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ASSOCIAÇÃO SUL-RIO-GRANDENSE DE

PESQUISADORES EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

NÚMERO 30
Jan/Abr 2010

Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/aspheQuadrimestral


História da Educação Pelotas v. 14 n. 30 p. 1-276 Jan/Abr 2010
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
ASPHE
Presidente Maria Stephanou
Vice-presidente: Claudemir de Quadros
Secretária: Carla Gastaud

Conselho Editorial Nacional Conselho Editorial Internacional


Dra. Carlota Reis Boto (USP) Dr. Alain Choppin
Dr. Claudemir de Quadros (INRP, França)
Dra. Denice Cattani (USP) Dr. Antonio Castillo Gómez
Dr. Dermeval Saviani (UNICAMP) (Univer. de Alcalá – Espanha)
Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara (UFPel) Dr. Luís Miguel Carvalho
Dra. Flávia Obino Werle (Unisinos) (Univer. Técnica de Lisboa)
Dr. Jorge Carvalho do Nascimento (UFS) Dr. Rogério Fernandes
Dr. Jorge Luiz da Cunha (UFSM) (Univer. de Lisboa)
Dr. José Gonçalves Gondra (UERJ) Dr. Antonio Viñao Frago
Dr. Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG) (Univer. de Murcia – Espanha)
Dr. Lúcio Kreutz (UCS)
Dr. Marcus Levy Albino Bencosta (UFPr)
Dra. Maria Helena Bastos (PUCRS)
Dra. Maria Juraci Maia Cavalcanti (UFC)
Dra. Maria Teresa Santos Cunha (UDESC)
Dra. Marta Maria de Araújo (UFRGN)
Editores Editoração eletrônica e capa
Prof. Dr. Claudemir de Quadros Flávia Guidotti
Prof. Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara flaviaguidotti@hotmail.com
Profa. Dra. Maria Helena Câmara Bastos
Imagem da capa
Consultores Ad-hoc Rembrandt. Betsabé e a Carta do
Dra. Giana Lange do Amaral (UFPel) Rei David, 1654. Óleo sobre tela,
Dra. Berenice Corsetti (Unisinos) 142 x 142 cm. Paris, Museu do
Dr. Claudemir de Quadros (UFSM) Louvre.
História da Educação
Número avulso: R$ 15,00
Single Number: U$ 10,00 (postage included).
História da Educação / ASPHE (Associação Sul-Rio-Grandense
de Pesquisadores em História da Educação) FaE/UFPel. n. 30
(Jan/Abr 2010) - Pelotas: ASPHE - Quadrimestral.
ISSN 1414-3518
v. 1 n. 1 Abril, 1997
1. História da Educação - periódico I. ASPHE/FaE/UFPel
CDD: 370-5

Indexação:
CLASE (Citas Latinoamericas em Ciências Sociales y Humanidades)
Bibliografia brasileira de Educação – BBE.CIBEC/INEP/MEC
EDUBASE (FE/UNICAMP)
3

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO........................................................................................... 5

COMPÊNDIOS PEDAGÓGICOS DE AUGUSTO COELHO (1850-1925): A


ARTE DE TORNAR CIÊNCIA O OFÍCIO DE ENSINAR
PEDAGOGICAL COMPENDIUMS FROM AUGUSTO COELHO (1850-1925):
THE ART OF MAKING SCIENCE INTO THE TEACHING TRADE
Carlota Josefina Malta Cardozo dos Reis Boto ...................................................... 9

REVISTA DO ENSINO/RS E MARIA DE LOURDES GASTAL: DUAS


HISTÓRIAS EM CONEXÃO
REVISTA DO ENSINO/RS AND MARIA DE LOURDES GASTAL: TWO
HISTORIES AT CONNECTION
Beatriz T. Daudt Fischer .................................................................................. 61

SOBRE COISAS DE OUTROS TEMPOS: RASTROS BIOGRÁFICOS NAS


CRÔNICAS DE CECÍLIA MEIRELES NA “PÁGINA DE EDUCAÇÃO”
ABOUT THINGS FROM OTHER TIMES: BIOGRAPHIC TRACES OF
CECILIA MEIRELES’ STORIES IN THE “EDUCATION PAGE”
Ana Chrystina Venancio Mignot ....................................................................... 81

EDUCAÇÃO, MEMÓRIA E IDENTIDADE: DIMENSÕES IMATERIAIS DA


CULTURA MATERIAL ESCOLAR
EDUCATION, MEMORY AND IDENTITY: IMMATERIAL ASPECTS OF
SCHOOL MATERIAL CULTURE
Claudia Alves ................................................................................................. 101

AS FONTES DO MÉTODO ANALÍTICO DE LEITURA DE JOÃO KÖPKE


(1896-1917)
THE SOURCES OF THE ANALYTICAL METHOD OF READING FROM
JOÃO KÖPKE (1896-1917)
Mirian Jorge Warde; Claudia Panizzolo ............................................................ 127

INVENTÁRIO E DIGITALIZAÇÃO DO PATRIMÓNIO MUSEOLÓGICO


DA EDUCAÇÃO – UM PROJECTO DE PRESERVAÇÃO E VALORIZAÇÃO
DO PATRIMÓNIO EDUCATIVO
THE INVENTORY AND DIGITALIZATION OF THE HERITAGE MUSEUM
OF EDUCATION: A PROJECT OF PRESERVATION AND VALORIZATION
OF THE EDUCATIONAL HERITAGE
Maria João Mogarro; Fernanda Gonçalves; Jorge Casimiro; Inês Oliveira............ 153

MEMÓRIAS DE UM PROFESSOR: A INSTIGANTE HISTÓRIA DE VIDA


DO PROFESSOR FREDERICO MICHAELSEN - DE IMIGRANTE
CONTRATADO COMO SOLDADO MERCENÁRIO NA GUERRA CONTRA
ROSAS EM 1851 (ARGENTINA) A PROFESSOR PRIMÁRIO EM
COLÔNIA ALEMÃ DO RIO GRANDE DO SUL
A TEACHER’S MEMORIES: THE FASCINATING HISTORY OF
PROFESSOR FREDERICO MICHAELSEN – FROM AN IMMIGRANT AND
MERCENARY SOLDIER ENGAGED IN THE WAR AGAINST ROSAS
(ARGENTINA), IN 1851, TO A PRIMARY TEACHER IN A GERMAN
COLONY OF RIO GRANDE DO SUL
Luiz Alberto de Souza Marques ....................................................................... 181

NOS TRAÇOS DE CALIGRAFIA, INDÍCIOS DE UM TEMPO ESCOLAR


ON THE STROKES OF CALLIGRAPHY, SIGNS OF SCHOOL TIMES
Luciane Sgarbi S. Grazziotine; Carla Gastaud.................................................. 207

EDUCAÇÃO E ETNIA: AS EFÊMERAS ESCOLAS ÉTNICO-


COMUNITÁRIAS ITALIANAS PELO OLHAR DOS CÔNSULES E
AGENTES CONSULARES
EDUCATION AND ETHNICITY: THE EPHEMERAL ITALIAN ETHNIC-
COMMUNAL SCHOOLS FROM THE PERSPECTIVE OF CONSULS AND
CONSULAR AGENTS
Terciane Ângela Luchese; Lúcio Kreutz............................................................ 227

Resenha
HISTÓRIA GERAL DO RIO GRANDE DO SUL
Eduardo Arriada ............................................................................................. 261

Documento
Cartilha de Doutrina Christã Antonio José de Mesquita Pimentel
REGRAS DE BEM VIVER .......................................................................... 271

ORIENTAÇÕES AOS COLABORADORES .............................................. 275


APRESENTAÇÃO

É com enorme satisfação que a revista História da


Educação publicada pela Associação Sul Riograndense de História
da Educação (ASPHE) trás á público mais um número de seu
periódico. Sempre com a missão de divulgar trabalhos de
investigadores nacionais e internacionais de renome na área de
história da educação a comissão editorial deste número tem a
certeza que mais uma vez tem o prazer de apresentar textos de
excepcional qualidade.
Abre este número o trabalho da professora Carlota
Josefina Malta Cardozo dos Reis Boto: COMPÊNDIOS
PEDAGÓGICOS DE AUGUSTO COELHO (1850-1925): A
ARTE DE TORNAR CIÊNCIA O OFÍCIO DE ENSINAR
no qual com brilhantismo a autora analisa a obra pedagógica deste
renomado autor.
A seguir a professora Beatriz T. Daudt Fischer com o
artigo: REVISTA DO ENSINO/RS E MARIA DE
LOURDES GASTAL: DUAS HISTÓRIAS EM CONEXÃO
analisa a revista mais consagrada da historiografia sobre educação
do Rio Grande do Sul a Revista do Ensino e a história de vida de
Maria de Lourdes Gastal.
Os dois textos seguintes decorrem da participação das
professoras Ana Chrystina Venâncio Mignot e Claudia Alves no
XIV Encontro de Pesquisadores de História da Educação do Rio
Grande do Sul, realizado em 2009 no qual as referidas professoras
participaram como conferencistas respectivamente com os
trabalhos: SOBRE COISAS DE OUTROS TEMPOS:
RASTROS BIOGRÁFICOS NAS CRÔNICAS DE CECÍLIA
MEIRELES NA “PÁGINA DE EDUCAÇÃO” e
EDUCAÇÃO, MEMÓRIA E IDENTIDADE: DIMENSÕES
IMATERIAIS DA CULTURA MATERIAL ESCOLAR

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 30 p. 5-7, Jan/Abr 2010.


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A consagrada pesquisadora em História da Educação


Mirian Jorge Warde juntamente com Claudia Panizzolo nos
brindam com o texto AS FONTES DO MÉTODO
ANALÍTICO DE LEITURA DE JOÃO KÖPKE (1896-
1917). Trabalho de altíssima qualidade e deve constituir de
referência na área.
Os professores portugueses Maria João Mogarro
Fernanda Gonçalves Jorge Casimiro Inês Oliveira com o trabalho:
INVENTÁRIO E DIGITALIZAÇÃO DO PATRIMÓNIO
MUSEOLÓGICO DA EDUCAÇÃO – UM PROJECTO DE
PRESERVAÇÃO E VALORIZAÇÃO DO PATRIMÓNIO
EDUCATIVO contribuem com uma investigação que cada vez
mais se torna um imperativo na área da história da educação, isto
é, o estudo do processo de preservação e valorização do patrimônio
educativo.
Com o trabalho MEMÓRIAS DE UM
PROFESSOR: A INSTIGANTE HISTÓRIA DE VIDA DO
PROFESSOR FREDERICO MICHAELSEN - DE
IMIGRANTE CONTRATADO COMO SOLDADO
MERCENÁRIO NA GUERRA CONTRA ROSAS EM 1851
(ARGENTINA) A PROFESSOR PRIMÁRIO EM
COLÔNIA ALEMÃ DO RIO GRANDE DO SUL o professor
Luiz Alberto de Souza Marques aborda um tema de bastante
relevância para a historia da educação dos estados do sul do Brasil:
os soldados que se tornaram professores após a guerra contra
Rosas e que foram muitos e que contribuíram para a difusão de
um pensamento mais liberal em diversas áreas da educação
germânica.
As professoras Luciane Sgarbi S. Grazziotine Carla
Gastaud contribuem com o texto: NOS TRAÇOS DE
CALIGRAFIA, INDÍCIOS DE UM TEMPO ESCOLAR
trabalho de grande originalidade e densidade analítica.
No artigo:EDUCAÇÃO E ETNIA: AS EFÊMERAS
ESCOLAS ÉTNICO-COMUNITÁRIAS ITALIANAS PELO

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 30 p. 5-7, Jan/Abr 2010.


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OLHAR DOS CÔNSULES E AGENTES CONSULARES


os professores Terciane Ângela Luchese e Lúcio Kreutz retomam
uma temática sempre atual e importantíssima para a compreensão
da história da educação brasileira, no caso específico analisando as
escolas étnico comunitárias italianas.
Por fim em nossa tradicional seção DOCUMENTO
transcrevemos a parte mais relacionada a educação da Cartilha de
Doutrina Christã elaborada por Antonio José de Mesquita
Pimentel que sem dúvida contribuirá para a compreensão do
processo educativo do século XIX.

Os editores

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 30 p. 5-7, Jan/Abr 2010.


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COMPÊNDIOS PEDAGÓGICOS
DE AUGUSTO COELHO (1850-1925):
A ARTE DE TORNAR CIÊNCIA
O OFÍCIO DE ENSINAR
Carlota Josefina Malta Cardozo dos Reis Boto

Resumo
O trabalho aqui proposto tem por objetivo analisar alguns manuais
de ensino destinados aos cursos de formação de professores e escritos
pelo pedagogo português José Augusto Coelho (1850-1925). Autor
de uma série de livros voltados para a interpretação da educação,
Augusto Coelho buscava apresentar a ideia de pedagogia como uma
ciência que pode ser compreendida à luz de um conjunto de leis
objetivas. Nesse sentido, apresentava definições de temas e de
problemas compreendidos como centrais para se refletir sobre
educação. Além disso, indicava métodos e técnicas de ensino a serem
empreendidas. Seus tratados educacionais são reveladores, portanto,
da maneira pela qual o assunto da Pedagogia veio a se constituir
como um objeto teórico de estudo no âmbito das ciências humanas.
A educação, para se tornar ciência, precisaria valer-se do repertório de
outras ciências contíguas, entrelaçando, de um modo próprio,
discursos variados das humanidades.
Palavras-chave: História da educação; pedagogia; ensino; Augusto
Coelho; manuais escolares.

PEDAGOGICAL COMPENDIUMS FROM AUGUSTO


COELHO (1850-1925): THE ART OF MAKING SCIENCE
INTO THE TEACHING TRADE
Abstract
The objective of this work is to analyze some teaching manuals
destined to teacher education programs and written by the
Portuguese pedagogist José Augusto Coelho (1850-1925). Author of
a series of books focused on the interpretation of the education,
Augusto Coelho tried to present the idea of pedagogy as a science
that can be understood in the light of a set of objective laws. In this
sense, he presented definitions of subjects and problems understood
as being of essence in order to think about the education.
Additionally, he indicated teaching methods and techniques to be
undertaken. His educational treaties reveal, therefore, how the
subject of Pedagogy developed as a theoretical object of study in the

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scope of the human sciences. To become a science, the education
would need to make use of the repertoire of other contiguous
sciences, and to connect the several discourses of the humanities.
Keywords: History of education; pedagogy; teaching; Augusto
Coelho; school manuals.

COMPENDIOS PEDAGÓGICOS DE AUGUSTO


COELHO (1850-1925): EL ARTE DE CONVERTIR EN
CIENCIA EL OFICIO DE ENSEÑAR
Resúmen
Este trabajo se propone a analizar algunos manuales de enseñanza
destinados a los cursos de formación de profesores y escritos por el
pedagogo portugués José Augusto Coelho (1850-1925). Autor de
una serie de libros dirigidos hacia la interpretación de la educación,
Augusto Coelho buscaba presentar la idea de pedagogía como una
ciencia que puede ser comprendida a la luz de un conjunto de leyes
objetivas. En ese sentido, presentaba definiciones de temas y de
problemas comprendidos como centrales para reflexionar sobre la
educación. Además, indicaba métodos y técnicas de enseñanza
posibles. Sus tratados educacionales son reveladores, por tanto, de la
manera por la cual el asunto de la Pedagogía pasó a constituirse
como un objeto teórico de estudio en el ámbito de las ciencias
humanas. La educación, para convertirse en ciencia, necesitaría
valerse del repertorio de otras ciencias contiguas, entrelazando, de un
modo propio, discursos variados de las humanidades.
Palabras clave: Historia de la educación; pedagogía; enseñanza;
Augusto Coelho; manuales escolares.

LES MANUELS PÉDAGOGIQUES D’AUGUSTO


COELHO (1850-1925): L’ART DE TRANSFORMER EN
SCIENCE LE MÉTIER D’ENSEIGNANT
Résumé
Ce travail a pour but d’analyser quelques manuels d’enseignement
adressés aux cours de formation de professeurs et écrits par le
pédagogue portugais José Augusto Coelho (1850-1925). Auteur
d’une série de livres destinés à l’interprétation de l’éducation,
Augusto Coelho cherchait à présenter l’idée de la pédagogie comme
une science comprise à partir d’un ensemble de lois objectives. Pour
ce faire il proposait des définitions de thèmes et de problèmes
centraux dans la réflexion sur l’éducation. En outre, il indiquait des
méthodes et des techniques à entreprendre. Ses traités éducationnels
sont révélateurs alors de la façon dont le thème de la Pédagogie s’est
constitué en tant qu’objet d’étude théorique dans le contexte des
sciences humaines. Pour devenir une science, l’éducation devrait
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profiter du répertoire des sciences voisines, entremêlant d’une façon
propre les discours variés des humanités.
Mots-clés: Histoire de l’éducation; pédagogie; enseignement;
Augusto Coelho; manuels scolaires.

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Introdução: o manuseio da pedagogia

Ver e imitar práticas educativas existentes parece ser parte


da rotina do aprendizado dos assuntos do ensino. Observar
professores experientes e com eles incorporar modos de agir e de
atuar em sala de aula constitui elemento fundamental para o êxito
da ação docente. A arte da observação costumeiramente é
acompanhada pelo hábito da imitação dos usos do ritual escolar.
Saber ensinar, em alguma medida, corresponde, portanto, a um
saber fazer; a uma arte de ofício.
As sociedades compartilham linguagens. No caso das
sociedades escritas, há comunidades de leitores que repartem
códigos específicos de leitura. Sendo assim, compreender a lógica
dos atos de ler supõe perscrutar as veredas de sentidos comuns, que
agem como uma atmosfera de significados coletivos. Os
impressos, nas sociedades letradas, podem ser compreendidos
como feixes portadores dessa pluralidade de modos de perceber e de
interpretar o mundo ordinário. Marta Carvalho, sobre o tema,
destaca a necessidade, para os historiadores da educação, de
identificar o crivo que separa, nos suportes materiais indicados
para professores, as representações e as práticas, as prescrições e os
usos; enfim “as normas que regem as estratégias de difusão,
imposição e apropriação desses saberes. Para tanto, colocam-se em
cena as pedagogias como sistemas de regras. Regras que
constituem o campo, os objetos e os objetivos de intervenção
escolar, incidindo também sobre os processos de produção, difusão
e apropriação da multiplicidade de impressos de destinação
pedagógica (CARVALHO, 2001, p.138)”. Também Maria Lucia
Spedo Hilsdorf identifica uma dupla face dos modelos
pedagógicos: “da circulação para a circularidade. Esta pode ser
uma das maneiras de se observar a propagação e a recepção das
idéias e das práticas educacionais e pedagógicas (HILSDORF,
2006, p.85-6)”.
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Sob tal perspectiva, haveria a necessidade de estudar os


protocolos de leitura efetivamente prescritos nas orientações
didáticas impressas nos livros dirigidos aos professores, bem como
os modos efetivos mediante os quais, nas práticas rotineiras,
aquelas orientações teriam sido apropriadas por diferentes
comunidades de leitores. Para Carvalho (2001), a pluralidade de
materiais impressos pode ser vistoriada em uma dupla direção: por
um lado, haveria realmente necessidade de compreender como se
lia; e qual era a interpretação dada àquilo que era lido. Isso,
porém, não elimina a necessidade de, na outra margem,
reconhecer o sistema de normas que estabelecia as regras da
leitura. Nesse sentido, é possível apreender algum nível de
intersecção entre os sistemas culturalmente prescritos nas
orientações de leitura e as modalidades de apropriação e reinvenção
dos sentidos do impresso. Para a autora, os sistemas da pedagogia
são regrados e normalizados por dispositivos materiais. Os saberes
pedagógicos circulam pelos impressos que dispõem
prescritivamente sobre o que ensinar; e especialmente sobre os
modos e as técnicas de ensino.

Assim, na materialidade do impresso posto em circulação,


é o próprio campo dos saberes pedagógicos que é
diferencialmente constituído. Campo configurado não
somente por procedimentos de seleção e articulação
textual de conteúdos teóricos ou doutrinários da
pedagogia, mas também pela materialidade do impresso
que os veicula. (CARVALHO, 2001, p.138)

Joaquim Pintassilgo sublinha que, no campo de estudo


histórico da formação de professor, é de se notar o lugar de proa
ocupado por manuais de ensino, veículos prioritários de expressão
de uma dada cultura escolar, que se faz ver como estrutura
instituinte de sua época. Os manuais de formação do magistério
em finais do século XIX – em Portugal como no Brasil –
constituem território fértil para identificar procedimentos
mediante os quais seria paulatinamente erigido como ciência o

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campo do discurso da educação. Observa Pintassilgo que,


enquanto fontes documentais, os compêndios didáticos de
formação do professor sistematizarão princípios e métodos
prescritos para o ato de ensinar, construindo, para tanto, “uma
linguagem especializada, só acessível aos nela iniciados
(PINTASSILGO, 2006, p.198)”.
Como observa Joaquim Pintassilgo, os compêndios
teóricos de pedagogia tornam-se, na condição de objetos de
investigação, suportes privilegiados para se refletir acerca da
formação docente de uma dada época, posto que contribuem para
a “consolidação do modelo escolar e da cultura escolar, ao
atribuírem legitimidade acadêmica a determinadas formas de
organização do tempo e do espaço escolares e de elaboração do
respectivo currículo (PINTASSILGO, 2006, p.3)”. Os manuais
constituiriam, portanto, ferramentas de controle do trabalho
docente “ao prescreverem – nas palavras de Pintassilgo –
determinadas práticas como desejáveis (e outras como não
adequadas) e ao divulgarem uma concepção definida sobre o que é
ser bom professor de instrução primária (PINTASSILGO, 2006,
p.3).
Os manuais de pedagogia compilariam, em geral, um
conjunto de saberes considerados necessários para inserir o
estudante no campo científico da educação. Desde finais do século
XIX, pretendia-se afirmar a cientificidade do conhecimento
pedagógico, em seus métodos e procedimentos (PINTASSILGO,
2006, p.3). Evidentemente, tais compêndios expressavam também
um conjunto normativo, estruturado como elenco de exemplos e
de sugestões sobre modos de ordenar a aula, de sentir e viver o
magistério, de pensar as relações pedagógicas. O lugar profissional
do professor envolvia, como diz Maria Teresa Santos Cunha, um
conjunto de valores, de saberes, de normas de conduta, que os
postava como “atores privilegiados na formação de mentes, de
almas e de corações (CUNHA, 2007, p.92)”. Há muito a
tradição pedagógica reputava essenciais alguns atributos do

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professor que remeteriam à herança medieval, onde a figura do


mestre e a do clérigo praticamente se confundiam. O magistério
como um sacerdócio, a idéia de vocação, de missão, qualidades
morais e um dado estoicismo na figura do professor permeiam
algum imaginário acerca do tema. O caráter de exemplaridade
impresso à figura do professor e aos valores que comporiam sua
personalidade tem sido destacado pela literatura. Como sublinha
Pintassilgo, a dimensão de apostolado com que tantas vezes é
associada à ação do magistério tem como referência um dado ideal
de formação. Esse ideal extrapola a mera noção de competência
técnica e profissional, para aproximar-se, em última instância, à
dimensão de “amor pela Humanidade (PINTASSILGO, 2006,
p.183)”. O trabalho do educador, de acordo com a ciência, deveria
ser uma escultura da alma, uma obra de arte... O anonimato do
professor é compensado pelo reconhecimento de seus discípulos e
pelo êxito do seu ensino na representação do ideal.
Destacada pela sua dimensão moral, a nova ciência da
educação – nessa autonomia que o século XIX conferiu ao debate
pedagógico – é pautada por suas finalidades. Reconhece-se a
existência de inevitável conflito entre as tendências pelas quais a
natureza nos impele para o mal, para o vício, para a satisfação
imediata do desejo; e, na outra margem, a capacidade humana de
adiar o prazer, de escalonar a felicidade e até de optar por um
possível afastamento de inclinações naturais, com o propósito de
proceder ao aprimoramento da moralidade.
Vera Teresa Valdemarin assinala o fato de que pode ser
encontrado, nos materiais didáticos de formação de professores um
conjunto de diretrizes voltadas para ensinar a ensinar. A autora
considera que há uma dimensão epistemológica nesse movimento
que migra da teoria do conhecimento para o ato de ensinar ao
outro um conjunto de conceitos, de juízos, de saberes. Dos
princípios às práticas – diz a autora – fixam-se atividades. Essa
transformação do preceito teórico em atividade escolar seria uma
das estratégias mais eficazes para a escola mobilizar didaticamente

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os conteúdos do conhecimento teórico: trata-se de uma tradução;


de uma forma de “transposição didática, que tem na escola seu
lugar de aplicação e que possibilita a compreensão das relações
entre escola e cultura (VALDEMARIN, 2004, p.41)”. Pode-se,
portanto, dizer que, “embora sofrendo transformações, o
conhecimento científico socialmente produzido é um dos
elementos constitutivos da cultura escolar (VALDEMARIN,
2004, 187)”. Evidentemente, nos protocolos da leitura indicada
para os professores, com muita freqüência, são observadas
tendências contemporâneas de formas e de conteúdos da ciência.
Seja na identidade dos saberes escolares, seja nos imperativos dos
métodos e técnicas recomendados, o discurso constrói-se por
alguma remissão ao estado da arte naquele campo específico do
conhecimento acadêmico.
Marta Carvalho (2006, 147) identifica, na trajetória dos
livros escolares dirigidos à formação dos professores, três
orientações distintas: caixa de utensílios, livros de
aconselhamento1, e tratados de educação.

1
A perspectiva da “caixa de utensílios”compreende a educação como uma prática
reportada a si mesma, debruçada sobre a imitação ou o exemplo de práticas
educativas anteriores. O discurso, com isso, mobiliza a crença de que aprender é
uma arte derivada de um ver fazer e de um ouvir dizer. Por ser assim, o
aprendizado aconteceria mediante o aprendizado dos preceitos básicos dessa
prática do ensino. Marta Carvalho refere-se a tal tendência, explicitando que nela
o campo do ensino é definido como uma arte – ou um conjunto de técnicas e
habilidades -, o que obviamente desvaloriza “quaisquer tentativas de dedução de
métodos ou de aplicação mecânica de princípios a partir da filosofia
(CARVALHO, 2001, p.149)”. Modelos a serem imitados constituem
basicamente o conceito de ensino que é apresentado nesse tipo de impresso
pedagógico. Ensinar corresponde a uma arte, ou a uma “prática que se
materializa em outras práticas; práticas nas quais a arte de aprender materializa-
se no exercício de competências bem determinadas e observáveis em usos
escolarmente determinados (CARVALHO, 2006, p.147)”. O modelo de “livro
de aconselhamento” é fruto de outra tradição; a dos “livros de aconselhamento de
príncipes que tiveram o seu apogeu nos séculos XVI e XVII (CARVALHO,
2006, p.158)”. Elenca padrões religiosos, destaca-se pelo tom prescritivo e
moralizante, modelando as virtudes cardeais ao modo de ser professor. São livros
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O ponto de partida do discurso pedagógico expresso nos


“tratados de pedagogia” (CARVALHO, 2006) seria - como
assinala Carvalho - a construção dedutiva de preceitos educativos
dirigidos a evidenciar a condição científica da interpretação
pedagógica. Para que efetivamente essa dimensão da ciência fosse
evidenciada para os assuntos da educação, seria imprescindível
recorrer ao repertório de outras ciências contíguas, especialmente a
psicologia, a biologia e a sociologia. A educação era caracterizada
pela particularidade de entrelaçar discursos de variadas origens. A
configuração do campo da pedagogia como área sistematizada de
conhecimento será bastante tributária desses tratados
enciclopédicos que se propunham a desvendar os segredos da ação
pedagógica, à luz das conquistas da ciência. Observar continuava a
ser importante. Mas era imprescindível para o educador - saber o
que havia para ser observado. A observação tornava-se, pois,
decorrência de pressupostos inscritos no próprio conhecimento
pedagógico, transformando-o, a um só tempo, em território
multidisciplinar e multifacetado. Fruto de um tempo em que a
ciência prometia controle, racionalização do mundo e
emancipação, os impressos que falavam da educação,
especialmente aqueles construídos no formato de tratados,
proporiam - nas palavras de Marta Carvalho:

(...) um novo padrão de organização do corpus dos


saberes pedagógicos. Nele, o impresso passa a ser
organizado com a pretensão de totalizar e sistematizar
doutrinariamente um campo de saberes – o da Pedagogia
– investindo-o do caráter de corpus de conhecimentos
dedutivamente derivados de conhecimentos filosóficos ou
científicos (CARVALHO, 2006, p.157-8)

Entre o final do século XIX e as primeiras décadas do


século XX, reconhecia-se a urgência de serem firmados princípios

que pretendem – de acordo com Marta Carvalho (2006, p.158) - recorrer a


máximas do senso comum, de algum bom senso, para ensinar a ensinar.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 30 p. 9-60, Jan/Abr 2010.


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de ordem teórica. A atividade de ensinar configurar-se-ia


paulatinamente como um domínio que integrava tanto a
habilidade de, com desenvoltura, saber como ensinar quanto a
compreensão dos conteúdos a serem ensinados. Ensinar tornava-
se, desse modo, ofício a ser aprendido. Estudava-se o ensino, mais
do que o aprendizado (VALDEMARIN, 2004). Esse ensino - arte
compreendida a partir da ideia comum de “tato pedagógico”
(HERBART, 2003, p.23) - passaria a ser compreendido como
ciência. No final do XIX, a pedagogia, apropriando-se de saberes
advindos de outros campos do conhecimento (especialmente da
biologia e da psicologia), vinha progressivamente apresentada
como uma ciência das coisas da educação. O próprio Herbart já
dissera que “a pedagogia é ciência que o educador precisa para si
mesmo (HERBART, 2003, p.16)”. Cabe recordar que – para
Herbart – a pedagogia não envolveria apenas o conjunto de
conteúdos relativos à educação, mas a apreensão dos modos
adequados de comunicá-los. Dizia ele que não concebia a educação
sem ensino; até porque “é fundamental para o educador saber
como se determina o seu modo de pensar, uma vez que é a partir
do modo de pensar que se formam os sentimentos, e, em função
destes, princípios e formas de conduta (HERBART, 2003,
p.16)”. O saber pedagógico ganhava, progressivamente, estatuto
de conhecimento científico; e se fazia marcar por um discurso
explicitamente prescritivo. Os escritos de Augusto Coelho
evidenciam essa tendência de compreender o ensino – de arte que
era, para uma ciência que se propunha a ser.
Pode-se dizer que a produção teórica de Augusto Coelho
no campo da educação - tanto os quatro volumes com que o autor
compendia seus princípios de pedagogia quanto os manuais que
escreveu para abordar as questões relativas ao ensino primário -
situam-se na órbita do que Marta Carvalho classificou como
tratados pedagógicos.

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Civilização e pedagogia: dos povos aos indivíduos

Fernando Catroga já sublinhou que a principal obra de


Augusto Coelho – os Princípios de Pedagogia – “pretendia
entender a evolução da personalidade da criança (e do adolescente)
em termos científicos, ao mesmo tempo em que dava às relações
entre o meio natural e social e à escola um lugar primordial na
aprendizagem (CATROGA, 1988, p.206) ”. Pode-se dizer que,
com tal propósito, Augusto Coelho se apropriava em seu trabalho
de um caleidoscópio teórico, que englobava um rol bastante vasto
de leituras, que iriam de Darwin a Spencer, de Kant a Herbart
(LUZURIAGA, 1961).
Dialogando com a produção positivista em educação, a
atividade educativa deixava, de ser centrada exclusivamente na
figura do professor ou mesmo no primado do método, para
considerar aspectos biológicos, psicológicos, cognitivos e sociais.
Esses, entrelaçados, permitiriam uma interpretação mais ampla do
fenômeno educativo, centrada esta no conceito de aula. Augusto
Coelho representa, para seu tempo, um tipo-ideal de intelectual,
especialista em decifrar, pela aproximação científica, um ramo
específico e direcionado do conhecimento humano – neste caso, a
Educação.
Tendo o intuito de produzir e divulgar conhecimento,
Augusto Coelho cuidava da circulação intelectual de suas idéias.
Marta Carvalho já identificou seus Princípios de Pedagogia –
especialmente em seu primeiro volume (eram quatro tomos,
publicados entre 1891 e 1893) – como um dos livros citados na
bibliografia pedagógica da Escola Normal da Praça, na Primeira
República em São Paulo. Para Carvalho, o pensamento
pedagógico de Augusto Coelho – à luz daquela sua principal obra,
sistematizada como Princípios de Pedagogia - foi construído
“dedutivamente a partir da cosmovisão desse sistema filosófico
[positivista] e dos seus princípios de hierarquização das ciências,
estabelecendo uma correspondência estrita entre a ordem do
mundo, a ordem de aquisição dos conhecimentos, a estruturação
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do Tratado e organização da escola (CARVALHO, 2001,


p.147)”. Aquele vasto e rigoroso compêndio teórico de Pedagogia
expressa idéias concernentes a uma dada natureza filosófica do
ensino, e a uma perspectiva teórica nitidamente herdeira de um
dado modelo cientificista de darwinismo social – a expressão
máxima do discurso que Carvalho (2001; 2006) caracteriza de
“tratado pedagógico”.
Manuel Lázaro Ferreira Fernandes observa a preocupação
lógica presente na construção do discurso de Augusto Coelho,
especialmente nos Princípios de Pedagogia, propostos por seu
autor como constitutivos de “uma larga sistematização dos
conhecimentos pedagógicos e a construção de uma pedagogia
moderna de base científica (FERNANDES, 1995, p.83)”. Trata-
se de uma lógica dedutiva. A pedagogia científica tem por premissa
a consideração do homem como um animal superior na
classificação das espécies, donde decorreria sua elevada capacidade
de aprender, derivada de sua “alta complexidade cerebral
(FERNANDES, 1995, p.106)”.
António Carlos Correia, na apresentação que faz de José
Augusto Coelho no Dicionário de Educadores Portugueses, diz
que ele foi, em Portugal, “o iniciador, de fato, de um discurso
pedagógico que supera o mero empirismo e que se inspira num
modelo teórico que enquadra, orienta e legitima as práticas
educativas escolares (CORREIA, 2003, p.223)”. Para Correia,
Augusto Coelho foi, antes de tudo, um racionalista em matéria de
educação; introduzindo “uma preocupação nova quanto à
necessidade de um maior rigor terminológico e conceptual no
ensino e discussão das práticas educativas e do ensino
(CORREIA, 2003, p.223)”. Foi o autor português que, em sua
época, melhor representou a busca de racionalização da Pedagogia.
António Carlos Correia sublinha que, referenciado pela matriz de
interpretação biológica do positivismo que imperava à época, os
quatro volumes do tratado pedagógico de Coelho – Princípios de
Pedagogia – serão o principal alicerce que orientará também os

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vários compêndios para uso das Escolas Normais, escritos pelo


mesmo autor. Esses manuais - voltados para a formação de
professores - retomam, de maneira condensada e mais didática, os
preceitos spencerianos (SPENCER, s/d) que orientavam os
Princípios de Pedagogia. Sobre o tema, António Carlos Correia
recorda que a produção teórica de Augusto Coelho é
contemporânea de um contexto de expansão da rede escolar; e
principalmente da defesa de uma formação escolar especificamente
voltada para formar professores primários. A escola se impunha
como um espaço, um tempo e um modo de socialização que
ganhava contornos, rituais e protocolos, dentre os quais o livro
escolar.
José Augusto Coelho nasce em Sendim em 1850 e morre
no Porto em 1925. Foi, de acordo com dados recolhidos por
António Carlos Correia (op.cit.), convidado, no início dos anos 80
do século XIX para ser professor na Escola Normal do Porto.
Nessa época, já tinha algum reconhecimento entre os intelectuais
da época, posto que freqüentava o círculo de Oliveira Martins.
Regente da cadeira de Ciências Físico-Químicas e também da
cadeira de Pedagogia, diz António Carlos Correia que Augusto
Coelho foi, ao longo de sua carreira, colaborador de inúmeras
publicações pedagógicas dirigidas algumas por professores e outras
por alunos; dentre as quais se destacam a Revista Pedagógica e a
Educação Nacional. Em 1894, ocorre sua transferência para
Lisboa, onde atuaria como diretor da Escola Normal para o sexo
masculino; e depois, em 1902, iria dirigir a Escola Normal do
sexo feminino na mesma cidade. Embora fosse reputado como
especialista entre os estudiosos da educação, não tinha formação
universitária; o que o distanciava dos jogos de poder; o que
explicava também sua figura pouco conhecida do grande público.
Sua obra, todavia, é uma evidência indelével do vasto repertório
pedagógico que desenvolveu ao longo de uma vida dedicada à
educação.

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Educação individual como recapitulação


do desenvolvimento da espécie

A educação do século XIX ambiciona ser estratégia de


reparação moral da Humanidade. O discurso que assim se constrói
explicita a necessidade de verificar que os grupos humanos são
diferentemente adaptados ao ambiente. Nesse sentido, haveria um
progresso derivado do percurso civilizatório mediante o qual, em
diferentes níveis de complexidade, nós percorreríamos degraus
correspondentes ao desenvolvimento de aptidões mais ou menos
especializadas. Como bem destaca Joaquim Pintassilgo, para J.
Augusto Coelho, o professor era o ator protagonista do processo
pedagógico. Essa era uma visão corrente dentre os manuais de
ensino da época: “de todas as profissões, é, sem dúvida, a do
educador a mais exigente de boas qualidades; é a mais perigosa,
pelas suas funestas conseqüências, quando não é exercida como
um sacerdócio e uma autêntica vocação (PINTASSILGO, 2006,
p.182)”. Os aspectos da vocação do professor e do tato pedagógico
como requisito de método eram recorrentes no cenário dos
manuais de formação de professores.
Se Augusto Coelho acredita que o ator principal do
processo pedagógico é o educador, ele apresenta também sua
preocupação com o outro lado da ação docente: expresso na figura
do aluno; aquele cujas condições exteriores de existência serão
modificadas (COELHO, 1891, p.351). Por isso, seria
fundamental contar com outros elementos prioritários: o
instrumento educativo, expresso na ação do primeiro (educador)
sobre o segundo (aluno); e o fim ou propósito que norteia essa
ação pedagógica; que, no limite, é compreendida como uma
atividade voltada para a modificação humana. O objetivo da
educação seria, pois, reproduzir, a habilidade da natureza para
lidar com a desenvolução dos seres vivos. Se operações
espontâneas atuam no terreno da biologia para modificar o
ambiente, seria possível, por meio de voluntária ação educativa,

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fazer algo semelhante. Haveria - diz Coelho - uma energia


modificadora que possibilita a transformação de tendências
humanas impressas pela condição do meio ou pela própria
disposição natural. A idéia de educação implica adaptação, ajuste
ao ambiente, imposição de modos de ver, de sentir e de julgar2.

(...) Na sistematização pedagógica que vamos realizar


será, portanto, o meio físico ou intelectual ou moral a
grande fonte donde faremos derivar todas as necessárias

2
Caberia recordar que, no princípio do século XX, Durkheim buscará
compreender o caráter eminentemente social que possibilitava o encontro de um
veio comum ao ato educativo desenvolvido nas mais diferentes sociedades da
história humana. Perscrutar o que poderia haver de comum, para além das
especificidades e particularidades reconhecidas nos diferentes sistemas de
formação, supunha perceber neles o que os unia: “Não existe nenhum povo que
não projete determinado número de idéias, de sentimentos e de práticas que a
educação deve inculcar em todas as crianças indistintamente, seja qual for a
categoria social a que pertençam (DURKHEIM, 1985, p.49)”. A educação,
enquanto prática, deveria, sob tal perspectiva, reforçar, no parecer de Durkheim,
a adesão a normas e valores e a sociabilidade. A reprodução social, que – no
entendimento de Durkheim - era constituída como uma rede comum de signos e
sentidos coletivos para as gerações imaturas, significaria uma partilha necessária à
própria preservação e coesão da estrutura social. Ocorre que, ao se referir ao papel
do Estado na educação, a perspectiva pública enunciada por Durkheim
acarretaria algumas implicações até então não manifestas. Para o autor, o ensino
sistematizado faz-se matéria de Estado pelo fato de se constituir como tarefa
coletiva do grupo social - compreendido este último sob uma ótica homogênea e
uniforme - com o fito de “adaptar a criança no ambiente social para o qual ela se
destina (DURKHEIM, 1985, p.58)”. Nessa direção, dever-se-ia imprimir na
criança determinadas idéias e sentimentos que a colocassem em harmonia com o
meio onde deveria viver. Ora, isso por si implicava já o reconhecimento de
desigualdades entre os diversos e inconfundíveis meios de uma mesma sociedade.
Contudo, tal ambiente diverso seria não apenas autorizado, mas mesmo
recomendável, o que faria com que o objeto último da ação educativa fosse
paradoxalmente o de adaptação, conservação, manutenção, reprodução do
existente: adaptar, persuadir e evitar o conflito. A sociedade é tomada por
legítima e a educação é a ação ampliadora dessa legitimidade. As premissas desse
discurso estão presentes em todo debate sobre o qual se desenvolveria o modelo
científico da educação.

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energias para realizar a grande obra da educação humana.


O fim que a nossa definição impõe à educação do homem
é extremamente claro, largo e filosófico. Adaptar uma
geração ao ambiente em que deve viver, ajustá-la tanto
quanto possível a certo conjunto de idéias e de
sentimentos e de relações sociais, à civilização, em suma,
que há-de recebê-la no seu seio, não é isto continuar
deliberadamente a obra automática da natureza, tornar a
humanidade que desponta herdeira da humanidade que
desaparece, continuar ininterruptamente a grande obra
do progresso humano? Depois de ajustar os homens do
futuro ao conjunto geral de uma dada civilização,
prosseguir na obra educativa, ajustando as tendências
especiais, contidas no meio geral, não será levantar sobre
os alicerces duma educação geral as construções
variadíssimas de educações especiais, destinadas a
conduzirem os homens onde o chama o gênio particular
de cada um? (COELHO, 1891, p.352)

Educar era civilizar. Para Augusto Coelho, a fisionomia


da sociedade é traduzida pelos vestígios da civilização que ela
revela;

(...) devendo o educador, qualquer que seja a época em


que viva, adaptar o educando a uma dada civilização na
sua forma mais perfeita, isto é, a um conjunto de idéias,
de princípios, de sentimentos, é natural inquirir qual deva
ser o tom geral de civilização que convirá adaptar a
educação das gerações atuais (COELHO, 1891, p.356)

Diz o autor que o caráter mais significativo da civilização


de seu tempo teria, no Ocidente, a forma de uma “cooperação
produtiva, tendo como instrumento a ciência (COELHO, 1891,
p.357)”. O lugar social e público da educação, em tais sociedades,
só poderia ser, portanto, o de “adaptar a geração que desponta a
essa grande forma de civilização pacífica, que é a honra do nosso
século, e se-lo-á, com certeza, dos séculos futuros (COELHO,
1891, p.357)”.

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Verifica-se, no propósito de tornar da educação uma


ciência exata e adequada ao seu meio, uma nítida matriz
evolucionista, expressa por algum darwinismo social. Este pontua
a raça e a vocação dos povos como dimensão fundadora de sua
identidade. Além disso, à semelhança de Spencer (s/d), compara-se
a infância da raça com aquela do indivíduo na civilização,
procurando destacar similitudes e analogias entre o caminho
trilhado pela espécie em seu traçado evolutivo e o percurso
individual. Herdeiro do discurso médico e higienista que circulava
à época (STEPHANOU, 1999, passim), o racismo é, para tanto,
inequívoco:

Se a inteligência da raça se desenvolve lentamente,


subindo do concreto ao abstrato e organizando
associações mais e mais nítidas ou vastas e percebendo
relações mais e mais delicadas e elevando-se da lenda
poética à história científica, da hipótese empírica à
concepção racional e positiva, da explicação dos
fenômenos pela intervenção de vontades à noção de
experiências conceptuais organizadas, também a
inteligência do indivíduo – tanto quanto o permite a
noção incompleta que, hoje possuímos acerca de sua
evolução psicológica – se revela passando por todos esses
estados, se nos mostra erguendo-se do seio do mundo
concreto e sensível para se elevar lentamente até as mais
abstratas combinações mentais. Sob o ponto de vista
emocional e moral, a mesma persistência de analogias.
Assim, os sentimentos da raça transformam-se
lentamente de egoístas em altruístas, sucedendo à fereza a
doçura, ao egoísmo oriental ou romano o altruísmo das
nossas sociedades verdadeiramente civilizadas; desta
maneira o homem modifica-se para melhor, elevando-se
desse fundo de indiferença egoísta, que só ama o que lhe é
útil, até esse nobre altruísmo que tantas vezes se traduz
em rasgos de ardente patriotismo e de amor para com os
outros homens (COELHO, 1891, p.382-3)

Augusto Coelho aqui definirá a educação como uma


atitude correlata à dinâmica genética; uma estratégia para

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potencializar as forças vitais do organismo: “operação por via da


qual, sob a influência de condições previamente prefixas,
desenvolvemos sistematicamente as faculdades físicas e mentais
dum indivíduo ou grupo de indivíduos em ordem a aperfeiçoá-los
em relação a um dado fim (COELHO, 1909, p.27-8)’. Do
mesmo modo, o ensino é compreendido como “operação por via da
qual acumulamos sistematicamente na mente dum indivíduo ou
grupo de indivíduos determinado número de noções acerca dum
dado objeto (COELHO, 1909, p.28)”. Por tudo isso, seria
fundamental estipularem-se mecanismos como prêmios que
servissem de emulação aos estudantes; e, por outro lado,
exigências como a dos exames, que registrariam a materialidade da
obrigação na vida escolar. Nem uns nem outros poderiam ser
dispensados, à luz da mentalidade do aluno português.
A visão de mundo evolucionista aliava-se a um confessado
entusiasmo perante a causa de uma educação cientificamente
orientada. Dirigir energias, canalizar aptidões, mobilizar esforços e
interesses do aluno seriam tarefas necessárias ao desenvolvimento
sistemático sugerido para a ação educativa. Assim como a filosofia,
a pedagogia - segundo Coelho - pairaria acima das diferentes
ciências. Se aquela tem por primordial função o questionamento e
a crítica, essa última acata a mentalidade de seu tempo; e – sem
maiores indagações - faz com que seus principais significados
sejam espraiados.:
É sublinhada a tradução, por parte do autor, de suas
premissas filosóficas; sutilmente expostas como se de
possibilidades pedagógicas fossem constituídas. Tal transmutação
incidiria diretamente sobre o campo dos saberes escolares. Além de
saber como educar e quais as finalidades primeiras da ação
educativa, pensava-se ser necessário firmar ‘o quê’ deve ser
ensinado. Este seria o campo de intervenção direta do educador; a
quem caberia efetuar, com o resguardo da ciência possível, uma
síntese que só a pedagogia o habilitaria a fazer. Todos os escritos
de Augusto Coelho caminham nessa direção: procurando

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transformar em modos e em roteiros prescritivos uma vasta e


complexa filosofia da educação.

Exercício escolar: análise e sínteses recapitulativas

Augusto Coelho escreveu para vários públicos. Pensou a


filosofia do ensino, mas dedicou-se a estudar também as reformas
e os métodos pedagógicos em voga à época. Seus escritos
destacam-se pela marcada inspiração positivista; sem descuidar,
todavia, de indicar caminhos para uso específico de situações
concretas de ensino. Tratava-se de um pensamento que, abstraído
das realidades da sala de aula, pretendia chegar a elas. Daí sua
preocupação também quanto à elaboração de alguns trabalhos para
um público mais amplo; como obras de divulgação. Cioso de sua
preocupação com o ensino e com a formação dos educadores
portugueses, produziu vários ensaios pensados como livros
didáticos a serem adotados pelas Escolas Normais, dirigidas à
formação de professores: Elementos de pedagogia para uso dos
alunos das escolas normais primárias; Noções de Pedagogia
Elementar; Manual prático de pedagogia.
Os manuais didáticos de Augusto Coelho compendiam o
conjunto daquela sua obra primordial – o Princípio de
Pedagogia. Nesse sentido, Augusto Coelho sistematizaria – e, ao
mesmo tempo, simplificaria - suas matrizes teóricas. Pode-se dizer
que, para o caso português, Augusto Coelho teria sido um dos
principais nomes da Pedagogia auto-proclamada científica. Sob tal
referência, interpelava, em seu trabalho, uma verdadeira
constelação teórica, da qual se teria apropriado de maneira muito
sua, bastante específica. Nitidamente filiado ao modelo do tratado
pedagógico – nos termos da classificação de Marta Carvalho –
postulava uma acepção positivista de educação. O ensino era
importante. Dever-se-ia, sim, pensar no método. Mas o
fundamental seria compreender efetivamente o complexo sistema
de mecanismos biológicos, psicológicos, cognitivos e sociais; que,
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entrelaçados, permitiriam uma interpretação mais ampla do


fenômeno educativo. Havia claras estratégias de divulgação de
modelos teóricos e referências conceituais que – firmadas a partir
de algum darwinismo social - reconstituíam tais representações de
mundo à luz de um postulado indispensável à pretensão de
metodologia para o ensino, intrínseca à escrita das obras de um
autor que acreditava na educação como ferramenta e método de
regeneração, em futuro, do passado.
O Manual Prático de Pedagogia para Uso dos
Professores em Geral e em Especial dos Professores em Geral
e em Especial dos Professores de Ensino Médio e Primário
constitui declaradamente um material didático para formação de
professores. Trata-se de um livro de Pedagogia, que apresenta seu
campo de alcance à luz do que nomeava ‘ciência da educação’. O
texto é composto por várias partes que integram o que é
apresentado como conhecimento científico da matéria da
educação. Explica que não seria possível proceder ao ato educativo
caso não se conheça “quer do ser que se ensina e educa, quer dos
princípios mais essenciais da Ciência teórica em que se funda”.
Sem um sólido saber pedagógico, criteriosamente palmilhado, o
professor “avançará constantemente às cegas (COELHO, s\d,
p.5)”. Isso porque:

Ocupando-se a Pedagogia prática de aplicar na esfera do


ensino os princípios fundamentais da Ciência da
Educação, ela só poderá ser verdadeiramente racional
quando tiver por base da sua constituição o
conhecimento, quer do ser que se ensina e educação, quer
dos princípios da Ciência teórica em que se funda
(COELHO, s\d, p.5)

Para teorizar sobre educação, o autor discorre sobre a


constituição fisiológica do homem, em suas estruturas e em suas
funções. Mediante nítida caracterização biológica, são sublinhadas
as impressões que tendem a se formar no ser humano a partir da
influência do ambiente externo. Nesse lugar de adaptação do

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homem ao meio que o circunscreve é que se coloca a


potencialidade do ato educativo. As idéias compor-se-iam como
frutos do entrelaçamento do ambiente com a fisiologia e a
consciência.
A operação intelectual básica implicada no aprendizado
consistiria na dinâmica sucessiva de análise e síntese,
procedimento mediante o qual o espírito se debruça para decompor
e recompor o objeto. Esse modo de operar do pensamento seria
essencial para o professor. O aluno – para ter clareza sobre um
objeto qualquer – deverá ser a ele apresentado à luz de uma
metódica decomposição de suas partes e observação meticulosa de
cada uma delas; para em seguida voltar ao todo do objeto, a partir
da reunião dos elementos anteriormente decompostos. A
decomposição, que resulta na análise do objeto, é o movimento
tendente a sua particularização. A síntese, que estrutura a
dinâmica de regresso à idéia geral, anteriormente decomposta, será
tendente à generalização. De qualquer maneira, o passo final
consistiria na comparação das idéias. Tal comparação sugere já um
ato de classificação do mesmo objeto. Todos esses atos intelectuais
seriam requisitos da formação do juízo; sendo, pelo mesmo
motivo, aspectos fundamentais para serem observados na prática
de ensino. Diz, a respeito disso, o autor:

A análise e a síntese são, como dissemos, operações da


mais alta importância para o professor. Como será, com
efeito, possível oferecer ao aluno a noção clara dum
objeto, se este não for previamente desagregado nas suas
partes e nas partes dessas partes? Como seria, por
exemplo, possível oferecer a um aluno, a noção nítida de
um relógio, se não procedêssemos em ordem de
apresentar-se, primeiramente, como uma síntese obscura
e confusa, se, em seguida, lh’o não decompusermos nas
suas partes, se não lhe caracterizarmos essas partes, e, se,
finalmente, reunindo-as, por síntese, não terminarmos
por lh’o apresentar como um todo claro e definido?
(COELHO, s\d, p.34)

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Para assinalar a idéia de experiência, o autor reporta-se a


operações mentais que estabelecem, no mundo objetivo, relações
entre os objetos existentes e as idéias a eles relativas –
consubstanciadas em juízos – presentes na mente do sujeito.
Trata-se, portanto, de uma estratégia que possibilita a
aproximação entre o nível do sujeito e o do objeto. A própria
ciência seria um resultado da experiência humana. A educação
também. A idéia central do autor reside na hipótese de que o ato
de ensinar deve ser efetivamente um processo combinado entre
decomposições e recomposições; de maneira a que – por
mecanismos de análise e de síntese – possam-se firmar naqueles a
quem ensinamos as relações entre as idéias e a realidade.
A teoria pedagógica de Augusto Coelho é muito próxima
dos princípios teóricos enunciados no tratado intitulado Pedagogia
geral, no qual Johann Friedrich Herbart explicita que o decurso do
ensino pode se orientar tanto por uma rota analítica quanto por
uma via sintética. O ensino analítico, nesse sentido, optaria por
“mergulhar sucessivamente a atenção no cada vez mais pequeno,
para assim dar clareza e pureza às noções (HERBART, 2003,
p.98)”. Ao decompor o específico, o ensino analítico – de acordo
com Herbart – reparte as coisas em partes, até alcançar aquilo que
não mais pode ser isolado. A lógica didática dessa operação seria a
seguinte: “o que é simples é mais facilmente compreendido do que
aquilo que é complexo. As representações têm mais força, tendo-
lhes sido subtraída a dispersão através da variedade e
multiplicidade (HERBART, 2003, p.100)”. O caminho sintético
seria o procedimento mediante o qual se constrói o edifício do
pensamento. Ele, a um só tempo, daria os elementos e organizaria
suas interligações (HERBART, 2003, p.102).
No limite, tais considerações tinham por pressuposto uma
dada idéia de método que supunha uma articulação entre
diferentes momentos do ensino. O pensamento de Herbart
indicava claramente o caminho que, de alguma maneira, era
também abraçado por Augusto Coelho:

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Os elementos maiores compõem-se de mais pequenos e


os mais pequenos de outros menores. Em cada elemento
menor há quatro graus de ensino a distinguir, uma vez
que ele deve conduzir à clareza, à associação, à ordenação
e à seqüência desta ordem. O que aqui acontece em
rápida sucessão segue mais lentamente, precisamente
onde a partir dos elementos ínfimos se compõem os que
são imediatamente maiores, e isto com intervalos de
tempo sempre maiores, quanto mais elevados forem os
graus de consciência que eles quiserem subir
(HERBART, 2003, p.87)

Se a primeira seção do Manual de Augusto Coelho


centra-se sobre as operações epistemológicas compreendidas na
fisiologia e na psicologia humanas, a segunda seção do texto
debruça-se sobre o tema da educação. Antes de tudo, procura-se
definir os atributos que permitem o ato educativo no tratamento
da condição humana. O autor ocupa-se, então, de destacar os
fatores inamovíveis da vida do ser: aqueles transmitidos
irredutivelmente por efeito da hereditariedade étnica. Há no
pensamento do autor a crença em um dado caráter do povo,
resultante do efeito de longa duração da matriz étnica herdada.
O evolucionismo era marca de sua época e não deixou de
marcar seu pensamento. Coelho ressalta, contudo, que as aptidões
intelectuais seriam mais fortes do que aqueles caracteres atávicos –
herdados dos antepassados. Haveria, então, um impulso
transformador no percurso de desenvolução humana. Nesse
sentido, a educação seria ação consciente e intencional com
finalidade de aprimorar as condições individuais de vida; e,
melhorando o ser individual, contribuir para aperfeiçoar também
os povos. Haveria, portanto, um ente coletivo que é o objeto maior
da educação professada.
A transformação de cada ser em sua singularidade
atingiria o meio – finalidade maior. É por isso que ao educador
compete desenhar a cartografia do meio no qual o educando deverá
ser adaptado, tanto no sentido físico quanto mental. Ao educador
competirá fazer o educando viver no ambiente da civilização.
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Assim, o termo que equivale à prática do educador é - neste texto -


a palavra agente. Como agente, o educador contribui em uma
dupla mão: tanto semeando o terreno para onde conduzirá seu
discípulo quanto modificando nele tudo o que for necessário para
que possa adequadamente se adaptar a esse ambiente previamente
projetado. Assim define-se: “educação como consistindo na
operação destinada a estabelecer em torno do educando as
condições exteriores constitutivas do meio em cujo seio se deve
desenvolver, em ordem a modificá-lo sistematicamente até o
adaptar a uma dada civilização na sua forma mais perfeita
(COELHO, s\d, p.70)”.
A educação agiria como um corretor necessário da obra da
natureza. Supõe o autor que, durante o percurso da formação
educativa, o indivíduo percorreria várias etapas que teriam por
finalidade a recapitulação: “em suma, realizando consciente e
deliberada e resumidamente durante a curta evolução da vida
individual uma obra de aperfeiçoamento como aquela que, em
relação à totalidade da raça, a natureza espontaneamente realizará
(COELHO, s\d, p.71)”.
A educação teria como propósito fundamental modificar
no indivíduo os caracteres passíveis de desenvolução; atributos que
seriam modificáveis. Isso requereria o recurso a exercícios
sistemáticos e progressivamente dirigidos, de modo a que a ação
educadora incidisse efetivamente sobre as aptidões a serem
mobilizadas, sobre tudo o que fosse sujeito a receber a ação do
aperfeiçoamento progressivo. Supunha o autor que a ação
educativa, atuando progressivamente nas condições individuais
teria por efeito de longo prazo a intervenção mais ampla no
domínio da espécie, transformando o caráter moral dos povos.
Supunha-se que a educação poderia regenerar raças e nações. Daí
a relevância da ciência pedagógica como uma tecnologia de
intervenção na própria raça. Nesse sentido, as energias intelectuais
e físicas devem ser aprimoradas e exploradas por metódicos
exercícios; os quais agirão em duas direções: “no primeiro caso,

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adapta determinadas energias, por via de metódicos exercícios, a


certos fins; no segundo, mobília o espírito do educando com um
certo número de noções acerca do mundo interior e exterior: em
suma, no primeiro caso, educa; no segundo, instrui (COELHO,
s\d, p.82)”.
A plasticidade humana tem por principal indício a
capacidade de aprender. O autor não omite sua crença no poder do
exercício escolar (que se segue à exposição/lição do professor) como
fonte de aprendizado. Por meio do aprendizado, ocorreria
transformação de índoles, aptidões e até mesmo tendências dadas
– à partida - pela natureza. Por meio de práticas continuamente
exercitadas, parecia possível desenvolver tanto as energias
intelectuais quanto as predisposições técnicas e artísticas.
Ao instruir, o educador mobiliaria o espírito do aluno com
noções acerca do mundo. Assim, a tarefa da educação seria,
portanto, paralela ao ofício da instrução, já que o educador
deveria, para cumprir integralmente sua tarefa,

(...) quer mobiliar o espírito do aluno com noções


importantes acerca dos processos técnicos ou técnico-
estéticos e das matérias-primas a transformar e dos
instrumentos a utilizar e dos produtos a realizar, quer
adaptar-lhe os sentidos e os movimentos à produção de
coisas úteis ou belas; assim, a par da instrução destinada
a ministrar noções teóricas, há de avançar paralelamente
a educação destinada a ministrar a adaptação prática das
mãos e dos sentidos (COELHO, s\d, p.84)

Caberia à Pedagogia – em sua condição de ciência – a


formação do espírito e do físico, a educação e a instrução, o
desenvolvimento técnico e estético; enfim, a educação moral, física
e intelectual. Isso implicava, a um só tempo, a educação do
raciocínio, a formação do juízo, o treino da memória, a
estruturação de regras de conduta e hábitos de moralidade.
Os princípios de Pedagogia seriam configurados, por sua
vez, como se compusessem o corpo do saber humano, perante o

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postulado de uma natureza essencial que preside cada


conhecimento a ser transmitido, ensinado e aprendido. Para
identificar o conhecimento a ser multiplicado pela ação educativa,
dever-se-ia, antes de tudo, “caracterizar a natureza essencial desse
objeto de ensino, resumi-lo reduzindo-o aos seus elementos mais
fundamentais, decompô-lo e recompô-lo, ordenar e coordenar-lhe
os elementos dispondo-os numa certa ordem, e, finalmente,
apresentá-lo ao aluno pela maneira mais clara e viva e atraente
(COELHO, s\d, p.87-88)”.
Dessa primeira declaração de princípios, evidentemente,
serão desmembrados outros preceitos, atinentes, em geral, ao
modo por meio do qual esse conhecimento pedagógico viria a se
organizar. Essa parte, Augusto Coelho a chama de pedagogia
prática, composta fundamentalmente sob o eixo da Didática.
Nesse caso, apresenta-se primeiramente a Didática Geral,
estruturada mediante o que o autor nomeia de objeto de ensino,
método de ensino e processo de ensino. Segue-se a Didática
Especial, que se compunha pelas diferentes metodologias de ensino
de ciências, de línguas e de aplicações técnicas. A Didática
corresponderia a um elemento de aplicação do saber pedagógico.
Claramente, se Pedagogia é ciência, Didática é tecnologia. Para
ensinar, a operação seria simples:
• Coloca-se, diante da inteligência do aluno, um objeto
novo. Este é visto e apreendido como uma totalidade
confusa.
• Para tornar familiar o mesmo objeto, cumpre
decompô-lo nas diferentes partes que o compõem, de
maneira a que tanto as propriedades de cada parte
especificamente quanto a relação entre as diferentes
partes se tornem clara aos alunos.
• Depois de desagregar as partes do objeto apresentado,
o aluno deverá fazer um esforço de reconstituição

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daquele todo anteriormente apresentado. Da análise,


passa-se então à tarefa da síntese.
Sem a decomposição, o aluno não descobriria a lógica
interna ao objeto. Sem o esforço contrário - da recomposição - o
objeto como um todo não apareceria de maneira precisa diante de
seus olhos. É por isso que o ato pedagógico seria, no limite, uma
recapitulação continuada de objetos que se apresentam e se
reapresentam sempre em degraus maiores de complexidade. As
noções sobre um assunto que ficam na memória do indivíduo
seriam interpeladas por outras informações acerca do mesmo
tema; processo que requererá recapitulação das noções já presentes
no espírito acerca do assunto, sua rememoração e associação das
mesmas noções recapituladas com elementos novos que ampliam o
diâmetro do objeto pensado. Ampliar o conhecimento seria
adquirir, portanto, mais amplos elementos sobre as mesmas
coisas... Aí estaria o maior desafia colocado diante do educador.
Sendo assim - supõe Augusto Coelho - a recapitulação das
matérias, das informações e dos fatos seria uma das mais preciosas
sínteses para fomentar o aprendizado. O professor indicará o
objeto e as diferentes partes de que ele se compõe. O espírito do
aluno recompõe, pela identificação da relação entre as partes, o
objeto completo que lhe havia sido apresentado. Assim, aquela
primeira impressão, ainda sincrética do objeto, seria reconstituída
em uma compreensão mais profunda porque com mais elementos
de compreensão.

Na vida escolar, ao pormos diante da inteligência do


aluno um objeto novo, este aparece-lhe sempre como
uma síntese, obscura e confusa, de elementos
desconhecidos: que cumpre, então, desfazer para lhe dar
acerca dele uma noção clara? Primeiramente,
desagregando-o nas suas partes e nas partes dessas partes,
determinar no seu espírito, quer idéias claras e nítidas
acerca de cada elemento trazido à luz, quer relações entre
esses elementos e os seus atributos, relações que,
convenientemente generalizadas, constituirão para cada

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um deles e para o objeto total as suas propriedades


características. Mas a noção de objeto, assim analisado,
ficaria incompleta se, depois de haver operado uma tal
desagregação nas esferas objetiva e subjetiva, o aluno não
reconstituísse, por via de uma síntese bem ordenada quer
à custa dos seus elementos abstratos o objeto total
oferecido à sua contemplação, quer à custa das noções
simples relativas a tais elementos a noção relativa ao
objeto composto: só depois de se haverem realizado as
duas operações, o objeto primitivo – a princípio uma
verdadeira síntese obscura e confusa – se tornará para o
aluno uma síntese clara e distinta (COELHO, s/d,
p.144)

O esforço da recapitulação da matéria produzirá, na


mente do aluno, a síntese, não apenas pela revisão do tema, mas
pela ampliação do mesmo no espírito do sujeito: aprende-se pela
rememoração continuada, progressiva, em espiral...

Como é sabido, as sínteses desta última espécie são da


mais alta importância, visto que só recapitulando uma e
muitas vezes noções adquiridas pode o aluno, quer defini-
las mais claramente no espírito, quer consolidá-las na
mente de uma maneira indestrutível. O professor que,
amontoando sucessivamente no espírito do aluno noções
variadas, não lhe impõe recapitulações sucessivas, é
indigno de tal nome e falseia sua missão; a recapitulação,
realizada em condições pedagógicas, é a alma da clareza e
consolidação das noções adquiridas e, portanto, uma das
bases fundamentais do bom ensino (COELHO, s\d,
p.148)

As sínteses recapitulativas, operadas especialmente


mediante forma sistemática de sistemas de avaliação ou exames,
conduziria essa reconstituição – no espírito do aluno – dos objetos
de estudo trabalhados por cada específica matéria, ao longo de um
percurso de tempo qualquer - fosse o mês, a semana, o bimestre ou
o ano letivo. A temporalidade pedagógica era, assim, constituída.
Expunha o texto de Augusto Coelho as bases indicadoras do que

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hoje chamaríamos de “ensino tradicional”. O método era


explicitamente verbalista e a operação pedagógica consistia
fundamentalmente na exposição e no exercício continuado,
articulado e progressivamente tornado mais complexo. O método
era seriado e o ensino acontecia pautado por sequências didáticas.
Havia, portanto, um modo ordenado de se apresentar aos alunos
os conteúdos das matérias. Um segredo do ofício do magistério
residia na concentração do professor para que sua aula não fosse
desviada do objetivo e do objeto da lição. Era necessário ater-se ao
tema e ao problema intelectual exposto verbalmente. Qualquer
digressão deveria ser, portanto, bastante disciplinada:

O objeto da lição é sempre o objeto da lição; e as


digressões efetuadas na esfera de objetos de ensino -
pertencentes, quer à mesma série, quer às séries colaterais
- nunca deverão perder, em relação ao objeto principal, o
simples caráter de elucidativas, e, portanto, jamais
poderão sobrepor-se abusivamente ao assunto
fundamental (COELHO, s\d, p.152)

A disposição do conjunto das informações em uma


ordenação clara, precisa e didática seria tarefa essencial à boa
conformação do saber ensinado. A ordem pedagógica cuidava de
estabelecer uma hierarquia, uma seqüência, um lugar e um tempo
para apresentação de cada um dos objetos da matéria ensinada:
“do homogêneo para o heterogêneo; (...) do obscuro, confuso e
indefinido para o claro, distinto e definido; (...) do conhecido para
o desconhecido (COELHO, s/d, p.155)”. Uma série de saberes
devidamente encadeados constituiria o segredo da ação pedagógica.
A mesma coordenação dos argumentos didáticos distribuiria o
conhecimento escolar em diferentes disciplinas. Essas expressar-se-
iam

[...] quer paralelamente, isto é, ao lado umas das outras,


quer encadeadamente sobrepondo-se umas às outras; no
primeiro caso, avançando todas a par e surgindo os seus
objetos docentes perante o espírito do aluno ao mesmo

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tempo e atraindo assim simultaneamente para direções


intelectuais variadas, patentear-lhe-ão o espetáculo
oferecido pela história da raça ao criar a ciência; no
segundo caso, surgindo umas depois das outras,
sobrepondo-se as mais gerais e abstratas às mais
particulares e concretas, darão ao aluno o espetáculo
oferecido pela história do saber humano ao dispor, em
ordem dogmática, as diversas ciências uma vez
constituídas (COELHO, s/d, p.160)

Augusto Coelho estabelecia interlocução com os critérios


articuladores da transposição do conhecimento pelo argumento
didático. Sendo assim, pensava-se a cultura escolar como um
programa de ensino, mas também como um método de conhecer.
Tão importante quanto o saber ensinado era atentar para
o processo que dava lugar ao ensino. Cabia meditar sobre os
modos mediantes os quais “o professor oferecerá ao aluno o objeto
do saber cujas noções a este cumpre adquirir e consolidar e lhe
desenvolverá as faculdades postas em jogo em tal aquisição e
consolidação (COELHO, s/d, p.172)”. A atenção do aluno era,
portanto, disputada e conquistada, por meio de um modo de
apresentação atraente daqueles que seriam os objetos do ensino.
As coisas precisavam ser postas diante dos olhos das crianças de
uma maneira clara, distinta, coerente e viva. As faculdades que
interagem com o aprendizado não são apenas aquelas que falam ao
campo intelectual, mas são também físicas, morais emocionais e
afetivas. É por isso que, ao professor, caberá desenvolver algum
bom senso – para se orientar na vida prática. Os componentes
estruturais emocional, racional e afetivo deverão vir equilibrados
em uma justa proporção – a qual será intransigentemente
requerida na ação prática.

Um professor sem vida, arrastado, sonolento convida


quantos o ouvem ao adormecimento e à apatia; que um
certo calor avive, pois, todos os seus atos, prenda às suas
palavras todas as atenções, atraia - pela sua exposição -
todos os espíritos. Estas qualidades, sendo de caráter

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geral, não podem constituir o patrimônio exclusivo do


professor; mas, além delas, outras há que mais
especialmente deverá possuir para desempenhar
cabalmente as suas difíceis funções (COELHO, s/d,
p.175-6)

Em relação ao gesto de ensinar, haveria um duplo critério


para assinalar a diferença entre o bom professor e aquele que não o
era.

“Em relação ao objeto docente:


• Posse plena do objeto de ensino;
• Espírito de análise, quer para o delimitar e definir
clara e nitidamente em relação a outros objetos, quer
para o decompor nos seus elementos componentes;
• Espírito de síntese, quer para recompor os objetos à
custa dos seus elementos, quer para recompor,
recapitular ou resumir as noções que lhes dizem
respeito;
• Um certo equilíbrio entre estas duas aptidões, quer
para não se perder, mercê de uma análise exagerada,
em minúcias inúteis, quer para não se abalançar,
mercê de uma síntese precipitada, a unificações mal
preparadas.

“Em relação ao método de ensino:


• Espírito bem acentuado de ordenação pedagógica
para, numa mesma série, se lhe disporem no mais
natural e lógico encadeamento os diversos objetos de
ensino.
• Espírito bem ponderado de coordenação, a fim de
estabelecer uma racional convergência dos objetos de
ensino pertencentes a séries ou disciplinas diversas
para com o objeto especial de que tratar, sem contudo
se diluir por aqueles a atenção do aluno, com tanta
demasia que este fique prejudicado.

“Em relação aos processos de ensino:

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• Clareza e distinção na apresentação do objeto docente


das decomposições a efetuar sobre ele, das sínteses a
realizar, da ordem a estabelecer entre todas estas
operações e elementos;
• Animação proporcionada à natureza do objeto de
ensino a ministrar ou da operação a realizar
(COELHO, s/d, p.176-7)
Deveria existir uma clara ordenação quanto aos
procedimentos adotados para o ensino. Só assim as coisas
verdadeiramente importantes seriam efetivamente apreendidas pelo
espírito do estudante. Cabia perscrutar o objeto, tendo em vista a
definição de boas sínteses. Para tanto, cumpria observar uma
ordem metódica para se dispor os vários objetos de ensino. Sob tal
procedimento, noções dispensáveis, supérfluas ou confusas
deveriam ser afastadas do processo de ensino. Apenas informações
claras, sintéticas e concatenadas se manteriam. Propugnava-se
uma ordem hábil em classificar previamente o conhecimento
transmitido. Naquele final do século XIX, bem como no princípio
do século XX, a principal marca do repertório pedagógico em
língua portuguesa inscrevia-se na suposição de que o
desenvolvimento da criança seria correlato ao desenvolvimento da
raça; podendo o primeiro ser compreendido pela apreensão dos
códigos que teriam norteado o segundo. Educar era procedimento
imprescindível para aprimorar os povos; e fazer prosperar as
nações. Ora, compreendia-se, porém, que nem todos seriam
atingidos pelo efeito da educação. Não era qualquer um que
poderia ensinar; porque apenas os iniciados poderiam despertar
aptidões, podar inclinações, desenvolver os caracteres; enfim,
modelar a alma. Esta tarefa seria reservada profissionalmente ao
educador de ofício. A pedagogia tornava-se, pois, ciência; ao
mesmo tempo em que se profissionalizava o ofício do magistério.
A necessidade de criar efetivamente uma ciência
pedagógica implicaria o preparo de um profissional dotado de
conhecimento e de vontade. A escola falhava - supunha Coelho -
porque falhavam os mestres. As lições eram, na maior parte das

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vezes, confusas e o professor geralmente não se fazia capaz de


transmitir para os estudantes um conhecimento que ele próprio
não teria sido capaz de assimilar. Faltava ao professor o domínio
da matéria e a necessária aptidão pedagógica. Desempenhar bem o
ofício do magistério era oferecer ao aluno idéias claras, distintas,
bem encadeadas uma às outras, estruturadas do mais simples para
o mais complexo, do particular para o geral. A marca cartesiana do
discurso é inconfundível. Mas o autor se queixa: não era isso que
se presenciava nas escolas da época:

Quanto tempo precioso e perdido muitas vezes nas


escolas, porque o espírito do professor se arrasta, longa e
sonolentamente, através de mil minúcias enfadonhas,
descosidas, despidas de verdadeira eficácia docente? E,
por outro lado, quantas confusões no espírito do aluno,
porque o professor, inábil para realizar uma análise,
ponderada e lenta e gradual, do objeto de ensino, lhe atira
para a memória atropeladamente noções sem nexo, idéias
sem clareza, produtos de análises que foram incompletas,
resultados de sínteses que foram intempestivas? E que
diremos da falta de ordem metódica na disposição dos
diversos objetos de ensino e noções a eles relativas? (...)
Se não há clareza na apresentação das idéias, o aluno não
as perceberá; se não há distinção, tudo confundirá; se a
animação, que todo homem deveria ter falando ou
escrevendo, não é no professor proporcionada à operação
docente que realiza, umas vezes será demasiadamente vivo
e apressado não dando tempo ao espírito do aluno de fixar
bem distintamente os elementos duma análise, outras
vezes será demasiadamente lento prejudicando, nas
sínteses, a impressão do conjunto (COELHO, s/d,
p.178-9)

Augusto Coelho explicita a linguagem como privilegiada


estrutura para se buscar a correspondência entre pensamento e
realidade. O grande auxiliar do professor em seu processo de
ensino é a fala: mais do que materiais, matérias e métodos, o autor
valorizava esse lugar compartilhado de representação da realidade,
constituído pela linguagem verbal: “a tudo se presta a flexibilidade
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da palavra falada, tudo representa, tudo significa; por isso, o seu


poder como meio de apresentação docente excede o de todos os
outros processos de ensino; e daí a necessidade de a considerar
como centro para onde deverão convergir, como subordinados a
ela, todos os meios de objetivação pedagógica (COELHO, s/d,
p.187)”. A educação se estruturava, assim, como um roteiro
prescritivo. A autoridade do compêndio e a palavra diretora do
professor em aula seriam os eixos ordenadores do discurso
pedagógico.

O livro-compêndio como eco da palavra exposta em


classe

Um livro apresentava o outro. O Manual pratico de


pedagogia para uso dos professores em geral e em especial dos
professores de ensino médio e primário dedicava-se a explicitar
os significados didáticos do livro escolar. Para tanto, assinalava
suas principais características e os atributos necessários que
deveriam conferir sua identidade. Antes de tudo, diz Coelho, o
livro de ensino não será um livro-tratado; mas um livro-
compêndio (COELHO, s/d, p.208). Não bastava desenvolver o
conhecimento na profundidade que este exigiria para finalidades
científicas; mas seria fundamental explaná-lo com a clareza
suficiente para efeitos didáticos. A idéia de livro-compêndio
inscreve-se na tradição enciclopédica: propondo-se a estruturar um
mosaico de temas, cuja compreensão forneceria pistas para o
desvendamento de aspectos variados do real. Augusto Coelho
destaca, porém, que a escrita do livro traduzia a palavra
verbalizada. A disposição gráfica corresponderia, pois, aos sentidos
inscritos na exposição do professor. Essa adequação daquilo que
surge como estrutura fônica para o discurso impresso requereria
algumas modificações. Em primeiro lugar, seria distinto o
processo de apresentação pedagógica. Havia assim mudanças no
método e na própria matéria a ser ensinada. Era imperioso
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encontrar uma linguagem suficientemente clara, capaz de


estabelecer hierarquias e seqüências entre saberes pelo livro
veiculados. Embora tais matérias devessem primar por alguma
objetividade na apresentação, sem excessivas repetições, cumpria
atentar para as necessárias “sínteses recapitulativas” (COELHO,
s/d, p.211), que possibilitariam a consolidação do conhecimento
na memória do aluno.

Sob o ponto de vista da conformidade com o objeto


docente, pois que o livro não é mais do que a tradução
gráfica da apresentação oral das nossas idéias, cumpre
estabelecer o seguinte princípio: que, seja qual for a forma
a dar à apresentação das noções, deve ela, no livro, estar
sujeita às mesmas regras de conformidade estabelecidas
para a apresentação oral. Assim, quando o objeto de
ensino dever ser oferecido ao aluno dividido em partes,
como na apresentação oral – na apresentação gráfica será
adotada a forma partitiva; quando se tratar de teoremas
matemáticos, de regras práticas de conduta, de princípios,
em suma, que devem ser concisos na expressão, será
adotada a forma explicativa-resumida; quando se trate de
descrição de lugares ou narrações de fatos, a forma
explicativa, mais desenvolvida; e assim por diante
(COELHO, s/d, p.211-2)

O livro-compêndio proporcionaria um novo modo de o


indivíduo aproximar-se do conhecimento: uma forma diferente de
entrar em contato com temas ensinados. Tratava-se de organizar o
espaço e o tempo da leitura: da leitura em voz alta, da leitura
silenciosa, da leitura em classe, da leitura como tarefa para ir para
casa... A exposição e o livro: modos diferenciados de trabalhar com
o ensino, no segundo caso, um modo de apresentar as lições que se
propõe a ser ‘manual’. A estrutura gráfica e textual do discurso
daria pistas acerca da aula a ser desenvolvida. Palavras destacadas,
isoladas ou acentuadas em tipos diferentes teriam significados
próprios. A divisão dos parágrafos seria também elucidativa do
modo de ensino a ser adotado processualmente em cada específica
aula.
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Na forma dialogal-socrática, as noções donde há-de


derivar a noção a sugerir e as noções auxiliares e a noção
principal a descobrir e a resposta destinada a conter a
solução do problema – tudo deverá ser, em regra,
destacado em parágrafos distintos, e neste ainda
salientadas graficamente as palavras destinadas a exprimir
as idéias principais e tudo isto ainda bem ordenado em
harmonia com o pensamento (COELHO, s/d, p.214)

Ao término de cada capítulo do livro, deveriam ser


estruturados quadros sinóticos, organizados para recapitular em
sínteses breves a estrutura dos principais tópicos até então
trabalhados. Tratava-se de um esforço de síntese, também com o
propósito de ensinar o aluno a esquematizar os principais
conceitos, buscando associar os elementos do aprendizado, para
facilitar o trabalho da memória. Complementando a lição, haveria
em seguida um questionário que condensava “as perguntas que o
aluno pode fazer a si mesmo, a fim de verificar, de per si, o seu
próprio saber, devendo tais perguntas consubstanciar as mais
importantes noções relativas ao objeto a considerar (COELHO,
s/d, p.215)”.
Para que o livro escolar pudesse se materializar como um
recurso interessante para efeitos do aprendizado do estudante,
alguns cuidados gráficos deveriam também ser tomados:

1. O formato do livro deve ser elegante e prático;


2. Em todo ele deve dominar uma rigorosa coerência,
gráfica e ortográfica;
3. A página não deve oferecer o aspecto de um todo
compacto;
4. As linhas devem ser espaçadas ou faiadas;
5. Deve ser confeccionado de maneira a ser
metodicamente dividido com toda a clareza e nitidez,
em partes, seções, subseções e capítulos, etc.
Tais são, em resumo, as condições – interiores e
exteriores – que devem caracterizar o livro de ensino.
Neste lugar, cumpre, porém, acrescentar o seguinte: mais
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da habilidade do escritor didático do que dos nossos


conselhos e regras depende a concepção dum bom livro
escolar. As regras orientam sem dúvida os talentos bem
conformados e são, portanto, indispensáveis; mas só as
aptidões especiais cabe descobrir, num dado momento, os
meios secretos e variados a por em jogo, a fim de
conceber, ordenar e exprimir convenientemente os seus
pensamentos, e, portanto, constituir um livro de ensino
útil e eficaz (COELHO, s/d, p.215-6)”.

O livro de ensino, que, pelo discurso de Augusto Coelho,


teria a nítida finalidade de ensinar também o professor
(BITTENCOURT, 1993), poderia ser o típico livro do aluno; ou
poderia ser o livro do mestre. Este último desenvolvia mais
detidamente os conceitos e temas apresentados, colocando a
matéria em ordem e prescrevendo indicações e procedimentos
pedagógicos a serem adotados.
Com a dupla finalidade de apresentar ao estudante noções
novas a serem aprendidas e prover a memória de elementos que a
auxiliassem a consolidar os conceitos já apreendidos
anteriormente, o livro didático tornava-se protagonista da
escolarização. Porém, o autor não se cansava de advertir que o
livro – como suporte material do conhecimento - teria eficácia, em
geral, inferior à apresentação oral efetuada pelo professor. Sendo
assim, o uso do compêndio não substituiria a aula expositiva que –
ela sim – deveria introduzir novos temas a serem estudados. O
mesmo não ocorria quando se tratava de consolidação de noções já
adquiridas. Para esse efeito, o livro era também um instrumento
profícuo. Com o propósito de se valer do livro escolar, o professor
deveria atentar para tais cuidados com seu uso; sem os quais o
resultado poderia ficar comprometido.
Para consolidar o que já havia sido anteriormente
aprendido, o livro era tido por instrumento fundamental; um
auxiliar indispensável da palavra do professor. Sua tarefa seria
primordialmente a de rememorar o aprendizado; tornando-o mais
racionalizado. O livro deveria ser principalmente um recurso do

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professor para orientar a lição de casa; ou o estudo para além da


escola. Mas, como tal, ele não poderia substituir a aula; daí não
ser recomendado que um novo conceito fosse apresentado pelo
livro.
É como se a escola pretendesse regrar a leitura, mediando-
a pela palavra do profissional autorizado a falar o discurso do
ensino: o professor. A aquisição das novas idéias aconteceria a
partir da aula expositiva. O mestre explica a matéria; e faz isso de
maneira eficaz, com “a viveza, a animação, a maleabilidade duma
apresentação oral convenientemente auxiliada pela tangibilidade
dos processos empíricos: perante a vida impressiva duma
objetivação de tal ordem as páginas do livro são frias e mortas
(COELHO, s/d, p.218)”. Augusto Coelho diz que a exposição
oral era muito mais eficaz para marcar a alma do aluno:

(...) a nova idéia, envolta nas dobras duma exposição oral,


nítida e animadamente produzida, penetra mais
facilmente na alma do aluno, vai até o íntimo de sua
mentalidade. Uma vez adquirida por ele a idéia, torna-se,
porém, necessário consolida-la, amplia-la, resumi-la; ora,
para isso é indispensável um instrumento pedagógico que,
depois de se haver extinguido a palavra do professor, fixe
a idéia recebida através dela e, ampliando-a ou
resumindo-a, a ponha diante do espírito do aluno a todo
momento – duma maneira indestrutível. (...) Na evolução
por que passa uma noção desde sua primeira apresentação
ao aluno até a sua consolidação final, não é, em tal caso
pelo livro que a devemos iniciar, mas é por ele que a
devemos terminar: a apresentação oral, e empírica
facilitarão a aquisição da nova idéia; o livro, a sua
cristalização e consolidação final (COELHO, s/d, p.218-
9)

O livro escolar é compreendido, então, como


imprescindível dispositivo de memorização de idéias. Sua função
primordial será a de fixar na memória aquilo que, de alguma
maneira, fora apreendido anteriormente. Daí o fato de ser a casa
do aluno o local privilegiado para o uso do compêndio, fazendo
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parte das tarefas que a escola reserva para o estudante fazer para
além da classe. O livro escolar qualifica-se, nesse sentido, como
protagonista da ‘lição de casa’. A relevância conferida ao debate
sobre o papel educativo do livro tem por suposto tácito o
reconhecimento de um modelo científico para sua elaboração; para
sua impressão e para seu uso. Seus conteúdos e sua linguagem
devem acompanhar a fase educativa atravessada pelo aluno, de
acordo com a idade e o nível de desenvolvimento cognitivo para o
qual ele seria destinado. Por isso, nem sempre a abstração seria
um recurso adequado.

(...) pois que, na fase infantil, a inteligência do aluno não


comporta a abstração do livro (...); nos primeiros tempos
da escola primária elementar,o livro de ensino irá
penetrando lentamente no seu seio até se tornar, na
última fase, um instrumento definitivo de objetivação de
idéias; nas escolas médias, o livro de ensino, o livro-
compêndio, este grande cristalizador sistemático de
noções terá o seu principal campo de ação; nas escolas
superiores finalmente, perante alunos em pleno
desenvolvimento, este apoio indispensável da memória
cederá o passo ao livro-tratado, único onde o aluno pode
encontrar, em toda a plenitude do seu desenvolvimento,
as especialidades superiores que constituem o objeto do
seu estudo (COELHO, s/d, p.221)

Em seu programa voltado para A reforma do ensino


primário, datado de 1909, Augusto Coelho destacaria algumas
observações acerca dos livros de ensino, subdividindo-os em livros
do discípulo e livros do mestre. Esses últimos seriam
explicitamente “destinados a guiar os professores na apresentação
do objeto de ensino, tendo por alvo, quer ampliar e esclarecer as
matérias a ensinar, quer oferecer a quem ensina a indicação dos
processos de apresentação docente mais eficazes (COELHO,
1909, p.66)”. Note-se que há aqui o reconhecimento do caráter
de direção que o livro escolar desempenha. Guia do mestre, será
ele praticamente a estruturar o rumo e o ritmo das lições. A feição

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intelectual conferida à elaboração do livro didático é clara; embora


haja a recomendação de que o livro não se institua como um
substituto da voz do professor, especialmente na função
pedagógica pensada para o livro do discípulo:

Em relação à sua função pedagógica – os livros de texto


serão considerados, não como instrumentos destinados a
iniciar a apresentação de noções novas ao aluno,
apresentação que, em regra, deve ser sempre feita
intuitivamente pelo professor, mas antes a por a coroa
final nos resultados de tal apresentação, resumindo as
noções apresentadas, auxiliando a fixação e consolidação
destas na mente do aluno e favorecendo, mais tarde, a sua
rememoração. (COELHO, 1909, p.66)

Há aqui o reconhecimento do caráter de direção que o


livro escolar desempenha. O livro não deveria tornar-se, porém,
substituto da voz do professor. Havia o temor de que a cultura
impressa suplantasse a escolarização. Seria o livro didático um
candidato a abolir a escola nas sociedades? Com esse receio,
Coelho indica que o lugar pedagógico do livro não se deveria
exceder relativamente ao papel a ele reservado: o de instrumento
didático subordinado à vontade do professor. Cabe ao compêndio
apenas fazer a conversão, da palavra na aula, para a lição de casa.

Quadros sinóticos: distribuição da matéria nos espaços


da folha em branco

O trabalho de Augusto Coelho é minucioso ao intercalar


considerações de ordem filosófica e psicológica com a
materialidade de temas como o da distribuição dos livros ou as
condições dos edifícios escolares e a necessidade de sua adequação
para perfazer condições de higiene e de estrutura interna
compatíveis com a expectativa pedagógica de freqüência e de
aprendizado do coletivo dos alunos. Também os mobiliários
escolares são objetos de atenção por parte desse autor; que dá a ver
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seu intuito de adequá-los à idade e à constituição física das


crianças.
Augusto Coelho critica, todavia, a voga do ideário de
ensino intuitivo, que, do modo como ocorria, reduzia-se – segundo
ele - a um modismo, que se propunha, de maneira equivocada a
“aplicar a tudo sem ciência nem consciência o mecanismo da
processologia intuitiva (COELHO, s/d, p.224)”. O significado
primeiro dos processos intuitivos teria sua validação, sem dúvida,
na observação da natureza exterior e na perspectiva segundo a qual
poderia o próprio aluno construir seu próprio conhecimento, com
o auxílio do professor e da experiência advinda do ato de observar o
real. Se a função do professor era substancialmente a de
apresentar pela exposição oral novos conceitos e noções; se a
função do livro era tida sobretudo como a cristalização das
primeiras noções recebidas pelo estudante; a eficácia dos processos
empíricos estaria em sua capacidade de “realizar, como auxiliares
da objetivação oral, a apresentação de noções novas (COELHO,
s/d, p.224)”. Porém, aos livros de ensino caberia desenvolver uma
tarefa de síntese: a elaboração de esquemas que viessem a destacar
as palavras-chave da respectiva lição, de modo a efetuar, por meio
disso, o necessário recurso a procedimento de memorização.

Por via deles, é certo, podemos acentuar, e, portanto,


consolidar noções já adquiridas; sendo, porém, as sínteses,
bem elaboradas, a base de toda a rememoração de noções,
a flexibilidade cristalizadora e rememorativa, por
exemplo, dos quadros sinóticos no livro dão a este, em
relação à função recapitulativa, importância superior aos
processos empíricos. As figuras esquemáticas, as
ideografias, os próprios objetos reais são, acima de tudo,
admiravelmente adaptados à análise dos objetos do saber,
análise que há de derivar a aquisição das noções novas
acerca deles; mas a recapitulação de idéias já adquiridas, o
resumo consolidado dessas idéias, sendo uma operação
principalmente de caráter sintético, cabe, acima de tudo, à
flexibilidade e à generalidade instrumento de ensino que
caracteriza o livro-compêndio como instrumento de
ensino. (COELHO, s/d, p.226-7)
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As recomendações indicadas pelo autor poderiam ser,


portanto, assim sintetizadas. A linguagem falada seria o centro do
processo pedagógico, tendo, porém, recursos auxiliares para
proceder à eficácia no processo de ensino. O compêndio didático
exerceria essa função auxiliar da linguagem falada:

(...) é um instrumento destinado a consubstanciar as


noções que ao aluno cumpre consolidar, quer
desenvolvendo-as para as esclarecer, quer reduzindo-as
para as recapitular e fixar. Combinando-se entre si, o
livro e a linguagem falada devem, pois, auxiliar-se
mutuamente; e assim o objeto de ensino será oferecido ao
aluno de maneira que a apresentação oral preceda, em
regra, a apresentação por meio do livro de ensino
(COELHO, s/d, p.228)

Do mesmo modo que o livro age como um elemento de


apoio à memória e à fixação do conteúdo na mente do aluno, há
íntima conexão entre as fases em que acontece oralmente a
exposição da matéria e aquela em que as novas noções serão
cristalizadas e desenvolvidas por meio da objetivação que o recurso
do texto impresso oferece. Em relação aos processos empíricos,
aconteceria o mesmo; eles se situam como subsídio pedagógico do
professor e deverão se desenvolver paralelamente à exposição oral e
à fixação do escrito. As gravuras do livro constituiriam, por sua
vez, a representação do objeto apresentado, devendo, assim, haver
correspondência clara entre o assunto sobre o qual versa a lição e a
figura gráfica que ali ilustra a matéria: “na mesma página ou na
página fronteira, de modo que o aluno, conforme for adquirindo
as noções apresentadas no texto as vai mais facilmente
esclarecendo por via dos meios ideográficos que tem à vista
(COELHO, s/d, p.230-1)”.
O aluno é visto como um “receptáculo de impressões, uma
consciência onde brotam sensações e se elaboram idéias e juízos e
raciocínios (COELHO, s/d, p.233)”. Ministrar ensino a esse
aluno requer, portanto, o ato de desenvolver-lhe as faculdades

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mentais. Instruir-se envolverá alterações no desenvolvimento


intelectual. Daí o autor concluir que não há, portanto, ato
educativo que possa ser separado do ato de instruir - posto que “a
educação é uma resultante natural do próprio ato de instruir
(COELHO, s/d, p.234)”. Para o êxito do professor no processo
de instrução, haveria um requisito absolutamente necessário como
condição primordial para o aluno: mobilizar, para o aprendizado,
sua atenção; ou o poder intelectual de que dispõe para se propor a
apreender os objetos.

Que o aluno tenha aptidões talhadas para o habilitar a


rememorar e associar idéias, a formular juízos, a
arquitetar raciocínios, mas que tenha uma atenção ligeira
e móvel, e todos os esforços do professor serão
infrutíferos para o levar a bom caminho: a atenção é uma
parcela da vontade, e o querer aplicado à aquisividade de
conhecimentos; por isso, é indispensável que o aluno,
para nele o professor realizar qualquer aperfeiçoamento
intelectual, acima de tudo queira atender (COELHO,
s/d, p.234)

A atenção é aqui vista como uma força imprescindível que


impele ao aprendizado e que tem íntima conexão com o poder
volitivo daquele que aprende. Sua intensidade será variada “na
proporção direta das dificuldades inerentes ao objeto de ensino,
dependendo elas, quer da natureza intrínseca dum tal objeto, quer
das condições da sua apresentação (COELHO, s/d, p.243)”. Em
virtude do fato de a atenção ser um atributo com o qual o aluno
precisa contar, compete ao professor disciplinar seus estudantes
para que estes venham a querer ser atentos; querer, portanto,
aprender. Daí também derivariam os necessários cuidados quanto
a uma boa distribuição do tempo escolar, com o fito de que não se
venha a exigir do aluno mais do que sua constituição física e a
etapa específica de seu desenvolvimento possam permitir. Ao
professor, em primeiro lugar, era suposto o estudo das

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(...) predisposições intelectuais do seu aluno, a fim de


exigir dele apenas um esforço de aplicação compatível
com a sua natureza e tendências;
2º Deve calcular, com o maior cuidado, o tempo que o
aluno, sob a sua influência, consagra ao trabalho
intelectual e, portanto, ter sempre em vista
a) Que os trabalhos escolares não devem ir além do
tempo compatível com as forças de aplicação do aluno;
b) Que entre dois períodos de tempo dedicados, pelo
aluno, ao trabalho escolar haja sempre um período
compensador de descanso (COELHO, s/d, p.243)

A intensidade da atenção não será fixada de maneira


invariável, decrescendo tanto pela persistência por muito tempo de
um único objeto de conhecimento quanto pela direção simultânea
da mente para um conjunto excessivamente vasto de objetos de
saber. Por isso é necessário que o professor saiba apresentar pelo
tempo exato a matéria de conhecimento que pretende ser
conhecida por seu aluno; nem tempo a mais, nem tempo a menos.
Os modos de ensino deveriam variar de acordo com a
matéria a ser trabalhada pela aula; ainda que o autor manifeste sua
clara preferência pelo modo de ensino simultâneo. Alguns critérios
precisariam, entretanto, ser observados:

Um modo de ensino será tanto mais eficaz quanto maior


for o grau em que nele entrarem estas qualidades:
1º Pouco fatigante para o professor;
2º Mais direta a sua ação;
3º Mais compatível com o tempo de que o professor
dispõe para o ensino;
4º Mais apto a estabelecer íntima solidariedade entre os
alunos do mesmo grupo;
5º Mais próprio para conservar no maior grau de
atividade os alunos do grupo. (COELHO, s/d, p.261)

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Organizando e sistematizando a realidade social, o registro


escolar passa por “trechos selecionados” de leitura: estes, por sua
vez, constituem frações do relato autorizado; do mundo que se
pretende contar às crianças, com a finalidade de incutir
determinados estados de espírito e de comportamento desejados
pelas gerações adultas, particularmente pelas gerações adultas em
posição de poder no contexto social. A escola, que periodiza a
infância, periodiza também seu passado sócio-histórico. A
realidade social, tal como vem registrada nos compêndios
didáticos, coloca-se, assim, como a versão recomendada para
compreensão.
Augusto Coelho tencionava explicitamente disciplinar o
uso do livro. O estudo de seus escritos possibilitam ao estudioso da
História da Educação observar os suportes textuais como
estratégias de protocolos de leituras autorizadas e recomendadas
para a construção de uma sociedade pautada pela cultura das
letras. Produzir, escrever, distribuir, ler e divulgar o livro eram
tarefas que competiam aos intelectuais: aqueles que falavam da
infância para a geração adulta; aqueles que punham em perspectiva
os saberes com que a escola imprimia sua marca civilizatória.
Augusto Coelho revelava o livro escolar como bandeira e arma a
ser empunhada para edificar a feição portuguesa da moderna
civilização escolar.

Considerações finais: modos de agir em classe para


ensinar com êxito

À guisa de síntese, a obra de Augusto Coelho apresenta


roteiros e itinerários acerca do ato de ensinar. A própria pedagogia
confunde-se, sob tal perspectiva, com um saber teórico sobre a
prática de ensino – que se traveste em ações, mediante o domínio
do ritual de sala de aula.
Antes de tudo, o professor não é qualquer um; é aquele
que dispõe de atributos físicos (robustez para atrair simpatia dos
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alunos); atributos morais (verdadeiro homem de bem) e atributos


intelectuais. Neste último caso, ele precisará apresentar “suficiente
poder de observação, de retenção, de associabilidade, de indução e
de dedução, pois que todos estes modos de ser da atividade
intelectual – ao professor como a todo homem – são
indispensáveis nos usos da vida (COELHO, 1907, p.35)”. Além
de tudo isso, ele deve ter bom senso, visando ao necessário
equilíbrio na vida prática. Mas, sobretudo, a tarefa pedagógica se
singulariza pela sua dimensão moral: educar a vontade e conduzir
o aluno a encontrar por si “as leis e as regras destinadas a conduzi-
lo, quer, em geral, a respeitar os princípios de ordem, quer, em
especial, a aplicar a atenção ao estudo (COELHO, 1907, p.69)”.
Educar a vontade é, enfim, disciplinar. Educar significa contribuir
para o aprimoramento do discípulo; e, com ele, da espécie.
Ser professor – nos termos do livro Noções de pedagogia
elementar – é mediar palavras e gestos. É, sobretudo, valer-se das
próprias características pessoais, com o fito de compor seu estilo
de ser professor: uma maneira própria e singular mediante a qual
cada um realiza, a seu modo, a ação docente (COELHO, 1907,
p.61).
Quanto aos modos de agir em classe, trata-se, por um
lado, de expor: apresentar aos alunos – pela via da oralidade –
noções novas (COELHO, 1907, p.62). Mas talvez mais
importante do que essa função aqui chamada “presentativa” seria a
outra tarefa do professor: “rememorativa”. Nesse caso, o professor
irá “recordar, resumir e consolidar noções já adquiridas
(COELHO, 1907, p.62)”. Augusto Coelho relembra que a
exposição da matéria pode recorrer à forma do diálogo; que
mobilizará um conhecimento que o aluno já traz consigo. Nos
termos do autor, o modo de ensino será dialogal-socrático quando
vier a “apresentação do objeto de ensino, entrecortada por meio de
perguntas do professor e respostas do aluno, tendo em vista
despertar neste noções novas (COELHO, 1907, p.63)”.

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Enfim – apenas para rememorar - a pedagogia é “ciência


que trata da educação (COELHO, 1907, p.234)”. Bebe nas
outras ciências para proceder à tarefa que é só sua: organizar o
conhecimento na forma do ensino. Isso requererá habilidade e
destreza na comunicação do saber acumulado. Isso requererá o
domínio pleno dos saberes - objeto do ensino. Mas não é só isso: é
preciso também saber “limitar, caracterizar, resumir, decompor,
recompor, ordenar e apresentar (COELHO, 1907, p.235)”. Por
isso mesmo, a pedagogia pode ser compreendida como uma ciência
de síntese, que, enquanto tal, opõe-se à dispersão de um mundo
desordenado, tendente à fragmentação de múltiplas e
desconectadas informações.
A ação pedagógica será, nesse sentido, teórica e prática.
Os “pedagogistas” são – para Augusto Coelho - os “elaboradores
especulativos (COELHO, 1907, p.235)”. Precisam, para tanto,
ter visão de conjunto, espírito enciclopédico, “percepção apta a
distinguir, numa dada noção, o essencial do acidental, o
fundamental do acessório (COELHO, 1907, p.235)”; além das
faculdades de precisão, de clareza e da tendência a ordenar o saber.
Já os “aplicadores práticos” seriam os professores de sala de aula;
os que efetivamente colocam em ação os preceitos da profissão.
Suas características devem ser a simpatia – compreendendo nisso
“lhaneza, doçura, suavidade, benevolência, afetuosidade, etc
(COELHO, 1907, p.235)”. Sua suavidade e brandura teriam
uma dupla dimensão: a eficácia pedagógica e o valor moral. Como
o aluno tende a ser sensível a exemplos, ele admirará o professor
que agir desse modo; e ele o imitará. Nesse sentido, a pedagogia é
pensada como uma ciência que pretende melhorar moralmente a
Humanidade. Por ser assim, seus preceitos deverão ser
meticulosamente esquadrinhados. Tratava-se de um tempo em que
se acreditava em tudo isso: a pedagogia tinha um caráter
científico; e seu objeto - sua razão de ser - era o ensino.

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Carlota Josefina Malta Cardozo dos Reis Boto é doutora em


História Social pela FFLCH-USP, professora de Filosofia da
Educação na Faculdade de Educação da USP e Bolsista de
Produtividade em Pesquisa 2. E-mail: reisboto@usp.br

Recebido em: 15/04/2009


Aceito em: 20/12/2009

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 30 p. 9-60, Jan/Abr 2010.


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REVISTA DO ENSINO/RS
E MARIA DE LOURDES GASTAL:
DUAS HISTÓRIAS EM CONEXÃO
Beatriz T. Daudt Fischer

Resumo
O texto nasce do depoimento de Maria de Lourdes Gastal (1912-
2000), principal responsável por um verdadeiro acontecimento
discursivo de meados do século XX: a Revista do Ensino/RS (1951-
1978), publicação gaúcha que chegou a atingir cinqüenta mil
exemplares, circulando por todo Brasil na década de sessenta. Quem
de fato foi esta mulher, formada professora, porém tendo uma
trajetória tomada por atividades editoriais? Que relações de poder
atravessaram seu cotidiano? Como podemos articular suas iniciativas
à própria história do magistério? Estas e outras questões serviram
como norte desencadeador do processo de pesquisa biográfica que se
desenvolve neste trabalho.
Palavras-chave: Imprensa pedagógica; memória; história da
educação.

REVISTA DO ENSINO/RS AND MARIA DE LOURDES


GASTAL: TWO HISTORIES AT CONNECTION
Abstract
This paper arises from Maria de Lourdes Gastal’s statement, the
main responsable for a genuine discursive happening that took place
by the middle of the 20th century: the Revista do Ensino (Teaching
Magazine) RS (1951-1978), a publication from a southern state of
Brazil that reached 50 thousand copies around the country (Brazil)
in the 1960s. Who was, in fact, this woman, with a teaching career,
but also having her path paved with editorial activities? What sort of
power relationships came through her everyday life? How can we
relate her initiatives to the history of teaching? These and other
issues became the guidelines to the biographical research process that
is developed in this paper.
Keywords: Pedagogical press, memory, history of education.

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REVISTA DO ENSINO/RS Y MARIA DE LOURDES
GASTAL: DOS HISTORIAS IN CONEXIÓN
Resumen
El texto nace de las declaraciones de María de Lourdes Gastal (1912-
2000), principal responsable por un verdadero acontecimiento
discursivo de mediados del siglo XX: la Revista do Ensino (Revista de
la Enseñanza), publicación de Río Grande do Sul que llegó a
alcanzar cincuenta mil ejemplares y circuló por todo Brasil en la
década de sesenta. ¿Quién fue, de hecho, esta mujer graduada como
profesora, aunque con una trayectoria plagada de actividades
editoriales? ¿Qué relaciones de poder se mezclaron con su cotidiano?
¿Cómo podemos articular sus iniciativas a la propia historia del
magisterio? Estas y otras preguntas sirvieron como norte
desencadenador del proceso de investigación biográfica que se
desarrolla en este trabajo.
Palabras clave: Prensa pedagógica; memoria; historia de la
educación.

REVISTA DO ENSINO/RS ET MARIA DE LOURDES


GASTAL: DEUX HISTOIRES EN CONNEXION
Résumé
Ce texte naît du témoignange de Maria de Lourdes Gastal (1912-
2000), celle qui a été la principale responsable d’un important
événement discursif de la moitié du XXème siècle: la création de la
Revista do Ensino/RS (1951-1978), une publication du Rio Grande
do Sul qui a atteint les cinquante mille exemplaires et qui a circulé
partout au Brésil dans les années soixante. Qui a été en fait cette
femme, professeur qui a eu une trajectoire vouée aux activités
éditoriales ? Quelles relations de pouvoir ont traversé sa vie
quotidienne? Comment peut-on mettre ses initiatives en rapport avec
l’histoire même de l’enseignement? Ces questions, parmi d’autres,
ont servi comme déclencheurs du processus de recherche
biographique développée dans ce travail.
Mots-clés: Presse pédagogique; mémoire; histoire de l’éducation.

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Gosto muito de música francesa. Tenho um desgosto tão


grande: tive - não sei bem se foi quatro ou cinco - avós
que nasceram em Paris. Por que eu não nasci em Paris,
mon Dieu? Vim nascer na Rua da Margem...

Com essas palavras inicia o depoimento de Maria de


Lourdes Gastal, mulher e professora, nascida em Porto Alegre nos
idos de 1912. Fundadora e principal responsável por um
verdadeiro acontecimento discursivo de meados do século XX: a
Revista do Ensino RS (1951-1978)1. Em meio a suas recordações,
lembrando os saudosos tempos da Revista, ela vai, sutilmente,
enfileirando outras histórias. Mistura tempos, confunde nomes e
datas, e aproveita para incluir também seus lamentos, comparando
a situação em que hoje ela se encontra com seus prazeres de
outrora: “Tempo bom, Deus do céu! Eu fui rainha de... rainha da
primavera do Jocotó (clube social então existente em Porto Alegre).
Tem um retrato aí. Tudo são saudades. Tudo são lembranças...”.
Na caixa de papéis e outros guardados, muitas fotografias, uma
delas mostra uma bela moça, de estatura além da média, vestida
elegantemente, manteaux e chapéu denunciando uma tarde de
inverno porto-alegrense.
Diante da importância que representou a Revista do
Ensino no cenário brasileiro – um dispositivo de normalização e
regramento de professoras, a partir de estratégias simultâneas de
controle e louvor à resignação (FISCHER, 2005) - considerei
pertinente ir ao encontro daquela que teria sido a mentora e
desencadeadora mestra desse autêntico monumento editorial. Era
preciso, pois, conhecer esta mulher, sua personalidade e crenças,
bem como verificar se, através de suas lembranças, apareceriam
forças que lhe deram suporte para levar em frente aquela
empreitada. Para poder chegar até Maria de Lourdes Gastal fui
demarcando o terreno, juntando informações que me permitissem

1
Sobre a Revista do Ensino/RS, ver BASTOS (1997).

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traçar o mapa que me levasse ao tesouro. Quando, enfim, deparei-


me com essa mulher, vivi horas de muita emoção. E, ainda que ali
estivesse um corpo vergado, carregando o peso de seus 86 anos,
ainda que ali se esboçasse um sorriso amargo, escondendo a falta
dos dentes, estava diante de mim, sem dúvida, um ser que se
impunha por sua presença. Daqueles que jamais passam
despercebidos por onde andam, especialmente quando começam a
falar.
Aqui, pois, desdobram-se considerações a partir do
depoimento de Maria de Lourdes Gastal. Suas memórias pessoais
em parte se confundem com a própria história da Revista do
Ensino, publicação gaúcha que chegou a atingir cinqüenta mil
exemplares, circulando por todo Brasil na década de sessenta.
Lembrando os saudosos tempos, dona Maria vai sutilmente
enfileirando outras histórias, contando acerca de sua vida,
aparentemente uma pessoa medíocre, porém de fato evidenciando
práticas de mulher poderosa. Na medida em que a narrativa se
desdobra, é possível relacionar o êxito da Revista que dirigia com
esta personalidade que ali se revela: inteligência e criatividade,
energia e determinação, elementos propulsores para a
concretização de práticas que se impuseram por décadas.
Maria, aquela fortaleza dos anos cinqüenta e sessenta,
aquela mulher determinada, que enfrentara autoridades
proclamando seus ideais através de um importante espaço na
imprensa pedagógica, estava ali, rodeada por alguns poucos
pertences em seu quarto-e-sala na geriatria: estaria ali também
simbolizado o sintoma de decadência do próprio magistério do
nível elementar, que ela tanto defendeu em outros tempos? Quem
de fato foi esta mulher, formada professora, porém tendo uma
trajetória tomada por tarefas jornalísticas? Que relações de poder
atravessaram seu cotidiano? Até que ponto suas iniciativas junto à
Revista do Ensino atravessam a própria história do magistério?
Estas e outras questões serviram como norte desencadeador do
processo de pesquisa que se desenvolve neste trabalho. Entretanto,

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querer abarcar a história de toda uma vida, a partir de alguns


fragmentos, é tarefa vã. Uma biografia – assim como a identidade
- sempre será similar a um jogo de quebra-cabeça, ao qual faltam
algumas peças e, por mais que se queira dar o formato final, nunca
se chegará a completá-lo integralmente. Este exercício, que tem
alguns aportes de dimensão biográfica, é resultado de um processo
investigativo que coletou narrativas não só junto à Maria de
Lourdes Gastal, mas também ouviu colegas que com ela
compartilharam o trabalho nos bastidores da Revista. Além disso,
uma leitura dos enunciados recorrentes naquele periódico, sob
lentes foucaultianas, serviram como pano de fundo para melhor
compreensão do contexto da época. Mais especificamente, aqui o
processo de análise centra-se na articulação entre as memórias de
Maria Gastal e particularidades da Revista da qual foi mentora.
Nesta perspectiva, metodologicamente, em lugar de uma dimensão
seqüencial historiográfica, fruto da ilusão da identidade única,
apresenta-se a possibilidade de escrever sobre a personagem sem a
imposição de cronologias e fechamentos.
Maria, mulher forte, que tantas vezes no passado assumira
a palavra em ocasiões decisivas (“ela gostava disso”, diz Júlia, que
trabalhou diretamente com ela na editoração da Revista do
Ensino) continuava de fato ali. Agora, porém, junto com ela, seus
queixumes: “Estou resumida a isso”, diz apontando para seu
quarto-e-sala na geriatria. Sem abandonar regras e valores
preservados desde a mocidade (“o mal do mundo atual é as mães
não serem mais rigorosas com as filhas”), ela acrescentou nestes
últimos anos algumas manias e cultivou secretos amores, como
sua imensa paixão por Plácido Domingos: “Este dorme comigo
todas as noites”, diz apertando contra o peito uma foto do artista
na capa do disco long-play. Por alguma razão, entretanto, minha
entrevistada punha-se a divagar. De quando em quando,
interrompia a si mesma para voltar a me perguntar: “Mas por que
mesmo tu queres saber da Revista?”. Escolhia eu, então, outras
palavras para lhe explicar as razões que me faziam chegar até ela.

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Assim, aos poucos, Dona Maria iniciou sua viagem ao passado,


com frases espaçadas por intervalos silenciosos, seguidos da
expressão: “Jesus, clareia minha cabeça!” E, de repente, voltava a
recordar detalhes, utilizando um palavreado por vezes quase
literário.
Está ali uma típica representante das professoras daquela
época e, como as demais, ela hoje ainda se minimiza: “Eu hoje
considero que eu fui uma péssima professora. É o que eu sinto
pelo que eu sei hoje. Eu não consegui ser boa em nada. Bem boa,
fabulosa, extraordinária, não consegui. Eu quis aprender piano,
não consegui. Fui até um certo ponto. Ainda tenho as minhas
partituras aí. Eu quis aprender canto, a minha garganta falhou por
completo...”. Como as demais, ela recorda quão restritos eram
seus espaços: “Eu não tinha quase o que fazer porque voltava do
trabalho, ficava com a mamãe. Então, [ouvia] uma novelinha pelo
rádio...”. E também, como as demais mulheres de seu tempo,
revela costumes caracterizados pela fiel obediência: “Minha mãe
estava já velhinha, não podia quase andar... Era bastante
impertinente, rigorosa comigo, graças a Deus!”
E, de ponto em ponto, vai ali se traçando um texto que,
com vagar, chega aos primórdios da Revista do Ensino:

Nós éramos muito amigos do José Bertaso, irmão do seu


Henrique Bertaso, que era o cabeça maior da editora
[Globo]. E eu vivia, fora do trabalho, eu vivia em casa....
E comecei a escrever coisas para os meus alunos. Foi
indo, foi indo e eu achei que já tinha bastante matéria
escrita. Fui lá na Livraria do Globo, falei com o José,
com quem eu tinha intimidade de conversar. Perguntei:
José, há possibilidade de vocês... – até me lembro que eu
falei a palavra imprimirem, eu não conhecia, naquele
tempo editar, era imprimir – um trabalhinho que eu fiz
para os meus alunos, mas que eu acho pode servir para os
alunos de outras, também? E ele me disse: Traz, eu
entrego pro Henrique, que ele que é encarregado disso.
Eu fiz. E acabei imprimindo, publicando, vinte e oito
livros. Venderam bem, muito bem até em Portugal. E o
mesmo aconteceu depois com a Revista do Ensino.
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Portugal ainda tinha, não sei se ainda tem, umas colônias


na China. E as professoras portuguesas mandavam pras
colegas chinesas. E a Revista também, andou pelo mundo
todo.

De fato, tais informações podem ser hoje perfeitamente


comprovadas: através de sites de busca da internet, mais
especificamente ao inserir o nome de Maria de Loudes Gastal,
imediatamente é possível serem localizados livros de sua autoria,
escritos em meados do século XX e posteriormente reeditados
(http://produto.mercadolivre.com.br)2. Também há veracidade
sobre o que refere da propagação da Revista, embora faça confusão
entre África e China. Veja o que se diz em setembro de 1961:

Hoje é mais do que uma publicação nacional, pois


permuta com revistas pedagógicas de vários países,
contando com assinaturas na América do Norte (Flórida,
Washington), América do Sul (Argentina, Uruguai,
Chile, Perú e Colômbia). América Central (México); na
Europa (Portugal, Itália, Espanha, Alemanha e França);
África Portuguesa (Moçambique) (p. 8).

Pergunto-lhe como tem início a Revista do Ensino? Após


alguns segundos de silêncio, ela reage, narrando:

Eu comprava revistas estrangeiras de educação... comecei


a pensar: Mas meu Deus, nós podíamos ter uma revista!
Pequena... [...] E, um dia fui lá na editora Globo [falar
com o diretor]: O senhor estaria disposto a editar uma
revista de educação para professores primários?

2
Entre suas produções, destacam-se diversos livros didáticos, alguns com
repetidas edições: Dedé, José, Tião: cartilha. São Paulo, Editora FTD, 1967;
Exercícios de Gramática para o 4º ano. Porto Alegre, Editora Selbach, 21ª edição,
s/d.; Três Estórias. São Paulo, Editora FTD, s/d; Prosa e Verso. Editora FTD,
São Paulo, s/d; Estudos Sociais e Naturais 4º e 5ºano, São Paulo, Editora FTD,
1970.

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Aqui a história comprova ser feita um pouco por acaso e


outro tanto porque forças dominantes no mínimo não interpõem
obstáculos. Se a referida Revista não tivesse se caracterizado de
certo modo – se não tivesse sido o que foi, e tivesse portado textos
de Brecht em vez das orações de Gabriela Mistral – não teria
frutificado. Ela germinou com tal vigor justamente porque, no
solo em que implantou determinados enunciados, encontrou
guarida, por décadas.
O depoimento de Maria Gastal revela também o
enfrentamento de várias adversidades, não só no plano financeiro,
mas também no que se refere à linha editorial. Neste sentido,
algumas divergências surgiram, especialmente a partir de 1956,
quando o Centro de Pesquisa e Orientação Educacional - órgão
então poderoso e influente da Secretaria de Educação do Estado
do Rio Grande do Sul3 - fica responsável pela supervisão técnico-
pedagógica da Revista: “Ele [o CPOE] se metia um pouquinho.
Elas [professoras integrantes do Centro] mandando artigos que, na
maior parte das vezes, eu concordava em publicar porque eu
também não podia ser a única a decidir”. Verifica-se aí certa
diplomacia por parte de Dona Maria, o que me faz insistir no
tema, buscando saber até que ponto chegava sua autonomia, não
só quanto a decisões de ordem administrativa, mas também no que
se referia à linha editorial que norteava a Revista do Ensino. Dona
Maria reage: “Nunca recebi ninguém mandado por A, B ou C.
Não sei se o pessoal me respeitava... Mas nunca aconteceu isso.
Eu era a diretora. Quem andou me incomodando um pouquinho
foi o CPOE. Que elas queriam mandar. Mas, depois, elas viram
que estavam lidando com a filha da Julieta Batista de Oliveira!
[riso] Se acalmaram”.
Ao entrevistar Dona Maria, eu – ciente do enorme poder
de penetração que a Revista veio a ter, e encontrando na

3
Sobre o Centro de Pesquisas e Orientação Educacional/CPOE, ver Quadros
(2007).

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contracapa da edição de agosto de 61 a reprodução de um


telegrama do Presidente Jânio Quadros (“ajudarei essa publicação
em tudo que esteja meu alcance”) – pergunto: não teria havido
interesses políticos, por parte de pessoas ou partidos, com intenção
de tirar proveito do sucesso do periódico? A resposta de Maria
irrompe com energia:

Teve. Teve o senhor Brizola. Ele, num dos tempos que


ele foi governador, ele mandou me chamar e me
perguntou qual era a maior quantidade de revista que eu
podia oferecer a ele. Eu disse: Seu fulano, Doutor
fulano..., não me lembro mais como é que eu o tratava.
Eu nunca gostei dele. E digo: O senhor é o dono da
revista! Diga o que que o senhor quer. Disse: Ah, eu quero
mandar distribuir no Rio de Janeiro. Mas distribuir, assim,
pro povo. De cima do caminhão, jogar pro povo.[Pequeno
espaço de tempo em silêncio na gravação] Eu tive vontade
de dizer pra ele que não! Mas era o governador do Estado.
Ele me tratava, sempre, muito bem. Ele até andou
querendo me conquistar! Mas eu tinha que respeitar
como governador que era, né? Mandei as revistas. Não
me lembro mais quantas. Eu tenho, acho que ainda
tenho um exemplar aí, cheio de carimbos com tinta
vermelha. Uns carimbões grandes pra propaganda dele.

E, com certa dificuldade, vai levantando da cadeira


determinada a encontrar aquele tal fascículo: “Deixa eu ver se está
aqui. Ele era governador, candidato à presidência da República”.
Então, sem dar-se conta de que em sua memória os fatos da
história se misturam (em final de 62, Brizola é candidato a
deputado federal), passa-me a tal revista, uma das únicas que ainda
guarda como se pretendesse um dia, quem sabe, mostrar para
alguém provando tal acontecimento.
Raras são as vezes em que Dona Maria se autoriza a falar
em política, ainda que, indiretamente sua fala vagueie pelo tema.
O conjunto de dados, porém, permite-me classificá-la numa linha
de tendência conservadora. Para isso valho-me de fotos coladas nas
paredes de seu minúsculo quarto-e-sala, ou de frases dispersas, que
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vai aqui e ali pronunciando. Em relação ao Presidente da


República diz: “sou totalmente apaixonada por este homem”. E
complementa: “Se o Fernando Henrique [Cardoso] precisasse que
eu fosse para a praça, falar bem dele, ah, não tenha dúvida, eu
iria!”. Faz também algumas referências a Fernando Collor: “Eu
achava que, como político, ele podia ser bom, mas em seguida me
decepcionou”. E, entre as lembranças mais remotas, destaca o
Secretário de Educação do primeiro governo de Ildo Meneguetti:
“Como eu senti a morte do Doutor Liberato [Vieira da Cunha]!”.
Estes e outros comentários paralelos fornecem conteúdo suficiente
para referendar a posição em que a inscrevo, do ponto de vista
ideológico. Não bastassem todos esses explícitos pronunciamentos,
uma breve ironia acerca de Luis Inácio Lula da Silva veio
confirmar suas preferências. Somente um nome integrando a ala
da direita não mereceria jamais seu apoio. Trata-se do Coronel
Mauro da Costa Rodrigues, Secretário de Educação no Rio
Grande do Sul nos idos de 70. A razão disso está diretamente
relacionada à desconsideração e menosprezo que ele teve com a
Revista do Ensino. O fato a marcou sobremaneira, a tal ponto
que, ao recordar aquele episódio, se enche de indignação e se
transfigura, dizendo: “Tu soubeste o que fizeram com tudo que era
da revista? O coronel Mauro destruiu tudo! Botou fora! A
biblioteca que nós tínhamos, de fazer inveja a muita escola.
Infelizmente... Ele não podia [ter feito isso]. Se eu estivesse lá, ele
tinha levado – tu desculpa, mas eu vou dizer – eu tinha lhe dado
uns pontapés na bunda que [ele] estaria correndo até hoje!”. E,
após alguns segundos de silêncio, como se estivesse refletindo no
que poderia dizer, dá vazão a sua perspicácia e espirituosidade,
exclamando: “E deixaram esse homem voltar pro Rio de Janeiro
sem antes pegar uns dias lá no Carandiru! Porque era lá que ele
merecia estar!”4.

4
Maiores informações sobre a gestão do Cel. Mauro da Costa Rodrigues é
possível encontrar na pesquisa desenvolvida por DUTRA (2006).

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O que mais impressiona ao longo do depoimento de Dona


Maria é que não há verbalização explícita referindo crença ou
opção religiosa: palavra alguma sobre igreja ou catolicismo. Mas se
ali não consigo ouvir aqueles ditos, tão escandalosamente
presentes nas páginas da Revista do Ensino, não é porque eles ali
não existam. Estão todos lá, seja nas frases entrecortadas, seja nas
imagens de Nossa Senhora espalhadas pelo quarto, ou nos
santinhos e preces que marcam as páginas de seu caderninho de
anotações, orgulhosamente a mim apresentado. Eis aí,
precisamente, a comprovação do mesmo fato que envolve a própria
história da Revista do Ensino, da forma como ela se gerou e da
forma como ela se impôs: não há um sujeito determinante que
fala, uma consciência que reflete e conduz. Há práticas e, através
delas, enunciados que se materializam. Não que não existam
sujeitos individuais, empíricos. É que eles se constituem no
interior dos discursos. Perguntada sobre sua filiação religiosa,
Maria prontamente responde: “Católica relaxada”. Insisto, então,
em saber por que tantos textos na Revista do Ensino carregam
aquele fundo moral, religioso e católico, esperando que ela
apresente uma justificativa lógica convincente. Mas, como
ocorrera em outros momentos dessa pesquisa, desmontavam
diante de mim as ilusões formais que me dariam as tradicionais
garantias para chegar a causas e efeitos. Dona Maria simplesmente
diz: “[A equipe] era de professoras de diferenças religiosas.
Inclusive tínhamos a Esther que era judia... Bem, pendia mais pro
catolicismo porque a maioria da equipe era de pessoas da igreja
católica”.
Na verdade pendia para o catolicismo todo o universo em
que se vivia em meados do século XX, em especial nas instâncias
educativas. Não só na Revista do Ensino, também nas escolas e na
sociedade em geral, conforme pode ser comprovado em outras
pesquisas envolvendo tal recorte temporal, entendendo-se por
catolicismo um conjunto de práticas religiosas autoritárias,

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controladoras da ordem e dos costumes. Ou se quisermos, à luz de


Foucault (2002), um contexto de normalização.
Mas, se ao mesmo tempo, é impossível eliminar o nome
de Maria de Lourdes Gastal de todo esta dimensão conservadora,
paradoxalmente também é ela a mulher forte e impetuosa que leva
em frente a possibilidade do periódico continuar persistindo
mesmo em momentos economicamente difíceis. E mesmo que,
através de sua narrativa, a história de vida revele circunstâncias
pessoais difíceis (em determinada época, uma paixão repentina a
faz deixar tudo e ir morar em São Paulo; alguns meses depois
retorna “só com uma mala e meu gato”), mesmo assim nunca
deixou de lutar em prol do que acreditava.
Sem dúvida, a história de Maria de Lourdes Gastal se
confunde com a própria história desta Revista, que tanto
influenciou o magistério em meados do século XX. “Sem a
Revista do Ensino, eu sou nada na sala de aula” (palavras de uma
professora nordestina, referindo-se à Revista do Ensino, num
encontro de professores primários, em Goiânia, em 1962). A frase
da professora, nos idos dos anos 60, certamente diz muito do
período analisado nesta pesquisa, e em que aspectos ele se
diferencia dos tempos atuais. Basta que se pense, por exemplo, no
quanto hoje estamos imersos num mar de informações, via rádio,
televisão, revistas e jornais, além de inúmeras formas menores de
impressos que chegam cotidianamente até as nossas mãos; sem
falar nas múltiplas possibilidades intercontinentais da
comunicação informatizada. Mas na década de cinquenta, como
chegavam as notícias até a casa de uma professora? Como ela
poderia ficar sabendo das últimas? Obviamente, a escola era um
centro de irradiação onde novidades se multiplicavam. Era de lá
que ela trazia, e para lá também ela levava informações sobre o que
se passava no mundo então acessado pelos limitados meios de
comunicação existentes. Mas como ficava, então, a necessidade de
atualização nos assuntos didáticos, tão importantes para seu dia a
dia? O único recurso, pois, limitava-se a uma simples revista,

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aguardada com grande expectativa a cada mês do ano letivo: a


Revista do Ensino. Segundo contam algumas professoras
entrevistadas em outra pesquisa (FISCHER, 2005), este
periódico vinha preencher um lacuna inestimável na vida das
professoras de então, quase sempre queixosas do excesso de teoria
em sua formação pedagógica – “a gente não tinha prática
nenhuma!” (diz uma professora) – e da carência de sugestões sobre
como atuar efetivamente na sala de aula: “Ah, eu adorava a
Revista do Ensino! Ela era, assim, mais ou menos, um caderno de
cabeceira da gente. Era uma revista cobiçada pelo professor!”
(outra depoente).
Impossível, pois, tratar de magistério dos anos cinqüenta e
sessenta do século XX sem fazer referência, obrigatoriamente, à
Revista do Ensino. Sem dúvida alguma, ela ocupa lugar de
destaque entre os meios que ajudaram a constituir esta professora
de que aqui se fala. Conforme já fiz menção, aos jovens de hoje
talvez seja difícil conceber o cotidiano daquela época, quando não
se tinha acesso ao mundo com as facilidades de comunicação tão
comuns nos dias atuais. De fato, ser assinante de uma revista
naquela época era tão ou mais importante do que hoje receber as
imagens virtuais através da TV a cabo, por exemplo, ou mesmo
acessar diariamente a internet. Nesse sentido é que se pode
compreender por que aquela Revista era aguardada com tal
ansiedade, e por que ainda hoje conserva um lugar especial nas
lembranças das velhas professoras: “Ah, eu assinei logo. Porque ali
eu aprendi. Era a melhor revista do país!” (afirma outra professora
depoente).
Mas retornando à Maria de Lourdes Gastal, vejamos
alguns recortes que dizem sobre ela e seus discursos: “Grandes
sonhos” – esse o título do primeiro editorial da Revista do Ensino,
assinado por ela como diretora, fundadora e mentora principal.
Ali, na primeira página, concretizava-se o sonho esboçado a partir
de reflexões esporádicas de um moça professora, que “não tinha
quase o que fazer, porque voltava do trabalho, ficava com a

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mamãe...e uma novelinha pelo rádio...”. Surge, assim,


timidamente, a idéia de editar uma revista para o magistério
primário, a qual em seguida passará a fazer parte integrante do
cotidiano da imensa maioria do professorado gaúcho e,
posteriormente alastrando-se mais além. É setembro de 1951 e,
por muito tempo ainda se festejará a existência deste “veículo de
ensino”, que “vai levar, por todos os recantos de nosso solo, sua
mensagem de verdadeira fraternidade àqueles que se dedicam à
elevada missão de educar!”. O sonho de Maria, lançando estas
“despretensiosas páginas [...] não almejando [...] uma auréola de
glória, mas um amplo e real benefício coletivo” (Revista do
Ensino, set/51, p.2), torna-se efetivamente uma realidade
concreta. Buscando atingir principalmente “o professor que mais
precisava, o professor das primeiras letras, como ela dizia” (diz
Júlia, referindo-se à “Dona Maria”, com quem trabalhou
diretamente, como redatora e secretária), a Revista passa a circular
pelos diversos estados brasileiros, chegando até as escolinhas mais
distantes.
Ainda que a Revista do Ensino obtivesse grande sucesso,
em vários momentos enfrentou crises financeiras, necessitando de
estratégias criativas e políticas para sobreviver e, na medida do
possível, manter a periodicidade. Inúmeras são as vezes em que
Maria Gastal vem a público para justificar atrasos na circulação;
numa delas, inclusive, ela inicia com a seguinte expressão: “Mais
uma vez, me desculpem”, tentando explicar aos assinantes as
razões dos problemas, sempre relacionados “à situação precária das
finanças de nosso Estado” (Revista do Ensino, out/63, p.76). Em
seu berço, a Revista tem os auspícios da Editora da Livraria do
Globo, a qual, porém, “em determinado momento, considerou que
a comercialização não pagava o investimento que se fazia e, então,
abrimos mão”, diz o Sr. Bertaso (diretor da Livraria do Globo, em
resposta a perguntas que lhe fiz num diálogo telefônico). Entre
outras colocações, ele reiterou o papel decisivo de Maria Gastal,

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naquela época, para o sucesso do empreendimento, afirmando


mais de uma vez que “seu trabalho foi pioneiro e de grande valia”.
Por poucos meses, então, a própria Maria de Lourdes
Gastal tenta assumir particularmente as responsabilidades e
encargos financeiros, valendo-se para isso das verbas de assinaturas
e algumas raras matérias publicitárias. Mas, logo em seguida,
inicia tratativas junto ao Governo do Estado e, em dezembro de
1956, a RE passa a se constituir como uma publicação oficial da
Secretária de Educação e Cultura do Rio Grande do Sul, sob a
supervisão técnica do CPOE.

Em dezembro de 1955, no II Congresso Nacional de


Professores Primários, realizado em Belo Horizonte,
espalha-se a notícia das dificuldades financeiras por que
passa a RE. Os participantes, então, diante da iminência
de o professorado não mais contar com “uma publicação
do mais alto padrão” e de “encontrar-se o país em risco de
ser privado de tão excelente instrumento de progresso
pedagógico e intercâmbio gremial”, resolvem fazer uma
longa moção, congratulando-se com o Governo gaúcho
que “examina no momento a possibilidade de encampá-
la, garantindo assim sua sobrevivência” (Revista do
Ensino, mar/56, p.5).

Independente dessas alterações permanece a mesma linha


editorial assumida desde o início. Tanto que, em determinado
momento, Anísio Teixeira comenta: “A Revista do Ensino era
particular e hoje é publicada pelo Estado. Não se sente nenhuma
diferença. Pública ela era antes, embora editada pela Livraria do
Globo, e pública é hoje, embora editada pelo Estado. O público no
Rio Grande do Sul não é o oficial, mas o que visa ao público, o
que serve ao público...” (Revista do Ensino, maio/57, p. 2).
Nesta perspectiva, é interessante trazer à tona, outro
trecho entre seus discursos:

Esta Revista não tem por objetivo defender interesses da


classe a que se destina. Esta Revista tem por princípio
não tocar em política. Esta revista, entretanto, não pode
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ficar indiferente a uma situação clamorosa e que ofende


aos mais elementares princípios da humanidade e de
democracia. O que pode esperar do futuro um país onde
Professôres Primários não percebem o necessário para
viver decentemente, para alimentar-se razoavelmente,
para estudar o essencial ao desempenho de sua missão?
[...] Apenas queremos desta modesta janelinha de
Professora Primária, fazer um apelo aos eminentes
brasileiros que governam o país, no sentido de que façam
cumprir a lei do salário mínimo – ao menos isso! – nos
estados onde Professôres passam privações... (Revista do
Ensino, maio/62, p.92).

Com essas palavras Maria de Lourdes Gastal, num dos


seus tradicionais editoriais em forma de conversa com as leitoras,
revela seu jeito de dizer, e de certa forma, de conseguir levar em
frente o projeto da Revista sob sua direção. Sem grandes
enfrentamentos com o poder maior, ela tentava aqui e ali, chamar
atenção sobre as condições do magistério, mas sem jamais
ultrapassar seus próprios princípios conservadores. Maria foi uma
empreendedora. Como professora, praticamente só atuou nos dois
anos iniciais, logo após sua formatura (“Me formei na Escola
Complementar e recebi o diploma no palco do Teatro São
Pedro”). Mas soube muito bem trabalhar em benefício da
educação. Em sua vida, entretanto, não logrou muitos louros,
apenas aqui e ali alguma homenagem em datas redondas dos
aniversários da Revista.
No final de seus anos, hospedada numa geriatria na
Cidade Baixa, um bairro portoalegrense, esteve basicamente
sustentada por seu salário de professora aposentada. Sem filhos,
apenas alguns sobrinhos responsabilizaram-se por ela.
Lastimavelmente terminou sua trajetória de forma anônima, sem
que o magistério, e a comunidade em geral, reconhecesse seus
méritos na, sem dúvida, dedicada atuação como colaboradora da
história do magistério. Depois que a conheci, eu lhe fazia visitas de
quando em quando, levando-lhe caixas de sorvete, um dos seus
maiores prazeres nos últimos tempos. Inesquecível seus gesto de
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contentamento diante da variedade de sabores que a tecnologia


atual permitia lhe oferecer. Numa manhã de verão do ano 2000,
quando decido levar minha filha para compartilhar de mais um
momento com Dona Maria de Lourdes, sou informada na porta
da geriatria que ela está hospitalizada. Dirijo-me imediatamente
para lá. Já não consigo revê-la consciente, e o mesmo ocorre por
mais duas visitas. Mesmo assim, a cada vez pego suas mãos e rezo
com ela, sem saber ao certo se me ouve. Parece que sim. Falo com
ela relembrando sobre os feitos da Revista porque penso que, desse
jeito, posso lhe dar ainda alguma alegria. Na manhã de 10 de
janeiro, ligo para o hospital para saber notícias e sou informada
que ela acabara de falecer.
Ao encerrar gostaria de insistir: querer abarcar a história
de toda uma vida, a partir de alguns fragmentos, é tarefa vã. Uma
biografia – assim como a identidade - sempre será similar a um
jogo de quebra-cabeça, ao qual faltam algumas peças e, por mais
que se queira dar o formato final, nunca se chegará a completá-lo
integralmente (FISCHER, 2006). Nesta perspectiva até mesmo
Pierre Bordieu (1996) já havia alertado acerca de que um relato
coerente, com uma seqüência lógica de acontecimentos, pode nos
ludibriar, passando uma idéia de utópica completude. Também
Bachelard (1988) mais de uma vez enfatiza que, por ser a
subjetividade constituída de multiplicidades de instantes, torna-se
impossível querer retê-la em forma de totalidade. Por isso, não
pretendi discorrer sobre a vida de Maria de Lourdes Gastal, como
num clássico processo biográfico. O que quis foi relacionar
fragmentos de sua trajetória com possíveis conexões aos
enunciados desdobrados na Revista de Ensino – dedicação maior
da vida dessa mulher e professora. E, por que não confessar, o que
pretendi também, indiretamente, foi compartilhar com as novas
gerações um pedaço da história da educação que aí se atravessa e
que não se pode olvidar.

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Referências

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo,


Martins Fontes, 1988.

BASTOS, M.H.C. As revistas pedagógicas e a atualização do


professor: a Revista do Ensino do Rio Grande do Sul (1951-
1992) in: CATANI, D. & BASTOS, M.H.C. Educação em
Revista: a imprensa pedagógica e a história da educação. São Paulo,
Escrituras, 1997.

BOURDIEU, P. A ilusão biográfica In: FERREIRA, Marieta de


M; AMADO, Janaína. Usos & abusos da história oral. Rio de
Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1996.

DUTRA, D. F. Políticas educacionais: de um olhar singular à


ressonância social. Cel Mauro da Costa Rodrigues Secretário de
Educação e Cultura/RS (1971-1975). Dissertação de Mestrado.
PPGE/PUCRS. Porto Alegre, 2006.

FISCHER, Beatriz T. Daudt. Professoras: histórias e discursos de


um passado presente. Pelotas, Seiva, 2005.

__________ Arquivos pessoais: incógnitas e possibilidades na


construção de uma biografia. IN: SOUZA, Elizeu C. de;
ABRAHÂO, Maria H. M. B. (Orgs.) Tempos, narrativas e ficções:
a invenção de si. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2006.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo. Ed.


Martins Fontes, 2002.

http://produto.mercadolivre.com.br. Acesso em 15/1/2009.

Revista do Ensino, edições diversas (1950 – 1970).

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QUADROS, Claudemir. Reforma, ciência e profissionalização da


educação: o Centro de Pesquisas e Orientação Educacionais do
Rio Grande do Sul, Tese de doutoramento. PPGEDU/UFRGS,
Porto Alegre, 2007.

Beatriz T. Daudt Fischer é professora e pesquisadora do


Programa de Pós-Graduação em Educação - Universidade do Vale
do Rio dos Sinos. E-mail: beatrizf@unisinos.br

Recebido em: 20/03/2009


Aceito em: 20/12/2009

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SOBRE COISAS DE OUTROS TEMPOS: RASTROS
BIOGRÁFICOS NAS CRÔNICAS DE CECÍLIA
MEIRELES NA “PÁGINA DE EDUCAÇÃO”1
Ana Chrystina Venancio Mignot

Resumo
Adentrar pela urdidura narrativa da crônica “A escola atraente”
permite discutir a relação entre objetos escolares e memória e, ao
mesmo tempo, examinar o papel desempenhado por Cecília Meireles
no debate educacional dos anos 30, do século passado, debate este
marcado por uma nova sensibilidade pela infância e que conferiu
identidade a uma geração de intelectuais que apostou na constituição
do campo educacional. Investigar o horizonte de intervenção da
cronista permitiu uma aproximação com um ângulo menos estudado
da biografia intelectual da poeta, jornalista e educadora.
Palavras-chave: Cecília Meireles; Escola Nova; biografia; cultura
material da escola.

ABOUT THINGS FROM OTHER TIMES: BIOGRAPHIC


TRACES OF CECILIA MEIRELES’ STORIES IN THE
“EDUCATION PAGE”
Abstract
The plot of the story “A escola atraente” (The attractive school)
opens a discussion about the relation between school objects and
memory and, at the same time, reveals the role played by Cecilia
Meireles in the education debates of the 1930’s, which were marked
by a new understanding of childhood by a whole generation of
intellectuals that had placed their bets in the constitution of the
education field. The investigation of Meireles' range of intervention
resulted in approaching a less known aspect of her intellectual
biography as a poet, journalist and education scholar.
Keywords: Cecilia Meireles; New School; biography; school material
culture.

1
Texto apresentado no 14º Encontro Sul-Riograndense de História da
Educação, sobre “Cultura Material Escolar: memórias e identidades”, de 27 a 29
de outubro de 2008, na Faculdade de Educação da Universidade Federal de
Pelotas, em mesa-redonda coordenada por Maria Stephanou, da qual
participaram, também, Cláudia Alves e Lúcio Kreutz.

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SOBRE COSAS DE OTROS TIEMPOS: RASTROS
BIOGRÁFICOS EN LAS CRÓNICAS DE CECÍLIA
MEIRELES EN LA “PÁGINA DE EDUCACIÓN”
Resumen
Adentrar por la urdidura narrativa de la crónica “La escuela
atractiva” permite discutir la relación entre objetos escolares y
memoria y, al mismo tiempo, examinar el rol de Cecília Meireles en
el debate educacional de los años 30, del siglo pasado, debate que
estuvo marcado por una nueva sensibilidad hacia la infancia y que
confirió identidad a una generación de intelectuales que apostó por la
constitución del campo educacional. Investigar el horizonte de
intervención de la cronista permitió un acercamiento con un ángulo
menos estudiado de la biografía intelectual de la poetisa, periodista y
educadora.
Palabras clave: Cecília Meireles; Escuela Nueva; biografía; cultura
material de la escuela.

SUR DES CHOSES D’ANTAN: DES EMPREINTES


BIOGRAPHIQUES DANS LES CRONIQUES DE
CECILIA MEIRELES DANS “PÁGINA DE EDUCAÇÃO”
Résumé
Pénétrer dans la structure narrative de la cronique “A escola
atraente” (L’école attirante) permet de discuter la relation entre les
objets scolaires et la mémoire et d’examiner à la fois le rôle joué par
Cecília Meireles dans le débat éducationnel des années 30 du siècle
dernier. Ce débat a été marqué par une sensibilité nouvelle par
rapport à l’enfance et il a conféré de l’identité à une génération
d’intellectuels qui a cru à la constitution du champ éducationnel.
L’investigation de l’horizon d’intervention de l’écrivain a permis
l’approche d’un côté moins étudié de la biographie intellectuelle de
cette éducatrice, poète et journaliste.
Mots-clés: Cecília Meireles; Nouvelle École; biographie; culture
matérielle de l’école.

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Fala-se na escola attrahente para a criança. Que e preciso


um ambiente agradável suggestivo rico de inspirações para
a infância: accrescente-se que é preciso um ambiente
assim, também, para os professores.
Tem-se pensado que o mobiliário feio as paredes sujas, os
enfeites fora da moda exercem acção perniciosa sobre as
crianças; é preciso não perder de vista a impressão que
causa aos professores o mesmo scenario, para o seu
trabalho de todos os dias.
Diz-se que a escola triste e aggressiva afasta os alumnos
torna-os vadios, mostra-lhes em contraste, a belleza das
ruas cobertas de sol, enfeitadas de arvores, onde a
liberdade dos passaros canta a sua alegria.
Quantos professores, ainda hoje, não irão à escola sob o
peso, a actuação do dever duro e sombrio como uma
condemnação?
Deixam a sua casa florida, alegre, clara, onde a vida
também canta, seductoramente. Encontram a escola com
o conjunto das suas hostilidades: o relógio feroz que não
perdoa os atrazos do bonde; o livro do ponto ferocíssimo,
com a sua antipathica roupagem de percalina preta e a
sua sinistra, numeração, pela pagina abaixo... De toda a
parte surgem objectos detestáveis: reguas, globos
poeirentos, borrachas revestidas de madeira, tympanos,
vidros de gomma arábica, todas essas coisas hediondas
que se convencionou fazerem parte integrante da
physionomia da escola, e que são acreditadas
indispensaveis e insubstituiveis. Coisas mortas. Coisas de
outros tempos. Coisas que se usaram nas escolas de
nossos avós e de nossos paes. Não se pode pensar em
familiaridade em proximidade infantil em vida nova, em
educação moderna no meio dessa quantidade de mata-
borrões, de mappas com demarcações archaicas, de
balanças que não funccionam, de moringas, de gargalo
quebrado, de caixinhas de sabonete para guardar giz e das
coisinhas armadas nas taboinhas dos armários chamados
museus, nas quaes não se pode bolir para não estragar, e
que têm um rotulozinho em cima, tal qual os vidros de
remédio.

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Vamos pôr fora todas essas coisas velhas? Vamos ordenar


uma limpeza geral nas escolas, ainda que fiquem apenas
com os bancos para as crianças se sentarem?
O que for sendo preciso irá surgindo, pouco a pouco, das
mãos das crianças e dos professores conjuntamente. Ir-se-
á povoando a escola não com essas coisas detestáveis que
ahi estão, mas com pequenos objectos feitos com carinho,
com esse carinho que embelleza e enriquece tudo.
Muitas professoras não teriam na sua casa, com certeza,
uma velha moringa dessas que habitam, infallivelmente,
as janellas das salas de aula. Não quereriam na sua casa,
nem na cozinha da sua casa, semelhante caco. Mas tem-
no na escola. É a escola... Mas, então, que é a escola? E
que affronta é essa á sensibilidade de centenas de
crianças?
A moringa é apenas um exemplo.
Algumas professoras vão com desgosto à escola, dizíamos.
Por que não modificam elas esse ambiente que as
desagrada? Perguntareis.
Porque acima da sua vontade estão accumuladas muitas
rotinas de outras vontades. Porque, algumas vezes, a
manifestação de um natural bom gosto, de uma cultura
mais apurada, servem de base a ridículas insinuações, e a
critica mordazes.
Porque ainda não temos um meio homogêneo, mesmo
dentro dos limites do magistério.
Porque ainda não temos, infelizmente, uma totalidade de
professores capaz de agir simultânea e solidariamente
nesta obra de reorganização pedagógica que representa,
para o Brasil inteiro, uma etapa de progresso que todos os
esforços devem denodadamente accentuar.

Escrita pela poeta, jornalista e educadora Cecília Meireles,


esta crônica é uma das inúmeras publicadas no Diário de Notícias,
onde foi editora da “Página de Educação”, entre 1930 e 1933, e,
na qual, diariamente, ao sabor dos acontecimentos, focalizava as

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reformas educacionais, a escola, o magistério, a infância, os livros,


a leitura e literatura infantil.
Ao longo deste período, procurou cumprir à risca a
principal característica das crônicas, no dizer de Machado de Assis,
tratando com leveza coisas do cotidiano, sem sangue nem
lágrimas.2 Presa aos assuntos do dia-a-dia, ela dialogou com seu
tempo, por meio destes textos efêmeros, escritos sob a pressão de
prazos, cujo brilho se esgotava na folha seguinte, como observou
José de Alencar.3 Ciente disso, em um poema se perguntou

Que faremos destes jornais, com telegramas, notícias


anúncios, fotografias, opiniões...? (...)
Aqui, toda a vizinhança proclama convicta:
‘Os jornais servem, para fazer embrulhos’.
4
E é uma das raras vezes em que todos estão de acordo.

Tomo “A escola atraente”, inicialmente, na perspectiva


dos historiadores Sidney Chaloub, Margarida de Souza Neves e
Leonardo Afonso de Miranda Pereira na apresentação do livro
História em cousas miúdas, quando, ao buscar a especificidade
deste gênero literário, alertam que por mais leves e efêmeros que
tenham sido os temas tratados nas crônicas para os
contemporâneos, elas colocam para os leitores de hoje a

2
Ver MACHADO DE ASSIS: “A semana”, Gazeta de Notícias, 1º de fevereiro
de 1894. apud CHALOUB, Sidney, NEVES, Margarida de Souza e
PEREIRA, Leonardo Afonso de Miranda (orgs). “Apresentação”. In. História
das cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas:
SP.Editora da UNICAMP,2005, p.10.
3
Idem. Segundo os autores, “Ao correr da pena” foi o título dado por José de
Alencar a uma série de crônicas que publicou, em 1854 e 1855, no Correio
Mercantil e no Diário do Rio de Janeiro.
4
MEIRELES, Cecília. In. Mar Absoluto e outros poemas apud. Obras completas.
Rio de Janeiro. Editora José Aguilar. 1958, p. 460.

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necessidade de uma cuidadosa operação exegética para decifrar e


decodificar os seus termos. 5 Em suas palavras,

Só assim será possível relacionar definitivamente tais


textos à realidade que é, a uma só vez, a sua matéria-
prima e horizonte de intervenção. Em vista disso, só
recentemente esses registros começaram a merecer
olhares mais cuidadosos, que apontam sua importância
tanto como campo de experimentação literária, quanto
como testemunho de um tempo vivido. (...)
Ao acertar contas com seu presente, a crônica teria assim
como uma de suas marcas esse caráter de intervenção na
realidade, com a qual interagia à moda de uma senhora
brincalhona. Longe de refletir ou espelhar alguma
realidade, ela tentava analisá-la e transformá-la –
valendo-se, para isso, de um tom leve, que atraísse o
leitor, e da penetração social das folhas nas quais eram
publicadas. (2005, pp. 12-13)

Elejo esta crônica que, como tantas outras escritas por ela,
permaneceu esquecida até pouco tempo em velhos jornais, com a
intenção de adentrar pela urdidura narrativa para discutir a relação
entre objetos escolares e memória. Na medida em que me
aproximo do acerto de contas com a realidade, 6 feito pela cronista,
procuro sinalizar para o papel por ela desempenhado no debate
educacional dos anos 30, debate este marcado por uma nova
sensibilidade pela infância e que conferiu identidade a uma geração
de intelectuais que apostou na constituição do campo educacional.
Deste modo, à moda de Carlo Ginzburg (1989), ao seguir estes
rastros, me aproximo de um ângulo menos estudado da biografia
intelectual de Cecília Meireles.

***********

5
Ver CHALOUB, NEVES e PEREIRA (Op.cit) p.19.
6
Cf expressão dos autores anteriormente citados. p.19.

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Ao iniciar a operação exegética,7 a qual se referem os


historiadores acima citados, percebo de imediato que as coisas
velhas têm sobre a cronista o poder de evocar o passado. O relógio,
o livro de ponto, as réguas, os globos, as borrachas, os tímpanos,
os vidros de goma arábica, os mata-borrões, os mapas e as
balanças, retratam a escola, os métodos de ensino, os gestos dos
professores e dos próprios alunos.
Estes objetos não funcionavam para a cronista como a sua
madeleine que, no dizer de Pedro Nava, todos têm: no cheiro do
mato, no ar da chuva, no ranger das portas, no farfalhar de folhas ao
vento noturno, no cheiro de resina nos fogões, no gosto da água na
moringa nova,8 pois, diferentemente do tom nostálgico, à moda
proustiana, no clássico Em busca do tempo perdido, estes objetos
não propiciam reviver doces momentos, voltar à infância idílica,
num tempo distante e melhor. O globo, os mapas, os mata-
borrões, são coisas mortas. Coisas de outros tempos. Coisas que se
usaram nas escolas de nossos avós e de nossos paes. 9 A moringa na
janela da sala de aula, tomada como exemplo, é velha e quebrada.
Simboliza desleixo, abandono, descaso. Assim como as outras
coisas hediondas, arcaicas e ultrapassadas, remetem a um passado
que não se quer recuperar, reter, eternizar.
Para a cronista, os objetos falam. Aliás, para o historiador
da educação José Maria Hernandes Diaz, tanto ontem como hoje,
as paredes, o mobiliário e os utensílios da escola guardam uma
ordem convencional, imposta, casual, visível ou um sistema de
relações invisível, ordenado, permitido, negociado ou desestruturado
em outras ocasiões. (2005, p. 225). Para ele, a história dos objetos
escolares é, portanto, em boa medida, a história do modo de atuar

7
Idem.
8
Ver HORTA, Maria de Lourdes Parreiras e PRIORE, Mary, Memória,
patrimônio e identidade. In. Boletin 04, Salto para o Futuro: TV Escola,
Ministério da Educação. abril de 2005, p.9.
9
Cf crônica de Cecília, citada na epígrafe deste texto.

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na escola, dos projetos educativos reivindicados pelo professor


individualmente ou em grupo.
No seu entendimento, os objetos, utensílios e materiais,
não são inócuos, pois nos interpelam, atraem ou repelem. Revelam
rituais educativos, indicam o currículo explícito ou oculto, a
cultura que se transmite ou se produz, a que se impõe ou se rechaça, a
que se aceita e integra (op.cit., p. 226). Assim, numa perspectiva
histórica,

Cada objeto que observamos na escola ou na sala de aula


nos conta sobre o estado da ciência, as técnicas de
produção da indústria, sobre o grau de importação-
exportação do país, do nível de desenvolvimento
econômico de uma sociedade onde se produz ou utiliza,
nos diz também como estão atualizados os mestres em
matéria pedagógica, a procedência familiar e social de
seus usuários ou proprietário, da vida cotidiana da escola
(...) (op.cit, p. 233).

A urdidura narrativa da crônica permite compreender que


os acontecimentos passados inscrevem suas marcas no espaço
físico, nas consciências individuais e na memória coletiva. Para
Cecília Meireles, os objetos escolares carregavam representações e
valores que constituíam uma dada cultura escolar que precisava ser
substituída, apagada, abandonada, esquecida e se constituíam em
vestígios que tornam possível revisitar o passado e construir cadeias
temporais, que estruturam a percepção e a memória, na perspectiva
assinalada recentemente por Margarida Felgueiras (2005, p. 89).
A leitura dos objetos feitos pela cronista permite lembrar
as análises também recentes de Rosa Fátima de Souza, quando diz
que os artefatos materiais vinculam concepções pedagógicas, saberes,
práticas e dimensões simbólicas do universo educacional constituindo
um aspecto significativo da cultura escolar (2007, p. 165), que tanto
no seu aparecimento, uso, transformação e desaparecimento,
revelam práticas educacionais arraigadas e em mudanças.

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89

As coisas velhas vistas pela cronista, quebradas e


empoeiradas, traziam as marcas do tempo. Estes cacos, vestígios
do passado que atiçavam lembranças e significados, objeto de
indignação, de contestação e de inconformismo, serviam de
pretexto para um acerto de contas com um passado que teimava
em se fazer presente, indicando uma realidade que precisava ser
conhecida, desnudada, desnaturalizada, rechaçada, modificada,
superada.

***********

A Cecília Meireles de “A escola atraente” destoa no tom e


no tema do que a consagrou no mundo das letras, mesmo quando
elegia a educação, a escola e a sala de aula em seus poemas. Em
seu livro O estudante empírico, os objetos escolares funcionam
como metáfora para tratar da impossibilidade, da melancolia, da
fugacidade e da solidão, temáticas recorrentes em sua obra. “O
quadro-negro”, “O Globo” ou “Mapa da Anatonia”, assim como
“Hoje desaprendo o que tinha aprendido ontem” 10 e o poema que
empresta seu título ao livro, reforçam que a aprendizagem é
sempre inconclusa, não se conquista integralmente e não se esgota
ao longo da vida:

Eu, estudante empírico,


fecho o livro e contemplo.
Eis o globo, o planisfério terrestre,
o planisfério celeste,
o redondo horizonte, a ilusão dos firmamentos.

10
Hoje desaprendo o que tinha aprendido até ontem/E que amanhã recomeçarei a
aprender./Todos os dias desfaleço e desfaço-me em cinza efêmera:/Todos os dias
reconstruo minhas edificações, em sonho eternas./Esta frágil escola que somos,
levanto-a com paciência/Dos alicerces às torres, sabendo que é trabalho sem termo. In
Cecília Meireles: Poesia Completa. Vol. II. (organização de Antonio Carlos
Sechin). Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001. p. 1442.

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E a nossa existência.
Eis o compasso, o esquadro,
a balança, a pirâmide,
o cone, o cilindro, o cubo,
o peso, a forma, a proporção, as equivalências.
E o nosso itinerário.
Saem das suas caixas os mistérios:
desenrola-se o mapa dos ossos, com seus nomes;
o sangue desenha sua floresta azul;
cada órgão cumpre um trabalho enigmático:
estamos repletos de esfinges certeiras.
E o nosso corpo.
E os dinossauros são como carros de triunfos,
reduzidos à armação;
e no olho profundo do microscópio
a célula se anuncia.
E o nosso destino.
O professor escreve no quadro o Alfa e o Ômega.
A luz de Sírius ainda lança escadas em contínua cascata.
E lentamente subo e fecho os olhos
e sonho saber o que não se sabe
simplesmente acordado.
Grande aula, a do silêncio.11

Mas, diferentemente deste tom melancólico e nostálgico,


por trás do inocente e inofensivo título “A escola atraente”,
emerge uma cronista mordaz, crítica, cética e implacável, que,
descontente com os rumos da educação, deixa escapar a farpa na
lira – expressão tomada de empréstimo de Valéria Lamego (1996).
Ela não esconde do leitor o seu horizonte de intervenção: uma
totalidade de professores capaz de agir simultânea e solidariamente
nesta obra de reorganização pedagógica que representa, para o Brasil

11
“O estudante empírico”. In.Op.cit. pp. 1452-1453.

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inteiro, uma etapa de progresso que todos os esforços devem


denodadamente accentuar. 12
Aliás, este horizonte de intervenção, constantemente
reafirmado nas linhas e entrelinhas da “Página de Educação”,
quando apontou divergências, formulou críticas e encaminhou
propostas, foi enfatizado por ela quando encerrou sua participação
no jornal, na crônica de despedida:

Aqueles que se habituaram a falar, de uma coluna de


jornal, sobre assuntos de seu profundo interesse e
chegaram a saber que alguém os ouvia, e participava da
inquietude do seu pensamento − criaram um mundo
especial, de incalculáveis repercussões, cuja sorte
condicionaram à sua, pela responsabilidade a que ficam
sujeitos os autores de toda criação.
Esta Página foi, durante três anos, um sonho obstinado,
intransigente, inflexível, da construção de um mundo
melhor, pela formação mais adequada da humanidade que
o habita.(...)
Mas, além de um sonho, esta Página foi também uma
realidade enérgica que, muitas vezes, para sustentar sua
justiça teve de ser impiedosa e pela força de sua pureza
13
pode ter parecido cruel.

Um olhar mais cuidadoso sobre as crônicas de Cecília


Meireles permite perceber que ela não escapou das preocupações
pacifistas, cientificistas e reformistas que amalgamavam sua
geração, características que têm sido, por vezes, negligenciadas por
muitos daqueles que se debruçam sobre sua vida e obra. Nelas, no
entanto, encontramos pistas sobre a editora da Página de
Educação que se tornou uma porta-voz intransigente das reformas
educacionais e da escola pública, laica e de qualidade para todos.

12
Cf crônica de Cecília, citada na epígrafe deste texto.
13
MEIRELES, Cecília. Despedida. Diário de Notícias. 12.01.1933. p. 5.

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Em “A escola atraente”, crônica menos contundente do


que muitas outras nas quais criticava explicitamente as iniciativas
governamentais que visavam implantar o ensino religioso, a
indicação de ministros da educação e até mesmo algumas posições
defendidas no interior da Associação Brasileira de Educação
(ABE), é possível compreender os projetos partilhados com os
educadores de sua geração já inscritos em “A responsabilidade dos
reformadores”, “A aposta”, “Aquela aposta”,”Uma aposta”, “A
penna de aço”, “Ensino cathólico”, “O momento actual e o
verdadeiro sentido da educação”, “Um leader”, “Congressos de
educação”, “O Ministério da Educação”, “ O caso do Ministério
da Educação”, “A 4ª Conferência” ou “ O valor dos manifestos”,
dentre outras. 14
Através desta e de outras crônicas, dialoga com os
professores com o repertório comum aos educadores de seu tempo
que não mediram esforços para racionalizar a escola, de modo a
torná-la mais produtiva e atraente, afinada com os preceitos da
educação renovada que circulavam, no Rio de Janeiro, capital da
república e vitrine do progresso.15 Além de todo um conjunto de
dispositivos legais para ampliar o atendimento à demanda escolar,
não foram poucos os esforços empreendidos por estes intelectuais
para traduzir uma nova sensibilidade pela infância: construção de
prédios escolares, aquisição de mobiliário adequado, montagem de
bibliotecas infantis, gabinetes, laboratórios e museus escolares,
produção e publicação de livros didáticos, por exemplo.

14
Ver MIGNOT, Ana Chrystina Venancio. Antes da despedida: editando um
debate. In. NEVES, Margarida de Souza, LÔBO, Yolanda Lima e MIGNOT,
Ana Chrystina Venancio (orgs). Cecília Meireles: a poética da educação. Rio de
Janeiro. Ed. PUC-Rio: Loyola. 2001. pp. 149-172.
15
Expressão usada por NEVES, Margarida de Souza. As vitrines do progresso –
o conceito de trabalho na sociedade brasileira na passagem do século XIX ao
século XX: a formação do mercado de trabalho na cidade do Rio de Janeiro.
PUC-Rio: Departamento de História/FINEP, 1986.

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De certo modo, a “Página de Educação” se converteu em


tribuna privilegiada desta mulher contemporânea da reforma de
Fernando de Azevedo (1927-1930), emblemática da afirmação do
novo em oposição ao velho, por ter investido na construção da
Escola Normal, uma edificação arquitetônica monumental que
sinalizava para a centralidade da formação de professores; da
montagem dos gabinetes de Geografia, entre outros, que foram
instalados nesta escola, sob o comando de Delgado de Carvalho
que apostava numa variedade de materiais didáticos, como o globo
terrestre, a fotografia, o Atlas e, tudo mais que aproximasse os
alunos de uma realidade desconhecida, em oposição ao ensino
memorialístico; dos inquéritos de leituras infantis liderados por
Armanda Álvaro Alberto na Seção de Cooperação da Família da
Associação Brasileira de Educação (ABE), que visavam interferir
nas leituras das novas gerações; das exposições de brinquedos
infantis organizadas por Francisco Venâncio Filho que
pretendiam disseminar, de um ângulo diverso, os cuidados com as
brincadeiras das crianças; das tentativas de Anísio Teixeira (1931-
1935) de modernizar a educação do Rio de Janeiro, o que passou
pela aquisição de livros para as bibliotecas escolares e a
inauguração da Biblioteca Infantil do Pavilhão Mourisco16, do
qual a própria Cecília Meireles foi a primeira diretora; dos debates
suscitados pela compra de mobiliário escolar que estimulavam a
pena afiada de Frota Pessoa, que lamentava a decisão tomada de
não substituir a tradicional carteira escolar pela mesa e cadeira, já
utilizadas em alguns jardins de infância desde a administração de
Fernando de Azevedo:

16
Sobre a participação de Cecília Meireles na Biblioteca do Pavilhão Mourisco,
consultar PIMENTA, Jussara. Leitura e encantamento: a Biblioteca Infantil do
Pavilhão Mourisco In NEVES, Margarida de Souza, LÔBO, Yolanda Lima e
MIGNOT, Ana Chrystina Venancio (orgs). Cecília Meireles: a poética da
educação. Rio de Janeiro. Ed. PUC-Rio: Loyola. 2001. pp. 105-120.

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a prescripção da velha carteira escolar, symbolo da


coacção, da immobilidade, que eram os princípios
cardeaes da escola antiga, significaria um índice de
renovação, caracterizada pelo abandono de um móvel
inteiramente condemnado, e que figurará em breve, nos
museus, ao lado da palmatória e dos emblemas
caricaturaes e humilhantes, como hoje já são velhas peças
de archivo, o tronco, a galhardeira e o chicote do feitor,
17
em uso antes da abolição.

Na “Página de Educação”, Cecília Meireles dialoga com o


poder público, com os intelectuais, com os professores, com as
famílias, em “O mundo das crianças”, “A propósito das crianças”,
“As crianças e os castigos corporais”, “Quando a criança chora”,
“Solenidades Cívicas”, “A alma de uma educadora”, “O mal da
autoridade”, “Leituras perniciosas”, e tantas outras crônicas
escritas ao sabor dos acontecimentos e sob a pressão dos prazos.
Assim, denuncia, critica, elogia e divulga, em sintonia
com as iniciativas educacionais que se realizavam mundo afora que
traduziam uma nova sensibilidade pela infância. No afã de projetar
iniciativas inovadoras, festejou, por exemplo, a vinda de Edouard
Claparède ao Rio de Janeiro, em uma de suas crônicas no Diário de
Notícias. Em “A visita de um pedagogo notável”, ressaltou a
importância de acolher aquele em cuja figura se concentrava “uma
expressão personalíssima da psychologia; aplicada, em toda a sua
transcedencia, ao conhecimento da criança”. Por isso, argumentava,

Vamos receber a um estrangeiro como se o não fosse, não


pelo nosso proverbial espírito de hospitalidade; mas
porque os que se unificam nesta confraternização
ideológica de tornar o mundo melhor por um respeito
elevado e consciente da criança, orientando-a para uma
visão total e superior da vida, perdem os contornos
nacionais; integram-se na aspiração conjunta da

17
FROTA PESSOA, “Contra a carteira escolar: um debate na Comissão de
Normas da Prefeitura”. In Página de Educação, Diário de Notícias, 04/08/1931,
p. 5.

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humanidade passam a ser effectivamente, cidadãos do


mundo.
Para os que, no Brasil, se agitam, com fervor, pela
Reforma Educacional, os que vêem no problema da
escola a solução do problema humano, Claparède é um
compatriota que apparece reproduzindo, apenas, a forma
physica da sua existência no campo da admiração e do
respeito em que já se nos installará a sua figura espiritual.
Não poderia chegar em momento mais oportuno. Vem
quando os nossos interesses pedagógicos estão no ponto
adequado de receber o definitivo retoque de uma
prestigiosa presença.
Parece que elle mesmo é uma mensagem que, de longe,
nos vem trazer suas palavras de estímulo e esperança.
Parece que chega para nos dizer: ‘A Nova Educação não
é um sonho de natureza ephemera. Seus apologistas não
são poetas nem loucos, mas homens, apenas, com toda a
intensidade moral que a palavra ‘homem’ possa conter:
com toda a significação de fraternidade que se lhe possa
atribuir, com todo o poder de respeito e amor pela própria
vida humana que, dentro della, o nosso desejo de ser
melhor seja capaz de fazer existir’ (Diário de Notícias, 5
de setembro de 1930, p.6).

O horizonte de intervenção da crônica “A escola atraente”


é bem mais ambicioso do que aparentemente se supõe à primeira
vista. Trata-se da construção de uma nova cultura pedagógica que
não prescindiu de uma nova materialidade escolar, que interferiu
no desenho da cidade, nas crenças e nas práticas docentes e que
deixou suas marcas ainda visíveis na memória de professores e na
construção da memória de sua geração de educadores, que tem
sido interrogada por historiadores da educação.

***********

Herdeiros que somos da geração de 30, do século passado,


ao nos deixarmos surpreender pelo tom e pelo tema empregado
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pela cronista, temos muitas indagações e acertos de contas a fazer


com nosso presente. Inevitavelmente nos perguntamos, como
educadores, se ainda guardamos a mesma indignação com o
abandono da escola pública, com os objetos quebrados e os
materiais improvisados.
Como historiadores da educação, esta crônica é um
convite para perscrutar os objetos escolares do passado, sem repelir
as coisas velhas, mas para interrogá-los, investigando, em suas
marcas, os usos, as representações e os significados que carregam.
Um trabalho que, certamente, envolve sensibilidade para
entrecruzar fontes, com os mesmos cuidados que devem cercar o
trabalho com os documentos escritos, isto é, entendendo que, no
seu ofício, o historiador:

(...) não é um arqueólogo da documentação, mediador


neutro entre a verdade da fonte e a verdade da história,
mas aquele que é capaz de formular uma problemática e
de construir uma interpretação em que reconhece o
encontro entre duas historicidades: a sua própria e a da
documentação que utiliza” (NEVES, 1985, p.34-35).

Depois, para impedir o seu desaparecimento encontrando,


classificando, preservando estes objetos que falam das idéias e das
práticas, das permanências e das mudanças, dos projetos e dos
dilemas, que trazem em si mesmos as marcas de outros tempos,
nem melhores nem piores, mas diferentes,
Por fim, a crônica “A escola atraente” fornece à
comunidade de leitores de hoje, rastros importantes para pensar a
vida e a escrita da vida de Cecília Meireles, consagrada poeta,
professora atuante e jornalista engajada que não se eximiu do
debate político-educacional de seu tempo.

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FROTA PESSOA, “Contra a carteira escolar: um debate na


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03/12/ 1931, p.5.

______. “Despedida”. Diário de Notícias. 12.01.1933. p. 5.

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5/09/ 1930, p.6.

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Carlos Sechin). Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001. p.
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MIGNOT, Ana Chrystina Venancio. Antes da despedida:


editando um debate. In. NEVES, Margarida de Souza, LÔBO,
Yolanda Lima e MIGNOT, Ana Chrystina Venancio (orgs).
Cecília Meireles: a poética da educação. Rio de Janeiro. Ed. PUC-
Rio: Loyola. 2001. pp. 149-172.

NEVES, Margarida. As vitrines do progresso – o conceito de


trabalho na sociedade brasileira na passagem do século XIX ao
século XX: a formação do mercado de trabalho na cidade do Rio
de Janeiro. PUC-Rio: Departamento de História/FINEP, 1986.

_____. O bordado de um tempo: a história na estória de Esaú e


Jacó. Tempo, Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 81, abr./jun. 1985, p.
32-42.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 30 p. 81-99, Jan/Abr 2010.


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PIMENTA, Jussara. Leitura e encantamento: a Biblioteca


Infantil do Pavilhão Mourisco In NEVES, Margarida de Souza,
LÔBO, Yolanda Lima e MIGNOT, Ana Chrystina Venancio
(orgs). Cecília Meireles: a poética da educação. Rio de Janeiro. Ed.
PUC-Rio: Loyola. 2001. pp. 105-120.

SOUZA, Rosa Fátima de. História da cultura material escolar:


balanço provisório. In: Marcus Albino Levy Bencostta. (Org.).
Culturas Escolares; saberes e práticas educativas: itinerários
históricos. São Paulo: Cortez, 2007, v., p. 117-132.

Ana Chrystina Venancio Mignot é Professora adjunta do


Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. É Pesquisadora do CNPq e Cientista de
Nosso Estado/FAPERJ. E-mail: mignot@painet.com.br

Recebido em: 05/11/2009


Aceito em: 20/12/2009

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 30 p. 81-99, Jan/Abr 2010.


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.
EDUCAÇÃO, MEMÓRIA E IDENTIDADE:
DIMENSÕES IMATERIAIS
DA CULTURA MATERIAL ESCOLAR1
Claudia Alves

Resumo
A emergência da noção de cultura material escolar na historiografia
da educação recentemente, ao mesmo tempo em descortina
horizontes para novas questões e interpretações, impõe desafios que
se ligam à própria construção conceitual e sua apropriação. Neste
texto, partimos de uma situação vivenciada em pesquisa para discutir
as dimensões imateriais que se relacionam à memória e à construção
de identidades, percebidas como aspectos que podem e devem ser
incorporados pelo historiador no tratamento e problematização das
fontes quando pensadas como parte do acervo da cultura material
escolar brasileira.
Palavras-chave: cultura material escolar; memória; identidade;
pesquisa.

EDUCATION, MEMORY AND IDENTITY: IMMATERIAL


ASPECTS OF SCHOOL MATERIAL CULTURE
Abstract
The recent onset of school material culture in the education
historiography offers challenges connected to the conceptual
construction and appropriation of the term itself and, at the same
time, asks new questions and proposes new interpretations. Within
this context and from a new situation in research, immaterial
dimensions related to memory and identity construction are
discussed and perceived as aspects that may and shall be incorporated
by historians when dealing with the problem of sources as part of the
material culture of Brazilian schools.
Keywords: school material culture; memory; identity; research.

1
Texto apresentado no 14º Encontro Sul-Riograndense de História da
Educação, sobre “Cultura Material Escolar: memórias e identidades”, de 27 a 29
de outubro de 2008, na Faculdade de Educação da Universidade Federal de
Pelotas, em mesa-redonda coordenada por Maria Stephanou, da qual
participaram, também, Ana Chrystina Venancio Mignot e Lúcio Kreutz.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 30 p. 101-125, Jan/Abr 2010.


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102
EDUCACIÓN, MEMORIA E IDENTIDAD:
DIMENSIONES INMATERIALES DE LA CULTURA
MATERIAL ESCOLAR
Resumen
La noción de cultura material escolar en la historiografía de la
educación es reciente. Al mismo tiempo en que se abren horizontes
para las nuevas cuestiones e interpretaciones, se plantean retos
relacionados a su propia construcción conceptual y apropiación. En
este trabajo partimos de una situación vivida en la investigación para
analizar las dimensiones inmateriales relacionadas a la memoria y a la
construcción de identidades, entendidas como aspectos que pueden y
deben ser incorporados por el historiador en el tratamiento y
problematización de las fuentes que se consideran como parte de la
cultura material escolar brasileña.
Palabras clave: cultura material escolar; memoria; identidad;
investigación.

ÉDUCATION, MÉMOIRE ET IDENTITÉ: DES


DIMENSIONS IMMATÉRIELLES DE LA CULTURE
MATÉRIELLE SCOLAIRE
Résumé
La notion de culture matérielle scolaire dans l'historiographie de
l'éducation est récente. Elle ouvre des horizons pour de nouvelles
questions et interprétations en même temps qu’elle pose des défis qui
se lient à sa propre construction conceptuelle et appropriation. Dans
cet article nous partons d'une situation vécue dans la recherche afin
de discuter des dimensions immatérielles qui se rapportent à la
mémoire et à la construction des identités, vues comme des aspects
qui peuvent et doivent être incorporées par l'historien dans le
traitement et l'interrogation des sources considérées comme faisant
partie de notre acquis de la culture matérielle scolaire brésilienne.
Mots-clés: culture matérielle scolaire; mémoire; identité; recherche.

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103

A emergência da noção de cultura material escolar, referida


a um conjunto de artefatos, cuja existência, uso e significado se
ligam historicamente ao processo de escolarização e à conseqüente
disseminação da forma escolar, vem ganhando espaço na escrita
recente da história da educação. Dessa forma, os suportes e
utensílios que, em diferentes tempos e espaços, foram inventados,
mobilizados, transpostos, difundidos para e pela escola, passam a
integrar parte do acervo em que os historiadores recortam as
fontes de pesquisa para suas questões, assim como ajudaram no
surgimento de novos problemas de investigação.
O conceito que precede, antecipa e abarca a noção em
foco é o de cultura escolar, amplamente debatido nos meios da
história da educação brasileira nas últimas décadas, onde chegou
pela vertente francesa de sua configuração. Recuperando a história
da emergência desse conceito, Diana Vidal (2005, p. 7-12)
destacou a circulação de textos de Jean Hébrard, André Chervel e
Claude Forquin, na década de 1990, por meio da revista Teoria &
Educação. Embora a autora também faça referência aos textos de
David Hamilton, Thomaz Popkewitz, Michael Apple e Ivor
Goodson, seu relato demonstra que o intercâmbio, desenvolvido a
partir da USP, com os pesquisadores do Institut National de
Recherche Pédagogique, e a presença marcante da reflexão
historiográfica de Roger Chartier foram elementos decisivos na
adoção do conceito pelos historiadores brasileiros. O artigo de
Dominique Julia que abriu a publicação da Revista Brasileira de
História da Educação transformou-se, por fim, na referência mais
citada a esse respeito.
Apesar das nuanças nos modos de operar com o conceito,
a materialidade dos suportes da atividade escolar – portadores dos
indícios das práticas educativas, mas também de sua normatização,
das formas de controle, bem como dos conteúdos selecionados no
conjunto de saberes eleitos pela escola – impôs-se como parte da
problemática da pesquisa histórica em educação, acompanhando a
incorporação dos estudos em torno da cultura escolar. Decifrar os

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 30 p. 101-125, Jan/Abr 2010.


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104

ângulos da cultura escolar implicava debruçar-se sobre os


diferentes instrumentos de ensino da leitura, do cálculo, dos
conceitos e os diversos suportes da escrita, assim como os
ambientes pensados e construídos para abrigar as atividades da
escola, a partir da segunda metade do século XIX.
Recortada na ampla rede de relações culturais que constrói
a escola e suas práticas, a cultura material escolar não pode,
portanto, ser pensada fora delas. Entretanto, o fascinio da
memória materializada, a partir da qual se constituem as fontes do
historiador, vê-se acrescido de uma especie de intimidade quando
se agrega aos objetos um pertencimento à cultura material escolar.
Há um risco de que se tornem excessivamente próximos, muito
conhecidos. Naturalizados por uma especie de identidade comum.
Por isso, o recurso às contribuições do debate
historiográfico mais amplo permite encontrar parâmetros de
análise que articulem a materialidade da escola à produção cultural
que envolve outros âmbitos da vida social. Pensar a cultura
material escolar implica construir problemas de investigação
impregnados de escolhas teóricas que exigem a aproximação dos
trânsitos e das vertentes que, a partir das décadas de 1980 e1990
se desenharam no estudo histórico da cultura material. Como
lembra Souza (2007, p. 169),

É preciso ter em vista que os artefatos são produtos do


trabalho humano e apresentam duas facetas: eles têm
uma função primaria (uma utilidade prática) e exercem
funções secundarias, isto é, simbólicas. Significa
considerar que os artefatos são indicadores de relações
sociais e como parte da cultura material atuam como
direcionadores e mediadores das atividades humanas, o
que confere aos objetos um significado humano.

Concordando com esse ponto de vista, Gonçalves e Faria


Filho (2005, p. 52) argumentam que nosso olhar e perguntas
devem nos levar a perceber, nos indicios, nos sinais, na materialidade,
as práticas de que os objetos são portadores e/ou que formalizam...

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Um repertorio dos elementos materiais da cultura escolar, desde os


prédios até as lousas, passando por manuais, uniformes, cadernos
escolares, instrumentos de escrita e os mais diversos materiais,
vem sendo construído, paulatinamente, como resultado de
pesquisas e projetos de preservação de acervos escolares. Tomá-los
como portas de entrada para a compreensão dos processos
educativos que ocorrem no espaço escolar exige o movimento de
conectá-los às práticas que os circunscrevem.
Essas práticas são de diferentes ordens, situadas em
momentos distintos da historicidade dos artefatos e contextos
materiais. Produção, circulação, recepção são âmbitos que
comportam, cada um deles, um conjunto de práticas que, mesmo
que não se iniciem no espaço escolar, para ele confluem e dele se
espraiam, instaurando e/ou reforçando novas ações e significados,
fortalecendo discursos, estimulando posturas, interditando outros
tantos discursos e posturas.
Se a produção de materiais não é algo próprio do espaço
escolar, prioritariamente caracterizado pelo consumo tanto de
artefatos confeccionados para o seu uso – embora possam ser
apropriados fora dos muros das escolas (por exemplo, o livro didático,
cartilhas de alfabetização, cadernos, carteiras etc.) (SOUZA, 2007,
p. 177) – como produzidos para usos sociais os mais diversos e
para ela canalizados, uma dimensão produtiva pode ser apreendida
nas formas como, no interior da escola, se criam e recriam
determinados elementos da cultura material escolar. Os livros
escolares, por exemplo, enquanto objeto material, são, em geral,
produzidos por editoras, mas os historiadores da educação têm
demonstrado a participação ativa dos professores como autores, o
que implica uma concepção originaria da atividade de ensino.
Mesmo o objeto em si pode ser produzido dentro da escola,
quando se trata de uma proposta pedagógica que assim o
determine.
Enfatizamos essa dimensão porque se trata de um aspecto
importante no presente texto. Escolhemos discutir as relações
entre cultura material escolar, memória e identidade a partir de
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um exemplo empírico em torno de um artefato mais abordado


pelos historiadores como registro e, portanto, testemunho do
passado, do que por seu caráter educativo, participante do
conjunto de dispositivos mobilizados pela escola no seu intento de
cumprir uma dada função social.
Com essa escolha, objetivamos contribuir com o debate
acerca da problemática referente à delimitação de fronteiras para o
que denominamos como cultura material escolar e a necessária
operação, já assinalada por outros autores, de pensar esses
artefatos a partir do seu uso social, que toma a escola como locus.
Para isso, precisamos ter atenção com o que entendemos por
atividade educativa, tendo em conta que a escola ensina muito
mais do que os conteúdos prescritos, e o processo de socialização é
parte dos mecanismos que constroem e reafirmam os lugares
sociais e as representações que os justificam.
Esse é um aspecto fundamental na reflexão sobre as
relações entre cultura material e o papel da memória na
construção de identidades. A questão que trazemos ao debate é:
Como a cultura material escolar pode nos auxiliar a entender a
inscrição de atitudes, de autoconceitos, de pertencimentos, de
identidades? Qual o lugar da memória nesse processo? Longe de
ambicionar responder às questões em toda a sua complexidade,
partimos aqui de uma situação coletada em ambiente de pesquisa
histórica, enfocando alguns aspectos dessa relação.

A fotografia escolar como exemplo

Para discutir algumas das relações que podem ser


percebidas entre os três termos que estão no título – educação,
memória e identidade – e a cultura material escolar, retomo aqui
uma narrativa que é fruto de uma pesquisa de uma de minhas
orientandas de mestrado. Na busca de compreender a construção
de identidades de mulheres negras, Giane Elisa Sales de Almeida
(2009) empreendeu a coleta de depoimentos memorialísticos de
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um grupo de mulheres de uma cidade média brasileira, que


viveram parte da infância e adolescência nas décadas de 1950 e
1960, quando a expansão da educação pública começou a criar
oportunidades mais significativas de inclusão das classes populares.
Intentava-se verificar as oportunidades reais de acesso à escola,
vividas por esse grupo, além de interrogar os modos como a escola,
por meio das ações de seus sujeitos, lidava com a presença desse
público.
Um desses depoimentos trouxe à tona um acontecimento
muito significativo para uma delas, mas que, por contraste, ajudou
a traduzir um interesse recorrente demonstrado pelo grupo. A
depoente contou que um fato significativo em sua vivência de
escola envolveu o dia marcado para a produção das fotografias
individuais dos alunos, aquelas que se tornaram clássicas, em que
as crianças, portando seus uniformes sentavam-se à frente de uma
mesa ou carteira escolar, com os bracinhos sobrepostos, às vezes
com um sorriso no rosto, a representação do globo terrestre ao
lado, um mapa ou quadro-negro ao fundo, enfim, a criança
envolta em vários signos da cultura material escolar, pronta para
ser imortalizada pelas lentes de um fotógrafo.
Mas aquela menina negra, que tinha saído de casa
arrumadinha e penteada pela mãe, não resistiu às brincadeiras e,
no momento de ser fotografada, já estava completamente
despenteada. A professora, que estava penteando as demais
crianças para a foto, na vez dela, recusou-se a penteá-la, dizendo:
“Seu cabelo não tem jeito de se pentear”. E a menina não tirou a
fotografia.
Esse caso elucidou, para a pesquisadora, a forma insistente
como as outras mulheres entrevistadas – dentre as que tinham
efetivamente freqüentado a escola por algum tempo, que não era a
maioria – voltavam à fotografia escolar, que aparecia como um
registro sempre positivado, como uma espécie de troféu dentre os
objetos significativos da memória dos tempos de escola. Em
verdade, a foto era um troféu, no sentido de que, para obtê-la,

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mesmo que as depoentes não demonstrassem consciência disso em


suas falas, tinham superado barreiras que, na experiência de uma
delas, demonstraram-se intransponíveis. O conjunto de sentidos
associados à fotografia escolar fazem, então, emergir as delicadas e
intricadas relações entre memória, identidade e cultura material
escolar, que só são percebidas na pesquisa que penetra nas práticas
cotidianas, aquelas que subvertem intenções e sentidos
institucionalizados, ao mesmo tempo em que os reafirmam.
Derivada dos saberes e práticas destinados à disciplinarização do
corpo infantil, a fotografia escolar aparece, no fato narrado por
aquela mulher negra, como a ferramenta eficaz de imposição de
padrões de comportamento, beleza, infância, corpo,
individualidade, identidade.
Mas, para além dessa funcionalidade, essa narrativa é
tomada, aqui, como provocação ao debate a respeito de alguns
aspectos da relação entre memória, identidade e cultural material
escolar, partindo do pressuposto de que ela é construída não só na
interface, mas também como parte da produção social de cultura,
que implica, para a escola, sua participação nos movimentos de
apropriação, releitura, recriação de elementos da cultura material
em geral.
Selecionamos quatro aspectos para os quais queremos
chamar a atenção, em se tratando da fotografia escolar.

Primeiro aspecto: das relações entre escola e fotografia

O primeiro deles diz respeito à forma particular como a


escola se relaciona com a fotografia em geral, e com o retrato,
neste caso particular. A fotografia enquanto resultado de ciência,
técnica e arte (CIAVATTA, 2002, p. 15), integra a visualidade2

2
Utilizamos aqui o conceito tratado por Meneses, que entende que a visualidade
deve ser entendida como objeto detentor, ele também, de historicidade e como
plataforma estratégica de elevado interesse cognitivo (2003, p. 11).

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que caracteriza o “oculocentrismo” do mundo moderno


(MENESES, 2003, p. 13). Isso significa dizer que, para além de
ser entendida como monumento (LE GOFF, 1992), operação
fundamental no seu tratamento como fonte para a pesquisa
histórica, a fotografia é parte de um tempo histórico em que a sua
materialidade instaura formas de viver, sentir, olhar e atuar sobre
o mundo, ao mesmo tempo em que resulta de processos que,
embora esparsos temporalmente, nela aparecem concentrados.
Vidal (1998, p. 77), baseando-se nas análises de Pierce,
nos alerta sobre as diferentes dimensões que nela se imbricam: a
de ícone, que ao representar um referente o congela na imagem; a
de indício que nos auxilia a perceber a forma de olhar de um certo
tempo histórico; a simbólica, que nos dá conta do quanto sua
representação é atuante na construção-transformação do real.
Pensar as relações entre escola e fotografia exige, então, a
consideração desses aspectos teóricos e históricos. A fotografia
como elemento de registro dos prédios escolares monumentais de
fins do século XIX e início do XX, registro de atividades
pedagógicas, de facetas educativas da escola e representação de seu
projeto educativo, registro dos sujeitos da escola, professores e
alunos, como construtores da nacionalidade e da modernidade,
tem sido muito útil e provocado questões para a história da
educação que não pretendemos abordar neste artigo.
Vale a pena, entretanto, tentar perceber algumas
distinções que demarcam o nosso recorte. Uma primeira distinção
diz respeito à escola fotografada na sua dimensão pública e da
fotografia de âmbito privado presente na escola. Essa distinção
não é simples, nem pode-se tomá-la como expressão de uma
fronteira previa e claramente estabelecida, sobretudo quando se
leva em conta as tênues demarcações entre público e privado na
história brasileira. Mas, para os objetivos deste texto, trata-se de
um risco necessario.
As fotografias dos espaços, artefatos e práticas escolares,
realizadas com fins de registro pelo poder público, seja para

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documentação e/ou propaganda ou produzidas por agentes


privados com objetivos de divulgação pública – como no caso da
imprensa – possuem, a nosso ver, um caráter de produção, guarda
e circulação que as diferencia do tipo de fotografia de que tratamos
no caso presente. A fotografia escolar, objeto de nossa reflexão,
define-se por ter sido produzida no espaço público da escola, em
geral por um agente privado, e com a previsão de circulação e
preservação em espaços privados, as habitações familiares.
Como objeto histórico, portanto, insere-se numa linha de
tradição que, integrando a visualidade contemporânea, produz-se
na interface com a forma escolar enquanto modo de socialização
característico do mundo moderno, onde ganhou preponderância
sobre outros modos de socialização (VINCENT, LAHIRE e
THIN, 2001, p. 11). Entendida dessa forma, torna-se possível
compreender o seu potencial educativo, não no sentido da
sistematização de saberes que é parte da ação escolar, mas no de
inserção no mundo social, com todas as suas forças de
manutenção e os movimentos idiossincráticos que isso comporta.
Os registros públicos dos espaços e atividades escolares
datam, no Brasil, da segunda metade do século XIX.
Acompanhando os avanços técnicos e a difusão de seu uso3,
conhece-se registros fotográficos de escolas, antes mesmo que o
registro fotográfico se irradiasse como prática corrente4 dos
agentes públicos e privados. Mas há um itinerário, ainda pouco
historiado, entre esse registro público e a introdução da fotografia
de caráter privado no espaço escolar. Como o tema é bastante

3
Alguns historiadores assinalam o surgimento da fotografia em 1833, com
difusão bastante restrita até 1850, quando a invenção do cartão de visita
fotográfico, no rastro da produção em série de instatâneos, contribui para sua
penetração, atingindo inclusive as classes menos abastadas (VIDAL, 1998, p. 79).
4
Carmen Sylvia Vidigal Moraes e Julia Falivene Alves, por exemplo, localizaram
fotografias desde os anos 1860, no trabalho de pesquisa que deu origem ao álbum
Escolas Profissionais Públicas do Estado de São Paulo: uma história em imagens
(Álbum Fotográfico). Centro Paula Souza, 2002.

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abrangente e foge aos limites do presente trabalho, nossa intenção


restringe-se a assinalar que pode-se inferir que, na relação entre
escola e fotografia, há um percurso em que o registro fotográfico
transitou de documentos produzidos com vistas a comporem o
acervo de memória pública, para registros que integrassem o
acervo pessoal de memória de professores e alunos, parte da
constituição de memória da vida privada.

Segundo aspecto: o retrato como imagem de si

Tratamos inicialmente da fotografia, procurando enfocar a


historicidade desse artefato no âmbito da visualidade que
caracteriza a modernidade, mas também de como essa visualidade
se realiza na escola e a envolve como objeto e partícipe na
multiplicação de imagens. Introduzimos, então, uma primeira
distinção que incorporamos ao debate sobre a fotografia escolar
como parte da cultura material escolar: o caráter público ou
privado de sua produção, guarda e circulação. Uma segunda
distinção torna-se importante nessa aproximação da fotografia
escolar: a especificidade do retrato no âmbito do registro
fotográfico.
O retrato remete à materialização da imagem de si, uma
imagem a ser preservada, uma imagem que rompe a barreira do
tempo, imortalizando aquela fração de vida, e, com ela, um pouco
da própria pessoa. Trata-se de um gesto que remete a uma tradição
que, na Antiguidade, associava-se à escultura e aos afrescos, e
ganhou, no Renascimento, a conquista técnica da pintura.
Retratar-se ou fazer-se retratar, associando a imagem a um nome,
uma trajetória, uma vida, uma obra, constituiu-se como prática
cultural de pequenos círculos, de figuras notáveis, de gente
poderosa, econômica e politicamente, com recursos para garantir
essa execução. Não que homens e mulheres de outros extratos
sociais deixassem de ser retratados em imagens de cenas cotidianas
de trabalho, ambientes familiares ou de diversão. Mas estavam lá
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anônimos. São anônimos para nós, o público que olha para essas
imagens.
A invenção da fotografia introduziu a popularização, a
partir do século XIX, dessa possibilidade de ser retratado. Numa
sociedade em que a dimensão privada da vida social já havia
configurado espaços e grupos familiares restritos, a fotografia logo
passou a integrar o acervo de memórias das famílias, penetrando
gradativamente com seus saberes, ferramentas, objetos e normas
(MAUAD, 1997). Na vida pública, substituiu, em grande parte, a
pintura, na sua função de imortalizar os poderosos, além de ser
requisitada para integrar o arsenal de estratégias acionadas para
legitimar projetos de governos em suas construções de hegemonia.
O caso do fotógrafo Augusto Malta, contratado pela Prefeitura do
Rio de Janeiro, àquela época capital da República, para registrar as
grandes transformações no panorama urbano no inicio do século
XX, é emblemático desse tipo de uso público (CIAVATTA,
2002).
Mas a fotografia também exigia recursos materiais para ser
produzida ou adquirida. A foto é mercadoria, que resulta de outras
mercadorias: a máquina, o papel, os agentes químicos, os suportes
dos negativos, parte delas em processo de desaparecimento nos dias
atuais. As fotografias se tornaram parte do patrimônio das famílias
e a quantidade que constitui o acervo é um demonstrativo,
também, da condição de classe dos indivíduos que as compõem5.
No Brasil das décadas de 1950/60 é possível imaginar que o
acesso aos retratos de família entre negros pobres fosse bastante
restrito, a despeito do desenvolvimento industrial e urbano que
começava a caracterizar o país.
Apropriado pela escola, esse tipo de retrato passava a
constituir parte da cultura material a ela associada. Como não
estamos tratando da fotografia em geral, essa prática se inscreve

5
Algo semelhante pode-se dizer a respeito dos filmes domésticos, enquanto
documentos imagéticos em acervos privados.

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como geradora de um produto que tangencia o núcleo,


propriamente dito, da cultura material escolar, que, poderíamos
dizer, é constituído por cadernos, lápis e correlatos, lousas, livros,
quadros murais, carteiras, enfim, materiais diretamente associados
ao ensino, utilizados com a finalidade de fazer acontecer o saber
escolar no aluno. Por outro lado, a dimensão educativa desse tipo
de retrato é inegável. Uma gama de valores se insere no gesto de
retratar os alunos, ao conceder-lhes um lugar particular na
história, como portadores dos atributos que só a escola lhes
poderia conferir. No mesmo gesto, fortifica os padrões de
comportamento que lhe são pertinentes, retoma o enquadramento
do retrato impregnando-o das intenções que compõem a
escolarização.
Neste debate, queremos chamar atenção para a forma
como a cultura material escolar, gerada na interface da produção
cultural em geral, torna possível uma apropriação particular de
produtos culturais, acentuando e explicitando sua função
educativa, nas exigências postas pela escolarização.

Terceiro aspecto: o objeto situado nas relações sociais

Um terceiro aspecto que cabe no presente debate é o de


que, no caso da escola brasileira, embora não seja exclusividade
dela, é preciso analisar as formas específicas como um pressuposto
profundamente anti-democrático encontra formas de atualizar-se
na materialidade da escola, ora conformado por sua cultura
material, ora denunciado por ela. No caso relatado, a interdição à
fotografia aparece como a revelação do racismo, persistente como
herança de séculos de escravidão negra.
A fotografia escolar, então, precisa ser analisada
considerando-se um conjunto de gestos, de saberes e de sentidos
implicados na sua produção. O que a foto enquadra é um cenário
produzido na e pela escola. A seleção de objetos seguiu critérios
afinados com os valores que a escola tem compromisso de
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difundir, os símbolos que deve cultuar. Essa seleção impõe-se


como parte das estratégias que se dirigem às famílias das crianças
em processo de socialização. A ação educadora confere à escola o
papel de reafirmar, por meio do seu modo específico de
socialização, valores e posturas consoantes com as formas de
dominação. A escola situa-se e é chamada a colaborar na
construção de um campo de tensões articulado às relações que
sustentam a vida social. Sua ação estende-se para além do aluno,
atingindo a rede social em que ele está inserido.
A relação entre família e escola, longe de constituir-se de
forma pacífica e harmoniosa, construiu-se a partir de disputas e
negociações que mobilizaram forças sociais e intelectuais. Esforços
de intelectuais engajados em tornar a escola uma realidade
presente na vida de crianças dos mais diversos grupos sociais
geraram discursos, projetos e ações apontados para consolidar o elo
entre família e escola. A crença no poder da escola em modelar o
comportamento familiar, idealizado a partir de uma representação
moderna do núcleo familiar, moveu iniciativas presentes no Brasil
desde princípios do século XX, e que ganharam consistência à
medida que a escola se instituía como elemento aceito e
incorporado como espaço de socialização da infância (MAGALDI,
2007, p. 11-24).
Nas décadas de 1950/1960, quando se passou o fato
narrado pela depoente, a escola já se havia imposto como
autoridade frente ao poder da família. Muitos traços de
modelagem dos corpos, dos gestos, das expressões já se
encontravam assimilados por boa parte da sociedade, mesmo pelos
segmentos que ainda não conseguiam acesso à educação escolar. A
expansão do modo de vida urbano e do trabalho industrial
facilitavam essa difusão trazendo para os espaços de convivência as
prescrições da cultura escolar, ao mesmo tempo em que levavam
para a escola os produtos culturais produzidos em diferentes
tradições, e que passavam a ser repaginados à luz dos princípios de
organização e circulação dos saberes escolarizados.

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No discurso pedagógico constroem-se representações da


família, muitas vezes tida como incapaz, despreparada para lidar
com a educação dos filhos, ao mesmo tempo em que se buscam
formas de aproximar a família da escola (FARIA FILHO, 2002,
p. 82). Embora o impacto desses discursos na prática cotidiana
possa ser relativizado, a percepção da família como instituição
secundaria na educação das crianças já havia se difundido
fortemente naquele período. É possível inferir, ainda, que o novo
público atingido pela escola, de camadas sociais mais pobres, fosse
o alvo privilegiado desse tipo de representação.
A produção da fotografia escolar se transformava, então,
em mais uma oportunidade de reafirmar, para a família, o padrão
esperado de higiene, cuidado com a aparência, contenção nos
gestos. Cuidado e disciplina passam a ser tomados como
indicadores do pertencimento a um grupo. No caso da fotografia,
sua produção incluía o filtro que designava quem poderia ser
retratado. Na medida em que a escola oferecia uma alternativa
que, em princípio, seria para todos, a implementação prática fazia
emergir outras estratégias de reconversão à desigualdade. No caso
brasileiro, desigualdade associada ao lugar histórico construído
para os negros e à difícil incorporação desse público, num processo
de idas e vindas (DÁVILA, 2006; MÜLLER, 2008; VEIGA,
2008).
A cultura material escolar precisa ser analisada, então,
como fruto de relações, assim como componente delas. O objeto
se interpõe entre as pessoas, podendo ser elo de ligação ou
fronteira. Tanto pode aproximar como afastar. Constitui lugares,
hierarquias, assinala diferenças e desigualdades. Penso que esse é
um viés importante a ser resgatado na crítica àquelas perspectivas
pedagógicas que acreditam que materiais mais bem elaborados
podem dar conta da tarefa educativa. Também deve fundamentar
argumentos que se contraponham à visão de que a tecnologia é,
por si só, elemento de democratização do acesso ao conhecimento.

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Quarto aspecto: cultura material, memória e identidade

Um quarto aspecto que considero interessante nessa


reflexão é o que se refere à força das memórias de vivências
escolares. Dependendo da geração, do grupo social, da localização
geográfica, do gênero, isso comporta diferenças, às vezes, bastante
acentuadas. Entretanto, entre os indivíduos que freqüentaram os
espaços escolares, a força de socialização que eles portam imprime
marcas profundas na construção de identidades, e esse fato pode
ser constatado nas memórias recolhidas em atividades de pesquisa.
Esse aspecto pode nos conduzir a várias questões que
emergem das relações entre cultura material escolar, memória e
identidade, e seria impossível abordar todas elas neste artigo. Mas
pontuaremos algumas, dentre as muitas que podem ser
incorporadas à análise de nosso caso empírico, entendendo que
essa discussão só faz sentido se mantiver, como horizonte de
referência, a reflexão sobre a escola brasileira na relação com os
diferentes grupos sociais.
Os estudos a respeito da memória, no campo
historiográfico, têm procurado nutrir-se do conhecimento
produzido, sobretudo, por estudos em psicologia social (Sá, 2005),
enquanto a discussão em torno da identidade tem fortes referentes
na psicanálise, na antropologia, na linguística e, também, na
filosofia e na história (CLAVAL, 1999, p. 12-14). A questão
fundamental da subjetividade na sua relação com os processos
sociais e culturais atravessa esse amplo debate.
Os fenômenos da subjetividade, envolvendo sentimentos e
pensamentos pessoais, não podem ser compreendidos a partir de
uma perspectiva puramente individual. Embora guardem
distinções, subjetividade e identidade são conceitos que, em larga
medida se superpõem. Por isso, aparecem utilizados de forma
intercambiável. Precisando melhor os dois conceitos temos que:

“Subjetividade” sugere a compreensão que temos sobre o


nosso eu. O termo envolve os pensamentos e as emoções

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conscientes e inconscientes que constituem nossas


concepções sobre “quem nós somos”. A subjetividade
envolve nossos sentimentos e pensamentos mais pessoais.
Entretanto, nós vivemos nossa subjetividade em um
contexto social no qual a linguagem e a cultura dão
significado à experiência que temos de nós mesmos e na
qual nos dotamos de identidade. Quaisquer que sejam o
conjunto de significados construídos pelos discursos, eles
só podem ser eficazes se eles nos recrutam como sujeitos.
Os sujeitos são, assim, sujeitados ao discurso e devem,
eles proprios, assumi-lo como indivíduos que, dessa
forma, se posicionam a si proprios. As posições que
assumimos e com as quais nos identificamos constituem
nossas identidades. (WOODWARD, 2007, p. 55)

A construção de identidades envolve, então, processos


subjetivos, de internalização de construções simbólicas. Essas
construções, longe de serem naturais, são construções culturais e
sociais que buscam, em elementos exteriorizados, materiais,
formais, rituais, o meio de sua expressão. A linguística e a
antropologia estruturalistas frisaram o compromisso com os
dualismos presente nas estruturas de pensamento. Embora esse
ponto de vista mereça as críticas que recebeu pela generalização
que embutiu em suas conclusões, a percepção de certas oposições
binárias pode nos ajudar a refletir sobre a forma como se
constroem identidades que demarcam lugares sociais.
No caso que trazemos para nosso estudo, a fronteira entre
os que poderiam e os que não poderiam ser retratados é parte de
uma construção identitária que implica a delimitação da diferença.
Todo processo de construção de identidades pressupõe a linha
demarcatória entre o eu e o outro, ou entre nós e os outros.
Agregam-se sujeitos em torno de algo que é assumido como
comum, em oposição a outros que não partilhariam daquele
mesmo atributo. Por isso, Silva escreveu que assim como a
identidade depende da diferença, a diferença depende da identidade.
Identidade e diferença são, pois, inseparáveis (2007, p. 75).

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Como essa determinação do que é próprio e do que difere


entrelaça-se a critérios que hierarquizam os componentes de um
certo universo, as marcas que são selecionadas para a composição
de um padrão identitário também aparecem impregnadas de
critérios de valor que as qualificam como superiores em relação às
que se posicionam como externas ou opostas. Se pensarmos no
retrato escolar como um artefato cuja produção no interior da
escola fortalece a construção da identidade do estudante como
partícipe de uma comunidade educada, as práticas envolvidas na
sua produção ganham sentido. Há um confronto estabelecido e
fomentado entre os iguais e os diferentes.
Essa produção identitária que encontra na escola um lócus
de realização, entretanto, como vimos frisando, não esgota nela
mesma, nem responde a finalidades puramente escolares. A idéia
de identidade legitimadora (CASTELLS, 1999, p. 24) pode nos
ajudar a pensar essa produção tendo como referência o próprio
lugar que a escola foi chamada a ocupar no projeto nacional
republicano. A adesão dos sujeitos a essa comunidade imaginada
que é a nação (ANDERSON, 2005) resultou de muito
investimento cultural, em que todo um sistema simbólico foi
mobilizado para sua configuração. É conhecido o potencial de
violência conjugado a essas ações, e o caso de que tratamos é
emblemático nesse sentido.
A memória, como produção do momento presente
denuncia o quanto algumas experiências são decisivas e ficam
retidas como âncoras no psiquismo individual. Le Goff (1984, p.
476) nos lembra que a memória é um elemento essencial do que se
costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma
das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de
hoje... Essa relação, entretanto, não é pacífica, posto que a propria
construção da identidade também não o é. A memoria constitui-se
como campo de disputa (POLLAK, 1989): das disputas que estão
na origem de sua elaboração às disputas que, no presente,
desenham as lutas por sua apropriação, seu apagamento, sua
ocultação.
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Memória e identidade são conceitos que remetem a


processos sempre inacabados e continuamente confrontados com
as circunstâncias sócio-culturais dos tempos que se sucedem. Por
esse motivo, a perspectiva teórica mais aceita para sua utilização é
a construtivista, ou seja, aquela que descarta a possibilidade de
chegar a uma essência, um núcleo fixo e definitivo de sua
constituição. Isso não significa, entretanto, que sejam tão
mutantes que não possamos apreendê-las. São construções
históricas, ligadas a lugares institucionais, que organizam a
experiência pessoal e social (HALL, 2007, p. 108-111). Remetem
a jogos de poder, estruturas e mecanismos de dominação.
No caso do retrato, um elemento que pode, ainda, ser
associado nessa análise é o da visualidade nessa constituição de
memória e identidade. Meneses (2003, p. 17) chama a atenção
para as especificidades que caracterizam as imagens nos processos
de produção de sentido:

... nossa postura habitual pertinente à imagem analógica,


como muitos já notaram, é fundamentalmente uma
relação sentimental.

Embora o autor esteja discutindo as dificuldades que se


apresentam aos pesquisadores que lidam com imagens, é possível
utilizar a mesma observação para o poder da imagem na
construção da memória e da identidade. Para além, então, da
problemática que envolve o retrato escolar, como artefato da
cultura material escolar, o seu atributo de visualidade imprime-lhe
uma força constitutiva de significados que não pode ser
desconsiderada em nossa análise.
Finalmente, um último aspecto que queremos frisar, por
outro lado, é o potencial contraditório que necessitamos perceber
em todos esses processos. A cultura material escolar, seja em
manifestações particulares, ou pensada no seu conjunto, não
possui o poder absoluto de conformar modos de pensar, sentir,
dizer e agir. As formas de percepção e elaboração dos mecanismos

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postos em marcha, pela escola, por parte dos diferentes grupos nas
suas construções identitárias comportam uma dialética que
permite surgir o imprevisto, o que subverte. Retornando à
narrativa exemplar de que partimos, aquela mesma vivência que
poderia reforçar o lugar subalterno para o qual foi empurrada pela
atitude da professora, atuou como um dos fatores de indignação
que levaram aquela menina a se tornar militante do movimento de
defesa dos direitos das populações negras, contra todas as formas
de racismo.
Não que se deva apostar nesse efeito contrário para
justificar ou minimizar os efeitos perversos que esse tipo de
experiência possui nos sujeitos. Mas queremos encerrar frisando
que a cultura material escolar tem sua historicidade marcada por
um campo de relações, que é rico, múltiplo, contraditório, e
merece atenção dos pesquisadores.

Considerações finais

A fotografia escolar, tomada como indício da cultura


material escolar, provoca diversas questões ao pesquisador de
história da educação, algumas das quais tentamos discutir neste
texto. Interessou-nos, particularmente, a problemática da pesquisa
que se propõe a tomar os artefatos da cultura material escolar para
a compreensão das relações entre escola, memória e identidade.
Alguns cuidados destacam-se como componentes
importantes dos procedimentos de pesquisa, para os quais
intentamos chamar a atenção. O primeiro deles diz respeito à
necessária relação entre a cultura material escolar, tomada como
vestígio de práticas associadas à sua produção, uso, circulação e
apropriação. Os objetos, assim como os edifícios, para produzirem
sentidos, participam de sistemas simbólicos integrados em amplos
circuitos de produção sócio-cultural.
Por outro lado, participam diferentemente, de maneiras
que guardam relações com suas funções de uso, suas características
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materiais e os tempos/espaços de sua presença como dispositivo


escolar. Em nosso caso particular, o artefato imagético,
encaminhou-nos a buscar os aportes teórico-metodológicos
pertinentes ao seu tratamento na pesquisa. A observação de
Menezes (2003, p. 29) sintetiza um conjunto de preocupações em
torno desse objeto:

Vivemos a imagem em nosso cotidiano, em várias


dimensões, usos e funções. O emprego de imagens como
fonte de informação é apenas um dentre tantos (inclusive
simultaneamente a outros) e não altera a natureza da
coisa, mas se realiza efetivamente em situações culturais
específicas, entre várias outras. A mesma imagem,
portanto, pode reciclar-se, pode assumir vários papéis,
ressemantizar-se e produzir efeitos diversos.

Essa observação parece-nos bastante adequada à


preocupação que orientou nosso texto. No nosso estudo,
interessou-nos, sobretudo, o que a imagem escondia, ou melhor, a
ausência daquela imagem no acervo de memórias de uma
determinada família. Essa percepção só foi possível, porque a
pesquisa não se restringiu aos artefatos, mas chegou a eles por
meio dos depoimentos coletados, com vistas a garimpar memórias
de um grupo específico: mulheres negras de uma certa faixa etária
de uma determinada cidade. A delimitação tornou-se, aqui, o
parâmetro que nos permitiu acessar à riqueza de uma experiência
capaz de provocar questões ainda caras aos educadores brasileiros.
Se, de um lado, essa cultura material se interpõe nas
relações sociais, de outro, é possível pensar que a sua simples
presença é um indício de muitas relações que estão para além da
escola, mas para ela confluem. Quando me refiro a isso, penso no
fenômeno do empobrecimento radical das escolas públicas nas
periferias metropolitanas. Em conferência pronunciada em
simpósio promovido pela UFF e UERJ sobre Estado e Poder, o
historiador argentino Juan Javier Balsas referiu-se à forma como
está se consolidando, entre os jovens de países latino-americanos a

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naturalização de que as escolas públicas são para os pobres, escolas


particulares são para a classe média e os ricos devem estudar em
escolas especiais, de alta tecnologia, dirigidas às suas necessidades.
Perguntaríamos: como a pobreza material das escolas
públicas colabora para construir identidades conformadas dentre
os grupos subalternos, ao reafirmar, de forma evidente, que eles
não têm direito a uma escola materialmente rica?

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Claudia Alves é Doutora em História Social pela USP.


Professora Associada da Faculdade de Educação da Universidade
Federal Fluminense. Presidente da Sociedade Brasileira de
História da Educação na gestão 2007-2009. E-mail:
claudiamaria.alves@pq.cnpq.br.

Recebido em: 05/11/2009


Aceito em: 20/12/2009

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AS FONTES DO MÉTODO ANALÍTICO
DE LEITURA DE JOÃO KÖPKE (1896-1917)
Mirian Jorge Warde
Claudia Panizzolo

Resumo
Após duas décadas de defesa e propaganda do método sintético, João
Köpke se tornou ativo divulgador do método analítico para o ensino da
leitura. Em cinco textos publicados entre 1896 e 1917, produzidos
em circunstâncias distintas e para diverso público, Köpke chama em
apoio ao seu método analítico autores europeus e norte-americanos
tanto por seus princípios como por suas experiências pedagógicas;
dentre eles: J. Jacotot, A. Bain, A. Meiklejohn, J. Froebel, C. Parker,
G. Stanley Hall e J. Chubb. Neste artigo, maior atenção é conferida
às referências norte-americanas que se repetem, com especial ênfase à
psicologia de Stanley Hall e ao método de ensino da leitura de
Meiklejohn, ressaltados e colocados em convergência por Köpke em
seus escritos finais.
Palavras-chave: João Köpke; História da Educação; História da
Leitura; método sintético; método analítico.

THE SOURCES OF THE ANALYTICAL METHOD OF


READING FROM JOÃO KÖPKE (1896-1917)
Abstract
After two decades advertising and defending the synthetic method,
João Köpke became active disseminator of analytical method for
teaching reading. In five texts published between 1896 and 1917,
produced in different circumstances for different publics readers,
Köpke seeks the support of American and European authors, for
their principles as well as for the education experience, to his
analytical method. as by theirs principles as by theirs educational
experiences. Among those authors: J. Jacotot, A. Bain, A.
Meiklejohn, J. Froebel, C. Parker, G. Stanley Hall and J. Chubb. In
this article, attention is given to repeated American references with
special emphasis on the psychology of Stanley Hall and the method
of teaching reading of Meiklejohn, highlighted and placed on
convergence by Köpke in his final writings.
Keywords: João Köpke; History orf Education; History of reading;
Synthetical Method; Analitical Method.

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LAS FUENTES DEL MÉTODO ANALÍTICO DE
LECTURA DE JOÃO KÖPKE (1896-1917)
Resumen
Después de dos décadas de defensa y propaganda del método
sintético, João Köpke se tornó activo divulgador del método analítico
para la enseñanza de la lectura. En cinco textos publicados entre
1896 y 1917, producidos en diferentes circunstancias y para públicos
diversos, Köpke cita autores europeos y norteamericanos que, tanto
por sus principios como por sus experiencias pedagógicas, le sirven de
apoyo a su método analítico; entre ellos se encuentran: J. Jacotot, A.
Bain, A. Meiklejohn, J. Froebel, C. Parker, G. Stanley Hall y J.
Chubb. En este artículo, se le confiere mayor atención a las
referencias norteamericanas, sobre todo y con especial énfasis, a la
psicología de Stanley Hall y al método de enseñanza de la lectura de
Meiklejohn, resaltados y colocados en convergência por Köpke en sus
últimos escritos.
Palabras clave: João Köpke; História de la Educación; História de
la Lectura; método sintético; método analítico.

LES SOURCES DE LA MÉTHODE ANALYTIQUE DE


LECTURE DE JOÃO KÖPKE (1896-1917)
Résumé
Après deux décennies de défense et de publicité de la méthode
synthétique, João Köpke est devenu un promoteur de la méthode
analytique dans l’enseignement de la lecture. Dans cinq textes publiés
entre 1896 et 1917 et produits dans des circonstances différentes et
pour un public diversifié, Köpke cite, à l’appui de sa méthode
analytique, des auteurs européens et nord-américains, aussi bien par
leurs principes que par leurs expériences pédagogiques, dont: J.
Jacotot, A. Bain, A. Meiklejohn, J. Froebel, C. Parker, G. Stanley
Hall et J. Chubb. Dans cet article on confère une attention spéciale
aux références nord-américaines qui se répètent, surtout à la
psychologie de Stanley Hall et à la méthode d’enseignement de la
lecture de Meiklejohn, mis en relief et en relation par Köpke dans ses
derniers écrits.
Mots-clés: João Köpke; Histoire de l’Éducation; Histoire da la
Lecture; méthode synthétique; méthode analytique.

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Introdução

João Köpke (1852-1926) bacharelou-se em Direito pela


Academia do Largo de São Francisco em 1875, mas dedicou a
maior parte da sua vida ao ensino, uma vez que foi por mais
tempo professor, diretor e autor de m ate ri al didáti co do
que advogado1. Envolve u - s e com a causa republicana e
educacional, tendo sua atuação marcada pela inquietação criadora
e renovadora tanto quanto pela coerência de princípios e pelo
pioneirismo na divulgação de suas idéias modernas e práticas.
Pertenceu a um grupo de intelectuais que, além de
defender a reforma social pela reforma da educação, empreendeu
experiências de escolarização apropriando-se de referenciais
internacionais, destacadamente os norte-americanos. João Köpke
não foi, p o r é m , um “ homem de partido”, e m sentido estrito,
e, ainda que comungasse dos ideais republicanos, não se
converteu em porta voz de um grupo ou em liderança de um
movimento. Köpke foi, antes de tudo, um pedagogista que
dedicou parte significativa de sua vida à criação de teorias, práticas e
instrumentos para educar os cidadãos da República. Expressou seu
pensamento político-pedagógico pondo em circulação, na
imprensa, nas escolas, nos livros para crianças e nas
conferências, uma pedagogia moderna, sinônimo de científica e
republicana.
Foi uma figura-chave para a realização da educação
inovadora vivida e difundida por São Paulo durante a transição do

1
Em 1875, J. Köpke foi nomeado promotor público em Itapeva da Faxina (SP),
onde também trabalhou como advogado. Em seguida, foi removido para as
comarcas de Jundiaí, Campinas e, por fim, para a Capital. “Em São Paulo
acumulou às atividades na promotoria, o trabalho como advogado (...). Contudo
sua carreira foi curta e a magistratura preterida pela opção que o acompanharia
por toda a vida: a Educação” (PANIZZOLO, 2006, p. 101).

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Império para a República. Teve ao longo das décadas de 70 e 80 do


séc. XIX, uma atuação intensa, profunda e coerente abrangendo
experiências com o ensino elementar e secundário em
estabelecimentos de vanguarda como o Colégio Pestana, o Colégio
Florence, o Culto à Ciência, a Escola Primária Neutralidade –
Instituto Henrique Köpke.
Além de se dedicar à abertura e manutenção de escolas,
b em como para a definição de um novo campo pedagógico, João
Köpke foi pioneiro na divulgação e implantação do método
analítico para o ensino da leitura e dedicou-se a uma profícua
produção de livros de leitura.
Este artigo focaliza cinco textos publicados por João Köpke
entre 1896 e 1917 em defesa do método analítico para o
ensino da leitura. Após quase duas décadas da primeira edição
da sua cartilha Método rápido para aprender a ler (1874),
posteriormente relançada com o título Método racional e rápido
para aprender a ler sem soletrar (1879), na qual se vale do
método da silabação, Köpke se tornara ardoroso defensor do
método analítico pela palavração, que, além de sistematizar nos
referidos textos, nele se ancora para elaborar cartilhas, livros de
leitura e outros livros didáticos para a escola elementar e
secundária.
Os cinco escritos de que aqui se trata foram gerados em
circunstâncias distintas e com formatos diferençados: dois deles,
datados de 1896 e 1916, foram elaborados com vistas a
conferências proferidas, respectivamente, no Instituto Pedagógico
Paulista situado na antiga Escola Normal da Rua da Boa
Morte e nas dependências do Jardim da Infância anexo à Escola
Normal de São Paulo.
As idéias inovadoras e pioneiras de João Köpke
apresentadas nas conferências o converteram em um precursor em
relação a esse ensino, mas também o colocaram no epicentro de
acirradas polêmicas e disputas com os professores paulistas.

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As primeiras polêmicas foram veiculadas na Revista de


Ensino e dizem respeito às discordâncias de professores e escritores
didáticos paulistas no que se refere ao modo de processar o método
analítico.
A Revista de Ensino publicou um artigo, de Ramon Roca
Dordal, dedicado aos mestres progressistas. Nele, além de invocar
Pestallozzi e os princípios da educação intelectual e do ensino
integral, o autor ressalta a importância do primeiro livro para
crianças, ao mesmo tempo em que apresenta A Cartilha Moderna
de sua autoria. Dordal a apresenta como sendo detentora dos
requisitos fundamentais para o ensino público paulista, que estaria
demandando um livro ao agrado das crianças, fácil ao trabalho do
professor e, que fosse pautado no ensino da leitura pelo método
analítico.
A seus objetivos, Dordal contrapôs o método patenteado
por João Köpke em sua conferência de 1896, considerando-o de
aplicação impossível, posto demandar um ensino individualizado,
além de requerer do professor habilidades de desenhista e
metodizador. Escreve Dordal:

Apresentar um desenho, esboçado rápida e elegantemente


à vista do próprio aluno, e depois, em palestra,
alegremente, ir animando-o até que ele consiga conhecer,
explicar, ler e reproduzir os caracteres gráficos que
compõem as sentenças que puderam ser formuladas a
respeito desse desenho, e logo, compor, com o próprio
aluno, a historieta, que o mesmo desenho inspirar, seria,
digo, a última palavra no ensino da leitura, constituída,
na frase do distinto educador, o passo mais seguro na
integralização do ensino primário. Mas, atualmente,
mesmo durante muito tempo, será isto possível nas
escolas públicas? (DORDAL, 1902, p.214).

Ainda no mesmo número da Revista de Ensino, Joaquim


Luiz de Brito, normalista da turma de 1882, membro da diretoria
da Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo
e redator efetivo da Revista escreveu um artigo em que defendia

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entusiasticamente a Cartilha Moderna, de Ramon Roca Dordal,


expondo suas discordâncias em relação ao apresentado por João
Köpke, “por não ser ele aplicável em nossas escolas, onde o ensino
é feito coletiva e não individualmente, e nem serem todos os
professores desenhistas” (BRITO, 1902, p.322).
No número seguinte da Revista de Ensino, de outubro de
1902, João Köpke publicou uma carta aos professores L. Brito e
R. Roca Dordal, na qual, sob a alegação de consciência
profissional e baseado na Conferência de 1896, contestou as
críticas recebidas. Quanto à exigência dos professores serem
exímios desenhistas, Köpke esclareceu julgar secundário e até
mesmo dispensável o emprego dos desenhos para o método,
podendo os professores recorrer a estampas, clichês topográficos ou
a cartazes reclamáticos e folhinhas. Köpke refutou também a
acusação do uso exagerado da memorização, alegando que sua
proposta visava, ao contrário da decoração, o entendimento
verdadeiro das palavras. Na apresentação dos princípios, invocou a
didática que considerava ser a mais adiantada do mundo, a
americana. Köpke recorreu ainda ao professor Meiklejohn da
Universidade de St. Andrews, em sua obra The problem of teaching
to read acerca do emprego do método analítico:

Do embaraço, em que fico, sem dúvida por obtusidade do


meu intelecto, se levanto os olhos para a didática mais
adiantada do mundo, a americana, ali vou encontrar a
distinção entre a instrução individual e coletiva nos
readings-books, readers, primers ou cartilhas e no
reading-charts ou mapas murais de leitura, os primeiros
para uso do indivíduo, as segundas, da classe; exatamente
como, na aula de geografia, o aluno manuseia o Atlas e a
classe completa o mapa, isto é, o aluno naquele, vai
desajudado do amparo do mestre, e a classe, neste
acompanha-lhe a palavra e o gesto através das grandes
características, traçadas de modo nítido e facilmente
percebíveis à distância por muitos olhos, guiados pela luz
que uma só mão espalha pela superfície das regiões
exploradas (KÖPKE, 1902, p.777).

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A leitura e a análise dos artigos de Roca Dordal, Brito e


Köpke indicam não só um acirrado debate sobre qual método e
qual cartilha seria o mais adequado para o ensino da leitura e
escrita, como também apontam para entendimentos diversos a
respeito do método analítico.
Portanto o eixo de divergência não estava no fato de ser o
método analítico da palavração inaplicável às classes de ensino
coletivo, nem tão pouco na habilidade de desenhar dos professores.
O problema se encontrava no fato de Roca Dordal e Brito
entenderem que as palavras escolhidas para processar o método
deveriam ser monossílabas e dissílabas, apresentando, assim, um
método analítico pela palavração baseado nos procedimentos do
método sintético pela silabação, enquanto para Köpke a escolha
das palavras deveria considerar a composição das frases e sentenças
independentemente do aspecto fonético, ou seja, por meio de um
método analítico pela palavração partindo da elaboração coletiva do
texto.
Ainda nesse mesmo ano, fértil na acirrada polêmica sobre
o método analítico para ensino da leitura, Arnaldo de Oliveira
Barreto publicou na Revista de Ensino um artigo em tom
moderador e conciliador, em que indica a tolerância como solução
para os problemas relativos aos métodos de ensino.
No entanto, o problema estaria ainda longe de alcançar
resolução e durante os vinte anos subsequentes; outras cartilhas
seriam criadas, tendo cada uma a pretensão de tornar-se a única e
verdadeira repositória do método analítico, dessa forma acirrando
ainda mais os debates e disputas por prestígio profissional e lucro
financeiro.
O que aqui se examina, assim, são textos de combate;
contudo, é com eles que João Köpke tanto confere uma feição
sistematizada ao método analítico para o ensino de leitura como dá
a saber as vertentes de pensamento e os autores em que se
apoiou ou se inspirou para adoção e divulgação do referido
método por meio da elaboração e publicação de livros de leitura e

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séries graduadas para a escola primária e secundária. Com esses


escritos publicados num período de vinte anos, Köpke quebrou
a monotonia das retóricas de parca consistência e rarefeita
erudição, mobilizando ensaístas e investigadores pouco ou nada
conhecidos nos meios educacionais brasileiros.
Embora tenha se envolvido em embates políticos ou
ideológicos que, possivelmente, extrapolavam o seu conhecimento
a respeito do fundamento republicano ou monarquista de um
método de ensino, do sentido deste ou daquele procedimento
didático, o certo é que para além de suas predileções políticas e
pedagógicas Köpke acabou por se tornar epicentro do que Berta
Braslavski denominou, muitas décadas depois, de “querela do
método”, referindo-se ao embates que envolverem pedagogistas
argentinos, brasileiros e outros em torno do método de ensino da
leitura e escrita (cf. BRASLAVSKI, 1962, 1971).
Neste artigo, a atenção recai sobre os autores referidos por
João Köpke como suportes para o método analítico tal como o
entende e o operacionaliza em livros de destinação didática. O
espectro dos nomes mencionados não é pequeno; inclui ensaístas,
filósofos, psicologistas, pedagogistas europeus e norte-americanos.
Da conferência de 1896, A leitura analytica, constam de pronto,
porém de passagem, os indefectíveis Pestalozzi e Froebel,
sucedidos por outros tantos também referidos de relance, que se
diluem na prevalência de nomes tais como o de Joseph Jacotot,
Alexander Bain, Isaac Taylor, Gabriel Compayré, William Preyer,
James Sully, G. Stanley Hall, bem como o da muito elogiada
Miss Marcia Browne. Excetuados o primeiro e a última, os demais
comparecem explicitamente pela relação com os estudos que
Köpke denomina de “psico-fisiológicos”.
Na carta de 1902, intitulada Ensino da leitura, são poucas
as referências mobilizadas em apoio às suas proposições:
retornam Jacotot louvado, mais uma vez, pelo aforismo com o
qual se consagrou: “tudo está em tudo” e Miss Browne, a quem
torna a prestar reverências; de novidade, aparece Meiklejohn. É

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com ele que Köpke encerra a carta prometendo enviar “em breve”
para a Revista “um resumo do trabalho mais completo que
conheço sobre o problema do ensino da leitura: o livrinho [The
problem of teaching to read] de Meiklejohn” (Köpke, 1902, p.792)
a que havia aludido anteriormente.
O compromisso foi honrado, uma vez que a matéria de
1903, publicada com o mesmo título da carta, Ensino da leitura, é
integralmente dedicado ao tal “livrinho” de Meiklejohn, não
exatamente para resumi-lo, como o próprio Köpke se corrige ao
início, “porquanto”, diz ele:

o que faço é adaptar à nossa língua a parte do trabalho


que se refere especialmente à língua inglesa, cuja
ortografia, muito mais anômala, fundamenta a
argumentação do emérito educacionista, e trasladar para
o vernáculo a parte que se refere à escolha do melhor
processo, uma vez que se suponha verificada a existência
de uma notação gráfica perfeita, qualificativo de que está
muito longe a portuguesa (Köpke,1903, p.1175).

Esses escritos dos primeiros anos do século XX, sugerem a


transição do estilo adotado por Köpke na conferência de 1896
para o que se consagrará nos escritos de 1916 que encerram seu
envolvimento nas polêmicas em torno dos métodos de ensino da
leitura e da escrita: o número de menções ou referências
passageiras pouco ou nada contextuadas diminuem, bem como o
leque de correntes e ramos de conhecimento perde em amplitude
para se concentrar em poucos e decisivos nomes quer da
Psicologia quer da Pedagogia renovada; nos dois casos, é flagrante
a transferência da legitimidade argumentativa dos filósofos-
ensaístas europeus para os filósofos-cientistas ou, melhor dizendo,
filósofos voltados aos estudos empíricos e experimentais.
Na conferência e na carta datadas de 1916, Köpke
retorna a Meiklejohn, inclui Chubb, Carpenter e outros, mas
desta feita é Stanley Hall que ocupa o lugar central, entre os

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produtores da nova psicologia científica que dá base à também


nova pedagogia experimental.
Köpke inova também nos escritos de 1916 ao trazer à cena
para testemunharem em seu favor em torno de cinco educadores
norte-americanos; são pedagogistas experimentais, renovadores
dos métodos de ensino envolvidos nas lidas escolares cotidianas.
Dentre esses, é flagrante o espaço reservado a Coronel Francis
Parker, diretor da Escola Laboratório da Universidade de
Chicago criada em 1894 por John Dewey, e mentor do
experimento curricular nela implantado, bem como a Sarah
Louise Arnold, autora de livros destinados à escolarização
elementar, dentre os quais a Arnold Primer, traduzida para o
português e publicada em 1907, por encomenda de Oscar
Thompson, então Diretor da Instrução Pública Paulista.
É provável que Köpke não tenha sido o primeiro e nem
o mais judicioso do seu tempo, mas com certeza foi dos mais
originais e bem fundamentados propugnadores dos procedimentos
analíticos para o ensino da leitura nos meios educacionais
brasileiros dos primórdios republicanos. É cabível pensá-lo como
um exemplar daqueles intelectuais que, à época, se
profissionalizavam e se especializavam em assuntos educacionais,
gravitando entre os produtores ou criadores e os difusores do saber
pedagógico. Tem cabimento também cogitar que esse seu duplo e
concomitante engajamento tenha levado Rangel Pestana a
honrosamente nomeá-lo seu alter ego em matérias educacionais
(cf. HILSDORF, 1986; PANIZZOLO, 2006).
Diplomado por uma das poucas e eficazes instituições de
formação de elites intelectuais e políticas brasileiras, a Academia
de Direito de São Paulo, na qual tudo se aprendia nas artes do
bem-falar, mas não necessariamente do bem-pensar e do bem-
agir, João Köpke não guardou, ao longo do tempo, a verborragia
eruditista dominante entre os seus contemporâneos sobre os
quais, quer nas lidas congressuais quer nas acadêmicas, pesavam
somente os encargos da persuasão, uma vez que estavam livres das

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mais modernas práticas de demonstração de provas documentais


ou factuais que se impunham crescentemente nos ambientes
científicos a partir de universidades européias e norte-americanas.
Dirigidos aos seus pares em assuntos educacionais, os
textos de Köpke de 1902 e 1903 sinalizam para um novo estilo
em que o esforço de convencimento vem diretamente associado à
apresentação de evidências nascidas dos seus próprios
experimentos ou de fontes abalizadas. Köpke se revela, até os
últimos escritos de 1916, crescentemente atualizado com as mais
novas tendências da Pedagogia e da Psicologia quer européias
quer norte-americanas.
Além disso, tinha familiaridade com a língua inglesa,
além da espanhola, da italiana, e da francesa, bastante conhecida
dos ilustrados da época. A habilidade de leitura da língua inglesa já
lhe estava plenamente constituída quando, saído da Academia de
Direito, após breve interregno como promotor público, Köpke
passou a se dedicar ao magistério, compartilhando-o com Rangel
Pestana, Caetano de Campos, Américo Brasiliense, para citar
apenas alguns dos seus parceiros de lidas pedagógicas. Com essa
habilidade, Köpke pode buscar fontes originárias de países
anglófonos e lê-las diretamente na língua original, dispensando,
assim, as intermediações usuais, tanto das traduções para o
Francês ou o Espanhol de obras escritas originariamente no
Inglês, quanto dos relatos europeus sobre a escola ou a pedagogia
norte-americanas, dentre os quais se sobrelevam os de Hippeau e
de Buisson.
Esses são alguns dos traços do intelectual João Köpke que,
de maneira bastante singular, se reportava a autores e obras que
mal haviam entrado no circuito internacional, bem como
estudava os relatos de iniciativas escolares que mudariam a
configuração pedagógica e escolar dos Estados Unidos e de
algumas regiões da Europa; na sua grande maioria, eram
desconhecidos daquelas primeiras gerações de pedagogistas

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brasileiros envolvidos quer na modernização do ensino quer na


instalação do regime republicano no Brasil.

A César o que é de César

Para se ter uma idéia mais clara e articulada da inflexão


operada por Jo ão Köpke no perfil dos autores e no padrão de
referências utilizadas foram compostos os quadros abaixo. Neles é
possível visualizar três características já apontadas, além de uma
quarta que será a seguir detalhada.
Quanto às três características anteriormente expostas, são
elas: a) a focalização dos filósofos-cientistas/empírico-
experimentais; b) a eleição das psicologias empírico-experimentais
como suporte para a renovação pedagógica e c) a prevalência das
pedagogias extraídas da experiência.
No Quadro 1 está registrada uma quarta característica
das fontes citadas por Köpke em defesa do seu método analítico
para o ensino da leitura aos quais confere legítima autoridade para
dirimir dúvidas, dissipar equívocos ou mesmo amortecer os golpes
a que vinha sendo submetido, bem como dos autores que ganham
proeminência de 1896 a 1916 ou, ainda, da vertente da “boa
psychologia”, como o próprio Köpke qualifica as bases nas quais
apóia seu método de ensino e os procedimentos didáticos que a ele
se vinculam.
Foram registrados 29 nomes aludidos como fontes
inspiradoras ou de fundamentação, dos quais 19 constam como
autores de estudos originais e 10 como mentores de experiências
pedagógicas inovadoras ou autores de materiais de destinação
didática. Entre os primeiros constam apenas um norte-
americano e um europeu que imigrou para os EUA quando
criança e lá permaneceu; os demais são europeus que
permaneceram no Continente de origem; no segundo grupo, todos
são norte-americanos.

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Nos limites deste artigo, interessa focalizar os autores de


estudos originais, ou seja, os produtores de saber filosófico ou
científico – independentemente de terem publicado, também,
escritos de destinação didática ou de vulgarização –, considerando
tanto a distribuição quanto a freqüência e os contextos em que são
citados.
Dezenove (19) nomes foram registrados, dentre os quais
constam: sete nascidos na Grã-Bretanha; dois alemães; dois
franceses, um norte-americano e um suíço. Neles estão
concentrados 82% das citações, ou seja, é o grupo dos autores
mais freqüentes nos textos de Köpke aqui abordados2; entretanto,
comparecem com peso bastante diferençado e com grande variação
no tempo, do primeiro texto de 1896 aos escritos de 1916.

Quadro 1 – Frequência dos autores citados por João Köpke


(1896-1917).
Autores F
Alexander Meiklejohn 6
Granville Stanley Hall 6
Joseph Jacotot 4
William Benjamin Carpenter 3
Alexander Bain 2
Friedrich Froebel 2
Isaac Taylor 2
Percival Ashley Chubb 2
Gabriel Compayré 1
James Sully 1
Johann Bernhard Basedow 1
Johann Heinrich Pestalozzi 1
William Thierry Preyer 1

2
Não foi possível situar os outros seis nomes que completam a lista, uma vez que
são mencionados de passagem e, em alguns casos, constam com grafias
diferentes.

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Destaque-se, de um lado que: Jacotot, Froebel e Pestalozzi


são referidos nos dois primeiros textos, e se apagam nos demais,
sendo que Jacotot com bastante ênfase ao início; Compayré – é
mencionado apenas no primeiro texto em meio a um rol de
outros nomes; Basedow – é mencionado em 1916 em contexto
um tanto difuso.
De outro lado, estão os outros oito autores; aparecem em
momentos distintos e apresentam freqüências bastante
diferençadas, no entanto, a análise empreendida dá sustentação ao
entendimento que Köpke selecionou e reuniu esses autores como
uma constelação na qual ancora seus argumentos em favor do
método analítico para o ensino da leitura: cada um dos autores
ocupa uma posição específica e exerce uma função em relação ao
conjunto.
Não se trata de pensar essa constelação já constituída
quando da primeira conferência de 1896; assim, não se
apresenta em cada texto isoladamente; a sua inteira
configuração só se deu a partir da análise textual, intertextual e
contextual dos cinco escritos.
Preyer, Sully e Taylor, por exemplo, aparecem apenas no
primeiro texto com uma ou duas referências, sendo que a Taylor é
conferido maior relevo3. Bain aparece no primeiro texto e

3
Alguns dos títulos publicados:
∗ PREYER, Willism. (1888-1889). Mind of the child. New York: Appleton.
Originalmente publicado em 1881, o livro reuni importantes artigos sobre a
psicologia da criança.
∗ SULLY, James. (1874). Sensation and intuition: studies in psychology and
aesthetics. London: H.S. King; _______. (1892). The Human Mind. London:,
Longmans, Green & co.; _______. (1895). Studies of Childhood. New York: D.
Appleton.
∗ TAYLOR, I. (1883). The Alphabet: an Account of the Origin and Development
of Letters. London, K. Paul, Trench & co.; _______. (1864). Words and Places:
or Etymological Illustrations of History, Ethnology, and Geography. London;
Cambridge: Macmillan and Co.; _______. (1874). Etruscan Researches.
London; Cambridge: Macmillan and Co.

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reaparece no último4. Chubb e Carpenter surgem apenas na


conferência de 1916, ocupando espaço de razoável relevo5. Por
fim, Meiklejohn e Stanley Hall, respectivamente, o inglês que
imigrou para os EUA com oito anos de idade e o único norte-
americano nativo desse rol de autores6.

4
Alguns dos títulos de:
∗ BAIN, Alexander: (1855). The Senses and the Intellect. London: Parker;
_______. (1859). The Emotions and the Will. London: Parker; _______. (1870).
Logic. London: Longmans, Green, Reader & Dyer.; _______. (1872). Mind and
Body. London: Henry S. King.; _______. (1879). Education as a Science.
London: C.K. Paul. Além dos manuais/compêndios escolares que contam com
grande número de reedições: Higher English Grammar (1863); Manual of Rhetoric
(1866); Manual of Mental and Moral Science (1868); A First English Grammar
(1872); Companion to the Higher Grammar (1874); Rhetoric (nova ed.1887,
1888); On Teaching English (nova ed.1887, 1888).
5
Alguns das obras de:
∗ CHUBB, Percival A.: (1893). Editor of Essays of Montaigne. London: s/e;
_____. (1902). The teaching of English in the elementary and secondary school
New York: Macmillan Co.; _____. (1931). On the religious frontier: from an
outpost of ethical religion. New York: Macmillan Co.
∗ CARPENTER, William B. (1839). Principles of general and comparative
physiology, intended as an introduction to the study of human physiology, and as a
guide to the philosophical pursuit of natural history. London: John Churchill;
_____. (1844). On the microscopic structure of shells. Report of the 14th meeting
of the British Association for the Advancement of Science held at York, p. 1-24;
_____. (1852). "On the Influence of Suggestion in Modifying and directing
Muscular Movement, independently of Volition", Royal Institution of Great
Britain, (Proceedings). (12 March 1852), p.147-153; _____. (1874). Principles
of Mental Physiology, with their Applications to the Training and Discipline of the
Mind, and the Study of its Morbid Conditions. London: King; _____. (1888).
Nature and man: essays scientific and philosophical. London: Kegan Paul,
Trench & Co.
6
Seleta de títulos publicados por Meiklejohn e Stanley Hall:
∗ MEIKLEJOHN, Alexander. (1920). The Liberal College. Boston: Marshall
Jones; _______. (1923). Freedom and the College. New York, Century._______.
(1942). Education between Two Worlds. New York, London: Harper & Brothers;
_______. (1948). Free Speech and its Relation to Self-Government. _______.
(1960). Political freedom; the constitutional powers of the people. New York: Harper.

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Quadro 2 – Origem dos autores citados por João Köpke (1896-1917).


Autores Nascimento País de origem País de destino
Grã-Bretanha
Alexander Bain 1818-1903 -
[Escócia]
Grã-Bretanha Imigrou para os
Alexander Meiklejohn 1872-1964
[Inglaterra] EUA em 1880
Friedrich Froebel 1782–1852 Alemanha -
Jules Gabriel Compayré 1843-1913 França -
Granville Stanley Hall 1844-1924 Estados Unidos -
Grã-Bretanha
Isaac Taylor 1829-1901 -
[Inglaterra]
Grã-Bretanha
James Sully 1842-1923 -
[Inglaterra]
Johann Bernhard
1724-1790 Alemanha -
Basedow
Johann Heinrich
1746-1827 Suíça -
Pestalozzi
Joseph Jacotot 1770-1840 França -
Transferiu-se para os
Percival Ashley Chubb 1860 – 1960 Grã-Bretanha
EUA em 1889
William Benjamin Grã-Bretanha
1813-1885 -
Carpenter [Inglaterra]
Grã-Bretanha Transferiu-se para a
William Thierry Preyer 1841–1897
[Inglaterra] Alemanha em 1855
Fonte: BORING (1950); FLANNERY (1995), WOODWARD,
ASH (1982).

Stanley Hall surge nas páginas finais do primeiro texto


para retornar com toda a força nos dois textos de 1916;

∗ HALL, G. Stanley. (1878). Notes on Hegel and His Critics. Journal of


Speculative Philosophy, Nº12, p. 93-103; _______. (1881). Aspects of German
Culture. Boston: James R. Osgood & Co.; _______. (1882). The Moral and
Religious Training of Children. Princeton Review, Nº 20, p. 26-48.; _______.
(1892). Moral Education and Will Training. Pedagogical Seminary, Nº 2, p. 72-
89.; _______. (1904). Adolescence: Its psychology and its relations to
physiology, anthropology, sociology, sex, crime, religion and education. New
York: Appleton; _______. (1911). Educational Problems. London, New York:
Appleton; _______. (1923). Life and Confessions of a Psychologist. New York:
Appleton.

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Meiklejohn surge na carta de 1902 e a ele é dedicado


integralmente o escrito de 1903, retornando nos dois textos
finais.
Para Köpke, funcionam conjugadamente como
organizadores da constelação de autores, obras e experiências;
operam como pedra angular com os quais dimensiona os projetos
pedagógicos em disputa e se orienta em meio à avalancha de
informações que lhe chegam pelas ciências e pelas experiências
que despontam por todos os lados.
É possível identificar pelo menos 5 eixos que neles se
articulam:
a) o exame empírico experimental da cognição humana;
b) a subordinação das pesquisas sobre a mente ou a
capacidade humana de intelecção ao evolucionismo darwiniano,
com especial ênfase ao sentido de desenvolvimento e ao caráter
adaptativo implicados nos atos cognitivos;
c) a inscrição da criança como objeto privilegiado de
investigação; como corolário;
d) a eleição das instituições e dos procedimentos de
ensino como alvos privilegiados quer de estudo quer de
intervenção e, ainda,
e) o entendimento da linguagem, escrita ou falada,
como expressões máximas da vida mental uma vez que nela se
condensam os esforços de sobrevivência da espécie humana; dito
de outra forma, a linguagem entendida como instrumento e
veículo da cognição, bem como o seu índice por excelência.
Não se tem aí características genéricas que se possa
utilizar em tantos outros autores e em tantas outras constelações
de pensamento que emergiram ao longo do século XIX e começo
do XX. Köpke reuniu em favor do método analítico um grupo
bastante peculiar, de feições muito singulares. Excetuados
Taylor e Meiklejohn, os demais são nomes decisivos na
constituição da Psicologia como disciplina autônoma carreando
para dentro dela a temática em torno da mente e da intelecção, os

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procedimentos das ciências naturais e as abordagens da Fisiologia:


Bain, Carpenter e Preyer foram fundamentais nesse processo; no
caminho por eles aberto, seguiram Sully e Stanley Hall.
Carpenter e Preyer aportaram nas pesquisas sobre o
desenvolvimento mental humano vindos, respectivamente, da
Zoologia e da Medicina que os colocou, pronta e diretamente
em contato com as revoluções que andavam se dando no campo
das ciências naturais e biológicas7 (CRAWFORD, 1915;
MARSHALL, 1984; ROSS, 1972).
O livro de Preyer The mind of the child, publicado em
dois volumes, entre 1888 e 1889 marca a entrada da criança no
campo dos estudos psicológicos sistemáticos. Stanley Hall
providenciou a sua imediata tradução para o Inglês e nele
incluiu uma densa introdução para torná-lo palatável ao
puritanismo norte-americano. Poucos anos depois, com a entrada
franqueada nos kindergartens, Hall replica o estudo de Preyer e
dos seus resultados deriva uma seqüência de artigos e
conferências que culminaram na criação da disciplina específica
para o estudo da criança, o child studies, na qual se pretendia a
confluência de abordagens, incluindo a pedagógica, sob a batuta
da psicologia de base experimental. Na mesma direção de Preyer
e Hall, Sully se dedica ao estudo da criança e da infância.
A Köpke interessaram largamente os resultados dessas
investigações sobre as estruturas e os processos de cognição e
sobre o desenvolvimento mental da criança em particular, tanto
quanto o interessaram os escritos sobre educação saídos da pena
daqueles homens de ciência que se envolveram intensamente
com a reforma da escola e do currículo e a modernização dos
métodos do ensino em seus países8.

7
Preyer defendeu a primeira tese de doutorado na Alemanha de orientação
darwiniana.
8
De Taylor e Sully não se tem notícias de equivalente envolvimento com o
ensino elementar e secundário

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Nesse campo, é Meiklejohn que o auxilia a compor a


idéia da modernidade escolar e pedagógica.
Bain, Chubb, Carpenter e Preyer estenderam o raio de
suas intervenções pedagógicas no tempo e no espaço por meio de
manuais e livros didáticos com edições que atravessaram diferentes
reformas de ensino ao longo do século XX. Esses materiais de
ensino serviram para Köpke moldar seus livros de leitura e séries
graduadas para a escola primária e secundária.
A síntese singular que ele realiza desse conjunto
homogêneo e ao mesmo tempo diversificado de referências,
contudo, não ter se ancorado efetivamente no lugar e no papel que
os seus autores destinaram a língua, à linguagem e, por
decorrência, à literatura como a mais alta expressão do homem
civilizado.
Stanley Hall, Sully e Preyer estudaram os processos de
aquisição e desenvolvimento da linguagem na infância. Bain e
Taylor revolucionaram os estudos filológicos, lógicos e gramaticais
da língua inglesa. Suas pesquisas alteraram os padrões do ensino
do Inglês nas escolas inglesas e escocesas, que estenderam para
outros territórios da Grã-Bretanha. Ambos provocaram a
criação da disciplina Literatura Inglesa nas universidades
britânicas, que Bain assumiu pela primeira vez, em meados do
século XIX, quando lecionava na Universidade de Aberdeen, na
Escócia. Por sua parte, os estudos filológicos de Taylor afetaram
os padrões até então dominantes de explicação da origem do
alfabeto utilizado pelos povos que deram origem ao Inglês arcaico.
Guardadas as proporções de tempo e espaço, Percival
Chubb ocupa, nos Estados Unidos, lugar equivalente no que
tange à radical mudança nos padrões de ensino da língua inglesa.

O uso das fontes

O que Köpke apanhou desses oito autores e como os


articulou coerentemente?
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A subordinação dos procedimentos de ensino aos


processos do desenvolvimento mental; partindo da análise para a
síntese repetimos, diz Köpke, “a lei do nosso processo” (cf.
KÖPKE, 1896, p. 25). Köpke se apóia em Bain, Carpenter,
Preyer e Hall para realizar a tal subordinação; ao fazê-lo chamou
em socorro as referências matriciais da psicologia do
desenvolvimento mental que tomou a vereda aberta por Darwin
para atacar as interpretações cartesianas e kantianas dominantes.
Com isso, Köpke entrou em rota de colisão tanto com os
procedimentos tradicionais de ensino que guiavam o aprendizado
da leitura e da escrita como se a criança portasse as mesmas
condições mentais de aprendizagem do adulto, quanto com outras
vertentes evolucionistas. Nesse caso, há de se atentar para as
discordâncias implícitas de Köpke com o evolucionismo
positivista de Spencer, bastante difundido entre os pedagogistas
brasileiros da época, que mantinham rígido entendimento da
mente infantil uma vez que pensavam a evolução como processo
para realização natural e necessária de etapas pelas quais a espécie
teria passado.
Assim se pode compreender a sensibilidade de Köpke para o
problema da sobrecarga [surmenage] que se impõe sobre a criança
quando submetida a exigências cognitivas incompatíveis ou a
estímulos inconsistentes com a sua experiência (cf. Köpke, 1986).
É nesse sentido que Stanley Hall funciona para Köpke
como pedra angular da “boa psicologia” de que se vale para a sua
“boa pedagogia”. Em Hall encontrou a criança no centro dos
estudos sobre a vida mental e os processos de cognição, bem como
viu os primeiros esforços de colocar as descobertas dos estudos
sobre a criança (child studies) a serviço da reforma da escola e do
ensino.
Köpke reteve como suas fontes centrais nomes associados a
radicais reformas escolares e pedagógicas a partir dos seus países
de origem. Sem exceção, os oito astros da constelação kopkeana
investiram na mudança dos currículos e dos métodos de escolas

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elementares e secundárias. No caso de Bain, Chubb, Carpenter e


Preyer, as suas iniciativas pedagógicas renovadoras se patentearam
e se espraiaram no tempo e no espaço por meio de manuais e
livros didáticos que serviram, mais das vezes, para a difusão de
suas próprias descobertas científicas. Köpke se utiliza, em várias
passagens, desses materiais pedagógicos para sustentar a
organização que adotara em seus próprios mais didáticos.
Nesse âmbito pedagógico, Köpke reuniu expoentes do
processo de modernização da Língua Inglesa e do seu ensino,
quer na Grã-Bretanha quer nos Estados Unidos.
Bain realizou estudos sobre a Gramática e a Lógica da
Língua Inglesa, submetendo-as ao crivo das análises da mente e
dos processos mentais adaptativos. Com base nos resultados
obtidos, elaborou novos padrões de ensino de gramática língua
inglesa e composição, que se espraiaram da Escócia para outros
países de língua inglesa por meio de manuais didáticos de
Gramática. Coube também a Bain assumir a primeira cadeira de
Lógica e Literatura Inglesa criada na Escócia; nela, potencializou
o estudo da literatura inglesa para o domínio da língua e o
conhecimento da cultura.
Por outros caminhos, Isaac Taylor, contemporaneamente,
empreendia estudos filológicos em línguas antigas e modernas
adotando procedimentos comparativos relativamente
desconhecidos. Seus resultados derrubaram interpretações
consolidadas sobre a origem e difusão da língua inglesa, bem
como da passagem do Inglês arcaico para o moderno que tem em
Shakespeare sua máxima expressão literária. Com isso, Taylor
escreveu obras sobre a formação do alfabeto e da língua sobre
os quais se apoiaram as reformas do ensino da língua inglesa
no que se incluiu o uso da literatura.
Chubb é apontado, nos Estados Unidos, como um marco
no processo de mudança dos antigos padrões do ensino da língua
inglês adotados nas escolas norte-americanas. Seguindo o rastro
dos seus antecessores e, como ele, cidadãos britânicos, Chubb

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investira na Inglaterra de origem na modernização do ensino


da língua visando os jovens ingleses, portanto, falantes nativos.
Seus intensos contatos com os EUA, e principalmente sua
decisão de para lá se mudar, deram a Chubb a oportunidade de
alargar os horizontes das mudanças pedagógicas pretendidas: nas
escolas, nas fábricas, nas ruas dos EUA, como em nenhum país
da Grã-Bretanha, e quiçá do mundo, se mesclavam centenas de
línguas e dialetos trazidos não só pelas levas de imigrantes
estrangeiros como pelos próprios nativos originários de ambientes
culturais e sociais muito distintos.
Os EUA se afiguraram para Chubb um laboratório onde
se podia testar infinitas alternativas para o ensino da língua não
só ao falante nativo como ao estrangeiro a ser ajustado às regras
lingüísticas do novo país. Chubb investiu centralmente nos
procedimentos de ensino que colocavam o aprendizado escrito e
falado da língua no instrumento-chave para o mergulho do
aprendiz na cultura inclusiva; com isso, trabalhou em favor da
inclusão, como material pedagógico, de uma enorme gama de
textos da vida cotidiana.
Por fim, Meiklejohn que funciona como chave-mestra
com a qual do ensino da língua, a leitura e a escrita a um projeto
educacional de maior escopo. O “livrinho” de Meiklejohn “The
problem of teaching to read”, ao qual Köpke dedica um artigo,
fala dos problemas implicados no ensino da leitura que decorrem
de ser a língua a máxima ferramenta da mente para o
conhecimento e o instrumento por excelência para o
pertencimento em uma civilização.
É de Meiklejohn que Köpke extrai a inspiração para, em
diferentes passagens dos seus cinco textos, remeter à civilização
grega de onde extrai exemplos de literatura e do significado da
expressão escrita. Meiklejohn testou, em mais e um experimento
escolar em que esteve envolvido, o abandono de currículos fechados
em favor do estudo de temas: no primeiro ano, o estudo da
civilização grega; no segundo, a civilização inglesa; os estudos

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desses temas poderiam se prolongar pelo tempo que se considerasse


necessário para que os alunos tivessem ensejo de adquirir crescente
domínio da palavra escrita e falada, e para que aumentassem suas
habilidades de compreender aquelas civilizações por meio da
palavra escrita.

Consideração final

Desde a publicação de sua primeira cartilha, em 1874,


Köpke se viu envolvido em celeumas que projetavam o perímetro
dos assuntos pedagógicos, para muito além das suas agências e dos
seus agentes. Embora não tenha se furtado aos embates, as ações e
reações de Köpke sugerem, de um lado, certa indisposição em face
das questões político-filosóficas levantadas pelos seus opositores,
que a um só tempo elidiam os reais problemas de instrução das
crianças e dos jovens, tal como os compreendia, interceptando a
adoção de procedimentos eficazes, como aqueles que estava a
oferecer seja por meio de iniciativas institucionais seja na forma de
materiais de destinação didática.
Ainda que agastado, por quase quatro décadas, Köpke não
se furtou aos combates; contudo, resistiu milimetricamente a
adotar as armas dos contendores. Bem ao contrário, aos ataques
políticos, respondeu com projetos pedagógicos de contornos cada
vez mais nítidos; em face das incursões filosófico-especulativas
contrárias, comprometeu crescentemente os assuntos de ensino
com as novas ciências do homem, radicalizando as bases da escola
no campo empírico e os procedimentos do bem ensinar, no saber
experimentado.

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E-mail: claudiapanizzolo@uol.com.br

Recebido em: 15/05/2009


Aceito em: 20/12/2009

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INVENTÁRIO E DIGITALIZAÇÃO
DO PATRIMÓNIO MUSEOLÓGICO
DA EDUCAÇÃO – UM PROJECTO
DE PRESERVAÇÃO E VALORIZAÇÃO
DO PATRIMÓNIO EDUCATIVO1
Maria João Mogarro
Fernanda Gonçalves
Jorge Casimiro
Inês Oliveira

Resumo
Neste texto apresenta-se o Projecto Inventariação e Digitalização do
Património Museológico da Educação, desenvolvido pelo Ministério da
Educação português. As escolas que integram o Projecto possuem
importantes colecções de património museológico e pretende-se
realizar a sua inventariação, preservação e divulgação. As instituições
escolares foram acolhendo muitos objectos ao longo do tempo e tem-
se em consideração o percurso destas instituições, onde os materiais
foram utilizados e reutilizados. Estes materiais integram-se,
historicamente, no campo de diversas disciplinas, desempenhando um
papel fundamental na interconexão entre o conhecimento científico e
a alquimia a que este conhecimento foi sujeito para se transformar
em matéria de ensino. Estabelece-se assim a convergência com as
actuais políticas de valorização da educação e do património cultural,
com investigações e organização de museus dedicadas à escola, ao seu
património e memória em diversos países. É um movimento
transnacional, cujas semelhanças evidenciam a globalização da forma
escolar e dos seus materiais.
Palavras-chave: Património educativo; inventário; museologia;
cultura escolar.

1
Comunicação apresentada no VII Congresso Luso-Brasileiro de História da
Educação, dedicado ao tema Cultura Escolar, Migrações e Cidadania, que se
realizou no Porto, Portugal, de 20 a 23 de Junho de 2008. Os dados aqui
apresentados referem-se a esta data.

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THE INVENTORY AND DIGITALIZATION OF THE
HERITAGE MUSEUM OF EDUCATION: A PROJECT OF
PRESERVATION AND VALORIZATION OF THE
EDUCATIONAL HERITAGE
Abstract
In this paper we present the Project entitled The Inventory and
Digitisation of the Museum Heritage of Education, developed by the
Portuguese Ministry of Education. The schools that are part of the
project have major collections of museum heritage and our aim is to
carry out its inventory, to preserve and to promote them. These
schools received many objects throughout time and we take into
account the life of these institutions, where these objects were used
and reused. Historically, these objects are connected to several of the
subjects taught; they play a key role in the interconnection between
scientific knowledge and the alchemy to which this knowledge was
subjected in order to become teaching material. We establish,
therefore, the convergence with the current policies that value
education and cultural heritage, with research and organisation of
museums dedicated to the school, to its heritage and legacy in several
countries. It is a transnational movement, and the similarities
between countries emphasise the globalisation of the school form and
its materials.
Keywords: Educational heritage; inventory; museology; school
culture.

INVENTARIO Y DIGITALIZACIÓN DEL PATRIMONIO


MUSEOLÓGICO DE LA EDUCACIÓN – UN PROYECTO
DE PRESERVACIÓN Y VALORIZACIÓN DEL
PATRIMONIO EDUCATIVO
Resumen
En este texto presentamos el Proyecto Inventario y Digitalización del
Patrimonio Museológico de la Educación, desarrollado por el Ministerio
de la Educación portugués. Las escuelas que integran el Proyecto
poseen importantes colecciones de patrimonio museológico y se
pretende realizar su inventario, preservación y divulgación. Las
instituciones escolares fueron acogiendo muchos objetos a lo largo del
tiempo y se lleva en cuenta su recorrido, dónde se utilizaron y
reutilizaron los materiales. Estos materiales se integran,
históricamente, al campo de diversas disciplinas, teniendo un papel
fundamental en la interconexión entre el conocimiento científico y la
alquimia a que este conocimiento estuvo sujeto para transformarse en
materia de enseñanza. Se establece, de ese modo, la convergencia con
las actuales políticas de valorización de la educación y del patrimonio
cultural, con investigaciones y organización de museos dedicadas a la

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escuela, a su patrimonio y memoria en diversos países. Se trata de un
movimiento transnacional, cuyas semejanzas evidencian la
globalización de la forma escolar y de sus materiales.
Palabras clave: Patrimonio educativo; inventario; museología;
cultura escolar.

INVENTAIRE ET DIGITALISATION DU PATRIMOINE


MUSÉOLOGIQUE DE L’ÉDUCATION – UN PROJET DE
PRÉSERVATION ET DE VALORISATION DU
PATRIMOINE ÉDUCATIF
Résumé
Dans ce texte nous présentons le Projet Inventaire et Digitalisation du
Patrimoine Muséologique de l'Éducation, développé par le Ministère de
l'Éducation portugais. Les écoles qui intègrent le Projet possèdent
d'importantes collections de patrimoine muséologique et l’objectif est
réaliser leur inventaire, conservation et divulgation. Les institutions
scolaires ont accueilli beaucoup d'objets au long du temps et nous
avons en considération le parcours de ces institutions, où ces objets
ont été utilisés et réutilisés. Ces matériels s'intègrent,
historiquement, dans le champ de diverses disciplines, en jouant une
position fondamental dans l'interconnexion entre la connaissance
scientifique et l'alchimie qui transforme cette connaissance en
matière d'enseignement. S'établit ainsi la convergence avec les
actuelles politiques de valorisation de l'éducation et du patrimoine
culturel, avec les recherches et l’organisation de musées dévoués à
l'école, à son patrimoine et sa mémoire, dans divers pays. C'est un
mouvement transnational, dont les similitudes prouvent la
globalisation de la forme scolaire et de leurs outils matériels.
Mots-clés: Patrimoine éducatif; inventaire; muséologie; culture
scolaire.

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O Projecto Inventário e Digitalização do Património


Museológico da Educação tem o objectivo de proceder ao inventário
e digitalização dos bens de interesse museológico sob tutela do
Ministério da Educação que se encontram em antigos liceus e
escolas técnicas, com vista a salvaguardar, proteger e divulgar esses
bens. Este projecto integra escolas secundárias de diversas regiões
do país.

Património e cultura material da escola: a realidade


portuguesa face ao movimento internacional

Este projecto insere-se na problemática da cultura


material da escola, relativamente à qual têm vindo a ser
construídas perspectivas de análise no campo da história, da
sociologia e da etnoantroplogia. Os objectos educativos são
cientificamente perspectivados como artefactos de grande valor
simbólico e patrimonial, mas também como parte de uma
narrativa histórica que os integra nos seus contextos, atribuindo-
lhes significado e colocando-os em articulação com os actores
sociais que os usaram em diversos ambientes educativos – nas
práticas de ensino em que foram incorporados como recursos, nas
formas de produção tecnológica que permitiram a sua elaboração e
nos circuitos de distribuição que garantiram a resposta comercial
às exigências de uma modernidade pedagógica que os reclamava
como parte das novas correntes da educação.
Preservar, estudar e divulgar os objectos da escola é um
trabalho que se torna urgente realizar, pois existe um número
restrito de publicações sobre este tema e vastas colecções destes
materiais que correm o risco de desaparecer.
As instituições escolares que fazem parte deste projecto
(tais como muitas outras escolas portuguesas) foram acolhendo
estes objectos ao longo do seu tempo de vida, por isso estamos a
tratar de materiais que se foram agregando nas escolas desde
meados do século XIX, quando surgiram os primeiros liceus e
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depois, na segunda metade do mesmo século, quando foram


criadas as escolas técnicas. No entanto, estas instituições
receberam peças que lhe podem ser anteriores e pertenceram,
antes, a outros organismos, entretanto extintos. Se alargássemos
este universo e englobássemos os materiais específicos do ensino
primário, mais perecíveis, estaríamos a considerar objectos que
podem ser ainda mais antigos. Estamos, deste modo, a mover-nos
num arco temporal longo que se prolonga, pelo menos, até aos
anos 70 do século XX.
O estudo sistemático do património cultural da educação
tem em consideração a história das próprias instituições
seleccionadas, em que se inserem os objectos e no contexto das
quais eles foram utilizados e reutilizados. Assim, as monografias
das escolas permitem enquadrar os materiais, a constituição dos
espólios e o seu percurso nas instituições. No seu leque
diversificado, o património educativo inclui a arquitectura escolar,
com o edifício das escolas, o espaço envolvente e sua
funcionalidade, os equipamentos, os materiais de uso quotidiano,
os materiais didácticos (instrumentos científicos para o ensino das
várias ciências, quadros parietais, caixas métricas, ábacos, etc.), os
meios audiovisuais, os trabalhos de alunos, os cadernos escolares e
muitos outros. Também abarca materiais em suporte de papel,
correlacionados com os objectos referidos, tais como catálogos de
casas editoras, manuais de ensino (que incorporam os materiais
didácticos nos processos de ensino-aprendizagem), documentos de
arquivo (requerimentos de professores, notas de compra, recibos,
inventários antigos, etc.) e literatura articulada com o tema. Por
seu lado, a imprensa de educação e ensino ocupa um lugar
importante, pela divulgação que faz destes objectos e pelos artigos
onde se aborda a utilização dos mesmos em contextos escolares.
Nos últimos anos do século XX assistiu-se, em Portugal
como em outros países, à emergência de um significativo interesse
pela escola e pelo seu passado. Novos olhares foram dirigidos pelos
historiadores e investigadores da educação sobre o património e a

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materialidade da escola, dando também uma atenção renovada às


memórias dos actores educativos. Vários projectos de investigação
e intervenção foram desenvolvidos sobre estas temáticas (Mogarro,
2006: 79-82).
Internacionalmente, este movimento de preservação e
valorização do património da educação tem vindo a ganhar uma
relevância crescente nos campos científicos da educação, da
história e da sociologia, nomeadamente no espaço europeu.
Articulando linhas de investigação, neste domínio, com iniciativas
de grande fôlego que conferem visibilidade à história da escola e ao
património da educação em vários países, surgiram, nos últimos
anos, publicações cujos autores pertencem às comunidades
científicas da história da educação e estão, simultaneamente,
ligados à criação, revitalização e direcção de centros e museus de
educação de prestígio internacional. Foram desenvolvidos
projectos desta natureza em vários países (França, Inglaterra,
Holanda, Bélgica, Alemanha e Espanha) onde encontramos
museus de educação de referência.
Este tema insere-se, pois, numa dinâmica internacional e
importa estudar os procedimentos no domínio da pesquisa,
investigação, levantamento, inventariação, catalogação,
digitalização e gestão das colecções de materiais educativos, assim
como a tipologia estabelecida por esses centros e museus para
objectos desta natureza. As formas de divulgação das suas
colecções e as actividades desenvolvidas por estas instituições são
também importantes, pela inserção que alcançaram nos meios
científicos, na comunidade internacional e entre o grande público.
Em França, uma obra colectiva de referência sobre o
património da educação nacional (Alexandre-Bidon et al., 1999)
articula-se com a acção desenvolvida pelo Musée National de
l’Éducation (Rouen), que pertence ao INRP – Institut National de
Recherche Pédagogique. Em Espanha, os livros que surgiram sobre
esta temática (Escolano Benito, 2007; Escolano Benito &
Hernández Díaz, 2002; Ruiz Berrio, 2000) inserem-se num

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movimento que também conduziu à criação do Mupega – Museo


Pedagoxico de Galicia e, mais recentemente, ao CEINCE – Centro
Internacional de Cultura Escolar, que se assume como um centro de
memória que, dirigido por Escolano Benito, se tem vindo a
afirmar internacionalmente. Na Grã-Bretanha, os estudos mais
teóricos sobre a materialidade da escola (Lawn & Grosvenor,
2005) tem a sua correspondência em várias iniciativas do mesmo
género.
A lista de museus e colecções relativas à história da
educação e da infância, organizada pela Secção da História da
Educação da Katholieke Univesiteit Leuven (Schoolmusea), da
responsabilidade de Karl Catteeuw, revela o interesse da
comunidade universitária por esta temática, mas principalmente a
importância e dimensão que a museologia escolar e educativa
alcançou em diversos países. No panorama internacional, verifica-
se um interesse convergente, relativamente à investigação nesta
temática, a par da organização de instituições museológicas
dedicadas ao mesmo universo e iniciativas de variado tipo que
adoptam a escola, o seu património e a memória como tema. As
iniciativas desenvolvidas no Brasil são exemplo desta realidade, em
diversos estados e estão representadas neste Congresso. É um
movimento transnacional, cujas semelhanças evidenciam a
globalização da forma escolar e dos objectos materiais que a
configuraram.
Será assim possível avaliar as experiências desenvolvidas
em Portugal, efectuar um exercício comparativo com o foi
realizado em outros países e elaborar propostas para uma mais
eficaz salvaguarda, preservação, divulgação e conhecimento do
património cultural da educação. Neste sentido, se incluem as
acções e os produtos previstos neste projecto.
Em Portugal, algumas destas linhas também se verificam.
Historicamente, o museísmo pedagógico conheceu dois momentos
importantes com o Museu Pedagógico Municipal de Lisboa (1883),

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de Adolfo Coelho, e a Biblioteca Museu do Ensino Primário (1933),


dirigida por Adolfo Lima (Mogarro, 2002; 2003).
O Museu Pedagógico de Adolfo Coelho reflectiu a crença
ilimitada nas potencialidades da escola e da educação como factor
de progresso e desenvolvimento, assim como a necessidade de
criação dos museus nacionais que se responsabilizassem pela
difusão da pedagogia e pela formação de professores. Com
características comuns aos que surgiram em outros países, e que se
inspiraram nas grandes exposições universais, estes museus
ilustram as tecnologias emergentes e a sua conquista do campo
educativo. Por seu lado, a Escola Museu do Ensino Primário
expressa, na sua organização, as ideias do primeiro director,
Adolfo Lima, cujas concepções, próprias da Educação Nova,
tinham muito em comum com as de Adolfo Coelho. No entanto,
a instituição que dirigiu foi fortemente controlada pelo regime
estadonovista e a sua acção foi condicionada por esse
enquadramento.
Já no regime democrático, a necessidade de preservar,
estudar e divulgar o património educativo tem uma genealogia. No
campo do estudo científico sobre o património da educação, é
fundamental tomar como referência um levantamento que, em
1996-97, incidiu sobre as instituições escolares do sistema de
ensino não superior em Portugal, abrangendo os espólios
arquivísticos, bibliográfico e museológico. Este levantamento foi
realizado no âmbito da acção de um grupo de trabalho nomeado
pelo Ministro da Educação e coordenado por António Nóvoa2.
Este grupo foi investido da missão de estudar as características de
instalação e funcionamento do que seria o Instituto Histórico da
Educação, no âmbito do qual existiria um museu (ou uma rede de
museus) da educação. O trabalho realizado foi publicado (Nóvoa,
1998) e o Instituto Histórico da Educação foi criado, tendo depois

2
Despacho nº 137/ME/96, de 17 de Julho e Despacho nº 218/ME/96, de 25 de
Setembro.

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sido extinto. Neste estudo realça-se a riqueza patrimonial sob


tutela do Ministério da Educação e das escolas portuguesas: “uma
documentação vastíssima, que nunca foi objecto de um plano
global de selecção e tratamento” (Nóvoa, 1998: 25). Embora
realçando o meritório trabalho desenvolvido pelos técnicos de
Arquivo do Ministério, Nóvoa e a sua equipa alertavam então para
os perigos da inexistência desse plano global de preservação e
estudo do património, realçando que as iniciativas3 pontuais,
desenvolvidas anteriormente com objectivo similar, “nunca
dispuseram das infraestruturas e dos recursos humanos e materiais
necessários a uma intervenção eficaz e duradoura” (idem).
No âmbito do referido estudo, o património museológico
dos liceus e escolas técnicas foi considerado bem conservado e de
qualidade. De entre estas escolas, 26 já possuíam então projectos
museológicos próprios ou em colaboração, o que demonstra a
existência de uma dinâmica significativa pela preservação e
divulgação do seu património institucional. Ficaram registadas
iniciativas como as salas-museu, os espaços de exposição e a
participação em exposições de âmbito mais vasto. Este património
museológico das instituições tem sido preservado por iniciativa de
particulares (professores, técnicos, funcionários) e das próprias
escolas. Encontramos assim núcleos museológicos que se mantém
até hoje, como é o caso das Escolas Secundárias José Estêvão –
Aveiro, Jácome Ratton – Tomar, Passos Manuel e Gil Vicente,
ambas em Lisboa. A consistência e unidade destas iniciativas são
garantidas pela própria instituição e pela sua estabilidade.
São exemplos de múltiplas iniciativas locais, que se
encontram um pouco por todo o país, apresentando uma grande
diversidade na natureza e objectivos dos projectos, no perfil das

3
Nóvoa apresenta e caracteriza seis iniciativas anteriores que visavam a
preservação, estudo e divulgação do património museológico da educação e que
foram desenvolvidas com apoio governamental, mas sem que houvesse
continuidade desse trabalho (Nóvoa, 1998: 25-27).

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pessoas e instituições que neles se empenham e os apoiam e nos


resultados que obtém.
As realidades diversificadas que estão subjacentes à
designação de museologia educativa, na actualidade, correspondem
a dois movimentos profundos, de natureza diferente relativamente
ao património:
a) Um movimento dos investigadores e historiadores da
educação que desenvolveram novos olhares sobre os fenómenos
educativos, dando uma atenção crescente à materialidade da escola
e ao seu património e inserindo-os nas actuais correntes
epistemológicas, assim como nas agendas internacionais de
investigação.
b) Uma atitude de preservação e cuidado face ao
património das escolas, desenvolvido ao longo de décadas pelas
pessoas em geral, com carácter particular, mas que só agora
adquire visibilidade quando se descobrem fundos materiais ou
simples objectos que permaneceram esquecidos. Mesmo que
silenciados, esses materiais foram trazidos do passado até ao
presente pela acção dessas pessoas. As numerosas iniciativas que se
registam, atestam esta atitude.
Uma terceira dimensão diz respeito aos políticos que
ocupam o campo de decisão e a quem compete definir e garantir
políticas nesta matéria, de forma consistente e sustentada.
Há, pois, dois movimentos convergentes, embora de
natureza e objectivos diversos. A realidade actual evidencia a
dimensão mais vasta deste interesse, enraizando-o numa procura
social de identidade e de fixação da memória em torno da escola.
Adquire assim um novo sentido e urgência a tarefa de recuperar,
preservar, estudar e divulgar o património escolar e educativo, o
que passa pela necessidade de definir orientações e dar consistência
a este movimento social e científico sobre a escola, a sua história e
memória.

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Percurso do projecto museológico

A Secretaria-Geral (SG) é um serviço central do


Ministério da Educação (ME) que tem, entre outras atribuições, a
missão de preservar e valorizar o património histórico do ensino e
da educação, de natureza arquivística, bibliográfica, museológica e
arquitectónica sob a responsabilidade do ME.
Na prossecução destas atribuições, e dando continuidade
ao trabalho de levantamento a nível nacional dos bens de interesse
museológico sobre tutela do ME, executado pelo grupo de trabalho
coordenado pelo Professor António Nóvoa, a SG deu início, em
2003, ao Programa SIDIME – Sistema Integrado de
Documentação e Informação do Ministério da Educação – com o
objectivo estratégico de disponibilizar on-line, através de um Portal,
todo o espólio de natureza arquivística, documental e museológica
do ME.
Numa das vertentes deste programa enquadra-se o
projecto Inventário e Digitalização do Património Museológico da
Educação, onde ao longo do seu percurso podemos observar as
seguintes fases:

Fase 1 – projecto-piloto – ano lectivo 2004/2005


Com o objectivo de realizar o inventário e a digitalização
dos bens de interesse museológico sob tutela do ME que se
encontram em antigos Liceus e Escolas Industriais, foi assinado,
em 8 de Novembro de 2004, um Protocolo de Colaboração entre
o Instituto Português de Museus (IPM), a SG/ME e a Direcção
Regional de Educação de Lisboa e Vale do Tejo (antiga DREL,
actual DRELVT), com vista a salvaguardar, proteger e divulgar
esses bens, e cuja baliza cronológica será a década de 1970 (25 de
Abril). Considerou-se que os objectos posteriores a esta data
careciam de análise individualizada dos especialistas em História
da Educação.

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Nesta fase piloto, ficaram afectas ao Projecto 4 escolas


secundárias localizadas na região de Lisboa (Camões, Gil Vicente,
Passos Manuel e a Marquês de Pombal) e definiu-se que a
metodologia seguida, depois de avaliada, seria estendida a outras
Escolas da rede pública com espólios de reconhecido valor
patrimonial.
Assim sendo, no ano lectivo 2004/2005, a SG, em
conjunto com a DREL, desenvolveu uma acção de sensibilização
junto dos presidentes executivos das escolas (escolhidas a partir do
levantamento realizado em 1996), a fim de os motivar a participar
no projecto e para afectar equipas de professores para esta
actividade (3/4 por escola). Estas equipas receberam formação na
área da História da Educação e sobre a inventariação de colecções
– Programa Matriz –, efectuada pelo IPM/Direcção de Serviços de
Inventário. A SG forneceu a todas as escolas o software de
referência (Matriz) e equipou-as com o material informático e
fotográfico necessário para os trabalhos de inventariação e
digitalização, assim como o material de marcação de peças.
Entretanto, foi constituído um Grupo de Trabalho com
técnicos da SG, que fazia a gestão e a dinamização do projecto, os
contactos com as escolas e com os parceiros (IPM e DREL).
Embora este projecto seja da responsabilidade da SG, teve nesta
fase uma co-coordenação com o IPM/Direcção de Serviços de
Inventário, que era responsável pelas orientações técnicas de
inventariação, tendo em conta as especificidades do Programa
Matriz, de forma a uniformizar o carregamento da base, sendo
igualmente da sua responsabilidade a validação das fichas Matriz.
No final do ano lectivo, foi efectuada uma avaliação dos
resultados de forma a permitir observar quais os pontos que havia
a melhorar e a metodologia a seguir no futuro. Os resultados
obtidos permitiram-nos verificar que, apesar da grande aceitação
do projecto entre a comunidade educativa, havia aspectos sobre os
quais os professores tinham dificuldades e que necessitavam de um
acompanhamento mais personalizado, específico e científico. A

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projecção do projecto tinha suscitado grande interesse da parte de


outras escolas da DREL que desejavam integrá-lo. Na realidade,
esta hipótese fazia parte da estratégia inicial da SG, assim como
estendê-lo às escolas das outras direcções regionais de educação,
com quem iniciou os primeiros contactos neste período.

Fase 2 – alargamento do projecto a outras escolas da


DRELVT – ano lectivo 2005/2006
Conforme o previsto, o projecto foi alargado neste ano
lectivo a mais 5 escolas secundárias da DRELVT (Rainha D.
Leonor, M.ª Amália Vaz de Carvalho, Pedro Nunes, em Lisboa, e
Jácome Ratton – Tomar) e Bocage – Setúbal, perfazendo um total
8 escolas (Escola Secundária Camões saiu do projecto).
Com a integração de novas escolas e terminado o
Protocolo de Colaboração com o IPM/Direcção de Serviços de
Inventário, havia a necessidade de reorganizar o projecto de forma
a colmatar os aspectos menos positivos, identificados no ano
anterior, e criar uma estrutura cientifica e técnica mais habilitada
para que os resultados futuros pudessem assentar em metodologias
e práticas consistentes.
Neste sentido, foi elaborada uma proposta de consultoria
científica com a especialista em História da Educação (Professora
Dr.ª Maria João Mogarro) e foi integrada no grupo a museóloga
(Dr.ª Inês Oliveira) que, para além da sua formação em
museologia, possuía também experiência na base de dados Matriz.
Iniciou-se assim um novo ciclo, em que os resultados obtidos
projectaram o projecto, de forma mais consistente, para além da
comunidade educativa, alargando-se à comunidade científica e a
sectores mais vastos da população.

Fase 3 – alargamento do projecto a escolas das DRE do


Centro e do Alentejo – anos lectivos 2006/2008
Com a consolidação do projecto – durante os anos lectivos
2005/06 e 2006/07 – estavam criadas as condições para se iniciar

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o processo de integração de escolas das outras Direcções Regionais


de Educação. Esta incorporação começou a ser planeada ainda
durante o ano 2006/2007, e beneficiando da experiência anterior,
as novas equipas de professores receberam formação específica e
focalizada nos pontos essenciais para o desenvolvimento do seu
trabalho de inventariação das colecções, nomeadamente da base de
dados Matriz. Esta formação foi dada por elementos da equipa de
trabalho da SG, conjuntamente com técnicos de fotografia das
direcções regionais de educação.
Integraram assim o projecto museológico da educação, no
início do presente ano lectivo, mais 3 escolas secundárias das
DRE’s do Centro e do Alentejo, respectivamente: Avelar Brotero
(Coimbra), Campos Melo (Covilhã) e José Estêvão (Aveiro);
Gabriel Pereira (Évora), Mouzinho da Silveira (Portalegre) e
Diogo de Gouveia (Beja). Atingia-se um total de 14 escolas
secundárias.

O suporte técnico: o Programa Matriz e o processo de


adequação

Os bens patrimoniais, enquanto «testemunhos» de uma


cultura são igualmente valorizados pela informação a eles
associada e, neste sentido, conservar essa informação é tão vital
como a preservação do próprio objecto. É nesta lógica que a
documentação4 tem sido considerada como a base fundamental
para as demais práticas museológicas, não devendo limitar-se à
recolha de dados sobre o objecto, pese embora a importância dessa

4
A documentação museológica é composta pelos seguintes itens: a «aquisição»
dos bens, isto é, o modo de ingresso do objecto que pode ser uma aquisição, uma
doação, um empréstimo ou permuta; elaboração de um «livro de registo ou de
inventário», onde se procede à entrada dos objectos e sua identificação; realização
da «pesquisa» com o objectivo de recolher e organizar toda a informação possível
sobre as peças; a constituição de «fichas de inventário» individuais sobre cada
objecto.

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informação, mas objectivar a reflexão sobre o acervo, produzir


conhecimento a partir dele e constituir um elemento de integração
do património na comunidade.
Neste sentido, o processo de documentação realizado no
âmbito do Projecto de Inventário e Digitalização do Património
Museológico da Educação tem-se revelado fundamental para o
conhecimento desse património, para a sua valorização e
consequente preservação e divulgação, possibilitando a construção
de uma base de dados que funciona como uma fonte de
informação e conhecimento sobre o património educativo.
No que concerne à documentação museológica, a
estrutura informativa a reunir sobre o objecto pode ser organizada
em informações intrínsecas, que se obtêm a partir da análise das
características físicas dos objectos, nomeadamente a composição, a
matéria, a técnica, as dimensões, a cor, etc.; e informações
extrínsecas, obtidas através de outras fontes permitindo conhecer
os contextos de criação/produção, a(s) sua(s) função(ões) e
significado(s). É este tipo de dados extrínsecos que possibilita a
contextualização do objecto numa determinada cultura, tornando-
os seu testemunho, e dotando-o de um valor histórico, estético,
científico, simbólico e até económico.
A constituição de uma base de dados para a realização do
inventário e respectiva documentação das colecções deve ter em
conta a especificidade dos espólios a tratar, adaptando-se às
necessidades de inventariação, pesquisa e acção de cada escola e
ainda permitir a organização dessas informações intrínsecas e
extrínsecas. Em suma, a ficha de inventário deve ser pensada para
servir as especificidades do acervo de cada instituição, tendo por
objectivo o registo de todas as informações consideradas
pertinentes.
No caso deste Projecto, a adopção da ficha de inventário
Matriz decorre do protocolo realizado com o então Instituto
Português de Museus (IPM), instituto que apoiou, numa primeira
fase, o projecto e que realizou a formação dos professores.

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A adopção desta ficha Matriz revelou, no entanto, alguns


constrangimentos na medida em que foi pensada para o
inventário, documentação e gestão do património móvel dos
museus tutelados pelo IPM e, como tal, vocacionada para
responder às necessidades dessas instituições museológicas com
colecções essencialmente nos domínios das Artes Plásticas e Artes
Decorativas, Etnologia e Arqueologia. Neste sentido, os diversos
Campos da ficha Matriz reflectem essa vocação, tal como as
Normas de Inventário editadas pelo IPM que definem o seu
preenchimento (Pinho & Freitas, 2000).
Na sequência dessa constatação, verificou-se a urgência de
encontrar um caminho de adaptação da ficha Matriz à realidade
do Projecto e foi nesse contexto que o Grupo de Trabalho da SG-
ME, em parceria com as equipas de professores das diversas
escolas, procedeu à criação de um Guia Prático de Inventário onde
cada “campo” da ficha Matriz foi reinterpretado e redefinido. Este
Guia Prático procurou igualmente contribuir para a uniformização
do exercício de inventariação e proporcionar a cada inventariante o
acesso a um conjunto de instruções e exemplos práticos de modo a
facilitar o processo de documentação (Mogarro, Gonçalves &
Oliveira, 2007).
Para a sua elaboração seguiu-se a estrutura das Normas de
Inventário do IPM e foi descrito em pormenor o tipo de dados a
preencher tendo em conta a especificidade do espólio e a
informação a recolher.
No que diz respeito à ficha Matriz encontra-se organizada
em duas partes: o cabeçalho, que permite uma identificação
sumária da peça com a respectiva imagem; e os separadores, com
diversos campos que possibilitam a documentação da peça, através
da palavra escrita, da fotografia e do registo de vídeo e de som.

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Cabeçalho

Separadores

O cabeçalho da ficha permite identificar o proprietário da


peça, a sua denominação e título, o número de inventário bem
como catalogá-la dentro de uma classificação em três níveis -
Super Categoria, Categoria e Subcategoria. Os separadores, por
seu turno, organizam a informação recolhida sobre os objectos e
todos os eles estão divididos em diversos campos de escrita
corrente, para registar as informações intrínsecas, nomeadamente
a «Identificação» da peça em termos da sua descrição física;
«Informação Técnica» ao nível da matéria e técnica; «Dimensões»;
«Marcas e Inscrições» que a peça possa eventualmente ter; e
«Estado de Conservação». Permite igualmente inscrever as
informações extrínsecas às peças nos separadores de «Localização»
da peça na instituição; «Imagem/Som»; «Autoria»; «Produção» da
peça ao nível do seu fabricante, centro de fabrico e local de
execução; «Origem» da peça e seu historial no que respeita ao seu
percurso, aos contextos de criação e utilização e possíveis
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transformações quanto à sua função e forma; «Datação» por data


ou período cronológico; «Incorporação» da peça na instituição e
respectiva data e modo de incorporação; «Exposições» em que
tenha participado; «Bibliografia» utilizada e recolhida para a
obtenção de informações sobre as peças; e «Observações» para
registo de informação adicional.
No processo de revisão e adaptação da ficha Matriz às
colecções de natureza educativa, salientam-se os campos de
classificação dos objectos. Exceptuando a Super Categoria, nível
classificatório predefinido para “Artes Plásticas/Artes
Decorativas”, “Etnologia” e “Arqueologia” (que não podia ser
alterada, impondo o próprio programa a impossibilidade de
adaptação), as Categorias e Subcategorias foram adaptadas,
resultando numa redefinição do mapa de classificação dos espólios.
Assim, os objectos são classificados de acordo com a técnica ou
tipologia (Categoria) e área do saber ou disciplina curricular em
que era utilizado (Subcategoria).
O campo Elemento de um Conjunto, destinado a
relacionar peças que, pela leitura estética ou funcional, fazem
parte de um conjunto, tem permitido associar objectos que
pertencem a uma mesma colecção, nomeadamente os quadros
parietais, agrupados segundo características temáticas, estéticas e
de autoria.
Por seu turno, o levantamento das marcas e inscrições da
peça, pela sua transcrição para o respectivo campo e associação de
imagem de pormenor, tem possibilitado o levantamento de
logótipos de produtores de materiais didácticos, construindo-se
uma base de dados iconográfica significativa. Este campo tem
maior interesse para o conhecimento do património educativo
quando associado aos campos Autoria e Produção, dado que
possibilita conhecer, nomeadamente, os autores e a sua profissão,
assim como os produtores, os locais de fabrico e os distribuidores.
Em muitos casos, a obtenção das informações extrínsecas
ao objecto é possível recorrendo aos arquivos das próprias escolas.

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Um exemplo é o preenchimento do campo Incorporação, que


permite identificar o modo de entrada da peça na instituição e
respectiva data. Dado a pertinência destas fontes, foi estabelecido
que os documentos deveriam ser digitalizados e associados ao
campo Documentação associada, do separador Bibliografia.

O Património Museológico da Educação:


caracterização, divulgação e produções

O programa Matriz permite a constituição uma Base de


Dados que se configura como uma ferramenta poderosa para o
estudo, preservação e divulgação do património educativo. Apesar
das dificuldades encontradas na adaptação da ficha Matriz aos
materiais de natureza educativa, dispomos agora de uma fonte de
informação e conhecimento sobre o património museológico das
escolas portuguesas, que tem a sua vertente de divulgação ao
público na plataforma MatrizWeb. Através deste sítio da Internet é
possível aceder a alguns dos campos da base de dados5 e às peças
previamente seleccionadas segundo critérios que se prendem com a
escolha dos objectos que melhor caracterizam o espólio de cada
escola. Essa selecção permitiu, até ao momento, disponibilizar ao
público 2441 peças das 5966 inventariadas.
A observação das peças presentes no MatrizWeb permite
verificar que se tratam de espólios diversificados, que integram
objectos classificados em diversas categorias, nomeadamente
«Instrumentos científicos», «Materiais didácticos», «Cerâmica»,
«Mobiliário», «Fotografia», «Pintura», «Escultura», «Instrumentos
e utensílios» e «Têxteis», existindo, no entanto, uma
predominância dos objectos adquiridos pelas escolas para as

5
A plataforma MatrizWeb disponibiliza ao público parte da informação registada
na ficha de cada peça: uma imagem do objecto e uma informação sucinta do
mesmo, especificamente a sua identificação, classificação, datação, dimensões,
n.º de inventário e descrição.

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práticas de ensino, com destaque para os «Instrumentos


científicos» e os «Materiais didácticos».

Categorias

Instrumentos

Instrumentos
Equipamento

e utensílios
científicos

didácticos
Fotografia

Mobiliário
Escultura
industrial
Cerâmica

Materiais
Desenho

Gravura

Pintura
Têxteis
Escola Total

Escola Sec. Bocage (Setúbal) 242 158 400


Escola Sec. Campos Melo (Covilhã) 9 9
Escola Sec. Gil Vicente (Lisboa) 2 7 188 19 480 1
698 1
Escola Sec. Jácome Ratton (Tomar) 10 22 43 51 126
Escola Sec. Mª Amália Vaz de Carvalho (Lisboa) 7 10 32 2 14 65
Escola Sec. Marquês de Pombal (Lisboa) 23 156 1 15 28 223
Escola Sec. Mouzinho da Silveira (Portalegre) 42 42
Escola Sec. Passos Manuel (Lisboa) 92 463 555
Escola Sec. Pedro Nunes (Lisboa) 178 2 180
Escola Sec. Rainha D. Leonor (Lisboa) 5 126 12 143
Total 32 166 9 23 22 15 775 21 1322 15 29 12 2441

No domínio da divulgação do projecto, tem-se recorrido a


diversos processos, produtos e actividades nos quais estão
envolvidos a Secretaria-Geral do ME e as equipas de professores
das escolas. No âmbito da Secretaria-Geral, destacam-se as
seguintes iniciativas:
Matrizweb – como o Programa Matriz, para além do
inventário dos objectos (Ficha Matriz) e da gestão das colecções,
permite o acesso e a pesquisa às mesmas, foi instalada em Maio de
2005, no sítio do Museu Virtual da Educação/Património
Museológico, a primeira exposição na plataforma Matrizweb, que
serve, simultaneamente, como fonte de informação e de divulgação dos
acervos museológicos escolares. É nesta aplicação que são instalados
regularmente os objectos que as escolas vão inventariando, depois de
efectuada a sua validação. Nem todos os objectos inventariados na base
de dados Matriz estão disponíveis, quer por razões técnicas e científicas,
quer por razões de segurança dos próprios acervos6.

6
Ver: http://edumuseu.sg.min-edu.pt.
Entretanto, no ano de 2009, a base de dados Matriz foi substituída pela In Arte
e todas as peças estão disponíveis ao público através do interface In Web, que
substituiu o MatrizWeb, neste mesmo endereço electrónico.

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Exposições temáticas – com a necessidade de expandir e


divulgar o projecto por outros pontos de acesso, a SG aderiu ao
convite da ParaRede, e participou no projecto-piloto da plataforma
eExhibitions e instalou duas exposições temáticas nesta aplicação
– Instrumentos Científicos da Educação, em 2006 e Imagens
Parietais da Educação, em 20077.
Peça do Mês – também em 2006, o Grupo de Trabalho
da SG iniciou a actividade Peça do Mês com o objectivo de
salientar, todos os meses, uma peça de entre as melhores
inventariadas pelas escolas, de forma a motivar as equipas de
professores e para despertar o interesse da comunidade escolar e do
público para a variedade de espólios que a base contém8.
Dia Internacional dos Museus – desde 2005 que a SG
comemora este dia com a realização de vários eventos, em
conjunto com as escolas afectas ao projecto, para apresentar a
dinâmica, as práticas e os resultados que o projecto museológico da
educação vai obtendo, e para os quais convida a participar/intervir
a comunidade educativa, os gabinetes ministeriais do ME, os
dirigentes do ME, a comunidade cientifica ligada à História da
Educação e a comunidade local, de forma a envolver e sensibilizar
os vários intervenientes para a importância da salvaguarda dos
bens museológicos da educação e realçar a contribuição deste
projecto para a construção da memória educativa.
Um olhar sobre o Património Museológico da
Educação – é o tema da exposição que esteve patente nas montras
do Ministério da Educação, na Av. 5 de Outubro, durante o mês
de Março de 2008, e em que participaram as 14 escolas que
integram o projecto, representadas através de 14 painéis que
ilustram os espaços educativos actuais e antigos acompanhados por
objectos representativos das suas colecções, os quais integram a
base de dados Matriz. Esta exposição encontra-se, desde o final de

7
Disponíveis em http://www.eexhibitions.net/
8
Pode ser visitada em http://www.sg.min-edu.pt/museu0b.htm

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Março e até ao final do ano lectivo, a percorrer todas as escolas do


projecto das três DRE’s e no próximo ano lectivo vai ser
apresentada nas instalações das DRE’s e em outros espaços
educativos, com o objectivo de levar o projecto museológico às
comunidades escolares e locais e, cada vez mais, envolver e
sensibilizar estes actores para a preservação do património
educativo.
Património Cultural do Ensino & da Educação – foi
tornado público pela SG, no evento da comemoração do Dia
Internacional dos Museus, dia 16 de Maio de 2008, no Palácio
Valadares, em Lisboa (ex-Escola Secundária Veiga Beirão), mais
um ponto de acesso ao património museológico da educação, cuja
consulta pode ser efectuada através de endereço próprio9.
Ao nível da participação das escolas, a maior parte delas,
desde o início da sua integração no projecto, contribuem, através
de várias actividades e outras dinâmicas, para levar à comunidade
escolar, à comunidade local e a outros parceiros, o projecto e as
suas colecções, sempre com o propósito de chamarem a atenção
não só para o seu trabalho, como para a importância da
valorização e conservação dos acervos museológicos que
constituem a memória das próprias instituições escolares.
De entre as várias iniciativas, destacamos: a preservação
ou criação de Museus de Escola ou de Núcleos Museológicos;
actividades desenvolvidas sobre os temas do património nos clubes
de História ou de História da Escola; exposições temáticas e
palestras, assim como visitas guiadas aos espaços museológicos e a
colecções específicas, consideradas de interesse relevante pela
instituição; integração de temas sobre o património educativo em
actividades lúdicas, didácticas, científico-pedagógicas e
multidisciplinares; programas próprios das escolas no Dia
Internacional dos Museus, dedicados a alunos, antigos alunos e
pais, assim como à comunidade, em que se desenvolvem muitas

9
Consultar http://projectobame.blogspot.com/

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das actividades referenciadas; participação com rubricas específicas


nos jornais escolares e com espaços próprios em feiras pedagógicas,
com o objectivo de divulgar o projecto e promover a educação
patrimonial; elaboração de brochuras temáticas e catálogos, estes
com as peças dos espólios da respectiva escola; concepção e
produção de materiais de divulgação sobre temas associados ao
projecto, como marcadores de livros e postais.
O esforço formativo e de disseminação do conhecimento,
tendo como tema central este projecto, os temas e as actividades a
ele associados, encontra outros canais em diferentes escolas, como
a divulgação através de sites e da plataforma Moodle de e-learning
de cada instituição, assim como a sua inclusão em blogs.
Muitas iniciativas integram-se em comemorações (como
aniversários) que são relevantes para a escola, podendo também
surgir em relação directa com determinadas áreas disciplinares
(como biologia, física, química) ou cursos específicos (formação
feminina, marcenaria, serralharia) que se pretendem valorizar no
percurso histórico da instituição. Várias destas escolas
estabeleceram protocolos e projectos com outras escolas e
instituições, quer nacionais, quer estrangeiras, em torno da
temática do património museológico, do seu estudo, preservação e
utilização em actividades pedagógicas.

Conclusão

Com este projecto, aprofunda-se o conhecimento existente


sobre o tema, ao nível da realidade portuguesa, desenham-se
hipóteses de comparação com outros países e definem-se processos
e formas para a preservação e valorização dos fundos museológicos
da educação. Um dos seus objectivos é tornar acessível à
comunidade científica o conhecimento dos fundos patrimoniais e
culturais a estudar, contribuindo para o desenvolvimento de linhas
de investigação sobre a cultura material e o património educativo
em Portugal, tal como se regista em outros países com cujas
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comunidades científicas se têm consolidado relações e projectos de


cooperação internacional. O levantamento e estudo do património
museológico nas escolas permite estabelecer as correlações dos
materiais com as disciplinas escolares e a sua história, assim como
o seu papel/função de conexão entre o conhecimento científico
produzido e a alquimia a que este conhecimento é sujeito para se
transformar em matéria de ensino. Outro segmento importante é
o estudo dos autores destes objectos, que os conceberam ou
adaptaram, e as casas editoras, produtoras e distribuidoras. Pode-
se assim elaborar um mapa dos locais de produção destes materiais
e articulá-los com os locais onde eles foram usados em contextos
educativos, estabelecendo os circuitos de produção, circulação e
apropriação dos modelos culturais e pedagógicos, através da
materialidade com que se foram configurando nos objectos
inventariados.
As escolas que integram o projecto assumem um
importante papel na inventariação, preservação e divulgação do seu
património museológico, tendo também colocado em evidência
que os seus espólios constituem um recurso didáctico significativo,
a utilizar em actividades desenvolvidas no âmbito da docência, da
própria escola e de relação com a comunidade. Está hoje
demonstrado a poderosa dimensão simbólica dos objectos
ordinários que utilizamos quotidianamente ao longo da vida e
aqueles que remetem para esse elemento que é comum às pessoas –
a escola – têm um enorme poder de atracção. Os materiais
educativos fazem parte da cultura da escola, assim como da
memória e identidade que cada instituição escolar vai construindo
ao longo do seu processo de existência, mas também da memória
que as pessoas guardam da sua infância e juventude e dos objectos
que utilizavam nas suas escolas.
Este projecto consolidou-se e ganhou visibilidade ao longo
dos seus anos de existência. Como todos os projectos, terá um fim;
mas esperamos que dê lugar a iniciativas mais sólidas, de âmbito
mais geral e que articulem os diferentes espólios do ME

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(bibliotecas, arquivos e museus) num sistema integrado de


informação, que permita correlacionar os dados sobre temas
educativos, consultando fontes de diversas proveniências. No
futuro próximo, o funcionamento deste projecto terá de
equacionar novas realidades no campo educativo – algumas das
escolas que o integram vão ser objecto de intervenção com vista à
modernização do parque escolar, num ambicioso programa de
requalificação arquitectónica que foi implementado pelo governo, e
terão de ser repensados os processos e formas de trabalho para o
inventário e digitalização do património museológico dessas
mesmas escolas. Esperemos que esse futuro consolide e dê
consistência a uma política continuada de preservação, valorização
e divulgação do património educativo, nomeadamente da sua
componente museológica.

Referências

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RUIZ BERRIO, J. (org.) (2000). La cultura escolar de Europa.


Tendências históricas emergentes. Madrid: Biblioteca Nueva.

Maria João Mogarro é Doutora em História da Educação,


Investigadora da Universidade de Lisboa - UI&DCE e Professora
Coordenadora da Escola Superior de Educação de Portalegre.
Consultora do Projecto “Inventário e Digitalização do Património
Museológico da Educação”. E-mail: mariamogarro@gmail.com

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Fernanda Gonçalves é Licenciada em Design Visual, Assessora


do Quadro Único do Pessoal do Ministério da Educação (ME)
português e desempenha funções técnicas na Direcção de Serviços
de Informação e Documentação da Secretaria-Geral do ME,
como Gestora do Projecto “Inventário e Digitalização do
Património Museológico da Educação” e da vertente museológica
do Projecto “BAME – Bibliotecas, Arquivos e Museus da
Educação – nas Escolas”. E-mail: mar7goncalves@gmail.com
Jorge Casimiro é Licenciado em Física pela Faculdade de
Ciências da Universidade de Lisboa e bolseiro da Fundação
Calouste Gulbenkian. Trabalhos de investigação em Física do
Estado Líquido e estudos em História e Filosofia das Ciências.
Assessor Principal do quadro do Ministério da Educação,
actualmente requisitado pela Estrutura de Missão para os
Assuntos do Mar (Ministério da Defesa Nacional), tem obra
escrita diversa, nas áreas do ensaio, poesia, tradução, ficção e
crítica literária. É um comunicador de ciência. E-mail:
jorge_casimiro@sapo.pt
Inês Cavadas de Oliveira, Licenciada em História da Arte com
Mestrado em Museologia, inventariante no projecto de “Inventário
e Digitalização do Património Museológico da Educação”
enquanto estagiária na Secretaria-Geral do Ministério da
Educação. E-mail: ines_cristina@netcabo.pt

Recebido em: 12/06/2009


Aceito em: 20/12/2009

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MEMÓRIAS DE UM PROFESSOR:
A INSTIGANTE HISTÓRIA DE VIDA
DO PROFESSOR FREDERICO MICHAELSEN -
DE IMIGRANTE CONTRATADO COMO
SOLDADO MERCENÁRIO NA GUERRA CONTRA
ROSAS EM 1851 (ARGENTINA) A PROFESSOR
PRIMÁRIO EM COLÔNIA ALEMÃ
DO RIO GRANDE DO SUL
Luiz Alberto de Souza Marques

Resumo
O presente estudo apresenta a história de vida do Professor Frederico
Michaelsen, personagem marcante na história da educação do
município de Nova Petrópolis - RS. O eixo principal do texto
consiste numa carta endereçada pelo professor ao jornal Deutsche
Zeitung de Porto Alegre, em junho de 1889, em que relata a difícil,
e não menos curiosa, trajetória de um professor nos primeiros anos
da nova colônia, a partir de sua dispensa do exército brasileiro e do
batalhão de artilharia contratado na Alemanha e conhecido como
soldados Brummer. A pesquisa não se atém somente aos dados
biográficos do professor Frederico, mas procura contextualizar, em
sua singular trajetória, as condições da sua vinda para o Brasil, a
Guerra contra o ditador Rosas (Argentina), a permanência no Rio
Grande do Sul, a vida na nova colônia e o exercício do magistério,
entre outras atividades comunitárias que tecem essa instigante e
curiosa história de vida. A abordagem adotada para a montagem do
trabalho foi a de abertura do texto da carta e, nele, a inserção dos
diferentes episódios, acompanhando a narrativa de Frederico
Michaelsen.
Palavras-chave: História de vida; memória; educação; história da
educação.

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A TEACHER’S MEMORIES: THE FASCINATING
HISTORY OF PROFESSOR FREDERICO MICHAELSEN
– FROM AN IMMIGRANT AND MERCENARY SOLDIER
ENGAGED IN THE WAR AGAINST ROSAS
(ARGENTINA), IN 1851, TO A PRIMARY TEACHER IN A
GERMAN COLONY OF RIO GRANDE DO SUL
Abstract
This paper presents the history of Professor Frederick Michaelsen’s
life, a striking character in the history of education of Nova
Petropolis, Rio Grande do Sul. The main axis of the text is a letter
by the professor to the Deutsche Zeitung newspaper in Porto Alegre,
in June 1889, which reported the difficult, but rather curious story
of a professor in the early years of the new colony, starting from his
discharge of the Brazilian army and of the German artillery
battalion, where he had been contracted as a Bummer soldier. The
research is not limited to the biographical data of Professor
Frederick, but seeks to contextualize the conditions of his coming to
Brazil, the war against dictator Rosas (Argentina), the way of life in
the new colony and his teaching practice in Rio Grande do Sul,
among other community activities that draw this curious and
fascinating life story. The text frame is based on an opening letter
followed by different episodes narrated by Frederick Michaelsen.
Keywords: Life story; memory; education; education history.

MEMORIAS DE UN PROFESOR: LA INSTIGANTE


HISTORIA DE VIDA DEL PROFESOR FREDERICO
MICHAELSEN - DE INMIGRANTE CONTRATADO
COMO SOLDADO MERCENARIO EN LA GUERRA
CONTRA ROSAS EM 1851 (ARGENTINA) A MAESTRO
PRIMARIO EN UNA COLONIA ALEMANA DE RIO
GRANDE DO SUL
Resúmen
Este estudio presenta la historia de vida del Profesor Frederico
Michaelsen, personaje importante de la historia de la educación del
municipio de Nova Petrópolis - RS. El eje principal del texto
consiste en una carta enviada por él al diario Deutsche Zeitung de
Porto Alegre, en junio de 1889, en donde relata la difícil, y no
menos curiosa, trayectoria de un profesor en los primeros años de la
nueva colonia, a partir de su dispensa del ejército brasileño y del
batallón de artillaría contratado en Alemania y conocido como
soldados Brummer. La pesquisa no se atiene tan sólo a sus dados
biográficos, sino que busca contextualizar, en su singular trayectoria,
las condiciones de su llegada a Brasil, la Guerra contra el dictador
Rosas (Argentina), la estadía en Rio Grande do Sul, la vida en la

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nueva colonia y el ejercicio del magisterio, entre otras actividades
comunitarias que tejen su interesante y curiosa historia de vida. Para
montar el trabajo se abrió el texto de la carta y, en él, se insirieron los
diversos episodios, acompañando la narrativa de Frederico
Michaelsen.
Palabras-clave: Historia de vida; memoria; educación; historia de la
educación.

LES MÉMOIRES D’UN PROFESSEUR: LA FASCINANTE


HISTOIRE DE VIE DU PROFESSEUR FREDERICO
MICHAELSEN – D’IMMIGRANT ENGAGÉ COMME
SOLDAT MERCENAIRE DANS LA GUERRE CONTRE
ROSAS EN 1851 (ARGENTINE) À INSTITUTEUR DANS
UNE COLONIE ALLEMANDE AU RIO GRANDE DO SUL
Resumé
Ce travail présente l’histoire de vie du Professeur Frederico
Michaelsen, un personnage remarquable dans l’histoire de l’éducation
de la ville de Nova Petrópolis – RS. L’axe principal du texte est une
lettre que ce professeur a adressée au journal Deutsche Zeitung de
Porto Alegre, en juin 1889, dans laquelle il raconte le parcours
difficile et curieux d’un professeur dans les premières années de la
nouvelle colonie, à partir de sa dispense de l’armée brésilienne et du
bataillon d’artillerie embauché en Allemagne connu comme les
soldats Brummer. La recherche ne se borne pas seulement aux
données biographiques du professeur Michaelsen, mais elle cherche à
contextualiser, dans sa trajectoire singulière, les condition de son
départ pour le Brésil, la guerre contre le dictateur Rosas (Argentine),
sa vie au Rio Grande do Sul, dans la nouvelle colonie, l’exercice de
l’enseignement parmi d’autres activités communautaires qui tissent
cette vie fascinante et curieuse. Le travail s’organise à partir de
l’ouverture du texte de la lettre et de l’insertion sur lui des épisodes
divers, tout en accompagnant le récit de Frederico Michaelsen.
Mots-clés: Histoire de vie; mémoire; éducation; histoire de
l’éducation.

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“Landesknecht! Mercenário para servir o Brasil?


Brummer! É vergonhoso e digno de pena ver-se como
mercenário de uma nação estranha. Mas quando se segue
com espírito humilde o enrodilhado destino que levou a
cada qual a encetar tal caminho, então se aprende a julgar
o seu fazer e agir. Leviandade, gosto de aventura,
desconhecimento, apertos e outros acontecimentos
empurram a uns tantos passos dos quais a gente se
arrepende mais tarde.
Não era meu desejo vender-me como mercenário de
guerra, quando em 1851 cheguei a Hamburgo. Mas os
“prementes acontecimentos” foi que me fizeram deixar
cair nas mãos de um grupo de alegres irmãos, que se
haviam engajado.
E assim me deixei embrulhar e segui também para o
Brasil”.
Lenz (1997, p. 15)

O professor ou o personagem

Segundo pesquisa genealógica conduzida por Ido


Michaelsen (1995, p. 23), trineto, “Frederico Michaelsen, nasceu
na cidade de Hamburgo, na Alemanha, em 19 de fevereiro de
1829, filho de Rebeca Michaelsen, supostamente abandonado nas
escadarias da igreja de St. Michaelis e também supostamente
criado por um tal de Sr. Hildebrand e batizado em 4 de março do
mesmo ano, nessa mesma igreja”. O nascimento e a paternidade
deixam alguns pontos não efetivamente esclarecidos, apesar das
evidências coletadas por Ido em sua viagem à Alemanha, visando
incrementar sua busca pelas origens da família Michaelsen. Em
outra versão, Frederico é filho de Gottlieb Michaelsen, casado
com Emillie Hillebrand.
Na Europa, Michaelsen lutou como membro do exército
alemão na guerra contra a Dinamarca (mesmo sendo ele
descendente de dinamarqueses), batalhão esse formado em 1848 e
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dissolvido em 1851, com o término da referida contenda.


Recrutado para servir como soldado no exército brasileiro na
Guerra contra o ditador Rosas, chega o Brasil nesse mesmo ano.
Após o fim da guerra Brasil/Argentina/Uruguai,
permanece no Brasil e fixa residência primeiramente em Campo
Bom/RS, onde se casou com Joana Philipine Mertins, também de
origem alemã, natural da mesma cidade, em 13 de abril de 1853.
Desse casamento nasceram 10 filhos. Esses laços matrimoniais
dissolveram-se somente com o falecimento de Philipine em 1887.
Casou-se novamente em 1889 com Anna Twassog, da cidade de
Ijuí/RS. Frederico Michaelsen faleceu em 21 de janeiro de 1902,
com 73 anos.

A Carta

Conforme reportagem extraída da “Deutsche Zeitung”,


Edição nº 52, de 01/07/1898, jornal editado por Von Koseritz,
transcrita pelo professor Renato U. Seibt e publicada no jornal A
Ponte, de Nova Petrópolis, em novembro de 1987, temos um
único testemunho escrito, legado por Frederico Michaelsen em
uma humorada crônica de seu cotidiano como professor na recém
instalada colônia de Nova Petrópolis.

DIRETRIZES PARA OS JOVENS QUE


DESEJAREM SEGUIR A CARREIRA DO
MAGISTÉRIO NA FALTA DE OUTRAS
OCUPAÇÕES
“Em vista das interessantes narrativas do velho camarada
Pilke, a respeito de sua vida movimentada como professor
e alto funcionário da Justiça e finalmente como
aposentado, quero esforçar-me a apresentar aos leitores
algo de minha vida e das minhas experiências no cargo de
professor.
Mesmo que da minha escola não tivessem saído grandes
espíritos, como daquela de Pilke, mas posso demonstrar

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que tive a honra de ter comerciantes, presidente de


câmaras de vereadores, oficiais de todas as armas e mais
um respeitável público entre os meus alunos. Devo
acrescentar ainda que até um médico e profeta saiu de
minha escola...
Quando terminou a guerra contra o ditador Rosas, fomos
dispensados do exército, mesmo sem grandes despedidas,
sem as quais também passamos...”

Os Brummers

Alberto Schmid, jornalista alemão que esteve no Brasil


entre 1908 e 1911, produziu um texto sobre os 60 anos da
chegada da Legião Alemã ao RS que foi editado no jornal
Deutsches Volksbatt, em 1911 (1997, p. 11). Essa mesma legião,
que mais tarde passou a ser denominada Brummer1, começou a se
constituir a partir da formação do exército que viria para auxiliar
os brasileiros contra o ditador Rosas. Para tal, o Imperador D.
Pedro II enviou para a Europa o Ten. Cel. Sebastião do Rego
Barros com a incumbência de contratar soldados. Na Alemanha,
encontrou homens que compunham o exército de Schleswig-
Holstein2, que já era formado por voluntários, e dissolvido em
1851. Essa nova legião começou a ser formada em 1851 e
totalizou 1.800 soldados, entre eles 50 oficiais.
Flores (1997, p. 8), ao prefaciar o livro Memórias de
Brummer, cita que “os legionários ficaram na maior parte como
força de reserva. Dos 1.800 homens apenas 80 artilheiros sob o

1
Brummer é um termo com diversas versões. A mais recorrente é a de que
relaciona a palavra brummer com a as grandes moedas de cobre de 40 réis que
recebiam os mercenários no Brasil.
2
Exército de Schleswig-Holstein, conforme Schäfer, (1997, p. 51foi montado
pelo ducado de Schleswig e do condado de Holstein para a defesa do primeiro na
tentativa de ser anexado pela Dinamarca, em 1848, e dissolvido em janeiro de
1851.

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comando prussiano e uma centena de sapadores3, incorporados ao


exército nacional, lutaram em Monte Caseros, onde se derrotou o
ditador Rosas, combatendo valentemente, abrindo forças
inimigas.”
Nas obras consultadas, não há nenhuma referência a que
Frederico Michaelsen tenha lutado ao lado dos oitenta soldados da
artilharia na batalha final, embora estivesse alistado para aquele
batalhão.

O contrato

Ao ingressar no batalhão, o soldado recebia 25 táleres4 da


moeda pátria. O deslocamento para o Brasil era por conta do
contratante. Ao término de quatro anos de serviço militar (período
de validade do contrato) cada soldado poderia receber 22.500
braças5 quadradas de terras coloniais ou viagem de retorno gratuita
a qualquer porto Europeu em caso de optar pelo regresso. Outra
forma de pagamento seria receber 80$000 em ouro.
Flores (1997, p. 8), ao fazer referência às condições com
que se deparavam os soldados Brummer no período contratual
após o final da guerra, registra:

Desarmados e carentes de treino militar, mal


alimentados, com veste rota e sem calçados, numa
flagrante falta de planejamento por parte de quem os
contratou, segundo Lenz, a metade desertou - com a
conivência das autoridades brasileiras, que assim se
desobrigavam do pagamento de cláusula contratual; a

3
Cfe. Aurélio, sapador = Soldado ou outro indivíduo que executa trabalhos de
sapa - abertura de fossos, trincheiras e galerias subterrâneas.
4
Antiga moeda alemã de prata, cfe. Aurélio.
5
Cfe. Lenz (1997, p. 38), a braça equivale a 22 cm; assim as 22.500 braças
quadradas equivaleriam a 49.500 metros quadrados aproximadamente, 4,9ha,
lote rural que os imigrantes recebiam na época.

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quarta parte morreu de frio, subnutrição e doenças


decorrentes de carência alimentar ou cardápio
inadequado. Apenas cerca de 450 aguardaram engajados
o término do prazo contratual. Aos que permaneceram
no Brasil, somou-se um número incerto de legionários
deserdados do Uruguai e que retornaram para o Rio
Grande do Sul no pós-guerra.

Essas condições de miséria e abandono também estão


presentes nos textos dos demais Brummers que relataram suas
memórias.
Ainda conforme as memórias de Schmidt (1997, p. 13)
“dentre os nomes de soldados e oficiais aparecem não poucos que
mais tarde podem ser encontrados na história do Rio Grande do
Sul”. Entre os citados, encontra-se o nome de Michaelsen.

A viagem

Em sua pesquisa, Michaelsen (1995, p. 36) constata que


“Frederico Michaelsen foi o primeiro, de sobrenome Michaelsen, a
pisar em solo brasileiro, e isto aconteceu em 24 de maio de 1851,
na cidade do Rio de Janeiro. O embarque na Alemanha aconteceu
em 7 de abril, na cidade de Hamburgo, viajando sob o comando
do Comandante Henrichesen no navio Hamburg.”
Nesse ponto, os relatos posteriores evidenciam que os
dados nem sempre coincidem no tocante ao embarque para o
Brasil. De acordo com as evidências nos textos de Lenz e Schnack
(1997), Michaelsen embarcou no veleiro Heinrich, no porto de
Hamburgo, em 22.6.1851, sob o comando do Capitão Boyen.
Neste mesmo veleiro viajaram os soldados que compunham a 4ª
bateria do Regimento de Artilharia, num total de 156 soldados,
chegando ao porto do Rio de Janeiro em 24 de agosto de 1851.
Lenz (1997, p. 97) relata em suas memórias: “Pouco sei
do posterior destino de meus camaradas, porque eu e mais três
companheiros recebemos terras em plena selva, onde tive poucas

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relações com o mundo exterior. Só mais tarde fiquei sabendo do


destino de alguns. Vários dos oficiais abraçaram o ofício de
agrimensor: Hennig, Brinkmann, Mützel, Schlimmerpfennig,
Gärtner e Wedelstedt. Outros oficiais assim como subtenentes e
cabos, dedicaram-se ao magistério: Meyer, Röhe, Michaelsen,
Anderson.” Na nominata de Brummer que, conforme Sch
(1997), foram surgindo ao longo das traduções e outras
informações posteriores, Michaelsen, Hennig, Brinkmann,
Mützel, Wedelstedt, Schnack, Gärtner e Lenz viajaram no veleiro
Heirich.
Os termos empregados “meus antigos camaradas”
permitem deduzir que o grupo esteve junto tanto na viagem como
na composição do batalhão, o qual, conforme o autor, se
compunha de 400-500 homens no total. Ainda, nas memórias de
Lenz, “os homens de nossa bateria formavam um mapa
demográfico multiétnico, com gente de todos os cantos e recantos
de nossa então ainda não unificada pátria. Velhos e jovens, brutos,
grosseiros e mal educados, mas também polidos e com fina
educação. A maioria já conhecia a vida de soldado por experiência
própria”.

A guerra

Em suas memórias, Lenz (1997, p. 20) relata que:

Dez ou 12 dias após a nossa chegada no Rio de Janeiro,


fomos trazidos a bordo de um vaso de guerra brasileiro, e
seguimos para o Rio Grande do Sul. Com o que teve
início uma vida miserável. Dez dias como arenques
imprensados na cobertura, praticamente impossível de se
deitar por causa da sujeira e da umidade. Comida
também miserável de charque mal preparado e feijão
preto. Quando à noite não se era enganado pelos homens
do navio, podia se falar de sorte. Em Desterro, onde
paramos por algumas horas, vieram até o navio botes com
ovos e frutas que naturalmente logo acabavam.

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Ainda no relato de Lenz, ao chegarem a Pelotas/RS,


foram alojados de forma rude e sem as mínimas condições de
abrigo. Diz o autor (ibidem, p. 12):

A 1ª e 2ª baterias de nosso Regimento estavam


acampadas em grandes alojamentos perto da praia; a 3ª e
4ª (a bateria de Michelsen – grifo meu), em casas de
moradia em local afastado da cidade. Para melhor
aproveitar o acanhado espaço, os homens dormiam em
beliches. Colchões não havia, de sorte que tivemos que
deitar sobre a tábua crua. Quem podia, comprava uma
esteira de junco e uma coberta leve. Quem conservou sua
coberta do Rio, utilizou-a, mais o manto para improvisar
uma cama. O pior eram os insetos. Pulgas e mais pulgas!
Especialmente judiadas estavam a 1ª e 2ª baterias junto
do rio. Para nos defendermos um pouco da praga, surgiu
a idéia de se fazer um saco do lençol, meter-se nele à
noite e amarrá-lo próximo ao queixo. Assim estávamos de
certa maneira protegidos. A casa não podia ser lavada
porque não era assoalhada.

As condições de sobrevivência reveladas por Lenz


demonstram, mais uma vez, que os imigrantes europeus no século
XIX, ao chegarem ao Brasil, seja na condição de mercenários, seja
na de colonos com suas famílias para trabalhar na terra,
encontraram uma realidade diversa daquela prometida e que servia
de atração para seduzi-los. Ao tocarem o nosso solo, os sonhos se
desfizeram e as promessas de abundância se transformaram numa
dura realidade de pobreza, num território inóspito e desconhecido.

A viagem para Montevidéu

Ainda em conformidade com as memórias de Lenz (1997,


p. 22):

Após dois dias de viagem cheia de privações, atingimos


Montevidéu. Para alojamento mostraram-nos as
instalações abandonadas de um grande matadouro, pois
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as demais acomodações disponíveis já estavam ocupadas


pela Infantaria brasileira e pelos sapadores alemães. O
pagamento de nossa etapa foi feito nos grandes
kupfermüzen, moeda prussiana, bastante mais pesada que
a brasileira. Dinheiro, pois, possuíamos, mas não havia
ninguém para nos vender comida. Só ao anoitecer
apareceram alguns civis, oferecendo por bom dinheiro pão
e queijo. Felizmente auxiliaram-nos os soldados
brasileiros e os sapadores com as sobras de sua carne crua.
Seis dias acampamos nessa quinta, sem barracas, ao
desabrigo e sobre a terra crua.

Esses dissabores pelas quais passaram os soldados alemães


foram determinantes para que um expressivo número deles
desertasse, outros ficaram “loucos” ou fizeram do suicídio um ato
de libertação de uma forma de miséria em um continente estranho
e numa guerra que não mostrava sua face.

O final da guerra e a dispersão

Continua a crônica de Frederico Michaelsen:

Meu primeiro emprego assumi no final de 1852, em


“quatro colônias”, perto de Campo Bom. Ali trabalhei
como professor e ao mesmo tempo como trabalhador
rural durante seis meses. Recebi em pagamento por todo
6
esse tempo; “um bolivian” (moeda de 800 réis) uma
capa de chuva, uma camisa e uma calça (ambas tecidas na
própria colônia), um chapéu de palha estilo calabrês e um
par de tamancos. Com esse equipamento mais parecia um
condenado as galés do que um professor!
Apresentei-me ao “pai dos Brummers”, o Sr. J. Felter,
em Campo Bom, que costumava socorrer os “Brummers”
sem pátria. Aqui encontrei imediatamente uma
“brilhante” função, ganhando quatro Mil réis por mês!
Minhas funções eram as seguintes: pela manhã abrir as

6
Cfe. Dicionário Aurélio, moeda boliviana, de prata, que circulou no RS.

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covas onde eram curtidos os couros (Felter tinha um


curtume junto da casa de negócios), moer cascas para
fazer tanino, algumas vezes trabalhar na roça, e
finalmente submeter-me a todos os serviços domésticos.
A tarde lecionava para as crianças e à noite colocava em
ordem a contabilidade e as anotações diárias da casa de
negócios. Estas obrigações cumpri durante oito meses,
mas durante todo esse tempo não consegui economizar
nada! Além de tudo, não era respeitado pelas mocinhas...
Não poucas vezes era obrigado a escutar, nos bailes,
quando uma daquelas belas era convidada a dançar com
um “Brummer”:
- Eu não danço com mercenários...

A pouca simpatia da população para com os Brummers

Seguindo o relato de Lenz (1997, p. 41):

Já comentei que os Brummers de uma maneira geral não


gozavam da simpatia de lusos e teuto-brasileiros, o que
era bem compreensível. Quando o Sr. Koseritz usou a
expressão de que os Brummers eram o fermento da
população alemã no Rio Grande do Sul, isto era apenas
uma maneira de se expressar e, ao menos naqueles
tempos, ninguém podia dar crédito, porque muitos
Brummer eram tudo menos eleitos de seu povo. Havia
entre eles muitos capazes, mas é de duvidar que eles
tenham colaborado efetivamente para o progresso da
germanidade. Se uma dúzia ou mais foram professores
nas colônias, fizeram-no para sobreviver e na primeira
oportunidade em que aparecia algo melhor, davam as
costas ao magistério. Só um número muito pequeno de
Brummer, como o velho e já falecido Michaelsen, em
Nova Petrópolis, persistiu na profissão de professor e nela
prestou bons serviços.

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A contribuição dos Brummer para a Educação

Michaelsen (1995, p. 39) destaca a importância que os


soldados Brummer, que aqui chegaram com um bom nível de
instrução trazidos da Alemanha, tiveram para com a educação na
região colonial. “Em 1872 Carl von Koseritz observou que mais
da metade dos professores das colônias alemãs eram Brummer e
foram eles que educaram muitos teuto-brasileiros, que tiveram
atuação destacada na vida gaúcha, no período de 1872 até 1920.”
Entre estes mestres se destacam Koseritz e Wichmann,
em Pelotas; Michaelsen e Oye, em Nova Petrópolis; Roehe, em
Campo Bom; Jurgensen, em Mundo Novo; Emílio Meyer, em
Novo Hamburgo; todas cidades do Rio Grande do Sul.
Kreutz (2003, p. 163), citando o jornal Deutsches
Volsblatt que, em edição de 19 de janeiro de 1922, faz referência à
formação cultural dos Brummer, afirma que além de dominarem
diferentes línguas, contribuíram substancialmente para o
associativismo, a difusão da imprensa e a participação política com
idéias e posições precisas sobre a organização econômico-social e
política, formando, com isso, uma elite intelectual entre os
imigrantes alemães que, ao se destacarem nos concursos para
professor estadual, promoviam a melhoria do magistério na época.
Ainda conforme Kreutz (idem, ibidem), “Por volta de 1870, mais
da metade dos professores na colônia era Brummer.”

No ano de 1853 casei e decidi fundar minha escola, por


conta própria. Inicialmente tinha nove alunos e mais
tarde treze. Entre estes o futuro profeta e médico
milagroso J. Maurer, esposo da famosa Jacobina.
Consegui elevar os meus rendimentos de 500 réis para
6.500 réis mensais. Naquele cargo privilegiado acabei
adquirindo um cavalo por 12 Mil réis. Lamentavelmente
o pobre animal tinha um olho só e rengo de uma perna.

João Jorge Maurer, citado por Costa (2004, p.115), diz


que:

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Um colono analfabeto que um dia afirmou ter ouvido


vozes celestiais que o aconselharam a curar seus
semelhantes. Ex-auxiliar de curandeiro João Jorge se
tornou famoso na região como o “wunderdoktor” doutor
maravilhoso. Jacobina Maurer, sua mulher, era acometida
por crises de ausência, sonambulismo e ataques do tipo
epilético, sintomas associados na colônia à capacidade de
curar.

Essas curas levaram à formação de um grande grupo de


seguidores composto de mais de 700 pessoas, moradores no morro
Ferrabrás, no atual município de Sapiranga/RS, que passaram a
ser conhecidos como Mucker ou, na memória local, um grupo de
fanáticos. Criaram uma espécie de comunidade isolada e, devido a
uma forma própria de viver que não seguiam nem o
protestantismo nem o catolicismo, religiões através das quais a
colônia alemã se dividia, passaram a ser hostilizados pela
população. Esse grupo, em 1873, passou a ser liderado por
Jacobina, acabando por serem mortos num combate que reuniu
colonos e soldados.
Continua a crônica de Frederico Michaelsen:

No dia 1º de maio de 1854 assumi como professor na


Linha Hortêncio, conhecida como ‘Picada dos
Portugueses’. Ali eu assinei um contrato por quatro anos,
recebendo a moradia e terras para plantar, além disso um
salário fixo de dez Mil réis mensais.
Devia lecionar para todas as crianças da comunidade cujo
número oscilava entre 30 e 40. Estas davam suas
contribuições mensais em moedinhas que somavam 13,
14 ou 15 Mil réis.
Além das minhas tarefas como professor estava ao meu
encargo o serviço da Igreja nos domingos quando o pastor
estivesse ausente. Este vinha de São Leopoldo, cada três
meses. Eu presidia as devoções, fazia as leituras bíblicas e
a leitura dos sermões além de iniciar os cânticos da
comunidade. Por esse trabalho recebia 20 Mil réis por
ano e de cada membro da comunidade uma ‘quarta’ de

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feijão preto7 e duas quartas de milho, in natura. Renda


extra: numa festa de noivado recebi ‘uma pataca’8 para
fazer o discurso oficial, além de ter o direito de comer e
principalmente beber à vontade! Mas a minha bagagem
espiritual! Levei vazia para casa. (Michaelsen mencionou
“sacola espiritual” do que o leitor pode deduzir que nada
aprendeu de importante naquela festa de modo a levá-la
vazia para casa.)
No dia 1º de maio de 1858 este contrato brilhante
chegou ao final. Sua renovação por mais quatro anos
significou um aumento de dois Mil réis mensais de modo
que passei a receber doze Mil réis fixos, e anualmente de
cada associado o dobro em produtos agrícolas: 2 quartas
de feijão preto e 4 quartas de milho, mas tive que assumir
o compromisso de conseguir prédicas novas pois as
antigas estavam muito maçantes!
Naquele período aconteceu a fundação de Nova
Petrópolis (1858) e os imigrantes que vinham da
Pomerânea, Saxônia e França ficavam retidos em “Linha
do Hortêncio”, pois não podiam tomar posse
imediatamente das suas terras. Se os novos colonos
tivessem algum dinheiro eu teria feito bons negócios, pois
morriam em grande número, principalmente as crianças,
e como não havia pastor no local o professor atendia
aquelas funções. Mas pela graça de Deus todos aqueles
foram entregues à terra. (Nota: Frederico Michaelsen
presidia os enterros gratuitamente, pois os colonos eram
muito pobres.)

Nova Petrópolis – A fundação da colônia

A fundação da colônia de Nova Petrópolis ocorreu em 7


de setembro de 1858, pelo presidente da Província do Rio Grande

7
Cfe. Dicionário Aurélio, uma medida inglesa de capacidade equivalente a 1,136
litro.
8
Moeda antiga de prata, no valor de 320 réis.

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do Sul, Conselheiro Ângelo Muniz Ferraz, voltada ao


assentamento de colonos alemães.
Piccolo em Contribuição para a História de Nova Petrópolis
(1989, p. 50), ao analisar os relatórios periodicamente
apresentados ao governador da província, “o relatório apresentado
por Ângelo Muniz Ferraz à Assembléia Provincial na sua 1ª
sessão de 1858, em 5 de novembro, é o melhor documento para
esclarecer as circunstâncias que determinaram a fundação de Nova
Petrópolis”. Transcrição de parte do referido relatório:

Achei reunidos muitos elementos para a prosperidade


dessa nova colônia, inclusive a melhor estrada de rodagem
que a natureza pode oferecer em terrenos de serra. As
águas são permanentes, cristalinas e abundantes; os
terrenos de uma fertilidade assombrosa; os matos
frondosos e ricos de madeiras, e com seus tabuleiros
convenientemente inclinados para receberem todos os
instrumentos aratórios. Em virtude disto, criei aí uma
colônia e mandei medir nesse lugar prazos coloniais e pela
sua posição e configuração de seu terreno a denominei
‘Nova Petrópolis’. No dia 7 de setembro do corrente ano,
sua instalação teve lugar. Para ali tenho encaminhado,
por várias vezes, 273 colonos sendo 158 homens e
mulheres 115.

Os colonos

Segundo o estudo de Piccolo (1989, p. 54):

Os primeiros imigrantes de Nova Petrópolis (de 1858 a


1859) foram na sua grande maioria originários da
Pomerânia, província da Prússia. Eram lavradores e
professavam a religião protestante (luteranos). Com os
pomeranos também vieram colonos provenientes da
Saxônia, em sua maioria igualmente lavradores e
protestantes. Em menor escala, vieram lavradores de
diversas procedências tanto protestantes como católicos
das províncias renanas da Prússia e Baviera; do Grão-

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ducado de Baden; Grão-ducado de Hessen; da Alsácia e


Silésia.

Continua a crônica de Frederico Michaelsen:

Em 1862 assumi a escola na Linha Nova onde também


recebi moradia e terras para plantar, 500 réis por cada
aluno, eram 40 a 50. No dia 08 de janeiro de 1867
assinei meu primeiro contrato oficial como professor em
Nova Petrópolis com o falecido Dr. José da Silva Flores
que na época era Diretor Geral do Ensino. Recebi 50 Mil
réis por mês. Este contrato foi renovado por duas vezes,
cada vês com a duração de um ano.

Ainda sobre a educação em Nova Petrópolis

Buscando complementar os dados sobre os primeiros anos


da formação do sistema de ensino de Nova Petrópolis, o relato de
Piccolo (1989, p. 82) registra que:

A 2 de setembro de 1864, o diretor da colônia de Nova


Petrópolis (Frederico Guilherme Bartholomay)
informava que nas linhas Olinda e Imperial havia nada
menos do que 104 menores, de ambos os sexos,
necessitados de instrução primária. Pedia, então que
fossem estendidos a Nova Petrópolis os benefícios da Lei
579, de 17 de maio de 1864, que autorizava a
presidência da Província a contratar professores
particulares para ensinarem as primeiras letras dentro das
colônias provinciais. Em 14 de setembro enviava nova
relação de menores necessitados de instrução primária;
eram 84, de ambos os sexos, das linhas Christina,
Sebastopol, Pirajá e Barros Pimentel.

Ainda no texto de Piccolo (1989, p. 98) encontra-se:

Em 1870 o relatório do Presidente João Sertório


registrava que a colônia possuía apenas duas aulas
subvencionadas, uma na povoação, cujo professor era

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Frederico Michaelsen, e outra na Linha Sebastopol, cujo


professor era Augusto Muxfeld. Existiam mais duas aulas
particulares, uma na Linha Imperial e outra na Linha
Pirajá em estado lastimoso. Os moradores das demais
linhas pediam a criação de outras aulas públicas. Em
1873, a primeiro de março, o presidente Dr. João Pedro
Carvalho de Moraes, falando na abertura da 1ª sessão da
15ª legislatura, dava o seguinte quadro da Colônia de
Nova Petrópolis: Quanto a instrução primária pública,
havia 36 alunos na aula criada na povoação, 28 alunos
na aula na Linha Sebastopol e 31 alunos em aula da
linha Olinda. Todas essas aulas foram criadas por Lei
Provincial nº 771, de 4 de maio de 1871.

As terras de Michaelsen

Dando continuidade ao texto de Piccolo (1989, p. 62):

Pelo cadastro pode-se perfeitamente verificar que muitos


colonos receberam menos e outros mais de 100.000
9
braças quadradas como prescrevia a lei. Os prazos eram
desiguais, não só em áreas como em qualidade. Um
mesmo prazo podia ter partes boas e partes ruins. E nem
sempre a área pequena e a má qualidade do terreno foram
supridas com outras concessões. Na Linha Povoação o
maior foi o de nº 5, com 100.500 braças quadradas,
distribuído, em 1863, a Frederico Gilherme
Bartholomay, que pagou o valor no prazo e vendeu-o, em
1866, ao professor Frederico Michaelsen, natural de
Hamburgo, protestante.

A condição de proprietário rural foi determinante para que


Frederico Michaelsen tenha fixado raízes na colônia de Nova
Petrópolis e lá prestado serviços à comunidade. É nessa mesma

9
O estudo mais detalhado sobre o Projeto de Restauração Católica estudado na
Tese de Doutorado do professor Lúcio Kreutz se encontra no capítulo 6 - O
professor paroquial católico teuto-brasileiro: função religiosa, sociocultural e política
(2003, p. 157 a 192).

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região que se encontra a maioria de seus descendentes, muitos


deles ainda na condição de pequenos proprietários, praticando a
agricultura no interior do município.

A trajetória como professor de escola pública

Os primeiros contratos do professor Frederico foram com


a Província de São Pedro do Rio Grande do Sul – Município de
São Leopoldo e Distrito de Porto dos Guimarães – São Sebastião
do Caí, para a cadeira de Nova Petrópolis. Os dados que seguem
foram coletados pela Escola Estadual Padre Werner, Nova
Petrópolis, e disponibilizados para a pesquisa de Michaelsen
(1995, p. 85), cuja fonte é o Inventário de códices da Instrução
Pública – I-86; Arquivo Histórico de Porto Alegre – página 65. A
Escola da Povoação de Nova Petrópolis foi criada pela Lei 771, de
04 de maio de 1871.
Frederico Michaelsen foi nomeado através de portaria da
Presidência, em 20 de outubro de 1876, para interinamente reger
essa cadeira. Entrou em exercício a 8 de janeiro de 1871, por
despacho do Diretor Geral. Removido para a cadeira de Colônia
Santo Ângelo na Cachoeira, pelo ato de 20 de fevereiro de 1882,
e restabelecida pela Lei nº1461, de 30 de abril de 1884.

1876; Naquele ano todos os contratos foram cancelados


e eu fiz um exame como normalista e fui contratado
novamente para o mesmo cargo, no mesmo lugar.
Lecionei por 10 anos como professor interino, com 80
Mil réis mensais.
Neste cargo permaneci até a Proclamação da República
em 1889 quando recebi o título de efetivo, com 100 Mil
réis.

Por ato de 10 de julho de 1891 tornou-se efetivo no


magistério.

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Em 1891 recebi um abono por 25 anos de serviço, de


25%, chegando então a 125 Mil réis mensais. No ano de
1894 os salários dos professores foram aumentados e
passei a receber 170 Mil réis mensais.

Por ato de 3 de setembro de 1895 reverteu para a sede de


Nova Petrópolis. Em 5 de outubro de 1895 foi-lhe mandado
abonar a gratificação correspondente a uma parte de seus
vencimentos, por ter completado 25 anos de efetivo serviço no
magistério.

A importância da escola e do professor


numa comunidade colonial alemã

Rambo (2003, p. 69) faz referência à escola na colônia


alemã como um dos instrumentos para a sustentabilidade dos
valores culturais e religiosos. Conforme o autor, “em todos os
núcleos coloniais cuidou-se, então, desde o início, de fundamentar
a escola e a educação em bases sólidas.”
A participação comunitária era imprescindível para a
construção, instalação e consolidação da escola. A comunidade
deveria estar presente e participando ativamente em todos os
momentos da vida escolar.
Ainda, segundo Rambo (ibidem), “dentre os membros da
comunidade escolar elegia-se a diretoria da escola (Schulvorstand).
Composta de poucas pessoas, a diretoria encarregava-se
diretamente da construção do prédio da escola; preocupava-se
também com a instalação interna e com o material didático.”
Outro papel importante no encargo da diretoria era a
seleção do professor. Objetivando a sua integração à comunidade,
oportunizava-lhe, além da remuneração, casa e terra para trabalhar
com sua família. Em contrapartida, essa mesma diretoria
fiscalizava seu desempenho profissional e sua conduta social.
Dessa forma, mantinham junto à escola, além do espírito
comunitário, o controle sobre o modelo educacional a que se
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propunham, perpetuando valores fundamentais para a


consolidação da cultura transplantada.
Rambo (2003, p. 70.) se refere à escola como fator de
orgulho para as comunidades:

A quase obsessão dos colonizadores alemães pela escola


ultrapassou em muito o simples dado de poder contar
com uma. Transformaram-na no elemento estratégico
fundamental, capaz de garantir-lhes a sobrevivência e o
progresso. Na escola encontravam a fórmula pela qual
terminariam por se firmar, em definitivo, como cidadãos
brasileiros.

Quanto à atividade docente, esta consistia, além dos


ensinamentos da língua e de uma aritmética centrada em
necessidades das práticas no cotidiano, básicas para o
gerenciamento da vida produtiva nas colônias, na transmissão dos
valores religiosos e a continuidade dos valores culturais essenciais
na construção da cidadania. A disciplina era uma premissa para a
consolidação dos princípios éticos e morais, tanto no campo
familiar quanto no social. Mesmo havendo sistemas educacionais
diferenciados entre as comunidades evangélicas e católicas, a
convivência social nas colônias cultivava os mesmos valores. Tanto
o professor paroquial católico como o professor comunitário
estavam submetidos ao mesmo controle ético e o saber ler era uma
exigência fundamental para a prática religiosa entre a comunidade
protestante.
A presença constante desses valores na vida comunitária é
reforçada por Rambo. Para o autor (2003, p. 71),

alertava-se para o fato de que uma comunidade ou uma


família somente podem funcionar corretamente quando
há respeito mútuo, quando são observados os limites dos
direitos e deveres, e à autoridade se reconhece o seu lugar
legítimo.

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Nas antigas colônias alemãs, freqüentemente encontram-


se modelos distintos de escolas, segundo a vinculação a uma
crença religiosa específica. Como nas áreas coloniais havia a
presença de colonos, tanto católicos como luteranos, as escolas,
portanto, seguiam os moldes ditados pela hierarquia religiosa e
serviam de instrumento da consolidação e continuidade da
vinculação religiosa trazida da Europa.
Lúcio Kreutz (2003, p. 157), ao estudar o papel do
professor paroquial na comunidade teuto-brasileira vinculada à
Igreja Católica Romana, cuja presença era imprescindível na
estrutura e organização social e política da comunidade, afirma
que cabia ao professor um papel típico nas comunidades coloniais:

As funções do professor paroquial junto às comunidades


rurais católicas teuto- brasileiras do Rio Grande do Sul
(RS) eram muito mais amplas e diversificadas do que as
meramente docentes e restritas à escola. Ele foi um
elemento de unificação, um agente de síntese e promoção
das percepções do grupo humano no qual se inseria
ativamente seja no campo social, político, religioso ou
cultural.

No desempenho dessa função, conforme o local onde ela


se concretizava, o professor recebia diferentes denominações,
porém todos com marcante identidade comunitária. No estudo de
Kreutz (2003, p. 161), encontram-se expressões dadas a essa
mesma figura: “professor paroquial” ou Pharrschulleherer. Entre
elas, “professor comunitário” ou Gemeindelehrer; “professor
colonial” ou Kolonieleher; “professor de picada” ou
Pikadenschullehrer. Esse mesmo estudo define o termo “colônia
alemã” como um conjunto de núcleos comunitários rurais
estruturados e habitados por imigrantes provindos da Alemanha e
seus descendentes.
Para Kreutz (2003), compreender o papel destinado a esse
professor remete à compreensão do projeto de Restauração
Católica Regional, coordenado pelos padres jesuítas alemães que,

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por meio dos professores, visavam dinamizar nas comunidades


rurais a formação e animação religiosa e cultural9.
Quanto às comunidades luteranas, Walter Koch (2003)
examina a escola comunitária evangélica sob o prisma de um
contexto social específico num ambiente novo – a colônia.
Segundo o autor, as escolas alemãs seguiam modelos distintos e
eram conhecidas como “escolas evangélicas”. Para efeito desse
estudo, o foco incidirá sobre o modelo comunitário que consiste
numa estrutura de vida em comunidade, fundamental nas áreas
coloniais para assegurar uma educação cristã-evangélica aos filhos
de seus seguidores.
Afirma Koch (2003, p. 193):

Foram elas as primeiras a surgir, na falta de um sistema


educacional oficial suficientemente abrangente,
oferecendo de início apenas o ensino fundamental. Eram
as Gemeindeschulen, nas quais freqüentemente o pastor
era o único professor. Quando a comunidade não tinha o
pastor próprio, recorria-se à contratação de qualquer
pessoa, mais ou menos habilitada para o cargo.

Michaelsen descreve em sua carta, como foi citado


anteriormente, o seu exercício em algumas das funções religiosas
na falta do pastor e se deduz que, devido a sua vinculação à Igreja
Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, o modelo de escola a
que servia, mesmo sendo professor de ensino público, seguia a
tradição evangélica, tendo a comunidade como base de
sustentação.
E assim termina a crônica de Michaelsen:

Quem tiver vontade e persistência suficiente, pode


imitar-me.
Nova Petrópolis, 30 de junho de 1898
Frederico Michaelsen

Hoje, na cidade de Nova Petrópolis/RS, passados 106


anos do falecimento do professor Frederico, o nome Michaelsen

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continua sendo uma referência. Entre as homenagens que lhe


foram prestadas, destacam-se nomes de avenida e de escola. Seu
túmulo está localizado no Parque do Imigrante, junto a uma
réplica de aldeia alemã do início da colonização e da primeira
igreja protestante (Luterana) erguida na colônia. São inúmeros os
seus descendentes, destacados na política, no comércio, na
educação, na cultura, na agricultura, no jornalismo e em serviços
reconhecidos pela contribuição dada à história e à sociedade local.

Referências

FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Novo Aurélio século


XXI: o dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Nova
Fronteira, 2000.

FLORES, HILDA. Prefácio. In: Memórias de Brummer. Porto


Alegre: EST, 1997.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.


Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

KOCH, Walter. A escola evangélica teuto-brasileira. In. Etnia e


Educação: a escola “alemã” do Brasil e estudos congêneres.
Florianópolis: Ed. da UFSC; Tubarão: Editora Unisul, 2003.

KREUTZ, Lúcio. O professor paroquial católico teuto-brasileiro:


função religiosa, sociocultural e política. In: Etnia e Educação: a
escola “alemã” do Brasil e estudos congêneres. Florianópolis: Ed.
da UFSC; Tubarão: Editora Unisul, 2003.

KREUTZ, Lúcio. Magistério e imigração alemã: 1995. Tese


(Doutorado em Educação) – Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo, 1985.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 30 p. 181-205, Jan/Abr 2010.


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LENZ, Cristóvão; SCHAFFER, Henrique; SCHNACK, Jorge


Júlio. Memórias de Brummer. Porto Alegre: EST, 1997.

MICHAELSEN, Ido Inácio. Família Michaelsen no Sul do Brasil.


Nova Petrópolis, RS: Editora Amstad, 1995.

PICCOLO, Helga L. Langraf. Contribuições para a história de


Nova Petrópolis. Caxias do Sul, RS: EDUCS,1989.

RAMBO, Arthur Blasio. O teuto-brasileiro e sua identidade. In:


Etnia e Educação: a escola “alemã” do Brasil e estudos congêneres.
Florianópolis: Ed. da UFSC; Tubarão: Editora Unisul, 2003.

SCH, A. Memórias e vivências de um velho Brummer - pelos 60


anos da chegada de legião alemã ao RS. Introdução. In: Memórias
de Brummer. Porto Alegre: EST, 1997.

SCHMITZ, Arsênio José Pe. Uma nova imagem para Nova


Petrópolis. São Leopoldo, RS: Publicação do Autor, 1975.

SEIBT, Renato U. Nova Petrópolis, RS. Jornal A Ponte, nov.


1987. (Tradução de texto Publicado no Deustdche Zeitung, Nº
52, em 01.07.1889).

Luiz Alberto de Souza Marques é doutor em Eduação e


atualmente é professor da Universidade do Sul de Santa Catarina
- Unisul/SC. E-mail: luiz.marques@unisul.br.

Recebido em: 10/12/2008


Aceito em: 20/12/2009

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 30 p. 181-205, Jan/Abr 2010.


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NOS TRAÇOS DE CALIGRAFIA,
INDÍCIOS DE UM TEMPO ESCOLAR
Luciane Sgarbi S. Grazziotine
Carla Gastaud

Resumo
O trabalho examina um caderno de caligrafia como indício expressivo
da cultura escolar, esse caderno foi escrito por uma aluna do 4º ano
primário da Escola Duque de Caxias, do município de Bom Jesus,
Rio Grande do Sul, em 1943. A análise detém-se em dois aspectos
deste artefato cultural e pedagógico: externalistas e internos. Os
primeiros dizem respeito particularmente a análise das relações entre
o conteúdo das frases/palavras que servem como exercícios de
caligrafia e o contexto social, político e cultural da época, em uma
produção de sentido que está presente nos “enunciados” propostos
pelo professor e reproduzidos pela aluna. Os segundos se referem à
materialidade do caderno, questões gráficas da escrita, capa, tipo de
letra, ferramenta utilizada para a escrita, com o entendimento que o
objeto não existe para além de seu suporte. A análise do caderno de
caligrafia de Dona Rosa articula aspectos da cultura escolar relativas a
essa região geográfica com as correntes pedagógicas da época e os
padrões sociais vigentes.
Palavras-chave: Cultura escolar, Memória, História da educação.

ON THE STROKES OF CALLIGRAPHY, SIGNS OF


SCHOOL TIMES
Abstract
This piece of work examines a calligraphy notebook as expressive
representation of school culture, this notebook was written by a
female student in the 4th year of primary school at Escola Duque de
Caxias, in the city of Bom Jesus, Rio Grande do Sul, in the year of
1943. The analysis concentrates in two aspects of this cultural and
pedagogic object: external and internal. The first refer particularly to
the analysis of the relation between the content of sentences/words
which work as calligraphic exercise and the social political and
economical context at the time, in a production of meaning present
on the 'titles' proposed by the teacher and reproduced by the pupil.
The later refer to the materiality of the book, graphic issues on the
writing, the cover, type of writing, the tool used for writing, with the
understanding that the object does not exist outside its materiality.
The analysis of the notebook of Mrs Rosa Maria Rosa articulates

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 30 p. 207-226, Jan/Abr 2010.


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208
aspects of the related to this geographic region with the pedagogic
practices of the time and operating social codes.
Keywords: School culture; Memory; History of education.

EN LAS LÍNEAS DE CALIGRAFIA, INDÍCIOS DE UN


TIEMPO ESCOLAR
Resumen
El trabajo examina un cuaderno de caligrafia como indício que
expresa una cultura escolar, este cuaderno fué escrito por uma niña
del 4º año de primário de la Escuela Duque de Caxias, localizada en
la municipalidad de Bom Jesus, en el estado de Rio Grande do Sul.
El cuaderno fué hecho en el año de 1943. El análisis se detiene a dos
aspectos de este artefacto cultural y pedagógico: externos y internos.
Los primeros dicen respecto al análisis de las relaciones entre el
contenido de las frases/palabras que sirven como actividades de
caligrafia y el contexto social, político y cultural de la época, en una
producción de sentido que está presente en los “enunciados”
propuestos por el profesor y reproducidos por la alumna. Los
segundos se refieren a la materialidad del cuaderno, cuestiones
gráficas de la escrita, capa, tipo de letra, herramienta utilizada para la
escritura, con la comprensión de que el objeto no existe para mas allá
de su sustentáculo. El análisis del cuaderno de caligrafia de Doña
Rosa vincula aspectos de la vida escolar relativos a esta región
geográfica, con las vertientes pedagógicas de la época y con los
padrones sociales de aquel tiempo.
Palabras clave: Cultura escolar; Memoria; Historia de la educación.

DANS LES TRAITS DE CALLIGRAPHIE – LES INDICES


D’UN TEMPS SCOLAIRE
Résumé
Dans ce travail on examine un cahier de calligraphie comme un
indice expressif de la culture scolaire. Ce cahier a appartenu à une
élève de la quatrième année de l’école primaire Duque de Caxias, de
la ville de Bom Jesus, Rio Grande do Sul, en 1943. L’analyse se fixe
sur les aspects externes et sur les aspects internes de cet objet culturel
et pédagogique. Les premiers se rapportent particulièrement à
l’analyse des relations entre le contenu des phrases/mots qui servent
aux exercices de calligraphie et le contexte social, politique et culturel
de l’époque, dans une production de sens qui est présente dans les
« énoncés » proposés par le professeur et reproduits par l’élève. Les
autres aspects se rapportent à la matérialité du cahier, aux questions
graphiques de l’écriture, à la couverture, au type de lettre, à l’outil
utilisé pour l’écriture, en comprenant que l’objet n’existe pas au-delà

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de son support. L’analyse du cahier de calligraphie de Dona Rosa met
en rapport des perspectives de la culture scolaire appartenant à cette
région géographique avec les courants pédagogiques de l’époque et
avec les paradygmes sociaux en vigueur.
Mots-clés: Culture scolaire; mémoire; histoire de l’éducation.

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“nada desperta em mim mais saudades que o jogo das


letras. [...] Acomodavam-se elegantes no atril inclinado,
cada qual perfeita, e ficavam ligadas umas às outras
segundo a regra de sua ordem, ou seja, a palavra da qual
faziam parte como irmãs. [...] Admirava-me como tanta
modéstia podia coexistir com tanta magnificência. Era
um estado de graça. E minha mão direita que,
obedientemente, se esforçava por obtê-lo, não conseguia.”
(W. Benjamin)

A caligrafia é uma das operações, realizadas na escola,


envolvidas no processo de aquisição das competências gráficas.
Estudar as práticas de caligrafia, é uma possibilidade de
“comprender de modo crítico e interpretar históricamente [ ] los
testimonios de la actividad de escritura de la humanidad que
llegaron hasta nos otros” (Petrucci, 2003, p74). Esse trabalho
examina um caderno de caligrafia escrito por uma aluna do 4º ano
primário da Escola Duque de Caxias, do município de Bom Jesus,
Rio Grande do Sul, Brasil, cidade situada nos Campos de Cima da
Serra, a 270km da capital do estado. O caderno, como indício
expressivo da cultura escolar, foi preenchido em 1943, tempo em
que o exercício da caligrafia era uso corrente na escola primária.
Caligrafia, segundo Bastos e Stephanou, “é arte de
escrever com letra bela e bem formada [ ] Busca aperfeiçoar e
afinar os sentidos da mão e a ortopedia do corpo, condições
fundamentais para desenvolver hábitos de ordem, disciplina e
estética do texto” (2008, p2). A análise do caderno de caligrafia,
que propomos aqui, detém-se, entre outros, nos aspectos
externalistas desse artefato cultural e pedagógico. Particularmente,
na análise das relações entre o conteúdo das frases ou palavras que
servem para os exercícios de caligrafia e o contexto social, político
e cultural da época, com uma produção de sentido desejada,
presente nos “enunciados” propostos pelo professor e reproduzidos

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pela aluna1. Aspectos relativos a uma análise internalista, como a


materialidade do caderno, questões gráficas da escrita, capa, tipo
de letra, ferramenta utilizada para a escrita, também são
analisados.
A cidade de Bom Jesus, colonizada por imigrantes
alemães, italianos e portugueses, não apresenta um predomínio
étnico acentuado. A cidade teve início como núcleo de passagem
para os tropeiros que conduziam gado a caminho de São Paulo,
no final do século XVIII, e ali encontravam abrigo e pastagens. O
primeiro povoado iniciou em 1878, com a criação da Capela de
Bom Jesus do Bonfim pelos açorianos que se juntaram aos bugres
já habitantes da região. Os alemães começaram a chegar em
1893, os italianos na década seguinte. A emancipação se deu em
1913.2
Em 1943, o ano do caderno de caligrafia, o acesso à
cidade era difícil, a viagem da capital do Estado até o município
demorava em média dois dias, havia que dormir no caminho. Os
jornais demoravam a chegar. O rádio cumpria um importante
papel, através dele o mundo chegava à comunidade, segundo Elias
Tomé Saliba, “equipada com transmissores de 50 kilohertz, em
ondas médias e curtas, a Rádio Nacional chegava com uma
recepção quase perfeita a boa parte do país” (1998, 350). O
Repórter Esso, a Rádio Nacional, a Rádio El Mundo de Buenos
Aires, traziam notícias da guerra e do Brasil.
Como diz Chauí, o Estado fascista e populista

1
Conforme entrevista, concedida por Rosa Maria Rosa, pertencente ao Acervo de
Memória Oral do Município de Bom Jesus, RS.
2
Para saber mais sobre a formação do município, ABREU, Ennio Farias e
ABREU, Marisa da Costa, Bom Jesus - histórias de uma cidade. Caxias do Sul:
UCS-EST, 1977; ABREU, Ennio Farias e ABREU, Marisa da Costa. Bom
Jesus – duas épocas. Caxias do Sul: UCS-EST, 1981 e SANTOS, Lucila
Sgarbi; MACIEL Vera Lúcia Maciel (orgs). Bom Jesus na Rota do tropeirismo
no Cone Sul.: EST 2004

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[...] usava diretamente os meios de comunicação: os


programas (de rádio) deviam “decantar as belezas naturais
do país, descrever as características pitorescas das regiões
e cidades, irradiar cultura, enaltecer as conquistas do
homem em todas as atividades, incentivar relações
comerciais” e, voltando-se para o homem do interior,
contribuir "para seu desenvolvimento e sua integração na
coletividade nacional". (2000, p.37)

A Escola Duque de Caxias - o nome da escola já faz


alusão ao herói imperial da integração nacional, exaltado pelo
Estado Novo - primeira escola particular da cidade, não tem
registros nos arquivos do município. A primeira referência à sua
existência apareceu no depoimento da professora Rosa Maria
Rosa, autora do caderno de caligrafia, colhido para integrar o
Acervo Municipal de Memória Oral, do Arquivo Histórico de
Bom Jesus. Outros depoimentos corroboraram as informações
sobre a escola Duque de Caxias e seu proprietário, o professor João
Telatin.
D. Clotilde Camargo Grazziotin relata em sua entrevista3
que

o professor era Seu João Telatin, a aula era particular, o


professor lecionava na cidade para muitos alunos e vinha
pra fazenda dar aula só pra mim, com 12 anos fui para o
internato em Vacaria, a aulas do professor Telatin
permitiram que eu acompanhasse o internato.

A Escola Duque de Caxias funcionou somente na década


de 40, tinha caráter misto e oferecia a possibilidade de internato
para alunos que vinham de outras localidades. Em seu depoimento
ao Arquivo Histórico de Bom Jesus, Rosa conta suas experiências
escolares, que foi alfabetizada em casa pela mãe, que veio para
Bom Jesus onde estudou com o Prof. Telatin e sua esposa até o

3
Entrevista realizada em 1997 faz parte do acervo do Arquivo Histórico de Bom
Jesus.

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admissão, e oferece detalhes sobre o casal de professores e sobre a


Escola Duque de Caxias,

"eles moravam em cima, embaixo tinha duas salas de


aula, uma cozinha e o banheiro. [...] Faziam festas de
páscoa, piquenique - a gente ia de ônibus. Tinha São
João com fogueira e tudo. [...] Eles eram católicos,
preparavam para a primeira comunhão e crisma, eram
bem amigos do Padre Geraldo. Tinham compromisso
com as crianças de baixa renda – meninas bem
pobrezinhas estudavam lá. [...] A escola era bem
estruturada, tinha biblioteca, os cadernos eram
timbrados, os alunos desfilavam no sete de setembro,
tinha hora cívica.”

Em entrevista posterior, D. Rosa contou que os castigos


físicos, relatados por tantos alunos da época não eram empregados
naquela escola, “no máximo saíam da sala de aula por algum
tempo para pensar”. Indagada sobre as práticas da sala de aula,
disse que os exercícios de caligrafia eram semanais e não tinham
caráter de punição.
Expressar-se corretamente por escrito e de forma legível
era importantíssimo (mais do que verbalmente) porque, diz J.I.
Roquette em seu Código do Bom-Tom, “escripta manent”4 –a
escrita permanece. E predica sobre o que chama de comunicação
epistolar

Admirável invento que aproxima os ausentes dos


presentes, encurta as distâncias, mitiga as saudades,
adoça o dissabor da separação, estreita os vínculos da
amizade, nutre n’alma o fogo da esperança, e ainda
depois da morte conserva um monumento durável da
5
afeição e ternura com que dois corações se amaram.

4
Roquette, JI, organizado por Lilia Moritz Shwarcz. 1997: 267.
5
Id. Ibid. p. 266.

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Entretanto, para que tal comunicação - essencial para


uma pessoa que deseja ser reconhecida como polida, bem criada e
educada - se dê a contento, recomenda por primeiro “aos filhos”
escrever claramente, com boa letra:

Se não soubesse que tendes boa letra, a primeira coisa


que vos diria é que, antes de entrar em comércio epistolar
com alguma pessoa respeitável e autorizada era preciso
que aprendêsseis a escrever, se não perfeitamente pelo
menos de um modo inteligível, porque as pessoas a quem
escreveis não estão obrigadas a adivinhar o que Ihes
quereis dizer ou a perder o seu tempo a decifrar o que lhes
6
escreveis.

A caligrafia era uma atividade usual7 nas escolas e


declaradamente servia para exercitar a mão na tarefa capacidade de
produzir uma escrita homogênea, harmônica e elegante. A caneta
esferográfica ainda não existia, “escrevia-se com caneta-tinteiro.
Algo que, para o bom uso, exigia paciência, certa destreza e,
sobretudo cautela. O perigo de sujar papéis, mesas e roupas era
sempre iminente. Enfim, escrever, no passado pré-caneta
esferográfica, dava trabalho”8 Imagine-se o empenho que devia ser
posto em preencher os cadernos de caligrafia para levar essa tarefa
a bom termo.
O caderno de caligrafia9, objeto desse trabalho, fazia parte
do material escolar dos alunos das quartas séries da Escola Duque
de Caxias em 1943. Ele mede 23 x 16 cm, 16 folhas, com 13
linhas duplas em cada página. A capa, em papel rosa, traz

6
Id. Ibid. p. 268
7
O uso da caligrafia na sala de aula, não se opõe ao ideário escolanovista,
dominante no período, ao contrário o reforça na medida em que segue a lógica da
racionalidade, disciplinarização e da homogeneização. Ver Monarcha, 1989.
8
Ferreira, 2004: 279.
9
O exemplar pertence ao acervo da Prof. Lucila Maria Sgarbi Santos.

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impresso em preto os logotipos da Escola Duque de Caxias e da


Editora Pão dos Pobres. Escrito a caneta-tinteiro traz o nome da
aluna e o uso que terá, nas linhas pontilhadas destinadas a esse
fim.
Todas as páginas foram preenchidas com letra cursiva e
trazem uma “nota”, um valor atribuído pelo professor que não
guarda relação aparente com a qualidade do trabalho realizado pela
aluna. Não foi possível estabelecer nenhuma regularidade entre a
avaliação do professor e alguma característica, erro ou borrão do
caderno de caligrafia. A nota parece ser atribuída de maneira
arbitrária.
Em cada folha do caderno uma frase era apresentada pelo
professor e repetida, como é da natureza do exercício da caligrafia,
da primeira à última linha pela aluna.
As frases que lemos no caderno algumas vezes carecem de
sentido por terminarem abruptamente. A interrupção da frase e
mesmo de uma palavra ao final da linha torna alguma delas
incompreensíveis para nós que, provavelmente, eram significativas
para os coetâneos. Algumas ainda são próximas a nós, como “a
preguiça é mãe de todos...” 10 um ditado usado ainda hoje e por isso
sabemos o final da frase como se escrito estivesse. Por outro lado,
a frase “onde não entra luz não entra...” 11 não é mais de uso
corrente12 e não conseguimos depreender o que não chegou a ser
escrito. Pelo teor dominante nas outras frases do caderno, pode-se
especular sobre um provável caráter moralizante, mas é impossível
sabê-lo. Pode ser uma modificação do provérbio de origem
portuguesa “Onde não entra o sol entra o médico”, existente
também em italiano, como também pode ser uma referência à luz
do saber ou da fé.

10
Frase número 28 do caderno.
11
Frase número 32 do caderno.
12
Não conseguimos achar ninguém que pudesse completar o ditado.

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Algumas frases são inteligíveis e não vão deixar de ser


num futuro previsível, tal como “Pedro Alvares Cabral desco...”,
que as crianças continuam lendo e escrevendo.
Se algumas frases param no meio, outras continuam na
página seguinte13, justamente as únicas que trazem nomes
próprios e que aludem ao Presidente da República e ao Intendente
do Estado, valorizando os grandes nomes da nação. Ressaltar esses
políticos ilustres no cenário da época vai no sentido de uma
história fundamentada nos “grandes homens” que mitifica os
vultos históricos da nação e cria nas crianças o sentido de sua
importância.
Encontramos assim que “O presidente da República é o...”
“Dr. Getúlio Dorneles Vargas”, e que “O interventor federal é o Tte.
Cel...” “Ernesto Dorneles e é gaucho”. Esse segundo conjunto se
enquadra na campanha que o Rio Grande do Sul (mas não
somente ele) desenvolvia para que os intendentes nomeados fossem
naturais do estado.
Além disso, essa frase, formada pelas linhas de duas
páginas diferentes, é datada: o Tte. Cel. Ernesto Dornelles14 foi
intendente no período de 11/9/1943 a 1/11/1945 o que permite
estabelecer que a referida frase foi escrita, depois da posse do
intendente, entre setembro de 1943 e o final do ano letivo.
O conjunto de trinta e duas frases “casuais” do caderno de
caligrafia foi por nós inventariado e as sentenças agrupadas
conforme o seu conteúdo. Nesse processo identificamos três
categorias: frases cívicas, frases moralizantes, frases neutras.
Classificamos como cívicas as frases que trazem idéias
nacionalistas e ufanistas, ressaltando a beleza, a pujança e a
natureza sem par. Frases que produzem sentimentos de orgulho,
de pertencimento e civismo como a que ocupa a terceira página do

13
Quando as frases aparecem diferentes a cada linha - “cabendo” mais
progressivamente – reproduzimos aqui a frase mais longa.
14
Gaúcho de São Borja e parente de Getúlio Vargas.

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caderno, “A nossa pátria é rica e bela”. Essas idéias estavam no ar,


talvez através dos programas de rádio desse período, de que fala
Chauí15. A essa primeira frase seguem-se outras de mesmo
caráter16: “Salvemos a nossa pátria”, “Brasil capital Rio de Janeiro”,
“O Brasil é meu paiz”, “O presidente da República é o...”, “Dr.
Getúlio Dorneles Vargas”, “Amazonas capital Manaus”, “O
interventor federal é o Tte. Cel...”, “Ernesto Dorneles é gaucho”, “O
Brasil é o maior da América”, “Pedro Alvares Cabral desco...”
“Quem não ama sua pátria é...”, “Ama com fé e orgulho a tua pa..”.
Esse bloco pode ser subdividido em dois: um conjunto de
frases generalizantes relativas ao orgulho e à grandeza da pátria e
do Brasil e outro relativo a conhecimentos geográficos e históricos
como a capital do Amazonas ou o nome do presidente da
república. O primeiro pretende um efeito direto: ama tua pátria, o
segundo parece procurar identificação e integração: conhecer para
amar. Ambos buscam produzir sentimentos de pertença. Nesse
sentido, escreve Souza que, neste período “a educação passa a ser
vista como instrumento de construção da unidade nacional” que
deveria ser instituída e mantida “a partir da incorporação e/ou
eliminação de elementos heterogêneos e estranhos ao projeto de
nacionalidade proposto pelo Estado Novo”. (2004, p.104)
Todas essas frases devem ser entendidas no contexto da
Era Vargas, da Segunda Guerra Mundial e dos efeitos
nacionalistas que ela produz na sociedade brasileira. No ano de
1942 havia manifestações nas ruas exigindo que o Brasil
declarasse guerra às potências do Eixo, o que aconteceu em 31 de
agosto. Os habitantes de Bom Jesus, como todos os brasileiros,
ouviram pelo rádio a declaração de guerra:

Em legítima defesa de nossa honra, fizemos o que nos


cumpria. Declaramos o estado de beligerância com os

15
Op Cit. p.2
16
Reproduzidas aqui na ordem em que estão no caderno: 6, 7, 9, 10, 11, 14,
15, 16, 22, 23, 29 e 31.

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agressores e nos tornamos aliados das nações que


defendem os princípios da lealdade e a autodeterminação
dos povos, contra os que preferem a política de presa. [...]
não desejávamos a guerra. Tivemo-la, entretanto, e o que
agora nos cabe fazer está na consciência de todos os
brasileiros. (Silva, 1980, p.61)

Em seu depoimento, Rosa valoriza o traço patriótico do


perfil do professor Telatin, “...ele era muito patriota.”, diz também
que o professor tinha um sotaque estrangeiro carregado e enfatiza
seu civismo “...se hasteava a bandeira todos os dias” e “...se cantava
o Hino em todas as datas comemorativas”. Isso corrobora Chauí
quando afirma:

durante o Estado Novo (1937-45), a luta contra a


dispersão e a fragmentação do poder enfeixado pelas
oligarquias estaduais (ou a chamada "política dos
governadores") e a afirmação da unidade entre Estado e
nação, corporificados no chefe do governo, levaram,
simbolicamente, à queima das bandeiras estaduais e à
obrigatoriedade do culto à bandeira e ao hino nacionais
nas escolas de todos os graus. (Chauí, 2000, p.37)

Em 1943, ano em que Rosa Maria Rosa preencheu seu


caderno de caligrafia, a FEB, (Força Expedicionária Brasileira),
foi estruturada. Em 1944 o Brasil enviou as primeiras tropas para
a guerra na Europa. Estando o país em guerra, pode-se pensar que
as frases de conteúdo patriótico cumpriam duplo papel:
desenvolver nos alunos o sentimento patriótico e reafirmar para o
professor italiano, seu próprio pertencimento e lealdade à pátria de
adoção.
Sem esquecer as muitas e diferentes maneiras de
apropriação possíveis por parte das crianças, pode-se dizer que no
caso da aluna Rosa Maria Rosa, informante nesse artigo, o
professor Telatin parece ter tido sucesso em desenvolver nos
alunos o sentimento patriótico. O teor do caderno de caligrafia
pode ser reconhecido no discurso por ela escrito e declamado na

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solenidade do dia da bandeira em 19 de novembro de 1943, que a


autora guarda até hoje.

No discurso reproduzido acima17 a autora realça as


qualidades pátrias representadas na bandeira nacional. Alinha
chavões e superlativos, cores e adjetivos para dizer que a terra é
rica, a natureza é generosa e o quanto essas características estão
bem simbolizadas nas cores do “pano sagrado”, expressando o
fundo patriótico que permeia tantas das frases da caligrafia.

17
O original integra o acervo da Prof. Lucila Maria Sgarbi Santos.

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Sob a designação de moralizantes, reunimos as frases que


ressaltam positivamente atitudes desejadas e desabonam
comportamentos considerados inadequados, como "Devemos
aproveitar bem o tempo”, frase encontrada na primeira página do
caderno. Na seqüência aparecem18: “Devo fazer silêncio na escola”,
“O aluno obediente é estimado”, “Devemos fazer silêncio na aula”,
“Devo atender mais o professor”, “Em silêncio aprenderas com mais
faci...”19, “Faça o bem sem olhar a quem”, “O menino mentiroso é
feio”. “Jesus Cristo morreu na cruz”, “Resai de manhã e a noite”, “A
melhor bebida é a água pura”, “Devemos respeitar as pessoas ido...”,
“Falem pouco e estudem muito”, “A preguiça é mãe de todos...”, “Os
países civilizados são os mais”, “A mentira é um grande mal” e
“Onde não entre luz não entra...” 20
Nessa relação, assim como na anterior, também se pode
identificar duas vertentes, uma relacionada diretamente à escola e
com o comportamento de um bom aluno, “Devo fazer silêncio na
escola”, “O aluno obediente é estimado”, “Devemos fazer silêncio na
aula”, “Devo atender mais o professor”, “Em silêncio aprenderas com
mais faci...”, “Falem pouco e estudem muito” e outra vertente,
relacionada ao cotidiano, prescrevendo quais atitudes são esperadas
de um bom cidadão.
O bom aluno deve fazer silêncio, prestar atenção, respeitar
o professor, ser obediente. O bom cidadão não deve mentir, deve
rezar, ser temente a Deus, ser bondoso, respeitador e livre de
vícios, qualidades há muito apregoadas pelos contos moralizantes

18
Reproduzidas aqui na ordem em que estão no caderno: 2, 4, 5, 8, 12, 17, 18,
20, 21, 24, 25, 26, 27, 28, 30 e 32.
19
Algumas vezes as frases não cabem inteiras na página, a cada linha aparecem
diferentes “cabendo” mais progressivamente. Nesses casos reproduzo a frase mais
longa
20
Presumimos a intenção moralizante apesar da interrupção da frase não
permitir adivinhar o final, pode ser uma adaptação do provérbio de origem
portuguesa “Onde não entra o sol entra o médico”, que também existe em
italiano, como também pode ser uma referência à “luz do saber”.

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de Perrault e dos Irmãos Grimm, que transpõem os limites da


Europa moderna.
Consideramos neutras as frases que não têm uma
intencionalidade aparente, são elas21: “A gaivota segue o vapor” e
“O Itagiba é um avião gaúcho” que parecem meramente descritivas.
Apesar disso, até onde pudemos determinar, o Itagiba não é o
nome de um avião gaúcho, mas sim o nome de um dos navios
brasileiros22 afundados no ano anterior, episódio que acirrou a
opinião pública e precipitou a entrada do Brasil na guerra23.
Em alguns casos a classificação é simples e evidente, em
outros foi necessário recorrer à contextualização histórica para
identificarmos os fatos e personalidades que estavam em destaque
na época, para assim fazer inferências e tentar entender de forma
mais específica seu sentido.
O ideário escolanovista dominante neste período, segundo
Monarcha

[...] procurou mobilizar política e ideologicamente as


classes sociais em torno de uma mesma questão: a
superação do atraso nacional e o ingresso no moderno. À
pedagogia cabia gerar uma nova forma de sociabilidade,
compatível com os ideais da racionalidade e
produtividade. (1989, p.19)

Que melhor meio para alavancar esse conjunto de


intenções que a escola?

A construção do Estado Racional tornou-se estratégica


para os pioneiros da educação renovada, pois a partir dele
tornava-se possível empreender a reordenação e a
disciplinarização, banindo tudo o que é fragmentário,

21
Reproduzidas aqui na ordem em que estão no caderno: 13 e 19.
22
O Itagiba foi torpedeado e afundou em 17 de agosto de 1942.
23
Cinco navios brasileiros foram afundados em agosto de 42 por submarinos,
quase 600 pessoas morreram nos naufrágios.

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heterogêneo e contraditório. Ao Estado racional ou


positivo, concebido como entidade fria e neutra, pólo
universal, cabia administrar as classes hostis e egoístas,
que, perseguindo interesses individuais produziam uma
crescente instabilidade social. (1989, p.19)

Os diferentes espaços da escola são campo fértil na


formação da desejada “consciência nacional”. Unificada em torno
de um só pensamento, sem as fragmentações e desajustes tão
condenados pelo Estado Novo, a escola traz possibilidade de
implementação desse ideário em todos os espaços que
potencialmente se tornam espaços de formação da racionalidade
moderna. O caderno de caligrafia na perspectiva por nós analisada
confirma essa suspeita na medida em que faz da intencionalidade
de repetição mecânica com fins técnicos, um lugar de doutrinação
em função de outros objetivos que vão além do caráter meramente
“anatômico” da escrita.
As frases por nós analisadas no caderno como um todo,
remetem a várias possibilidades de estudo, a opção por seu
conteúdo foi apenas uma dessas possibilidades. Do total de trinta e
duas frases dezesseis têm caráter moralizante, doze tem caráter
cívico e duas são as qualificadas como neutras, esses números
mostram justamente que o professor Telatin, além do objetivo de
tornar a escrita “parelha” e “mais bonita”, não desprezava a
oportunidade de, através do conteúdo das frases designadas para o
exercício da caligrafia, imprimir nos alunos sentidos, formas de ser
e de pensar.
O exercício mecânico da caligrafia somado aos conteúdos
transmitidos encontrados nas frases utilizadas nesse caderno
pretende a formação de cidadãos e trabalhadores capazes de
contribuir para a “grandeza da nação”.
O caderno de caligrafia de Rosa Maria Rosa possibilita
refletir sobre como, a partir de práticas escolares, se dá a produção
de um sujeito com virtudes cívicas e patrióticas, numa cidade do
interior do Rio Grande do Sul, em um período emblemático da
política de nacionalização do ensino. Oferece também a
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possibilidade de se perceber como o mundo se inscreve na sala de


aula, colocando personalidades e “fatos” da história - Getúlio
Vargas, Ernesto Dorneles, o navio Itagiba – na tarefa repetitiva da
caligrafia.
Imprimir nos alunos sentidos, formas de ser e de pensar é
tarefa a que a escola se dedica com afinco. O caderno de caligrafia
serve a um currículo, mais do que isso, traz um discurso que
produz seu próprio objeto, selecionado a partir do contexto
histórico, com interesse em formar uma determinada identidade,
de aluno e de cidadão.
Afinal qual o sentido da caligrafia na forma como está
posta no material analisado? Num primeiro momento, sem
maiores reflexões, seu intento é o de somente exercitar a letra
tornando-a bonita, de acordo com a própria etimologia da palavra,
cali=bonita e grafia=letra. Ao trabalharmos o conteúdo das
frases, no entanto, o universo do caderno aponta para outras
formas de análise. Seu conteúdo representa uma tentativa,
consciente ou não, por parte do professor, de produzir um bom
aluno e cidadão com características desejáveis no contexto social
da época.
Em que medida pode-se afirmar que os alunos da Escola
Duque de Caxias compartilharam do desejo de seu professor? Para
Chartier24 a produção de sentido está vinculada a “[...] uma
relação dialógica entre as propostas do texto e as categorias
interpretativas de seus leitores”. Assim como a D. Rosa, os outros
alunos que fizeram caligrafia foram protagonistas de inúmeras
digressões, que independiam da vontade do professor, nesse diálogo
entre o sentido desejado por ele e o sentido dado pelos próprios
alunos a essa prática.
Também o exercício de repetir a frase prescrita, possibilita,
depois de adquiridas as competências gráficas, “uma apropriação
diferencial de seu uso e suas formas, podendo mesmo levar a

24
Chartier, 2003:8.

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criação de estilos singulares, inspiradores de novos modos de


grafar, apesar e para além das técnicas rígidas do dispositivo
escolar” (Bastos e Stephanou, 2008, p22).
Cadernos de caligrafia são ainda fabricados, vendidos e
preenchidos. Que frases ocuparão as linhas dos cadernos de
caligrafia em 2006?
Crianças nas séries iniciais, principalmente no processo de
alfabetização exercitam neles uma “melhor escrita”. Em muitas
escolas, os cadernos de caligrafia ainda fazem parte das listas de
material escolar do começo de cada ano, não obstante as opiniões
sobre seu uso estarem longe da unanimidade.
Essa fôrma, onde a escrita se desenrola e conforma, fica
gravada não na nossa pele, mas em nossos gestos, em nossos
olhos, em nossa memória. Como diz Benjamin, “a mão pode
ainda sonhar com essa manipulação (do jogo das letras), mas
nunca mais poderá despertar para realizá-la de fato” 25.

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vida in Mignot, Maria Crystina Venancio. Catálogo da Exposição
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BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II – Rua de mão única.


São Paulo: Brasiliense, 1993.

25
Benjamin, 1993:105.

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Documentos

Entrevistas de Rosa Maria Rosa e Clotilde Grazziottin depositadas


no Acervo de Memória Oral do Arquivo Histórico Municipal de
Bom Jesus.

Caderno de Caligrafia de Rosa Maria Rosa acervo da Profª Lucila


Maria Sgarbi Santos.

Discurso do Dia da Bandeira de Rosa Maria Rosa acervo da Profª


Lucila Maria Sgarbi Santos.

Luciane Sgarbi S. Grazziotin é Doutora em Educação pela


Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUC
RS. Professora do Centro de Filosofia e Educação da
Universidade de Caxias do Sul/UCS; professora colaboradora do
Mestrado em Educação da Universidade de Caxias do Sul. E-
mail: lusgarbi@terra.com.br.
Carla Rodrigues Gastaud é Mestre em História pela UFRGS,
doutoranda em Educação na UFRGS e professora no Instituto de
Ciências Humanas da UFPel. E-mail: cgaustaud@terra.com.br.

Recebido em: 03/04/2009


Aceito em: 20/12/2009

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EDUCAÇÃO E ETNIA: AS EFÊMERAS
ESCOLAS ÉTNICO-COMUNITÁRIAS ITALIANAS
PELO OLHAR DOS CÔNSULES
E AGENTES CONSULARES
Terciane Ângela Luchese
Lúcio Kreutz

Resumo
O objetivo deste artigo é reconstruir brevemente a história das escolas
étnicas da chamada Região Colonial Italiana no Rio Grande do Sul,
a partir dos olhares registrados por cônsules e agentes consulares.
Considerando os contextos culturais, sociais, políticos e econômicos
que permeiam a trama histórica dos processos de imigração, em
especial de italianos para o Rio Grande do Sul a partir de 1875, a
análise abrange o final do século XIX e início do século XX,
momento em que houve maior participação e importância desta
forma de escolarização. Utilizando fontes historiográficas
diversificadas, mas privilegiando os relatórios consulares, o artigo
analisa esta iniciativa ímpar de organização escolar, procurando
contribuir para o conhecimento da história da educação brasileira.
Palavras-chave: Etnia; escolas étnico-comunitárias italianas; cônsules.

EDUCATION AND ETHNICITY: THE EPHEMERAL


ITALIAN ETHNIC-COMMUNAL SCHOOLS FROM THE
PERSPECTIVE OF CONSULS AND CONSULAR
AGENTS
Abstract
The article briefly traces the history of the ethnic schools in the area
of Italian colonization in the state of Rio Grande do Sul, Brazil on
the basis of the views recorded by consuls and consular agents.
Taking into account the cultural, social, political and economic
contexts that pervade the history of the immigration processes,
particularly of Italian immigrants to Rio Grande do Sul from 1875
onwards, the analysis covers the end of the 19th and the beginning of
the 20th century, as in this period this form of school education had
its largest share and biggest importance. By using diverse historical
sources, but focusing on consular reports, it analyzes this unique
initiative of school organization, trying to contribute to a better
knowledge of the history of Brazilian education.
Keywords: Ethnicity; Italian ethnic-communal schools; Consuls.

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EDUCACIÓN Y ETNIA: LAS EFÍMERAS ESCUELAS
ÉTNICO-COMUNITARIAS ITALIANAS ATRAVÉS LA
MIRADA DE LOS CÓNSULES Y AGENTES
CONSULARES
Resumen
El objetivo de este artículo es reconstruir brevemente la historia de
las escuelas étnicas de la llamada Región Colonial Italiana en Rio
Grande do Sul, a partir de las miradas registradas por cónsules y
agentes consulares. Considerando los contextos culturales, sociales,
políticos y económicos que traspasan la trama histórica de los
procesos de inmigración, en especial de italianos hacia Rio Grande do
Sul a partir de 1875, el análisis abarca el final del siglo XIX y el
comienzo del siglo XX, momento en que hubo mayor participación e
importancia de esta forma de escolarización. Utilizando fuentes
historiográficas diversificadas, pero privilegiando los informes
consulares, el artículo analisa esta iniciativa singular de organización
escolar, buscando contribuir con el conocimiento de la historia de la
educacíón brasileña.
Palabras clave: Etnia; escuelas étnico-comunitarias italianas;
cónsules.

ÉDUCATION ET ETHNIE: LES ÉFÉMÈRES ÉCOLES


ETHNIQUES – COMMUNAUTAIRES ITALIENNES
SOUS LE REGARD DES CONSULS ET DES AGENTS
CONSULAIRES
Résumé
L’objectif de cet article est de reconstruire brièvement l’histoire des
écoles ethniques de la Région Coloniale Italienne du Rio Grande do
Sul, à partir des regards registrés par des consuls et des agents
consulaires. Considérant les contextes culturels, sociaux, politiques et
économiques qui font partie de la trame historique des processus
d’immigration, spécialement de celle des italiens, au Rio Grande do
Sul à partir de 1875, l’analyse comprend la fin du XIXème siècle et
le début du XXème siècle, moment où cette forme de scolarisation a
été significative. En utilisant de sources historiographiques diverses,
mais en privilégiant les rapports consulaires, on analyse cette
initiative singulière d’organisation scolaire, en cherchant à contribuer
à la connaissance de l’histoire de l’éducation brésilienne.
Mots-clés: Ethnie; écoles ethniques-communautaires italiennes;
consuls.

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[...] maestro Luigi Petrocchi, um benemérito insegnante,


che da sei anni presta i più relevanti servigi alla italianità
e alle colonie [...] consigliando i coloni ad istruirsi,
aiutandoli ad aprire delle scuolle nei punti più lontani.
(Vittorio Buccelli, 1905)1.

O presente estudo é resultado parcial da pesquisa “Escolas


étnico-comunitárias na Região Colonial Italiana do Rio Grande
do Sul” que está sendo desenvolvida junto à Universidade de
Caxias do Sul.
As escolas étnicas eram ‘aulas’ elementares que ensinavam
as noções básicas de escrita, leitura e cálculo. Na maioria dos
casos, eram instituídas por iniciativa das próprias comunidades. As
que funcionavam na zona urbana, em geral, foram resultado do
empreendimento das Sociedades de Mútuo Socorro. As rurais,
eregidas pelas próprias famílias da comunidade que, mediante a
inexistência de escolas públicas ou pela própria distância,
escolhiam o professor entre os moradores, aquele que era um
pouco mais instruído. A respeito disso, descrevia o cônsul De
Vellutis em 1908:

Nos centros urbanos e nas sedes das colônias rurais, essas


escolas são mantidas pelas Associações Italianas ou
melhor, surgem sob seus auspícios. No mínimo, são as
associações que fornecem o local e os móveis e utensílios
necessários. Nas colônias, entre as linhas que não contam
com escolas brasileiras, os nossos compatriotas procuram
sustentar as próprias custas, uma pequena escola para
seus filhos, confiando-a a algum colono mais instruído do
lugar. Existem também algumas associações de
fabriqueiros de várias capelas das linhas que se esforçam
em manter abertas pequenas escolas italianas. Em geral,

1
“[...] professor Luigi Petrocchi, um emérito ensinante, que a seis anos presta os
mais relevantes serviços à italianidade e às colônias [...] aconselhando os colonos
a instruírem-se, ajudando-os a abrirem suas escolas nos pontos mais distantes.”
Vittorio Buccelli, 1905.

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pode-se afirmar, com certa satisfação que, os nossos


compatriotas tem amor à sua escola italiana. Mas os
sacrifícios que eles fazem não são suficientes e tem que
lutar com grandes dificuldades para conceder uma
remuneração para eles sempre pesada, aos professores que
2
são mais pobres do que eles.

De Vellutis, mesmo descrevendo e enaltecendo o ‘amor’


que os imigrantes tinham pela escola italiana, reconhecia as
dificuldades, as precariedades e apontava como principais razões as
dificuldades econômicas das famílias e a concorrência com as
escolas confessionais. Em suas palavras:

Afora poucas, a maior parte das nossas escolas tem uma


vida difícil. Elas atravessam, enfim, neste momento um
período muito crítico. Por um lado, a crise econômica,
agravada pelas recentes calamidades, colocou muitos
colonos numa situação de miséria. Por outro lado, soma-
se a isso a invasão de congregações francesas que,
expulsas de seu país, vieram refugiar-se nesse Estado,
instalando nas colônias escolas para ambos os sexos, as
quais fazem grande concorrência às nossas, porque
admitem gratuitamente alunos pobres, cobrando apenas
3
dos que podem pagar.

Portanto, já em 1908, De Vellutis sinalizava para as


dificuldades que, em outros indícios documentais também foi
possível encontrar, apontando para a efemeridade dessas
iniciativas.

2
O Estado do Rio Grande do Sul e a Crise Econômica durante o último qüinqüênio
– Extraído do Relatório do Cav. Francesco De Velutiis, Régio Cônsul de Porto
Alegre, fevereiro de 1908. p. 348.
3
O Estado do Rio Grande do Sul e a Crise Econômica durante o último qüinqüênio
– Extraído do Relatório do Cav. Francesco De Velutiis, Régio Cônsul de Porto
Alegre, fevereiro de 1908. p. 349 a 350.

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As escolas étnico-comunitárias italianas: principais


características

O ensino, nas escolas étnicas, era em italiano (em geral


dialetos como o vêneto) e, em alguns períodos, elas receberam
material didático do Governo Italiano. Ressalta-se que os
imigrantes falavam os dialetos maternos de suas respectivas regiões
de origem, conheciam mal o italiano, o que, de certa forma,
dificultava, inicialmente, o uso dos livros didáticos.
Entre os imigrantes italianos, as escolas comunitárias se
multiplicaram principalmente na zona rural e tiveram
características étnicas, especialmente pela questão da língua
(dialetos).
Muitas das escolas foram organizadas pelos pais e
comunidade que criavam aulas e o professor era pago para que
ministrasse os conhecimentos básicos de leitura, escrita e cálculos.
Essas iniciativas foram muito comuns no interior das colônias.
Diversos foram os casos em que as famílias de imigrantes uniram-
se para empreenderem em mutirão a construção da escola,
geralmente uma pequena casa de madeira rústica, apesar de, nos
primeiros tempos, as aulas terem funcionado na própria casa do
professor ou em casa de alunos. Essas aulas, em sua maioria, já
em meados de 1910, tinham se tornado públicas, portanto em sua
maioria de efêmera duração. De acordo com o imigrante Júlio
Lorenzoni, estabelecido em Dona Isabel:

A absoluta falta de escolas do Governo Brasileiro


obrigava o colono a escolher as pessoas mais aptas para
ensinar a ler, escrever e fazer contas àquela mocidade
toda, sob pena de criarem-se na maior ignorância,
verdadeiramente analfabetos. Precisavam então
conformar-se com o melhor que houvesse, pois não eram
professores formados os que iam lecionar, mas sim os
que, na Itália, tivessem recebido uma razoável instrução e
que, mediante módica retribuição, se sujeitassem a
desempenhar a árdua tarefa de mestre, o que procuravam

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fazer da melhor maneira. (LORENZONI, 1975, p.


126).

Entre os imigrantes havia alguns professores com


formação em sua terra natal, mas seu número era insuficiente para
suprir a carência, a demanda por escolas. Consoante Giron, "[...]
entre os imigrantes da Colônia Caxias, apenas quatro se
identificaram como professores, sendo os responsáveis pelas
primeiras escolas particulares regionais. Foram eles Giacomo
Paternoster, Abramo Pezzi, Clemente Fonini e Marcos Martini."
(GIRON, 1998, p. 90).
Vale salientar que as escolas étnico-comunitárias foram,
como ressalta Kreutz, muito importantes para os imigrantes,
especialmente entre os alemães. Também refere-se a essas
iniciativas como algo muito peculiar na História da Educação
brasileira, caracterizando-as como iniciativas que

[...] não se desenvolveram de forma isolada, cada uma


restrita a seu núcleo. Foram assumidas pelas respectivas
comunidades de imigrantes, vinculadas a uma instância
maior, isto é, à coordenação das respectivas confissões
religiosas. Além disso, eram escolas étnicas porque
retratavam aspectos culturais importantes da respectiva
etnia, como língua e costumes. (KREUTZ, 2005, p.
72).

Entre os imigrantes estabelecidos na Região Colonial


Italiana, houve as escolas mantidas pelas comunidades rurais que
se formaram em torno da capela e também aquelas criadas e
mantidas por Sociedades de Mútuo Socorro (a sua maioria
estabelecidas em área urbana).
As iniciativas dos imigrantes são o resultado também das
condições de ensino em que se encontrava a Província de São
Pedro do Rio Grande do Sul, em fins do século XIX, como já
referido. Conforme o estudo realizado por Schneider, durante a
década de 1870, a instrução pública, no meio rural, era muito
precária. Ela não podia ser regulada pelas mesmas normas que a
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maioria das escolas da Província, já que os filhos de imigrantes


falavam dialetos diferentes e os professores teriam dificuldades de
ensinar se não compreendessem o que seus alunos falavam
(SCHNEIDER, 1993, p. 356). Surgia, então, um grande
problema: onde conseguir professores que compreendessem os
dialetos italianos, dominassem o idioma nacional e se dispusessem
a deslocar-se até as colônias e ali permanecerem para ministrar
suas aulas? Destaca-se, concordando com Kreutz que:

A dimensão étnico-cultural é construída e reconstruída


constantemente num processo relacional em que os
grupos e indivíduos buscam, selecionam, ou relutam em
função do significado que fenômenos e processos tem
para eles. Por isto a educação e a escola são um campo
propício para se perceber a afirmação dos processos
identitários e os estranhamentos e as tensões decorrentes
da relação entre culturas. (KREUTZ, 2001, p. 123).

Entre os agentes educativos principais que se mobilizaram


na busca da escola podem ser citados os agentes consulares, para
os quais, além da difusão dos conhecimentos elementares a escola
étnica tinha o sentido de difusão da italianitá (italianidade),
discurso assumido pelas próprias associações de mútuo socorro que
também tinham um cunho nacionalista.
Relembro que as Sociedades de Mútuo Socorro eram
associações que assumiram, em diferentes contextos, funções de
intermediação e preservação dos laços com a pátria de origem
através de festividades cívicas - italianitá, foram espaços de auxílio
mútuo em caso de doença, morte ou sinistro, e muitas também
assumiram atividade de ensino.
Em 1882, foi criada, em Dona Isabel, a Sociedade
Artística de Mútuo Socorro Regina Margherita (mencionada no
capítulo 1), que contava inicialmente com 40 sócios. Através do
incentivo de Enrico Perrod, em 1884 surgiu uma escola italiana.
Lorenzoni descreveu-a afirmando que:

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Seu primeiro mestre foi o senhor Isidoro Cavedon, que


residia na Linha Santa Eulália e o Inspetor Escolar era o
Reverendo Padre João Menegotto, pároco local (...)
Devido, ao ordenado mínimo que lhe era outorgado, e
também à distância que o separava da família, pouco
depois pediu sua demissão sendo substituído pelo senhor
Santo Bolzoni. (LORENZONI, 1975, p. 123 e 124).

O terceiro professor da escola italiana, mantida pela


Sociedade de Mútuo Socorro, foi o próprio Júlio Lorenzoni4. Em
suas memórias, ele relata como foi selecionado para assumir a
cadeira de professor, seus ganhos salariais e as tarefas que lhe eram
incumbidas:

Prestei o devido exame perante o Inspetor Escolar e mais


dois membros, no dia doze de maio daquele mesmo ano
[1884]. Na sessão ordinária da sociedade, realizada no
dia dezenove do mesmo mês fui aprovado para
desempenhar provisoriamente o cargo de professor
elementar, nas mesmas condições do meu antecessor, a
saber: trinta mil-réis mensais. Tinha a obrigação de dar
aulas cinco horas por dia (menos os festivos) e servir, ao
mesmo tempo, de secretário da Sociedade. [...] No
primeiro dia de junho abri minha escola, atendendo a
nada menos que cinqüenta alunos. O local da escola, ao
mesmo tempo sede da Sociedade, era uma espaçosa sala,
na propriedade do senhor Henrique Enriconi, bem
arejada e com luz suficiente. [...] Depois de três meses, o
meu ordenado de professor foi aumentado de dez mil-réis
e, com esse mísero pagamento, desempenhei o árduo
serviço até dezembro de 1889 [na p.179 consta março de
1889]. Naquela ocasião, era nomeado para as funções de
agente postal e deixava o meu cargo com o senhor
Alberto Bott, que me substituiu. Recordo ainda, com viva
satisfação, que, durante todo o tempo desempenhei o

4
Lorenzoni naturalizou-se brasileiro em 1887. Códice 0006, AHGM. E o
solicitante assina o documento. A naturalização significava maiores facilidades de
aceitação seja participando dos rumos políticos, seja podendo candidatar-se a
cargos públicos como, posteriormente, o fez.

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magistério nessa ex-colônia (cinco anos e sete meses),


sempre tive uma freqüência média superior a quarenta
alunos e pude constatar que muitos desses conseguiram
tirar grande proveito dos ensinamentos que, com
verdadeira paixão à arte de ensinar, procurei ministrar-
lhes. (LORENZONI, 1975, p. 123 e 124).

Lorenzoni imigrara aos 14 anos e, na Itália, freqüentara o


ensino elementar. Atendeu a escola até 1889, quando foi
nomeado ajudante do correio e, após, agente postal. O salário
passara a setenta mil-réis mensais, uma melhora significativa se
comparado ao que recebia como professor: 40 mil-réis mensais.
Foram criadas quinze escolas italianas mistas nas diversas
linhas, todas, porém, dependendo da Sociedade, cujos membros se
interessavam pelo seu funcionamento e lhes distribuía os parcos
recursos que possuía. O Real Consulado Italiano de Porto Alegre
encaminhava à Sociedade Regina Margherita o que esta
necessitava em livros e meios para atender professores e alunos,
material este proveniente do Governo da Itália. A média da
população escolar naquela época era de cerca de quinhentos
alunos. Os subsídios às escolas rurais, por parte da Sociedade,
duraram até fins de 1894, quando uma a uma foram sendo
fechadas, por abandono de parte das autoridades consulares,
suspendendo os subsídios, e pela falta de recursos da Sociedade
para mantê-las em funcionamento. (LORENZONI, 1975, p.
124 a 126). Lorenzoni enumera as escolas mistas e rurais
italianas da colônia Dona Isabel: 1ª) na Linha Pedro Salgado,
mestre Santo Bolzoni; 2ª) na Linha Palmeiro, 6, mestre Luís
Casanova5; 3a) na Linha Palmeiro, 33, mestre Eoli Secondo; 4a)
na Linha Palmeiro, 100, mestre João Casagrande; 5a) na Linha

5
Luigi Casanova chegara em 1878 no Brasil e estabeleceu-se em ¼ do lote n.
01 da linha Palmeiro. Nascido em 1850, era católico, alfabetizado e declarava-se
agricultor. Casado com Cecília, em 1883 tinha 3 filhos: Ernesto de 5 anos,
Isabel de 3 e Domenico de 8 meses. Haviam imigrado também Antônio e
Antônia Casanova, seus pais. Censo de 1883, colônia Dona Isabel, AHGM.

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Palmeiro, 160, mestre Henrique Bernardi6; 6ª) na Linha Jansen,


47, mestre Francisco Tochetto; 7a) na Linha Jacinto, 40, mestre
Ferdinando Strapazzon; 8a) na Linha Geral - São Valentim,
mestre Antônio Longhi; 9a) na Linha Santa Eulália, 6, mestre
Pedro Bassin; 10a) na Linha Faria Lemos, 47, mestre Antônio
Poletto7; 11ª) na Linha Graciema, 16, mestre Antônio
Martinelli; 12ª) na Linha Leopoldina, 47, mestre Celestino
Maines; 13a) na Linha Leopoldina, 103, mestre Alexandre
Castelli8; 14a) na Linha Santa Bárbara, mestre Agostinho Brum;
15a) na Linha Santa Teresa, mestre Félix Montanari;9 16ª) na
Linha Passo do Rio das Antas, mestre Carlos Cigerza.
As escolas italianas estavam todas a cargo de imigrantes
que, na sua comunidade, aceitavam dedicar parte de seu tempo ao
ofício de professor. Poucos eram os que exerciam exclusivamente a
docência. A maioria desses professores, (observe-se que eram todos
homens), somavam a atividade de ensino com o trabalho na
agricultura ou com a manutenção de outra atividade econômica,

6
Enrico Bernardi chegara ao Brasil em 1880 estabelecendo-se no lote 182 da
Linha Palmeiro. Alfabetizado, católico, nascido em 1843, casado com Amália.
Em 1883 tinha dois filhos: Tancredi de 4 anos e Ercilia de 6 meses. Censo de
1883, colônia Dona Isabel, AHGM.
7
Antonio Poletto era de Sacile, Pordenone e imigrou para o Brasil em 1885, já
casado e com filhos. Estabeleceu-se na Linha Faria Lemos, Bento Gonçalves.
(GARDELIN e COSTA, 1992, p. 251).
8
Alessandro Castelli era filho de Antônio e Ângela Capella, nascido em
Castagneto, Província de Torino, a 23 de setembro de 1848. Era militar de 2ª
categoria, chegara ao Brasil em 1877, estabelecendo-se no lote 103 da Linha
Leopoldina. Casou-se em 3 de março de 1878 com Maria Capalonghi, natural de
Cremona. (GARDELIN e COSTA, 1992, p. 214).
9
Felice Montanari nasceu em 12 de outubro de 1860 em Pieve Saliceto,
Província de Reggio Emilia, filho de Giuseppe e Annunciata Vilani, casou-se
com Annunciatta Brozzi. Chegou no Brasil em 1885 com a esposa, uma filha e
duas irmãs. Estabeleceu-se no lote 136 da Linha Leopoldina. (GARDELIN e
COSTA, 1992, p. 246).

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seja comercial ou manufatureira. Muitos assumiram também


encargos comunitários.
Em Conde D´Eu foi com a fundação da Sociedade Stella
d´Itália, em 1884, que organizaram a escola italiana. Conforme
os estatutos dessa Sociedade, artigos 75º a 81º, a escola italiana
masculina e feminina era mantida com as mensalidades pagas
pelos pais e administrada por um regulamento especial, aprovado
pelo Cônsul da Itália em Porto Alegre.10
A escola mantida pela Sociedade Stella d’Itália, ao ser
criada, tinha como finalidade “[...] contribuir para o progresso
moral e intelectual dos filhos dos colonos sócios e não-sócios com
o meio de ensinamento que é dado essencialmente em italiano,
com professor italiano, testes italianos, deverá ter sempre viva
recordações do alfabeto da pátria distante.”11 A Sociedade,
seguindo a proposta e a recomendação de seu presidente
honorário, Conde Antônio Greppi, Cônsul da Itália em Porto
Alegre, estabelecera uma escola puramente italiana elementar,
masculina e feminina. Na implantação da escola, como também
no seu andamento e administração, estava encarregado o Conselho
Administrativo, o qual nomearia uma comissão especial e direta
para a escola. O Conselho Administrativo da Sociedade era,
também, encarregado da escolha do nome do professor,
estabelecendo condições relativas tanto às retribuições mensais que
perceberia quanto ao número e horário de lições, à duração do
tempo do ano escolar. Qualquer pai de família, sócio ou não-
sócio, poderia usufruir da escola mediante pagamento. Se sócio,
pagaria 500 réis mensais mandando um filho, 800 réis mandando
dois filhos e 1000 réis mandando três. Para os não-sócios,

10
Estatuto da Sociedade Italiana de Mútuo Socorro Stella D’Itália,
10/03/1884. Arquivo Histórico Municipal de Garibaldi.
11
Artigo n. 75 do Estatuto da Sociedade Italiana de Mútuo Socorro Stella
D’Itália, 10/03/1884. Arquivo Histórico Municipal de Garibaldi.

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mediante pagamento de 1000 réis por um filho, 1500 réis por


dois filhos e de 2000 réis por três.12
Houve diversas associações de imigrantes italianos
também nas zonas rurais. Foi o caso da sociedade Camilo Cavour,
localizada na Linha Santa Eulália e fundada em 1888, e a
Umberto I da Linha Jansen, fundada em 1894, ambas na antiga
Colônia Dona Isabel e que atuavam na difusão da instrução. Em
Caxias e em Conde d´Eu, havia várias Sociedades de Mútuo
Socorro e, também nestas, como citado anteriormente, existiram
iniciativas escolares e recebimento de material didático. Os
subsídios fornecidos pelo governo italiano para essas escolas
constituíam-se na remessa de livros didáticos e materiais de
ensino. Não era previsto o pagamento dos professores, que
deveriam contar apenas com as mensalidades dos alunos, no caso
das escolas italianas da Região.
Válido salientar que as autoridades italianas, como os
cônsules, preocupavam-se com a falta quase absoluta de instrução
nos núcleos coloniais. É possível encontrar, em todos os relatórios
consulares, registros que retratam a situação das colônias,
mencionando a falta de escolas e a necessidade do governo italiano
intervir, passando a apoiar a educação, enviando livros e material
escolar. Certamente transparece a perspectiva de manutenção dos
laços culturais com a Pátria-mãe, a Itália, através do ensino.

As escolas étnico-comunitárias
da Região Colonial Italiana pelo olhar dos cônsules

Diversos cônsules e agentes consulares descreveram em


seus relatórios a precariedade e mesmo a importância em angariar
maiores investimentos por parte do governo italiano para a
manutenção e melhoria das escolas étnico-comunitárias. Em visita

12
Conforme os Artigos n. 76 a 79, do Estatuto da Sociedade Italiana de Mútuo
Socorro Stella D’Itália, 10/03/1884. Arquivo Histórico Municipal de Garibaldi.

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às colônias enviaram relatórios descrevendo, por vezes de forma


contraditória, a situação dessas escolas.
Em 1882, Pascoale Corte informou que a Colônia Dona
Isabel possuía uma escola primária italiana freqüentada por 61
crianças e Caxias, duas escolas italianas.13
Enrico Perrod, cônsul italiano em Porto Alegre, escreveu,
em seu relatório de 1883, que sua visita às colônias da serra tinha
como um dos intuitos principais formar um juízo do estado
intelectual e das aspirações que nutriam, quanto à instrução
daqueles colonos.14 Enumerou que os mesmos lhe fizeram, em sua
visita, dois pedidos apenas: estradas e escolas, já que o que eles
podiam fazer a respeito já o tinham feito. Referindo-se aos custos
para a instrução, constatou que os valores eram elevados:

[...] o dinheiro ainda é raro e o preço dos livros elevadíssimo.


Um abecedário custa 500 réis (1,25 liras), uma pequena
gramática, 1 mil réis (2,50 liras), e um simples livro de
leitura, entre 2,50 e 5,50 liras. [...] Sobre uma média de
rendimentos calculada em 300 franco ao ano, segundo
meus cálculos, cada pai reserva pois, cerca de 60 a 70
francos para a instrução dos filhos. E que pediram a mim?
15
Não subsídios pecuniários, mas livros escolares. (grifos
meus).

Perrod lamentou afirmando que seria uma calamidade


permitir que a instrução elementar se extinguisse nas colônias, e
nada havia de se esperar das escolas brasileiras, já que as aflições e
lamentos em relação àquelas eram constantes por parte dos
colonos, e as autoridades locais pouco faziam. Assumindo uma

13
L’Itália all’Estero Nell’Ultimo Decênio – Studi dell’Avv. Cav. Pascoale Corte
– Roma – Tipogragia Ereti Bota – 1882.
14
PERROD, Enrico. Le colonie brasiliane Conde d’Eu e Dona Isabela, 1883.
Apud: DE BONI, Luis A. Bento Gonçalves era assim. POA:EST / Caxias do
Sul: Correio Riograndense / Bento Gonçalves: FERVI, 1985, p. 26 e 27.
15
Id. Ibidem, p. 27.

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postura depreciativa com relação às autoridades locais, o cônsul


pretendia enfatizar a necessidade e importância das escolas
italianas. E, referindo-se exclusivamente à colônia Dona Isabel,
informou:

Em Dona Isabel há uma escola pública onde leciona uma


senhora, mas a maior parte dos pais retiram dela seus
filhos, e os enviam para a de um professor italiano, de
quem vi o diploma de licença ginasial, e outros certificados
de elogio dados pelas autoridades municipais italianas
[trata-se de Julio Lorenzoni]. Cada criança paga
mensalmente 1 mil réis para freqüentar as aulas. Na
Linha Palmeiro há também uma escola, mantida com
grandes dificuldades pelos próprios colonos. O professor
chama-se Santo Bolzoni. Dele também vi os diplomas e
certificados recebidos das autoridades municipais italianas.
Na verdade, é desoladora a situação destes professores.
Sabem que são mais cultos, e mesmo assim, embora
trabalhem tanto quanto os demais colonos, encontram-se
na impossibilidade de fazer a menor economia.
Conseguem apenas sobreviver, enquanto muitos de seus
concidadãos, em breve tempo, conseguem um modesto
patrimônio. De outro lado, como estes concidadãos
jamais pagaram diretamente o professor, agora fazem
dificuldades em tirar de suas duras fadigas uns 60 ou 70
francos anuais para a instrução de um filho, ou 150
16
francos, para quem possui mais de um. (grifos meus).

No ano de 1884, Pascoale Corte, também cônsul, visitou


novamente as colônias e referiu-se à situação da instrução em
Dona Isabel:

A colônia possui na sede uma sociedade italiana de


mútuo socorro, com 85 sócios e um capital de reserva de
cerca de 2 mil francos.[...] Esta sociedade abriu uma escola
italiana que conta com cerca de 60 alunos, de ambos os
sexos. Há também uma escola pública mista, mantida
pelo governo e uma banda de música, organizada por

16
Id. Ibidem, p. 33 e 34.

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diletantes italianos. Nas várias linhas, contudo, talvez por


falta de professores, a instrução é bastante descuidada,
embora depois de minha visita me tenha sido prometido em
diversas linhas, principalmente na Palmeiro, que serão
abertas escolas, pagando os colonos uma mensalidade aos
17
professores. (grifos meus).

Outro relatório, de Eduardo de Brichanteau, de 25 de


março de 1892, noticiou que existiam 7 escolas públicas, das
quais 2 eram na sede e 5 nas linhas. Essas escolas, segundo ele,
eram pouco freqüentadas pelos filhos dos colonos, que preferiam
as italianas. Estas também perfaziam um total de 7, sendo muito
freqüentadas, especialmente a da sede. Brichanteau afirmou que os
alunos eram em sua maioria nascidos no Brasil, sendo apenas 7%
os italianos. Na escola italiana, mantida na sede pela Sociedade de
Mútuo Socorro Regina Margherita, as aulas eram gratuitas para
os filhos de sócios, já que o subsídio público era suficiente para o
pagamento dos professores. A Sociedade cedia o local, os móveis e
arcava com pequenas despesas. Nas outras escolas étnicas, cada
aluno pagava em média 500 réis mensais. Por fim, acrescentou
Brichanteau que “[...] em geral os colonos desejam que as escolas
italianas progridam, mas, assim como na Itália, há também aqui
os que pouco se preocupam com a instrução de seus filhos."18
Chamam atenção duas questões: uma é a oposição entre Perrod, o
qual declarou que os colonos solicitavam a abertura de escolas,
enquanto Brichanteau afirmou que havia, como na Itália, os que
não se interessavam por elas. Outra, é o discurso sobre a
preferência por escolas italianas, o que precisa ser relativizado, já

17
CORTE, Pascoale. 1884 Apud: DE BONI, Luis A. Bento Gonçalves era
assim. POA:EST / Caxias do Sul: Correio Riograndense / Bento Gonçalves:
FERVI, 1985, p. 42.
18
BRICHANTEAU, Eduardo dos Condes Compans de. 25/03/1892. Apud:
DE BONI, Luis A. Bento Gonçalves era assim. POA:EST / Caxias do Sul:
Correio Riograndense / Bento Gonçalves: FERVI, 1985, p. 66.

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que a aprendizagem do português era considerada por muitos uma


necessidade para a convivência / sobrevivência na ‘nova Pátria’.
Em 1903, Ciapelli, cônsul em Porto Alegre, expôs, entre
outros aspectos, sobre o que ele denominou de “condições
intelectuais e morais dos colonos italianos”:

[...] a instrução é escassa e descuidada. Existem, é


verdade, muitas escolas, mas todas em condições didáticas
e financeiras pouco satisfatórias. [...] Muitos deixaram a
cidadania de origem para abraçarem aquela do novo país
que vivem; mas no fundo se mantém bons italianos, se
bem somos sinceramente afeitos a sua segunda pátria.
Nas colônias quase todos tomam parte da vida pública,
parte ocupando empregos nas administrações das
comunas, na polícia, nos municípios e todos se
distinguem pelo bom senso, pela lealdade e pela justa
19
forma como atém-se ao exercício de suas funções.

Ressaltou a precariedade das escolas mantidas na época,


bem como a inserção dos imigrantes nas administrações locais,
evidenciando-se os diversos processos de naturalização.20
De certa forma, as escolas ditas italianas foram
importantes na manutenção da língua e do culto da Itália como a
pátria dos filhos dos imigrantes. Entre os anos de 1891 e 1896,
assumiu como agente consular, em Caxias do Sul, Domenico
Bersani, tendo sido também Inspetor Escolar oficial das escolas de
língua italiana existentes na léguas que constituíam Caxias.
(ADAMI, 1971, p. 22). Em Bento Gonçalves, o padre e também

19
ROMA. Bollettino dell’Emigrazione. Ministero degli Affari Esteri. Tip.
Nazionale di G. Bertero, n. 04, 1903. Lo Stato di Rio Grande del Sud (Brasile) e
l’immigrazione italiana (Da um rapporto del R. Console a Porto Alegre, Cav. E.
Ciapelli, agosto de 1901).
20
No Arquivo Histórico e Geográfico de Montenegro foi possível localizar,
apenas no ano de 1887, 52 pedidos de naturalizações de imigrantes estabelecidos
em Conde d’Eu e Dona Isabel (posteriormente Garibaldi e Bento Gonçalves).
Códice 0006, AHGM.

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agente consular, Giovanni Menegotto, foi, por alguns anos,


inspetor escolar. A importância do professor como elemento de
ligação entre os imigrantes, a cultura e língua italianas foi
reconhecida pelo governo da Itália que, no final do século XIX,
designou o professor-agente, com o objetivo de fazer a ligação
entre os imigrantes e as autoridades consulares italianas. (DE
BONI, 1985, p. 71). Umberto Ancarini e Luigi Petrocchi foram
professores e agentes consulares enviados da Itália para Caxias e
Bento Gonçalves. Bagé, Porto Alegre e Alfredo Chaves foram
municípios que também receberam professores com formação e
que assumiam a tarefa de agentes consulares concomitantemente.
Coube ao Cônsul Ciapelli coordenar os primeiros anos de
trabalho dos professores e agentes consulares locais. Os jornais
noticiaram a vinda:

O nosso amigo José Chiaradia, presidente da sociedade


Operária Príncipe de Nápoles, recebeu um ofício do Sr.
Agente Consular do Reino da Itália nesta vila,
comunicando-lhe que já seguiu de Porto Alegre o Sr.
Ancarini que aqui vem substituir aquele agente e exercer
21
o cargo de professor a expensas do governo da Itália.

Adiante, na seção italiana, o mesmo jornal informou:

Provimento para nossas escolas coloniais


O Régio Ministério dos Fazeres Exteriores comunicou ao
Cônsul Cav. Ciapelli que partiram para a Capital [Porto
Alegre] o prof. Ancarini e o Sr. Mantovani. Este será
destinado para agente consular com o encargo de
ensinamento em Alfredo Chaves. O prof. Ancarini será
destinado do Real Consulado para a colônia Caxias.

21
Jornal “O Cosmopolita” – Órgão dos Interesses Coloniais. Caxias, 12 de
junho de 1904, Ano II, n. 103, p. 04. Redatores diversos. Editor-proprietário:
Maurício N. de Almeida. Jornal semanal, distribuído aos domingos, possuía uma
seção italiana.

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O mesmo Ministério informou ao Cav. Ciapelli que


decidiu enviar um professor para a escola de Bagé e e um
outro para a nova escola de Porto Alegre, dependente da
União Meridional Vittorio Emanuele III.” [ tradução
22
minha].

No mês de julho de 1904, foram feitos vários anúncios


pela Sociedade Príncipe de Nápoles acerca do funcionamento da
nova escola italiana, que estaria em sua sede. Era destinada aos
meninos e teria como professor principal Umberto Ancarini.
Publicava também as disciplinas a serem ministradas:

Escola Italiana Príncipe de Nápoles


A partir do endereçamento do Cav. Enrico Ciapelli,
Cônsul da Itália, que tanto preza em seu coração a
instituição das escolas italianas nas colônias do Rio
Grande do Sul, o Governo Italiano aderindo também ao
interesse da Sociedade Operária Príncipe de Nápoles que
sempre procurou para instituir uma escola italiana em
Caxias, que enviava como encarregado da dita escola o
Prof. Cav. Umberto Ancarini. Se traz ao conhecimento
dos habitantes desta vila que no próximo mês será aberta
a Escola Italiana Masculina de grau inferior e superior na
sede da sociedade anteriormente nominada, que com
patriótico sentimento, é seu promotor. O ensinamento
compreenderá das seguintes matérias: Língua italiana.
Língua portuguesa. Língua francesa. História Italiana e
Brasileira. Geografia. Matemática. Geometria. Desenho.
Caligrafia. Canto. Ginástica e exercícios militares. As
inscrições do alunos serão recebidas todos os dias pelo Sr.
Mario Marsiay secretário da Sociedade Príncipe de
23
Nápoles. [tradução minha].

22
Jornal “O Cosmopolita” – 12 de junho de 1904, Ano II, n. 103, p. 03 –
seção italiana.
23
Jornal “O Cosmopolita” – 17 de julho de 1904, Ano II, n. 108, p. 03 – seção
italiana. O mesmo anúncio foi publicado novamente em 24 de julho de 1904, n.
109.

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Seriam ensinados 3 idiomas, desenho, canto, ginástica,


exercícios militares, entre outras matérias. Inicialmente, propunha
o ensino apenas para meninos mas, no ano seguinte, a esposa de
Ancarini assumiu, como ele mesmo noticiou, que a “[...] escola
privada italiana feminina, foi aberta em sua própria residência pela
senhora Iró Ancarini, e conta já, após 3 meses, com 18 alunas,
pertencentes às melhores famílias locais.”24
Além da aula diurna foi oferecida outra oportunidade para
aqueles que não haviam se alfabetizado: o ensino noturno para
adultos. Iniciativas inovadoras para o período, para o local e que
receberam investimentos apenas anos depois por parte das
autoridades locais (o ensino noturno para adultos teve
investimentos posteriores por parte da Intendência de Caxias, que
passou a compreender a importância de gerar oportunidades de
estudo àqueles que não haviam freqüentado aulas em idade
regular). Chamam atenção, também, as matérias a serem
ensinadas, incluindo o desenho e o ensino de três idiomas – o
italiano, o português e o francês. Em início de agosto, a Sociedade
publicou novamente anúncio sobre o Curso Noturno. Para os
adultos mais pobres, que desejassem aprender a leitura, houve
oportunidade também. As aulas foram dadas em sábados e
domingos. Ancarini ensinou a leitura da língua italiana,
gratuitamente.
No entanto, mesmo mediante essas iniciativas, o número
de alunos não foi muito elevado, possivelmente porque havia
custos e os beneficiados eram apenas os que viviam na vila e seus
arredores mais próximos. Ancarini, em relatório de 1905, relatou
sobre a própria escola: “[...] na vila abriu-se há oito meses uma

24
ANCARINI, Humberto. Relatório: A colônia italiana de Caxias, Rio Grande
do Sul, Brasil, 1905. In: DE BONI, Luis A. (org.). A Itália e o Rio Grande do
Sul, IV. Porto Alegre: EST, 1983, p. 57.

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escola masculina italiana, com sede na Sociedade Príncipe de


Napoli, contanto atualmente com 25 inscritos.”25
Ancarini, nesse mesmo relatório, registrou observações
pessoais sobre a instrução na Região, especialmente em Caxias.
Segundo ele, o governo do Estado provia o melhor que podia a
instrução nos municípios. Eram mantidas 20 escolas mistas,
dispersas pelas diversas linhas, freqüentadas por alunos que não
distassem mais de meia hora a cavalo do local da escola. O
município de Caxias mantinha outras 4 escolas rurais, onde
ensinavam a língua portuguesa. Informava que a população escolar
pública era, em média, de mil alunos e que o governo fornecia
gratuitamente às escolas livros e material escolar. Porém,
lamentava ele: “[...] mas poucos são os pais que dão verdadeira
importância à instrução e à educação. Para muitos, estas são
palavras sem sentido.” A partir disso, pergunta-se: por que
Ancarini afirmava isso? A justificativa para tal observação é muito
interessante, já que permite pensar em qual escola as comunidades
realmente desejavam. Ele registrou, na seqüência do relatório:

Na sede, mais do que em outros lugares, é perceptível a


indiferença pelo estudo de nossa língua, especialmente
nas donzelas e nos jovens. E não faltam os que mostram
repugnância em falar italiano, considerando como
humilhação o fato de falar a língua que chamam dos
imigrantes. A grande maioria dos imigrantes não conhece
e jamais conheceu a língua italiana. Os colonos que
vivem no interior falam somente o dialeto vêneto ou
mantuano; e os que vivem na sede falam dialeto e mais
ainda o português, que é a língua que os permite
comunicar-se com os brasileiros. [...] Os mais
importantes da sede e as famílias mais abastadas utilizam

25
ANCARINI, Humberto. Relatório: A colônia italiana de Caxias, Rio Grande
do Sul, Brasil, 1905. In: DE BONI, Luis A. (org.). A Itália e o Rio Grande do
Sul, IV. Porto Alegre: EST, 1983, p. 57.

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cartões escritos em português – e alguns também em


26
língua italiana – para visitas, augúrios e participações.

É perceptível que o não interesse pela escola passa pela


questão da língua. Ancarini constatou que o italiano, que muitos
dos imigrantes desconheciam, não era considerada, pelas novas
gerações, uma aprendizagem necessária ou atrativa. Pretendiam
aprender o português. De certa forma, o professor espantava-se
que as identificações dos negócios da sede já traziam o letreiro em
português, bem como os próprios cartões pessoais.
Ao visitar colonos nas diversas léguas, o referido professor
falara com os mesmos e buscara persuadi-los da importância da
escola. E constatou que

[...] muitos desejariam vivamente ter uma escola, dirigida


por algum colono, para dar aos filhos um pouco de
instrução. E não seria difícil encontrar nos diversos
travessões alguém que se encarregasse do ensinamento do
italiano, dando-se-lhe, naturalmente, uma pequena
retribuição mensal, que seria paga pelos alunos. Seria
preciso, também dar aos alunos um subsídio em livros,
cadernos e penas e uma recompensa ao final do ano, a
27
título de encorajamento.

Ancarini sugeriu que o governo italiano subsidiasse tais


iniciativas, multiplicando a rede de escolas que ensinassem o
italiano. Foi uma preocupação do professor a falta de proximidade
nas relações, inclusive, comerciais da Itália com o “próspero estado
sulino onde tantos compatriotas haviam se estabelecido e
progrediam.”28

26
ANCARINI, Humberto. Relatório: A colônia italiana de Caxias, Rio Grande
do Sul, Brasil, 1905. In: DE BONI, Luis A. (o rg.). A Itália e o Rio Grande do
Sul, IV. Porto Alegre: EST, 1983, p. 56.
27
Id. Ibidem, p. 56.
28
Id. Ibidem, p. 57.

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Em tempos já passados, registrou Ancarini, teria havido


muitas outras iniciativas de escolas italianas empreendidas pelos
colonos, mas que tiveram vida breve, seja pela falta de apoio ou de
material escolar.

Por mais de uma vez fui convidado pelos colonos para


visitar as escolas particulares desse município, onde o
ensino é feito em língua italiana por colonos de ambos os
sexos. São quatro escolas particulares e foram abertas por
que naqueles lugares não há escolas brasileiras. Seus
mestres improvisados – alguns ensinam já a (sic) 5 anos –
cumprem seu ofício com dedicação e amor. Os alunos e
alunas destas escolas atingem o número de 170 e, na
falta de salas especiais no local, a instrução é feita na
29
capela.

O processo escolar em Bento Gonçalves, especialmente


durante o início de século XX, foi descrito em diversos relatórios
elaborados por Luigi Petrocchi30. Ele veio como professor
subsidiado pelo Governo Italiano e serviu de agente consular no
município, entre os anos de 1903 e 1909 (pelas informações
obtidas). Em seu relatório de 1903, noticiou:

A nova escola italiana adquire sempre mais simpatia mesmo


entre as autoridades do país. No corrente ano, na seção de

29
Id. Ibidem, p. 57.
30
“Luigi Petrocchi era natural de Pistóia, na Itália. Emigrou par ao Brasil por
volta de 1900, com os dois filhos maiores, deixando a esposa e outros dois filhos
em Pistóia. Além de atuar como agente consular em Bento Gonçalves, Petrocchi
foi professor em uma escola do mesmo município.” IOTTI, Luiza Horn. O olhar
do poder – a imigração italiana no Rio grande do sul, de 1875 a 1914, através dos
relatórios consulares. Caxias do sul: EDUCS, 1996, p.163. Consta que após sua
saída de Bento Gonçalves, Petrocchi assumiu o cargo de Vice-Cônsul em
Florianópolis conforme OTTO, Claricia. As escolas italianas entre o político e o
cultural. IN: DALLABRIDA, Norberto (org.). Mosaico de Escolas – modos de
educação em Santa Catarina na Primeira República. Florianópolis: Cidade Futura,
2003, p. 135.

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trabalhos femininos, estavam inscritas 9 crianças filhas


de brasileiros. Em 2 anos de vida, a escola deu um pouco
de instrução a mais de 100 analfabetos e conseguiu obter
frequência máxima mesmo de filhos de gente que sempre
se mostrou cética em matéria de instrução. (DE BONI,
1985, p. 68; grifos meus).

Em outro relatório, de julho de 1904, Petrocchi


considerou:

Geralmente é reconhecida a importância da escola


italiana neste estado, visto que só por meio da escola
mantém-se vivo o culto das memórias pátrias, cultivam-se
o espírito e a mente, difundem-se a língua e a cultura
italiana. O envio de outros professores-agentes, da parte
do governo italiano, continua a ser vivo desejo de todos os
compatriotas que vivem nos vários centros coloniais. E
mesmo os brasileiros, que com justa razão querem
conservar e difundir seu idioma, sua literatura e seu
sentimento de nacionalidade, não se opõem a que nossos
colonos enviem seus filhos à escola italiana, pelo
contrário, admiram esta escola, estudam o método
didático que nela é adotado e vêm assistir os exames.
Deixam a cada um total e plena liberdade de manifestar
seus sentimentos patrióticos, e tomam parte, sem
constrangimento, nas festas de caráter italiano.(...) As
escolas públicas, colocadas sob a fiscalização direta do
intendente e dos conselheiros, são mantidas pelo Estado.
Em todo o município há 18 escolas públicas, das quais 9
são masculinas, 2 femininas e 7 mistas. As escolas
italianas, subsidiadas pelo governo da Itália com material
didático, chegam a 24, somadas aqui também as que
foram abertas no corrente ano. (DE BONNI, 1985, p.
71 e 74; grifos meus)

A escola italiana adquiria ‘sempre mais simpatia’, o ‘culto


das memórias pátrias’, estas e outras enunciações discursivas
produzidas por Petrochi assinalam o forte vínculo com o
movimento pela italianitá, pensando na defesa e na preservação de
hábitos, costumes, tradições e do idioma da Pátria-mãe. A escola

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se tornou um espaço de formação e manutenção de laços afetivos,


culturais, políticos e econômicos com a Itália.
Já em dezembro de 1905, Petrocchi escreveu novo
relatório, afirmando que a instrução deixava muito a desejar, pois
em todo o território havia apenas 18 escolas públicas brasileiras e
cerca de duas dezenas de pequenas escolas italianas, dirigidas estas
de boa vontade por imigrantes que, pouco se importando com
sacrifícios e privações de toda a sorte, ensinavam o que sabiam e
como podiam, sem ao menos terem a certeza de poderem cobrar
ao final do mês o mil réis a que tinham direito.
Petrocchi registrou, em 1905, que a iniciativa de
implantação da escola com ensino em italiano gerou
desconfianças. Discutira-se sobre as intenções e objetivos que
estavam ‘por trás’ do ensino e dos materiais que eram enviados
pela Itália. Com o passar do tempo conquistas foram sendo
obtidas, conforme os registros de Petrocchi:

Quando, em 1901, foi fundada a escola "Petrocchi" na


vila de Bento Gonçalves, alguns procuraram obstaculizá-
la de todas as maneiras, porque suspeitavam que nos
auxílios que o governo italiano lhe garantira supunham
esconder-se alguns fins políticos ocultos. Afirmavam que
a existência de escolas italianas no Brasil era um grande
empecilho para a formação e afirmação mais vigorosa da
nacionalidade brasileira. Duvidavam que a nacionalidade
e a soberania brasileira não viessem a ser abaladas pelo
ensinamento da história e de línguas estrangeiras
ministrado aos filhos de colonos italianos. Para eles, não
se deveria estudar nada além da língua portuguesa. Em
pouco tempo os temores desapareceram. Ninguém mais
tentou opor-se à escola italiana, quando se percebeu que ela
não era um foco de política hostil, mas um local onde se
ensinava a amar a pátria de origem e a de adoção. Tal
escola, juntamente com as outras, respondia à missão
regeneradora da juventude, a qual, sem instrução, acabaria
por viver uma existência brutalizada e não constituiria
um povo orgulhoso de bom nome de sua pátria de
origem. (DE BONI, 1985, p. 113).

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A ‘prática regeneradora da juventude’ a que Petrochi se


referiu foi uma preocupação constante nos relatos das autoridades
consulares italianas. Trata-se de um viés biológico, de considerar a
necessidade de preservação da raça. “Gente sã, bem nutrida e
satisfeita” escreveu Antonelli em 1899.31 Aliavam o argumento da
superioridade racial com o viés do trabalhador ordeiro e
disciplinado, o responsável pelo desenvolvimento econômico da
Província, como escreveu Perrod em 1883: “[...] as colônias
italianas são o futuro e a única âncora de salvação para a
prosperidade e progresso desta Província.”32
No ano de 1905, o Cônsul Chiapelli afirmou que o
Governo Brasileiro aumentava o número de escolas, mas não
podia atender as necessidades de todos os centros. Destacou que os
professores públicos, por causa da diferença de língua e de índole,
não tinham condições de melhorar a intelectualidade e a
moralidade do ambiente. Por fim, aconselhou:

Seria interessante, portanto, fundar escolas italianas, e


trazer da Itália professores honestos e capazes, aos quais
se poderia confiar também as funções de agentes
consulares, contribuindo assim também para a proteção
dos concidadãos além da sua instrução. Foi feita
experiência neste sentido a qual deu bons resultados;
parece que foi decidido levá-la a outras localidades. Seria
33
utilíssimo também fundar mais escolas para crianças.

31
ANTONELLI, Conde Pietro (Ministro Real no Rio de Janeiro). O Estado do
Rio Grande do Sul e a imigração italiana. In: DE BONI, Luis A. (org.). A Itália
e o Rio Grande do Sul, IV. Porto Alegre: EST, 1983, p. 11.
32
PERROD, Enrico. Le colonie brasiliane Conde d’Eu e Dona Isabela, 1883.
Apud: DE BONI, Luis A. Bento Gonçalves era assim. POA:EST / Caxias do
Sul: Correio Riograndense / Bento Gonçalves: FERVI, 1985, p. 15.
33
CIAPELLI, Enrico. Lo stato di Rio Grande del Sud. Relatório do Cav. Enrico
Ciapelli, Cônsul em Porto Alegre – 1905, p. 954.

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No parecer de Chiapelli, era necessário investir mais na


abertura de novas escolas italianas bem como difundir a presença
de professores-agentes, como tinha sido o caso de Luigi Petrocchi,
de Bento Gonçalves. Evidencia-se em seus registros a perspectiva
de uma hierarquização das etnias pois menospreza as iniciativas
públicas, retratando-as como menos capazes de ensinar, de
moralizar e de educar para a retidão.
Outro relatório em que são esclarecidas e avaliadas as
iniciativas escolares no Rio Grande do Sul é de 1908, escrito por
De Vellutis, também Cônsul em Porto Alegre. No capítulo nove
de seu relatório afirmou serem:

[...] numerosas as escolas italianas no Rio Grande do


Sul. Somente nas Colônias Caxias, Bento Gonçalves,
Guaporé, Antonio Prado, Alfredo Chaves e Garibaldi há
cerca de cinqüenta e cinco, além de haver quatro em
Porto Alegre, uma em Pelotas, uma em Bagé, e outras
em Silveira Martins, Jaguarão, Vila Rica, Cruz Alta,
34
etc.

É questionável a consideração de que eram numerosas as


escolas italianas se observada a dimensão espacial à qual o Cônsul
se referiu. Na continuidade, considerou serem cerca de 80 as
escolas providas de livros e materiais escolares. Muitas das escolas
das sedes ou centros urbanos eram mantidas pelas Associações
Italianas que forneciam o local, os móveis e os utensílios
necessários à escola. Registrou que, com esforço, muitas
comunidades rurais mantinham suas pequenas escolas italianas,
remunerando parcamente os professores, os quais “[...] eram mais
pobres do que eles (pessoas da comunidade)”.35

34
O Estado do Rio Grande do Sul e a Crise Econômica durante o último qüinqüênio
– Extraído do Relatório do Cav. Francesco De Velutiis, Régio Cônsul de Porto
Alegre, fevereiro de 1908. p. 348 a 350.
35
Id.ibidem, p. 348 a 350.

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Mesmo afirmando que as escolas italianas eram


numerosas, que os compatriotas tinham amor às mesmas,
reconhece que elas enfrentavam dificuldades pois as escolas
públicas, gratuitas e com ensino em português eram mais
procuradas e solicitadas. Da mesma forma, classificava como
invasão o estabelecimento por parte de congregações religiosas,
especialmente destacando as Irmãs francesas (e aí está uma
questão étnico-religiosa), que acolhiam gratuitamente alunos
pobres, fazendo grande concorrência. No mesmo relatório, De
Vellutis ainda destacou que:

De acordo com sua importância, disciplina e método, são


dignas de destaque as três escolas dirigidas pelos
professores-agentes, em Bento Gonçalves (Escola
Petrocchi), em Porto Alegre (Vitório Emanuelle III) e
em Pelotas (Escola das Sociedades Reunidas), as quais
podem servir de modelo às outras. Os dois mestres-
agentes que moravam em Porto Alegre e Pelotas foram
agora transferidos para Caxias e Santa Maria onde
fundaram outras duas escolas.
As Sociedades Italianas são mais de quarenta. [...] Há
outras que mantém escolas italianas como a Umberto I, a
Elena de Montenegro, a Vitório Emanuelle III e a
Giovanni Emanuel, em Porto Alegre, as Sociedades
Reunidas em Pelotas, a Príncipe di Napoli de Caxias,
36
etc.

Em 1912, Beverini, Cônsul em Porto Alegre, relatou


que, ao visitar as colônias, encontrara muitas localidades sem
escolas públicas, onde os colonos unidos haviam fundado escolas
próprias, tendo como professor um deles, o que melhor sabia ler,
escrever e fazer cálculos.

Tive oportunidade de visitar muitas destas escolinhas e


senti-me satisfeito com seus resultados; notava-se o zelo

36
Id.ibidem, p. 348 a 350.

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do mestre que se sentia lisonjeado por ter sido escolhido


para tal encargo e notei grande freqüência por parte dos
alunos, já que os colonos fundaram a escola e possuíam
37
justo amor próprio de conservá-la.

Progressivamente as pequenas escolas isoladas e as


mantidas pelas associações iam sendo fechadas. Desde 1889, em
Roma, havia sido criada a Associação Dante Aligheri, com a
liderança de Giacomo Venezian. Sua criação aconteceu em
momento político em que a Itália, sob a liderança do Ministro
Crispi, buscava modernizar a diplomacia italiana e difundia a
perspectiva de que mantendo-se vivo o sentimento italiano, através
da instrução e da educação, seria possível obter vantagens
comerciais junto aos emigrados estabelecidos em diferentes
países.38 Sobre a Sociedade Dante, Otto escreveu:

[...] a mais antiga e a mais difusa sociedade leiga nascida


com o objetivo de ‘exportar a italianidade’ nas localidades
de imigrantes italianos, em todos os continentes. Sua
finalidade prioritária era tutelar e ‘difundir a língua e a
cultura italiana fora do Reino’, principalmente através de
escolas italianas no exterior.[...] Incentivava e colaborava
na fundação de bibliotecas populares, divulgava livros e
promovia conferências. (OTTO, 2003, p. 117 e 118).

Importante salientar que, nos núcleos coloniais em


estudo, houve, em Caxias, no ano de 1915, uma ação coordenada

37
MINISTERO DEGLI AFFARI ESTERI – Comissariato dell’emigrazione
Bollettino dell’Emigrazione (pubblicazione mensile). Anno XII, n. 10, 15 de
agosto de 1913. Nella zona coloniale agrícola del Rio Grande del Sud (Stati Uniti
del Brasile) Appunti e osservazioni del Cav. G. B. Beverini, Cônsul de Porto
Alegre, abril de 1912, p. 1060 e 1061.
38
Sobre as relações da diplomacia italiana com o Brasil, especialmente no
período de Crispi veja-se CERVO. Amado Luiz. As relações históricas entre o
Brasil e a Itália: o papel da diplomacia. Brasília: editora da UNB; São Paulo:
Instituto Italiano de Cultura, 1992.

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pelo Comitê local da associação Dante Alighieri. Tratava-se da


fundação de uma escola italiana na sede:

Presentes os senhores Dr. Vicenzo Bonancini e Adalgiso


Zanellato foi inaugurada na segunda-feira a escola de
italiano, criada pelo Comitê Dante Alighieri desta cidade.
O Cav. Beverini, Régio Cônsul da Itália entregou à
escola numerosos livros e cadernos. Nossas felicitações e
39
sinceros aplausos.

As aulas iniciaram em 15 de março, tendo como


professora Amália Bancalari. As inscrições eram feitas na redação
do jornal Cittá de Caxias e junto à farmácia D’Arrigo.40 Não foi
possível localizar outros indícios, seja do funcionamento de tal
escola ou de outras iniciativas do Comitê Dante Alighieri em
Caxias ou na Região em estudo.

O progressivo fechamento das escolas étnico-


comunitárias na Região Colonial Italiana

Se, ao final do século XIX, “[...] tínhamos também


escolas italianas, com público significativo, em Alfredo Chaves,
Antônio Prado, Bagé, Bento Gonçalves, Caxias, Encantado,
Estrela, Garibaldi, Guaporé, Jaguarão, Lajeado, Pelotas, Porto
Alegre, Silveira Martins.”(2000, p. 93), como constatou Maestri,
ao longo da primeira década do século XX essas aulas foram
desaparecendo. Isso ocorreu pela dificuldade dos pais manterem o
investimento (em especial pelo elevado número de filhos), pelo
crescimento de ofertas de escolas de outras modalidades ou pela
própria desistência do professor mediante as parcas remunerações

Publicação de 12/02/1915, do Jornal Corriere d’Itália, de Bento Gonçalves.


39

Museu Histórico Casa do Imigrante.


Publicação de 10/03/1915, do Jornal Corriere d’Itália, de Bento Gonçalves.
40

Museu Histórico Casa do Imigrante.

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(o que por vezes era feito em espécie – feijão, trigo, milho...) e,


também, por opção dos imigrantes pela escola pública. Para
Giron, “[...] na década de 1920, das escolas italianas poucas
sobreviviam em alguns municípios da região colonial, porém em
vias de extinção, sendo mal vistas pelo governo estadual e mal
assistidas pelo governo italiano.” (GIRON, 1998, p. 92).
Outro elemento a ser considerado, em se tratando das
escolas étnicas nos anos de 1920, é a propaganda fascista,
inclusive com o envio de professores comprometidos com os
fascios italianos. Entretanto, numericamente as escolas italianas já
eram em número bastante reduzido. Consoante o estudo de
Giron, no momento em que o fascismo se preparava para
modernizar o ensino que seria destinado a preparar as populações
dos núcleos coloniais italianos para as necessidades do regime
fascista, as condições para o funcionamento das escolas deixavam
de existir. No ensino, conclui Giron, “[...] pouco ou nada
conseguiu realizar o fascismo na região colonial”. (GIRON,
1994, p. 104). Considerando que “o papel da escola ‘italiana’ foi
muito importante na manutenção da língua e do culto da Itália
como a pátria dos filhos dos imigrantes”, essas aulas étnicas,
ensinando em língua italiana, tiveram vida curta. Os professores,
no final do século, naturalizaram-se e passaram a lecionar nas
escolas públicas. (GIRON, 1994, p. 58).
Cabe ainda ressaltar que a campanha de nacionalização
ocorreu desde a Primeira Grande Guerra, o que motivou o Estado
a incentivar a supressão dessas escolas étnicas e a expandir o
ensino público gratuito. A presença das escolas confessionais
particulares; a inexistência de recursos para manter as escolas, seja
por parte do governo italiano que contribuía apenas com o
material escolar, ficando o pagamento dos professores a cargo das
mensalidades pagas pelos alunos, seja por parte dos pais; a baixa
qualidade de ensino já que apenas as noções rudimentares de
leitura, escrita e aritmética eram trabalhadas, sendo que, quando
havia o ensino da história e da geografia, eram os da Itália apenas

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os ensinados, são fatores que, considerados no conjunto, permitem


compreender a curta duração da maioria das escolas étnicas
italianas. (GIRON, 1994, p. 100).
Sabe-se que a partir dos anos de 1920 as escolas étnicas
italianas foram sendo progressivamente passadas para escolas
públicas sendo que em 1938, quando da nacionalização
compulsória, as mesmas já não tinham importância expressiva.

Referências

ADAMI, João Spadari. História de Caxias do Sul: 1864-1970. 2a.


ed. Caxias do Sul: Paulinas, 1971.

BUCCELLI, Vitório. Um viaggio a Rio Grande del Sud. Milão:


Palestrini, 1906.

DE BONI, Luís A. A Itália e o Rio Grande do Sul – IV. Relatório


de autoridades italianas sobre a colonização em terras gaúchas. Porto
Alegre: EST / Caxias do Sul: UCS, 1983.

DE BONI, Luis A. Bento Gonçalves era assim. POA:EST /


Caxias do Sul: Correio Riograndense / Bento Gonçalves: FERVI,
1985.

GIRON, Loraine Slomp. As Sombras do Littorio: o fascismo no


Rio Grande do Sul. POA: ed. Parlenda. 1994.

GIRON, Loraine Slomp. Colônia Italiana e Educação. In:


Revista História da Educação. Pelotas: UFPel, n º 3, vol. 2, set.
1998.

KREUTZ, Lúcio. A Nacionalização do Ensino no Rio Grande do


Sul: medidas preventivas e repressivas. In: Fronteiras: Revista
Catarinense de História. Santa Catarina: UFSC / ANPUH-SC,
n. 13, 2005.
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KREUTZ, Lúcio. Imigrantes e projeto de escola pública no


Brasil: diferenças e tensões culturais. In: Educação no Brasil:
história e historiografia. Sociedade Brasileira de História da
Educação (org.). Campinas: Autores Associados, 2001.

LORENZONI, Júlio. Memórias de um imigrante italiano.


Tradução Armida Lorenzoni Parreira. Porto Alegre: Sulina,
1975.

OTTO, Claricia. As escolas italianas entre o político e o cultural.


In: DALLABRIDA, Norberto (org.). Mosaico de Escolas – modos
de educação em Santa Catarina na Primeira República.
Florianópolis: Cidade Futura, 2003.

SCHNEIDER, Regina Portela. A instrução pública no Rio Grande


do Sul (1770 - 1889). Porto Alegre: ed.
Universidade/UFRGS/EST edições. 1993.

Terciane Ângela Luchese é doutora em Educação pela Unisinos


e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade de Caxias do Sul. E-mail: taluches@ucs.br ou
terci@terra.com.br
Lúcio Kreutz é doutor em Educação pela PUC/SP, bolsista de
Produtividade em Pesquisa pelo CNPQ e professor do Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do
Sul. E-mail: lkreutz@terra.com.br

Recebido em: 10/03/2009


Aceito em: 20/12/2009

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Resenha
.
HISTÓRIA GERAL DO RIO GRANDE DO SUL
Eduardo Arriada

BOEIRA, Nelson; GOLIN, Tau (Coordenação Geral). História


Geral do Rio Grande do Sul. 5 volumes. Passo Fundo: Méritos
Editora. 2006/2009.

Vol. 01. Colônia. “O ensino nas crônicas do Prof. Coruja” [309-


322]. Ana Inez Klein.

Vol. 02. Império. “A Instrução” [449-489]. Jaime Giolo.

Vol. 03. República Velha. “A Educação: construindo o cidadão”


[287-311]. Berenice Corsetti.

Vol. 04. República (1930-1985). “A Educação” [315-333].


Elomar Tambara; Claudemir de Quadros; Maria Helena Camara
Bastos. “Educação Superior (1930-1985)” [335-354]. Clarissa
Eckert Baeta Neves.

A obra História Geral do Rio Grande do Sul sob a


coordenação geral de Nelson Boeira e Tau Golin, como o próprio
título anuncia, constitui-se de cinco volumes publicados pela
Méritos Editora de Passo Fundo, onde os mais diversos aspectos
da história do Rio Grande do Sul, no tempo e no espaço são
contemplados.
Nos moldes da História Geral da Civilização Brasileira,
que teve a organização de Sérgio Buarque de Holanda e Boris
Fausto, a referida obra através de um vasto panorama, reúne o
esforço de diversos pesquisadores, “mais de cem”, segundo os
próprios organizadores “inseridos em múltiplos espaços
historiográficos contemporâneos, especialmente nas

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universidades”. Sabendo de antemão as enormes dificuldades que


esse tipo de trabalho acarreta, os organizadores esclarecem na
apresentação que: “publicações coletivas jamais conseguiram
harmonizar o conflito entre cronologia, temário e concepção
autoral”; do mesmo modo, “as melhores publicações reconhecem
diferentes orientações teóricas, mesmo em obras orientadas por
escolas historiográficas, e preferem transformar uma situação
aparentemente problemática em recurso de método”.
Embora perceptível em diversos momentos as
divergências, as concepções antagônicas, as interpretações
diferentes, esses problemas não são vistos como tal, ao contrário,
na apresentação geral isso fica bem definido: “O ineditismo deste
trabalho transcende os comprometimentos celebristas e
instrumentalizadores do passado”. Sua preocupação principal é
disponibilizar uma história metodologicamente sistematizada,
sem, contudo, “abdicar das tensões entre seus autores”.
Nosso interesse particular é salientar o espaço destinado à
história da educação. Embora incorpore a análise de várias épocas
e espaços, a partir de múltiplas metodologias e fontes, a coletânea
chama a atenção também por se constituir num percurso
cronológico no tempo. Os trabalhos incluídos nos diversos
volumes examinam aspectos da educação sul-rio-grandense num
período que abrange desde a educação colonial até os anos 80 do
século XX.
No primeiro volume (Colônia), sob a direção de Fernando
Camargo, Ieda Gutfreind e Heloisa Reichel, temos o artigo de
Ana Inez Klein, “O Ensino nas crônicas do professor Coruja”
[309-322]. Embora a especificidade seja o estudo das crônicas
memorialísticas de Antônio Álvares Pereira, vulgo, Coruja; a
própria autora esclarece que elas podem “contribuir para a história
da educação no período colonial”, desse modo, o texto atenta para
as práticas de ensino levadas a efeito antes mesmo de se consolidar
no país um sistema escolar organizado em séries graduadas,
contando com matérias de estudo estruturadas e métodos didáticos

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específicos. Nessa época um dos métodos de ensino adotado foi o


de ensino mútuo, também conhecido como método lancasteriano
ou método monitoral. Coruja foi um dos defensores e divulgadores
desse método, tendo uma atuação enquanto professor e educador,
tanto no Rio Grande do Sul, como no Rio de Janeiro. Deixou
uma vasta obra didática, incluído ai, livros de gramática, de
história, até manuais para o ensino de latim.
O segundo texto de autoria de Jaime Giolo, denominado
“A Instrução” [449-489], foi publicado no segundo volume
(Império), sob a direção de Helga Iracema Piccolo e Maria
Medianeira Padoin aborda a educação durante o período imperial,
dando a conhecer diversos aspectos relacionados ao projeto do
Estado de estruturação da escola pública. Trabalhando
(principalmente) com fragmentos de leis, regulamentos, relatórios
e falas das autoridades públicas, traça um amplo painel desse
contexto. Discute a implantação do método de Lancaster, suas
dificuldades e limites. Analisa também o impacto do Ato
Adicional de 1834, que outorgava “autonomia” para as Províncias
em determinados aspectos da educação. A República Rio-
Grandense (1835-1845) recebe do autor uma esmerada
abordagem. O texto ainda se debruça sobre o ensino secundário,
salientando a atuação de Caxias na criação do primeiro
estabelecimento secundário público na Província, ou seja, o Liceu
D. Afonso. Por fim, discute as últimas décadas do século XIX,
pontuando o aparecimento da Escola Normal. Na interpretação
do autor, a escola no período imperial foi muito mais fenômeno de
discurso do que de prática. A educação das massas era uma idéia
fora de lugar.
O terceiro texto, de autoria de Berenice Corsetti “A
Educação: construindo o cidadão” [287-311], faz parte do Tomo
II, do 3º Volume, dedicado a República Velha (1889-1930),
volumes sob a direção de Ana Luiza Setti Reckziegel e Günter
Axt. Esse volume trata predominantemente da sociedade e da
cultura. Reunindo textos relativos a experiências levadas a efeito

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no século XX, ressalta o desenvolvimento e consolidação de


aspectos relativos a uma cultura escolar e profissional docente.
Mas isso não significa que os artigos estejam organizados tendo-se
em mente uma temporalidade linear e ascendente. Como bem
esclarece a autora, o texto propõe-se a abordar as características
que marcaram a educação rio-grandense nesse período,
particularmente no que tange a sua incorporação ao projeto de
desenvolvimento econômico liderado pelos dirigentes positivistas.
Desse modo, a educação foi instrumento fundamental à
construção da cidadania nos moldes capitalistas. Ao tratar as
relações entre público e privado no campo educacional, enfoca as
mediações e disputas ocorridas em relação à expansão da rede
escolar nos anos entre 1889 e 1930. Em sua abordagem, a autora
salienta três aspectos relevantes desse processo: uma reflexão sobre
modernidade e modernização; uma discussão sobre a relação entre
Estado e a Igreja (políticas, contradições, conflitos e mediações); e
por fim uma apreciação sobre a escola pública, cuja expansão no
período é elemento que merece ser bem compreendido. Entre
outras conclusões, a autora aponta o significativo papel
desempenhado pelos dirigentes republicanos na organização de
uma escola segundo o ideário positivista. Como um campo
marcado por contradições, conflitos e mediações, a educação
gaúcha nesse período em relação ao império, na opinião da autora,
teve avanços. A expansão do ensino, a diminuição do
analfabetismo, a modificação curricular e programática,
representaram aspectos progressistas da ação republicana.
Os dois últimos textos, “A Educação (1930-1980)” [315-
333] de Elomar Tambara, Claudemir de Quadros e Maria Helena
Camara Bastos; e “Educação Superior (1930-1985)” [335-354]
de Clarissa Eckert Baeta Neves, estão publicados no volume 4,
República: da revolução de 1930 à ditadura militar (1930-1985),
com direção de René Gertz.
O primeiro desses textos retoma alguns aspectos
abordados por Berenice Corsetti, isto é, o papel desempenhado

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pelos positivistas, salientando a atuação dos mesmos no Congresso


Nacional, onde diversas de suas idéias serão consubstanciadas na
Reforma Rivadávia Correa em 1911. Esse ideário estava
alicerçado na máxima positivista: “ensine quem quiser, onde quiser
e como puder”; o que se refletia em três preceitos doutrinários:
abolição dos privilégios de diplomas; redução da intervenção do
Estado ao simples papel de auxiliar da iniciativa privada em relação
ao ensino secundário e superior; e manutenção integral do ensino
primário oficial não obrigatório. Os articulistas dividem o texto
em diversos tópicos, salientando o papel normatizador do Estado,
a sua própria burocratização onde pontua depois de 1935 a
Secretaria de Estado dos Negócios da Educação e Saúde Pública,
órgão que compreendia a Diretoria Geral da Instrução Pública,
Diretoria de Higiene e Saúde Pública, Assistência a Alienados,
Museu Júlio de Castilhos e Biblioteca Pública, bem como a
superintendência da Universidade de Porto Alegre. Discutem a
Educação durante o Estado Novo, o papel de Coelho de Souza, de
atuação forte e proeminente à frente da Secretária da Educação,
período de intenso movimento de reforma do sistema educativo do
Estado e implantação do processo de nacionalização do ensino. A
nacionalização do ensino promoveu o reaparelhamento da
Secretaria da Educação e Saúde Pública à execução de uma
reforma educacional que se inseriu num contexto de reorganização
e racionalização dos serviços de Instrução Pública. Nesse âmbito,
entre 1937 e 1971, a Secção Técnica da Diretoria Geral de
Instrução Pública e, depois, o Centro de Pesquisas e Orientação
Educacionais (CPOE/RS) tiveram papel proeminente no
planejamento, organização e avaliação do processo educacional no
Rio Grande do Sul. O ideário da Escola Nova encontra-se
presente nas tecnologias projetadas para organizar, supervisionar e
avaliar o sistema educativo, bem como professores e estudantes. O
próprio CPOE, criado em 1943, espelha esse contexto. Do
mesmo modo, a criação da Revista do Ensino (1951-1978),
marca a ação do Estado na divulgação das políticas públicas em

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relação à educação. Associada às prescrições pedagógicas, às


práticas escolares e à teoria, contribuiu decisivamente à
formatação que o processo de renovação educacional assumiu,
moralizando o professor como agente da política. Abordam ainda
o movimento “Nenhuma criança sem Escola”, durante o governo
de Leonel Brizola, as políticas educacionais pós 64, finalizando
com um rápido e sucinto panorama dos anos 80.
Por fim, o último texto a tratar com exclusividade o
campo da educação, escrito por Clarissa Eckert Baeta Neves,
discute a “Educação Superior (1930-1985)”. Para a autora o
surgimento das Instituições de Ensino Superior vincula-se aos
processos de modernização das sociedades. Justificando esse
processo, aponta três fenômenos significativos da constituição do
sistema de ensino superior. O primeiro, refere-se à emergência da
idéia de universidade e à centralização da oferta desse grau de
ensino na capital do estado. O segundo fenômeno foi o da
intensificação do processo de interiorização da educação superior a
partir da década de 50. O terceiro fenômeno diz respeito ao
impacto da Reforma Universitária de 1968 sobre o ensino
superior e seus desdobramentos. Conclusivamente, a autora indica
que os anos de 1930 a 1985, corresponderam a uma sucessão de
momentos em que se tomaram decisões responsáveis pela
formatação do sistema de educação superior no estado. Uma delas
foi a disposição do governo estadual de não assumir compromissos
com a sustentação de instituições próprias de ensino superior,
buscando sempre a federalização como solução para esse dilema.
O objetivo dos diversos textos com certeza foi o de ampliar
e pluralizar as possíveis interpretações dadas às práticas e
proposições educativas. Não supõem a escrita de uma única
história, mas favorecem leituras do passado a partir de fontes e
objetos variados, quais sejam: memórias, leis de ensino,
regulamentos, relatórios, tabelas, ofícios, etc. Estruturando, desse
modo, uma coletânea de textos que tratam de experiências
educativas a partir de diferentes perspectivas.

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As escolhas dos métodos e fontes evidenciadas nos vários


artigos decorrem da valorização das diversas facetas e períodos
examinados no âmbito da história da educação. O que perpassa
nos textos apresentados é a mobilização que os diferentes
escritores vêm provocando e ainda podem provocar nos
pesquisadores da história da educação, e em seus respectivos
campos de investigação.

Eduardo Arriada é professor doutor da Universidade Federal de


Pelotas. Membro do CEIHE (Centro de Estudos e Investigação
em História da Educação), da ASPHE e da Sociedade Brasileira
de História da Educação. E-mail: earriada@hotmail.com.

Recebido em: 10/11/2009


Aceito em: 20/12/2009

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Documento
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Cartilha de Doutrina Christã
Antonio José de Mesquita Pimentel

REGRAS DE BEM VIVER

Foi o homem creado para amar e servir a Deus n’esta


vida, e gozar da sua gloria na outra. Para o conseguir, funde-se
bem na humanidade e caridade.
Os vestidos sejam decentes; os olhos andem compostos;
seja o fallar moderado, e com prudencia; não porfie, para não ser
tido por teimoso; não injurie a ninguém; não offenda ao seu rei;
não gaste mal suas rendas; ouça, veja, e cale, viverá vida folgada;
sua porta cerrará, seu visinho louvará, se quiser viver em paz; não
ouça pratica inúteis, e muito menos as sensuaes, fuja de todas a
murmuração, seja recolhido trazendo o coração no CEO; de todos
diga bem, para que todos fallem bem de si; respeite a todos, para
se d’lles respeitado; fuja de toa a ociosidade, e de demandas e
pleitos, que são a ruína da alma e da bolsa; fie-se de poucos, e a
ninguém julgue mal; attribua tudo a bem; a todos console; a todos
dê boas respostas; a todos faça o bem que puder, e será de todos
amado.
Evite os escândalos em si e nos outros; a ninguém deixe
de cortejar, fazendo a saudação costumada. A ninguém tenha por
inferior a si, antes tenha por superior. Não dia nem faça cousa
nenhuma, que depois de dizer ou fazer, tenha pezar de a ter feito
ou dito; pense as cousas antes de as fazer; quando quiser fazer
alguma cousa repare nas conseqüências que d’ahi se seguem. Não
tirem satisfação a pessoa nenhuma, porque sempre há-de ficar
mal. Não apure muito a saúde nem a gerção. Não se faça mais do
que é, repare sempre para os seus precedentes. Não gaste mais do
que tem, fuja de toda a superficialidade e avareza; acompanhe com
os seus iguaes e fuja dos vícios; deixe os prodigos, e aborreça a
companhia dos maus; no comer seja moderado, e nunca por
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appetite; evite as culpas pequenas, se não quer cahir nas grandes;


evite a occasião, se não quer cahir no pecdado.
Terá por maior honra tudo que for virtude, e por maior
affronta o vicio; soffra a todos, para que todos soffram; nunca
obre contra o que entender que é justo, e muito menos contra a
consciência; fuja de tudo que é enganar ao próximo; preze-se mais
de bom christão, do que de cortezão; seja devoto quando puder; as
suas conversas sejam com os mais virtuosos; nunca se dê por
satisfeito no bem obrar aspirando sempre á maior perfeição, tendo
por mau empregado o tempo em que não fizer algum pregresso na
virtude; nem se deixe acobardar com o que pedirão. Procure imitar
os outros no bem espiritual, e evitar os vícios que reconhece no
seu próximo. Mostre-se sempre compassivo com os necessitados,
ajudando-os quando puder, não reparando em que sejam seus
inimigos; faça bem a quem lhe fizer mal.
Lembre-se frequentemente quem foi, quem é, quem será,
da morte, do juízo, do castigo reservado para os maus, e do premio
para os bons, e com isso refreará os vícios e os appetites
desordenados. Viva como se em aquelles momentos houvesse de
dar contas a Deus; ame a justiça, a mansidão e a boa consciência,
evite jogos illicitos, e toda a occasião de peccados, e ruína de sua
alma e do proximo; leia livros Moraes, e cresça na virtude. Assim
nas doenças como na saúde, no bem e no mau que lhe aconteça,
sempre se conforme com a vontade divina; pois melhor se alcança
o céo pelas penalidades, do que pelas propriedades; conseve a
amizade dos bons amigos; procure a graça dos inimigos; repare
que nunca de fazer o mal se seguiu bem.
Nunca perca a amizade de Deus por conservar a dos
homens, nem por desconfiado irrite a benevolencia d’este; attribua
sempre á boa parte as cousas do seu próximo.
Só prometta o que póde, não se tomo como o mais
poderoso; não julgue tudo o que vê, nem acredite quando lhe
disserem sem se informar; não cria tudo que ouve; não conceda
tudo quando lhe pedem, nem negue o justo, as negócios grandes

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não se resolvem sem conselhos dos sábios e prudentes,


consultando a Deus com fructuosa oração, ao qual tema e ame: O
primeiro lhe servirá para não peccar, e o segundo para o bem
obrar.
Conserve a gravidade e a serenidade com todos; dissimule
e perdôe aggravos, e Deus lhe perdoará; não se faça grande nem
rico; não queira ser lisonjeado; o que não quer se saiba, não o Diga
a ninguém. Aparte de si todo o affecto ás temporalidades e gostos
terrenos. Governe-se pela verdade conhecida e não pela opinião
rebuçada e menos segura. Não diga o que quer, para não ouvir o
que não quer. Não se faça mandador aonde não fôr senhor, porque
não ha cousa mais feia do que governar na casa alheia.
A Deus attribua todo o bem, e a si tudo o que é vicio; seja
muito devoto a Virgem Maria, imitando as suas virtudes, reze a
sua Caroá, meditada, com a devida attenção; receba os
Sacramentos da Penitencia e Comunhão com toda a devoção;
procure ter confessor prudente, devoto e sabio; cuide em fazer pela
sua alma, em quanto vivo o que puder; faça testamento em quanto
tem saude, instituindo por testamenteiro o mais virtuoso e
temente a Deus.
Logo de manhã se porá de joelhos, offerecendo as obras
d’aquelle dia a Deus, como se diz no fim do catalogo. A’noite
examine a consciencia dê graças a Deus; tenha um bocadinho de
oração mental; encommende-se ao seu Anjo da Guarda e durma
só o preciso.
Omnia t men scripta superiorum, AC Sancta Martris
Eclésia judicio, correctionique subdo, ET sbmitto.

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A revista História da Educação aceita para publicação


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originados de estudos teóricos, pesquisas, reflexões metodológicas e
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em português ou espanhol. A revista publica, também, trabalhos
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significativamente na área da História da Educação. Possui,
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apresenta o conteúdo e comentários sobre publicações recentes ou
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Conselho Editorial e/ou a pareceristas ad hoc. A seleção dos
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deles, 790 caracteres (contando espaços).

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