação causal
com um estado ou um ponto central de poder, já que esse centro é pura contingência. Se
a minoria é a possibilidade de força revolucionária, então ela é empoderada a partir do
momento em que atua além ou contra um poder centralizador, ou mesmo Estatal.

Para uma proposta de ação política das maiorias pensamos no conceito de


“máquina de guerra” proposto no quinto volume dos mil platôs. A ideia de maquina de
guerra relaciona-se a tudo o que “é exterior ao aparelho de estado” (2010c), é uma
potência anárquica que abre condições para a mudança e para a diferença. Novamente
há aqui um deslocamento de conceitos. Se pensamos tradicionalmente a guerra como
um empreendimento de estado estaremos longe do debate estabelecido, já que Deleuze e
Guattari propõem a “máquina guerra” como o oposto ao Estado, ou seja, o estado não
possui o poder da guerra, a única coisa que pode fazer é a institucionalização de um
exército que responde por uma guerra, mas há aqui uma distância entre a guerra de
estado, que é mediada por um exército e a máquina de guerra, que é, antes de tudo,
potência da minoria, da mudança e da diferença. A forma mais fácil para ilustrar essa
relação entre o estado e a máquina de guerra é a ilustrativa comparação entre o Xadrez e
o Go. O Xadrez é um jogo de estado, as peças são sempre as mesmas e pressupõem uma
identidade fixa para cada uma, um cavalo será sempre um cavalo e apenas assim se
movimentará. O objetivo é único: destruir o rei, centro de poder inimigo. O espaço é
medido e controlado simetricamente, todas as oposições e lógicas são bipolares e
regidas pela matemática euclidiana, todas as peças são ordenadas por uma hierarquia e
cada ataque é previamente calculado pelo movimento anterior. O tempo de cada rodada
é estritamente definido e respeitado cronometricamente, assim todas as variáveis de
tempo, espaço, e forças são controláveis e calculáveis. Isso é oposto ao Go, que mesmo
tendo um tabuleiro e cores definidas, não se define por sujeitos ou por identidades, mas
antes por indefinições, por contingências. Seus movimentos são definidos por ações de
situação, como margear, cercar, arrebentar. Se um peão de Xadrez pode apenas dar um
passo em uma direção previamente definida, uma peça de Go pode aniquilar com uma
constelação de peças adversárias. Se o xadrez é uma guerra institucionalizada, o Go é
uma batalha de guerrilha, que tem por objetivo ganhar espaço e território, diferente do
xadrez que possui um espaço instituído. Dessa mesma forma podemos pensar então o
estado como xadrez e a máquina de guerra como o Go. Nessa mesma proporção
podemos pensar nas minorias com o Go e no grande poder com o xadrez, seja do
estado, do sistema macroeconômico ou mesmo das instituições (2010c). A minoria
possui uma forma tática de ataque a tais poderes: se utiliza das imprecisões, dos
imprevistos, dos segredos, do tempo e da desterritorialização.

A questão aqui posta se torna simplificada por demais se pensarmos apenas na


oposição binária entre estado e máquina de guerra, o problema é que o pensamento de
Deleuze e Guattari, assim como a própria sociedade que pensam, não podem ser regidos
por uma lógica de oposição binária entre aliados e inimigos, assim os autores
complexificam o debate ao afirmarem que é possível confundir as esferas opostas, já
que os exércitos também se utilizam de práticas de desterritorialização, de velocidade e
de segredos em suas ações. Ou seja, há uma linha tênue que divide o mecanismo de
guerra do estado (o exército) e a máquina de guerra. A confusão ou transposição dessa
linha pode levar a consequências catastróficas, como a ascensão de regimes populares-
ditatoriais, por exemplo, as traumáticas experiências alemãs e soviéticas, seja com o
nazismo seja com o stalinismo, esses são casos em que a máquina de guerra toma por
objeto a guerra. Mas a máquina de guerra “pode ser revolucionária, ou artística, muito
mais que guerreira” (2008: 47). A ideia a ser mantida é de que a máquina de guerra não
pode fazer parte de um estado, e toda vez que é incorporada, perde sua característica
intrínseca.

Mas o problema da dicotomia vai além, Michael Hardt comenta que nenhum dos
polos é realmente puro, já que toda prática de desterritorialização da máquina de guerra
pressupõe uma reterritorialização, ao mesmo tempo que todo estado pressupõe
intrinsecamente a ideia de uma máquina de guerra institucionalizada. Assim Hardt
propõe que “o pensamento político [das minorias] não pode prosseguir ao longo de uma
linha reta. A política de Deleuze e Guattari é melhor concebida como um ziguezague
que se move em diferentes ângulos de acordo com as contingências locais e em
mudança.” (2010c: Contracapa)

E aqui podemos encontrar os (des)caminhos da filosofia dos Mil Platôs, se a


política é melhor concebida como um ziguezague, então as ações políticas, as pessoas e
especialmente as minorias são efetivas através de uma vida em ziguezague, ou o que
Deleuze e Guattari chamam de nomadismo. O nômade é aquele que não possui
permanências, que não se prende em nenhum território cercado, mas antes, possui todos
os territórios em um só (2010c). É aquele que se expande da mesma forma que as peças
de Go. Por não se prender a um território fixo e ter ciência de estar em um território sem
fim, o nômade é contrário e exterior à qualquer organização de estado ou de poder
central que circunscreva um espaço ou um território. O nômade se distribui como
rizomas e age pela máquina de guerra. Suas aspirações e objetivos sempre são
transitórios, nunca há ponto final ou fim da história. O nômade está sempre
condicionado a responder de acordo com a ocasião e após alcançado o objetivo, esse
deve ser abandonado para se almejar outros, e para evitar que se prenda no mesmo
território, para evitar o dogmatismo. O espaço que o nômade requer e constrói com suas
andanças é o que Deleuze e Guattari chama de “espaço liso”, sem fronteiras ou
demarcações, sem ranhuras ou muros, um espaço desterritorializado onde toda a linha
do horizonte é o mesmo espaço, para além da propriedade privada ou da demarcação
fronteiriça das nações, ou seja, se pensarmos os espaços sem fronteiras, então os
nômades não são imigrantes ou seres em movimento, antes, estão localizados num
mesmo território, vagando dentro de seus intermináveis limites.

Por essas metonímias Deleuze e Guattari nos incitam a pensar em novas formas
de viver, de se construir, de agir no mundo. As minorias, enquanto potência
revolucionária de mudança e diferença, tem melhor atuação enquanto nômades, em que
as posições políticas e lutas sociais não devem se fixar em categorias estáticas, estatais
ou mesmo de massa, uma vez que o singular é uma potência política incalculável. Os
filósofos apontam um caminho em que os movimentos sociais e as minorias continuem
em movimento, mas que não se atrelem a um centro de forças ou uma hierarquia
organizacional. Que as estratégias de ação sejam tópicas e efetivas, onde se possa
transitar nas múltiplas coalizões e se tenha o direito de abandonar as lutas passadas na
busca de novos rumos. Afim de dar um novo ar político às ações das minorias os
conceitos de Deleuze e Guattari recriam possibilidades, para que tais minorias não
sejam acorrentadas nas redes de identidade, igualdade e universalidade, mas para que a
partir da diferença apontem para novas formas de (re)construir tempos, espaços,
políticas, sociedades e mundos.

Referências

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs Vol.1. Trad. Peter Pál Pelbart. São
Paulo: Ed. 34, 2010a.
______________. Mil Platôs Vol.3. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 2010b.
______________. Mil Platôs Vol. 5. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34. Vol 1,
2010c.
______________ Kafka, Por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 2008.

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