Professional Documents
Culture Documents
O tema das minorias foi uma ideia de abertura para nosso debate e foi inspirado
pela proposição do evento. Pretendemos seguir por alguns outros caminhos – muitas
vezes tortuosos – proposto pela filosofia e pela política dos dois filósofos. Mas antes de
iniciarmos, temos que ter alguns cuidados para não perdermos de vista as peculiaridades
dos referidos intelectuais, especialmente se temos em mente que eles não trabalham
com sistemas conceituais fechados ou com determinações categóricas universais. Suas
proposições tem uma carga política e estratégica, mas sempre estão aliadas às
singularidades, casos e acasos, então não poderíamos tratar seus conceitos como
universais e meramente “aplicáveis” a qualquer esfera da história ou da sociedade,
antes, esses conceitos devem ser pensados como sinédoques, ou seja, é a atribuição do
todo pela parte, como se cada conceito fosse uma microcélula de um processo maior, de
capitalismo e esquizofrenia. Se para os pensadores a filosofia é “criar conceitos”, então
esses conceitos devem ser pensados não por eles mesmos, mas a partir deles, de suas
singularidades.
A partir desses pequenos cuidados que temos que tomar com a obra dos
pensadores, passemos agora ás primeiras possibilidades de articularmos uma ideia de
“minoria” para os filósofos. Essa será uma leitura muito particular e pautada por nossa
demanda a responder questões políticas e historiográficas contemporâneas, a saber,
como articularmos ações da minoria. Para isso iniciamos pelos comentários de Deleuze
e Guattari sobre Kafka, na defesa de uma “literatura menor”. Nessa brilhante crítica
literária e filosófica os pensadores comentam que “menor não qualifica mais certas
literaturas, mas as condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que
chamamos de grande” (ou estabelecida) (1977: 28). Importante perceber que Deleuze e
Guattari não estão falando apenas sobre literatura, já que para eles “a literatura tem a
ver é com o povo” (1977: 27), já que se refere a “agenciamentos coletivos de
enunciação”. A ideia de “menor” para eles perde toda a conotação clássica que temos de
que é a parte menos grande ou menos poderosa. Sofre uma inversão, e passa a tratar de
condições revolucionárias, ou seja, a minoria para Deleuze, Guattari e também para
Nietzsche é o local da força, é a potência para a mudança e para a diferença. Se um dos
grandes poderes da literatura menor é a “desterritorialização da língua” (1977: 28) no
sentido de tirar da língua uma oficialidade conferida pelo território, então um dos
grandes poderes das minorias seria a “desterritorialização dos órgãos de poder
institucionalizados e territorializados”.
Assim temos as primeiras imagens de como é proposta uma ação política pela
minoria, mas para definir melhor a ideia de minoria temos que recorrer ao conceito mais
famoso de Deleuze e Guattari, a saber, o rizoma (2010a). Se os filósofos pensam em
uma minoria a partir de uma ideia de literatura e de povo, essa ideia não tem relação
com um estado ou uma organização social representativa, pelo contrário, o povo ou a
minoria seriam a desorganização social, a ausência de uma hierarquia, a inexistência de
um centro de poder ou de um ponto fixo de verdades, assim, a (des)organização das
minorias seria rizomática. Da mesma forma que uma raiz aérea, o rizoma tem linhas que
se expandem e se entrecruzam sem um centro de força, nessas linhas as energias se
deslocam de um lado para outro, para alem de qualquer hierarquia ou posto. Um rizoma
é impossível de ser controlado ou organizado, a ordem está ausente do plano rizomático,
a perspectiva particular de cada ponto em relação ao outro são os terminais de força.
Assim o rizoma obedece alguns princípios básicos numerados no primeiro volume dos
mil platôs, como o fato de serem heterogeneamente conectados, isso é, cada conexão
entre cada dobra de um rizoma é fundamental para sua existência. Além disso, o rizoma
é múltiplo, não se funda em nenhuma categoria de unidade, de identidade, de sujeito, ou
mesmo de território, fazendo com que o fluxo de cada circunstância determine todo o
tipo de relações que irão se estabelecer. O rizoma também não é uma estrutura e não
pode ser explicado por uma ideia estruturante ou um modelo sistemático fechado,
escapa de qualquer universalização (2010a). A partir dessas características do rizoma
podemos traçar metonimicamente a ideia de sociedade e de minoria, ou seja, não
podemos pensar as minorias sociais como os negros, as mulheres, os queer, e os
próprios homens brancos desviantes às normas sociais... a partir de uma relação causal
com um estado ou um ponto central de poder, já que esse centro é pura contingência. Se
a minoria é a possibilidade de força revolucionária, então ela é empoderada a partir do
momento em que atua além ou contra um poder centralizador, ou mesmo Estatal.
Mas o problema da dicotomia vai além, Michael Hardt comenta que nenhum dos
polos é realmente puro, já que toda prática de desterritorialização da máquina de guerra
pressupõe uma reterritorialização, ao mesmo tempo que todo estado pressupõe
intrinsecamente a ideia de uma máquina de guerra institucionalizada. Assim Hardt
propõe que “o pensamento político [das minorias] não pode prosseguir ao longo de uma
linha reta. A política de Deleuze e Guattari é melhor concebida como um ziguezague
que se move em diferentes ângulos de acordo com as contingências locais e em
mudança.” (2010c: Contracapa)
Por essas metonímias Deleuze e Guattari nos incitam a pensar em novas formas
de viver, de se construir, de agir no mundo. As minorias, enquanto potência
revolucionária de mudança e diferença, tem melhor atuação enquanto nômades, em que
as posições políticas e lutas sociais não devem se fixar em categorias estáticas, estatais
ou mesmo de massa, uma vez que o singular é uma potência política incalculável. Os
filósofos apontam um caminho em que os movimentos sociais e as minorias continuem
em movimento, mas que não se atrelem a um centro de forças ou uma hierarquia
organizacional. Que as estratégias de ação sejam tópicas e efetivas, onde se possa
transitar nas múltiplas coalizões e se tenha o direito de abandonar as lutas passadas na
busca de novos rumos. Afim de dar um novo ar político às ações das minorias os
conceitos de Deleuze e Guattari recriam possibilidades, para que tais minorias não
sejam acorrentadas nas redes de identidade, igualdade e universalidade, mas para que a
partir da diferença apontem para novas formas de (re)construir tempos, espaços,
políticas, sociedades e mundos.
Referências
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs Vol.1. Trad. Peter Pál Pelbart. São
Paulo: Ed. 34, 2010a.
______________. Mil Platôs Vol.3. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 2010b.
______________. Mil Platôs Vol. 5. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34. Vol 1,
2010c.
______________ Kafka, Por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 2008.