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IBEROGRAFIAS

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SOCIEDADE E MEMÓRIA
DOS TERRITÓRIOS

Coordenação:
Rui Jacinto

43
IBEROGRAFIAS

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Coleção Iberografias
Volume 43

Título: Sociedade e memória dos territórios


Coordenação: Rui Jacinto
Apoio à edição: Ana Margarida Proença
Autores: Ana Cristina Marques Daniel; Arlete Moysés Rodrigues; Bartolomeu Israel de Souza; Carlos Augusto de Amorim Cardoso;
Catarina Gonçalves; Claudete Oliveira Moreira; Cláudio Zanotelli; Davidson Matheus Félix Pereira; Diego Piay Augusto; Dirce
Maria Antunes Suertegaray; Doralice Sátyro Maia; Eline Dornelas; Francisco José Araujo; Gabriel Elias Rodrigues de Souza; Gilberto
Vieira dos Santos; Helena Santana; Inocêncio de Oliveira Borges Neto; Irene Sánchez Izquierdo; Isabel Cristina Antunes Afonso
Lopes; Joana Capela de Campos; Joaquim Miranda Maloa; José Borzacchiello da Silva; Juliana Ramalho Barros; Laís Bronzi Rocha;;
Maíra Suertegaray Rossato; Miguel António Paixão Serra; Nilson Cesar Fraga; Norberto Santos; Patricia Argüelles Álvarez; Rodolfo
Junqueira Fonseca; Rosário Santana; Rui Jacinto; Thais da Silva Matos; Thais de Oliveira Queiroz; Tiago Silva Moreira; Timo
Bartholl; Leila de Oliveira Lima Araujo; Valéria Cristina Pereira da Silva; Vítor Murtinho; Yago Evangelista Tavares de Souza;

Pré-impressão: Âncora Editora

Capa: Tiago Melo | Âncora Editora


Fotografia: Rui Correia

Impressão e acabamento: Locape - Artes Gráficas, Lda.

1.ª edição: junho de 2022


Depósito legal n.º **

ISBN CEI: 978 989 867 633 7


ISBN: 978 972 780 818 2

Edição n.º 41043

Centro de Estudos Ibéricos


Rua Soeiro Viegas n.º 8
6300-758 Guarda
cei@cei.pt
www.cei.pt

Âncora Editora
Avenida Infante Santo, 52 – 3.º Esq.
1350-179 Lisboa
geral@ancora-editora.pt
www.ancora-editora.pt
www.facebook.com/ancoraeditora

O Centro de Estudos Ibéricos respeita os originais dos textos, não se responsabilizando pelos conteúdos, forma e opiniões neles expressas.
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Apoios:

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SOCIEDADE E MEMÓRIA DOS TERRITÓRIOS
Rui Jacinto 7

I. PATRIMÓNIO, PATRIMONIALIZAÇÃO E AS LEITURAS DO TERRITÓRIO

Pauliteiros de Miranda: quando a música, a ação e a dança se cruzam em 11


territórios de fronteira
Helena Santana; Rosário Santana
Revitalización de los núcleos de baja densidad a partir del estudio 29
de las villae romanas
Diego Piay Augusto; Patricia Argüelles Álvarez
Projeto Arqueológico Outeiro do Circo (Beja, Portugal): educação patrimonial 41
e envolvimento comunitário
Miguel António Paixão Serra
A linha do tempo da patrimonialização entre a memória e o apagamento 59
de um Parque Arqueológico em Ouro Preto – Minas Gerais - Brasil
Rodolfo Junqueira Fonseca
Imaginar, realizar e compartilhar: oficinas de aprendizagem criativa 101
como instrumento para uma educação baseada em projetos
Juliana Ramalho Barros
Museos y patrimonio inmaterial en la Raya hispano-portuguesa: las museografías 77
del contrabando
Irene Sánchez Izquierdo
A leitura literária como experiência geográfica na escola 109
Maíra Suertegaray Rossato
O mar entre Cecília Meireles e Sophia de Mello Breyner Andresen: partilhas 123
espaciais e literárias através de imagens poéticas entre Portugal e o Brasil
Valéria Cristina Pereira da Silva
Toponímia, identidade e processo de colonização da Paraíba 137
Inocêncio de Oliveira Borges Neto; Dirce Maria Antunes Suertegaray; Rui Jacinto;
Doralice Sátyro Maia; Bartolomeu Israel de Souza; Carlos Augusto de Amorim Cardoso

II. CIDADE E DESENVOLVIMENTO URBANO

Cidade Universitária de Coimbra e a sua relação com a população: uma evolução 173
ao longo do tempo, vivências e memórias
Joana Capela de Campos; Claudete Oliveira Moreira; Vítor Murtinho; Norberto Santos

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Patrimônio: imagens e retratos a partir da paisagem urbana 203
Eline Dornelas
O processo de gentrificação em Moçambique: mudanças e perspectivas 209
Joaquim Miranda Maloa
O crescimento urbano na Ilha do Maranhão e suas contradições socioespaciais 231
Tiago Silva Moreira
Os movimentos sociais urbanos em Campina Grande-Pb: confrontos e resistências 254
na cidade face à pandemia
Davidson Matheus Félix Pereira
O direito à moradia e as políticas públicas de moradia no Brasil 261
Arlete Moysés Rodrigues

III. NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS, MEMÓRIA E DESAFIOS DA GOVERNAÇÃO

Novos, velhos e novíssimos movimentos sociais no Brasil 279


José Borzacchiello da Silva
A interpretação feminina das guerras coloniais na África portuguesa: 295
a construção de uma nova narrativa
Thais de Oliveira Queiroz
O Anticolonialismo como Consciência Histórica Nacional: O Ofício de José Honório 309
Rodrigues (1946-1987)
Gabriel Elias Rodrigues de Souza
O amor virtual transcultural em contextos transnacionais 325
Catarina Gonçalves
Solidariedade ou caridade: pistas para um diálogo com as frentes contra 339
a Covid-19, em territórios favelados
Timo Bartholl; Leila de Oliveira Lima Araujo; Yago Evangelista Tavares de Souza;
Laís Bronzi Rocha; Thais da Silva Matos
Intervenções promotoras de e-government e e-health numa organização 359
de saúde – o caso da Unidade Local de Saúde da Guarda
Isabel Cristina Antunes Afonso Lopes; Ana Cristina Marques Daniel
Por uma arqueogeografia do Contestado – A Guerra do Contestado como crime 379
contra a Humanidade
Nilson Cesar Fraga
Governo Bolsonaro: o retorno da política genocida contra os povos Indígenas 415
Gilberto Vieira dos Santos
O governo neoliberal no Brasil por meio da política de guerra civil entre 435
territorialização e desterritorialização
Cláudio Zanotelli
As Democracias morrem quando a Política declina: facciosismo e arquétipos no Brasil 459
Francisco José Araujo

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Sociedade e memória dos territórios

Rui Jacinto1

O livro que se dá à estampa resulta da XXI edição do Curso de Verão, realizada entre os
dias 6 e 10 de julho de 2021, subordinada ao título “Novas fronteiras, outros diálogos: coo-
peração e desenvolvimento”2. Esta iniciativa emblemática que o Centro de Estudos Ibéricos
(CEI) realiza ininterruptamente faz duas décadas, a par doutros eventos que promove
anualmente, responde diretamente a uma missão que tem como foco o Conhecimento, a
Cooperação e a Cultura. O Curso de Verão, ao apostar na difusão de informação sobre os
territórios e as culturas ibéricas, afirmou-se como uma importante iniciativa de cooperação
territorial que honra o compromisso do CEI com os espaços mais débeis e excluídos.
A edição de 2021, que decorreu virtualmente, contou com cerca de 350 participantes, disper-
sos por vários pontos do país e do estrangeiro, e a apresentação de cerca de 80 comunicações por
investigadores de diversas nacionalidades. O elevado número de participantes e de comunicações
permitiram organizar um evento que contou com várias Conferências3, Mesas Redondas4, um

1
Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território e Centro de Estudos Ibéricos
(CEGOT/CEI-PT)
2
https://www.cei.pt/cv/programacao-2021.html.
3
Conferências: 1. A charneca: memória, paisagem e património (Jorge Gaspar, Portugal); 2. Paisaje y
Patrimonio (Josefina Gómez Mendoza, Espanha); 3. O grito e a explosão do território brasileiro: desigualda-
des e seletividades socioespaiais. Debates urgentes (Maria Adélia Souza, Brasil); 4. O Ensino Superior em
7 // Sociedade e memória dos territórios

Cabo Verde: cooperação e desenvolvimento territorial (Judite Nacimento, Cabo Verde).


4
As Mesas Redondas estruturam-se em torno de quatro temas fundamentais: I. Paisagens e Patrimónios com
intervenções de Lúcio Cunha; Alipio de Celis; António Campar de Almeida; Antonio Campesino; II. História
Local, História Ibérica, História Pública – Território, Memória, Identidade (Rita Costa Gomes; Diego Piay
Augusto e Patricia Argüelles Álvarez; Irene Sánchez Izquierdo; Antonieta Pinto e António Prata Coelho; Arsenio
Dacosta); III. Cooperação e Desenvolvimento (Valentín Cabero; Victor Casas; António Pedro Pita) IV. Coesão
Territorial (Rui Jacinto; Lorenzo López Trigal; João Ferrão).

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Forum5 e múltiplos Painéis6 envolvendo uma rede de investigadores, que se vai alargando,
oriundos de universidades de diferentes países. Além de Portugal e de Espanha, de Cabo
Verde, Angola e Moçambique, houve inúmeras intervenções do Brasil que fizeram desta
edição a mais participada e mais internacionalizada de sempre. A realização virtual devido
à pandemia implicou substituir os tradicionais Trabalhos de Campo por documentários que
coincidiram com os quatro temas das mesas redondas.
A presente edição reúne vinte e cinco textos relativos a comunicações apresentadas e
que abordam temas que vão ao encontro das atuais agendas tanto da investigação como da
ação, isto é, das preocupações das políticas públicas com incidência territorial. As áreas de
investigação repartem-se por diferentes regiões, especialmente do Brasil (18), engloban-
do outros países como Portugal (4), Espanha (2) e Moçambique (1). Embora abordem
problemáticas relativamente diversas, as afinidades temáticas que evidenciam permitiu
estruturar a sua apresentação em torno de três coordenadas fundamentais: património, pa-
trimonialização e as leituras do território corresponde a uma digressão pelas paisagens cultu-
rais, pela arqueologia e pelo património imaterial ressaltando a importância da literatura e
da toponímia na leitura e interpretação do mundo que nos rodeia; cidade e desenvolvimento
urbano constitui uma visita a vários aspetos que nos ajudam a compreender a diversidade
urbana e as contradições associadas aos atuais processos evolutivos; novos movimentos sociais,
memória e desafios da governação põe em destaque a pluralidade de perspetivas inerentes às
dinâmicas sociais, variáveis a considerar na hora de pensar as políticas públicas.
Importa agradecer a preciosa colaboração dos autores dos textos cujo contributo aumenta
um património coletivo que o CEI dignifica ao promover a sua difusão.

5
Forum “As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa” (Intervenções de: Lúcio Cunha; Dirce
Suertegaray; José Maria Semedo; Rui Jacinto; José Borzacchiello da Silva; Inês Macamo Raimundo; Maria
Fernanda Delgado Cravidão).
6
Painéis: 1. Geodiversidade, biodiversidade, ordenamento do território, moderado por Lúcio Cunha;
2. Dinâmicas da paisagem e injustiça ambiental (António Campar de Almeida); 3. Recursos naturais e edu-
8 // Sociedade e memória dos territórios

cação ambiental (Messias Modesto dos Passos); 4. Património e turismo (Maria Fernanda Delgado Cravidão);
5. Património, patrimonialização, memória (António Pedro Pita); 6. Agricultura e desenvolvimento rural
(Rosangela Hespanhol); 7. Rural, segurança alimentar, políticas públicas (María Isabel Martín Jiménez);
8. Cidade e evolução urbana (Valentin Cabero); 9. Cidade, paisagem e imagem urbana (Rui Jacinto);
10. Literatura e leituras do território (Cristina Robalo-Cordeiro); 11. Dinâmicas económicas e sociais (David
Ramos Pérez); 12. Temas pós-coloniais (Ivaldo Lima); 13. Políticas públicas e sistemas de saúde (María Isabel
Martín Jiménez); 14. Governação e movimentos sociais (José Borzacchiello da Silva).

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I. PATRIMÓNIO,
II. II

PATRIMONIALIZAÇÃO E AS
LEITURAS DO TERRITÓRIO

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Pauliteiros de Miranda: quando a música,
a ação e a dança se cruzam em territórios
de fronteira

Helena Maria da Silva Santana1


Maria do Rosário da Silva Santana2

Introdução

Em Portugal, e ao longo de todo o território do Nordeste Transmontano, várias são


as manifestações culturais que apontam para uma influência recíproca nos dois lados da
fronteira. Não raras são as demostrações que encontram equivalente em terras de Espanha,
como é o caso da prática musical do Tamborileiro, do uso da máscara em certos rituais
ligados às festas do solstício de inverso, ao Entrudo e à Queima dos judas, os rituais da
Amenta das Almas ou algumas danças como aquelas que aqui pretendemos analisar - a Dança
dos Paus. Por Terras de Miranda, e em todo o Planalto Mirandês, ainda hoje as encontramos
preservadas, quiçá devido a uma interioridade, bem como a numerosas outras tradições,
mormente aquelas já identificadas. Quem se desloca pelo Planalto Mirandês, e em parti-
cular por Terras de Miranda do Douro, encontra grupos de rapazes que, através da prática
de alguns rituais em que a prática desta dança se destaca, preserva aquilo que de mais ge-
nuíno a região tem3. Estes dançarinos, executando a Dança dos Paus, conservam com rigor
e genuinidade os rituais ligados às festas solsticiais, contribuindo, com a sua ação, para o
desenvolvimento turístico da região, bem como para a preservação das suas tradições. A
sua dança encontra lugar de destaque em celebrações de natureza tanto religiosa como
11 // Sociedade e memória dos territórios

1
Universidade de Aveiro
hsantana@ua.pt
2
Instituto Politécnico da Guarda
rosariosantana@ipg.pt
3
Em Portugal, a Dança dos Paus, conhecida como a Dança dos Pauliteiros, está associada à região de Miranda do
Douro e ao seu território. No entanto, esta subsiste noutras localidades do distrito de Bragança, nomeadamente
nos concelhos de Mogadouro, Bragança e Macedo de Cavaleiros. Esta dança também já se praticou em outros
concelhos da região, mas, nos dias de hoje, esta prática encontra-se neles já extinta, como é o caso de Vimioso.

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profana, e a sua presença se dá em diferentes momentos da festividade e da festa, como são
o Peditório, a Arruada, a Missa ou a Procissão4. Enquanto rituais de profundo significado
religioso, profano e mitológico, cuja origem é remota no tempo, estas manifestações possi-
bilitam o reconhecimento dos traços identitários de uma cultura e tradição. Estabelecendo
uma forte ligação com o território do Reino de Castilha e Leão, ao qual Miranda do Douro
pertencia antes da fundação da nacionalidade portuguesa, percebemos, bastantes similitudes
ao nível da sua constituição e prática5.

Diferentes estudos sobre a origem da Dança dos Pauliteiros revelam ascendências tem-
porais e espaciais diversas (Martínez Muñiz & Porro Fernández, 1998; Díaz & Porro, 2008;
Topa, 2004; Tiza, 2010). O facto promove a diversidade de opinião sobre uma sua origem e
prática6. Estas danças, ainda hoje praticadas em diferentes pontos do globo, mostram a forma
como os povos adaptaram as suas danças guerreiras de modo a incluí-las na prática do dia-a-
-dia, tornando-as uma forma de manifestação cultural7. Estas práticas, realizadas em distintas
épocas do ano, e sempre com um propósito bem definido, a participação nas festividades dos
solstícios de verão e de inverno, ditavam os ritmos das colheitas e o ritmo da vida em tempos
onde a ação do relógio não tinha ainda lugar, e os tempos eram ditados pelos ciclos da vida, do
dia e da noite, e pelas estações do ano8. Neste contexto, as manifestações culturais que grassam
ao longo de todo o território da raia portuguesa revelam-se numerosas e férteis, estando liga-
das a celebrações, rituais e ritos de natureza tanto religiosa como profana. Sendo ações onde

4
Estas danças, manifestações de caracter profano, estiveram até ao século X, arredadas de qualquer festividade
religiosa. A igreja católica começou a admirar a sua presença nas festas dos santos (que correspondiam às épocas
solsticiais), começando assim a ser usadas nas celebrações das colheitas, e nas festas dos santos padroeiros.
5
Em Portugal, a Dança dos Pauliteiros, a par da língua mirandesa, constitui um elemento identificador
do território. De acordo com António Maria Mourinho, a Dança dos Pauliteiros “dançou-se em toda a
região compreendida entre os rios Sabor e Douro, talvez desde Rio de Onor até aos limites do concelho de
Mogadouro, confrontando com os de Freixo de Espada à Cinta e Moncorvo”. (Mourinho, 1984, p. 454).
6
Para alguns estudiosos esta terá aparecido durante a idade do ferro, na Transilvânia, espalhando-se poste-
riormente pela Europa. Estrabão, historiador, geografo e filósofo grego, autor de vasta obra no domínio da
Geografia, nomeadamente a obra homónima em 17 volumes, e cujo terceiro livro é dedicado à Ibéria, refere
que certos povos que habitaram na península no século III se preparavam para os combates realizando este
tipo de danças, trocando apenas o uso das espadas pelo uso de paus de 45 cm, na tentativa de evitar assim,
riscos desnecessários. De salientar que esta obra, magnânima, cobre todo o mundo conhecido pelos povos
da Grécia e Roma antigas, oferecendo valiosa informação sobre os conhecimentos dos geógrafos da época
12 // Sociedade e memória dos territórios

(Martínez Muñiz & Porro Fernández, 1998; Díaz & Porro, 2008; Topa, 2004; Tiza, 2010).
7
Damos como exemplo a Capoeira, uma forma de expressão cultural brasileira que congrega movimentos de
arte marcial, música e dança. Tendo por base a defesa pessoal, presente nos diferentes movimentos que usa,
estes não se concretizam no ataque e agressão do parceiro, mas sim numa ação apoiada na música que é feita
pelos seus praticantes. Neste caso, os intervenientes, tal como na dança dos pauliteiros, não apenas lutam ou
jogam, mas também tocam instrumentos musicais de apoio ao movimento executados pelos intérpretes.
8
Neste sentido, os povos preservaram estas danças para darem lugar a festas aquando das colheitas e como
forma de assinalarem a passagem dos solstícios de verão e inverno.

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o misticismo, o sagrado e o profano se combinam, descobrimos nelas traços que são comuns
nos dois lados da fronteira. Este facto revela-se no que ao uso da música e da dança diz res-
peito. Recuando no tempo, e simultaneamente no espaço, e questionando sobre a sua origem
e significado, verificamos que esta dança, a Dança dos Paus, exige não só uma indumentária
própria, como um conjunto específico de dançarinos, adereços próprios e uma capacidade
física suficiente grande para produzir uma coreografia bastante exigente e capaz. De um e
outro lado da fronteira, e em face do seu desenvolvimento social e cultural, percebemos algu-
mas dissemelhanças. De entre elas salientamos a presença de grupos que se constituem só de
rapazes, no caso de nos focarmos em território nacional, ou de rapazes, raparigas e/ou mistos
se nos detivermos por terras da vizinha Espanha. Percebemos igualmente o uso de adereços
que diferem em um e outro lado da fronteira, como são o caso dos paus e/ou das castanholas.
A indumentária surge também diversa, seja nos materiais, seja nas cores. Em alguns povoados
de Espanha, como o de Tábara, encontramos ainda a presença de uma figura característica de
nominada de El Birria.

No que concerne a Dança dos Paus, e à sua origem e significado diz respeito, as opi-
niões diferem, e alguns há, que a remetem para a Idade do Ferro, e para a Transilvânia.
Referem ainda que somente numa fase posterior se espalhou pelo continente europeu
(Vasconcelos, 1992; Tiza, 2010). Iremos agora analisar não só os elementos que permitam
identificar uma sua origem e significado, mas também o ritual da dança no que toca alguns
dos seus elementos, nomeadamente a indumentária e os passos, a música e a dança, os
artefactos e os instrumentos musicais usados nos dois lados da fronteira, de modo a iden-
tificar as semelhanças e as diferenças. Neste sentido, enfocamos a nossa atenção naquilo
que nos é oferecido por Terras de Miranda e em todo o Planalto Mirandês, bem como por
Terras de Galiza e da Extremadura, de modo a perceber as suas características mais mar-
cantes, o ethos e o pathos desta prática, bem como das características da música utilizada
neste contexto. Detemos ainda uma atenção particular sobre os instrumentos musicais, de
modo a evidenciar as suas características, bem como as particularidades de um sonoro que
se evidencia numa sua prática, conceção e função.

Os Pauliteiros: origens e características de uma prática cultural, social


13 // Sociedade e memória dos territórios

e artística

Existindo referências à Dança doa Paus e à Dança dos Pauliteiros desde priscas eras,
percebemos que estas se encontram ligadas a certas festividades de cunho agrário, bem
como aos cultos de fertilidade. Posteriormente surgem associadas a festividades e festas

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de carácter religioso, nomeadamente as festas do Corpo de Deus, da Nossa Senhora e da
Virgem Mãe ou ao culto dos Santos Padroeiros de diferentes regiões do Planalto Mirandês
ou da Região de Castilha e Leão. Os documentos que consultámos associam maiorita-
riamente estas danças aos ritos de fertilidade e de agradecimento pelas colheitas. Na sua
prática, informam ainda sobre o uso de diversos adereços, como são as castanholas e os
paus. De acordo com Josep Crivillé (apud in Tiza, 2010), “os paus representariam as alfaias
com as quais o homem começou a desenvolver os trabalhos agrícolas nas comunidades
agro-pastoris. Assim sendo, a dança assumiu, na sua origem, um carácter de culto. Ainda
hoje, prevalece a crença de que a dança favorece a germinação das colheitas; assim se
compreende a sua atuação nas festas das colheitas do fim do Verão e do início das semen-
teiras; em alguns dos laços da dança9, os bailadores curvam-se em direção à terra, colocam
verticalmente os paus no chão e dançam à volta de uma medida de cereal (o alqueire),
simbolizando o agradecimento à divindade pelas colheitas recebidas, no ciclo agrário que
terminou, e, ao mesmo tempo, lembrando a atividade agrária da sementeira, no ciclo que
vai começar no fim do Verão e princípios do Outono. Os paus continuarão a representar
as alfaias agrícolas”. (Tiza, 2010, p. 143). A presença da dança dos paus nas celebrações de
culto agrário na Antiguidade, continua assim em algumas festividades cristãs, apesar das
diversas interdições impostas pela Igreja, nomeadamente aquelas que irrompem dos dife-
rentes Concílios de Toledo (Martinez Diez, 2014)10. De acordo com o expresso, António
Mourinho afirma que, “todas as danças populares, rurais, existentes ao passar-se da Idade
Antiga para a Baixa Idade Média transitaram para esta, porque os costumes romanos e
gentílicos continuaram também” (Mourinho, 1984, p. 391).
Na Alta Idade Média, nomeadamente a partir do século X, existe igualmente refe-
rência à prática destas danças. Segundo Luís de Hoyos, “as danças de espadas e de paus,
sendo só geralmente executadas por homens, a Igreja permitiu-as nas suas solenidades”
(Hoyos apud in Mourinho, 1984, p. 421). Já Rolf Brendnich, declara que “a dança dos
paulitos [nasce] nas danças de espadas de origem indo-europeia, que existiu em toda a
Europa Ocidental, desde a Escócia à Península Ibérica e desde a Alemanha à Jugoslávia”
(Brendnich apud in Mourinho, 1983, p. 64). Este autor refere ainda que “os folcloristas
e etnógrafos britânicos, franceses e alemães passam a considerar a dança dos paus como
sucedânea de danças indo-europeias de espadas, que haviam substituído as espadas por
paus para facilitar a dança” (Brendnich apud in Mourinho, 1983, p. 8)11.
14 // Sociedade e memória dos territórios

9
Os laços, ou lhaços, da dança são os elementos da coreografia.
10
Segundo Martinez Diez (2014, p. 121) “Cuando se habla de los Concilios de Toledo se refieren siempre
los autores a la serie numerada de 17 Concilios que encontró acogida y fue divulgada por la Colección
Canónica Hispana en su tercera recensión: La Vulgata del 694.”
11
Não está assim excluída a origem guerreira da dança dos pauliteiros, sendo as espadas substituídas por paus.

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Nos domínios das festividades e festas religiosas, a Dança dos Paus integra a procissão
da festa do Corpus Christi por bula papal de Urbano IV, de 1264, facto que ainda hoje
ocorre em muitas localidades de Zamora (Martínez Muñiz & Porro Fernández, 1998;
Díaz & Porro, 2008; Topa, 2004; Tiza, 2010). O mesmo se encontra em outras festas
patronais, ou naquelas que se associam ao final das colheitas e do ciclo do Inverno, nas
quais os Pauliteiros atuam durante a Missa Solene do Santo Padroeiro e no decorrer da
Procissão. De acordo com Tiza, “alguns historiadores tentam vislumbrar nela [a bula papal
de Urbano IV] a origem da dança, à qual teria sido conferido um carácter processional.
[Assim,] neste contexto, as expressões constantes na bula, cante a fé, dance a esperança
e salte de gozo a caridade foram interpretadas à letra pelo povo, sem que a Igreja tivesse
colocado qualquer impedimento.” (Tiza, 2010, p. 144).
Nos finais do século XIX, João Manuel Pessanha, tentou ligar a Dança dos Paus a uma
origem exclusivamente guerreira, associando-a à dança pírrica greco-romana. No entanto,
José Leite de Vasconcelos, nos seus Estudos de Filologia Mirandesa, aponta num outro
sentido a sua investigação. Vasconcelos (1992) afirma que esta dança, quando se dá a
romanização, altura em que supostamente seria introduzida na Península Ibérica, já aqui
era praticada pelos Celtas e Iberos, em certos rituais de fecundidade agrária ou como mero
exercício físico de preparação para a atividade guerreira. Em outro, e por continuar a ser
praticada em diferentes regiões do planeta, sobressaem, fruto de uma consequente evolu-
ção, algumas divergências no modo como são executados os laços, se formam os grupos, se
constituiu o acompanhamento musical, etc., com a Dança de Paus ou a Dança de Espadas,
o que nos pode levar a pensar, segundo o autor, que nada tem a ver com a dança pírrica,
dança estritamente guerreira, praticada com espadas e a cavalo12 (Vasconcelos, 1992).

Em relação à Dança dos Paus, a influência que apuramos nos dois lados da fronteira
é clara e recíproca. No que à Dança dos Pauliteiros diz respeito encontramos em Espanha
uma dança equivalente, denominada de Danza de Palos, uma prática cultural e artística
que se encontra disseminada por todo o território espanhol desde a região de Galiza até à
da Extremadura. Segundo o folclorista e musicólogo Garcia Matos a Danza de Palos tem
a sua origem numa dança de fertilidade. Contrariamente a este autor, outros afirmam que
esta dança tem a sua origem na época medieval (Martínez Muñiz & Porro Fernández,
1998; Díaz & Porro, 2008; Topa, 2004)13.
15 // Sociedade e memória dos territórios

12
Apesar de todas estas divergências quanto à origem da Dança dos Pauliteiros, nomeadamente no que con-
cerne a sua introdução na Península Ibérica pelos Celtas, encontramos pontos comuns na referência à sua
ligação ao culto, em momentos precisos dos ciclos agrários (tribos dos Vaceos, dos Zoelas e dos Galaicos, e
a presença da Dança dos Paulitos na Escócia) (Tiza, 2010; Vasconcelos, 1992).
13
Independentemente da sua origem, é uma dança comum à Península Ibérica que junta tradições militares
presentes nestes territórios, trazidas pela mão dos repovoadores do Reino de Leão.

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Depois de um período onde estas tradições estiveram em risco de desaparecer, há uma
necessidade de as recuperar de modo a restaurar os territórios, promovendo o seu desen-
volvimento turístico, económico, social e cultural. Neste contexto, a recuperação destas
danças é disso exemplo. Recebendo denominações diferentes de acordo com o território
onde se inserem, designadamente Dança dos Paus, Dança dos Pauliteiros, Danza de Palos,
Danza de Paloteo, Troqueo, Palilleo, Paleo ou Palitroque, têm em comum as funções às
quais se destinava a sua prática, as coreografias, a música e as características dos bailadores
(salvaguardando especificidades, idade, sexo, estado civil, capacidade física e psicológica,
dos participantes) (Vasconcelos, 1992; Martínez Muñiz & Porro Fernández, 1998; Tiza,
2021)14. A Dança de Paus mantém-se nos dias de hoje, tal como em Portugal, por toda a
província de Zamora, e por toda a região da raia, onde confirma toda uma influência trans-
fronteiriça15. Percebemos ainda, e devido à função que vai adquirindo, a manifestação de
uma evolução no que ao seu uso e prática diz respeito, pois não podemos ficar indiferentes
à evolução dos tempos e dos espaços, dos povos e das tradições16.

Os Pauliteiros: uma vivência e uma prática nos dois lados da fronteira

Se os grupos de dançarinos que utilizam os paus nas suas coreografias proliferam por
toda a região da raia, no que aos Pauliteiros de Miranda diz respeito, apuramos que não

14
Esta dança não só está presente na província de Zamora, mas também por Castilla y León, estendendo-se
com pequenas variações à Cantábria, Catalunha, Comunidade Valenciana, Baleares, Castilla la Mancha,
Galiza e País Basco (na versão de dança das espadas). Elías Martinez Muñiz afirma que a “danza de palos”
se encontra “latente a través de los siglos y constatable como pocos testimonios coreográficos em los docu-
mentos, sino por el apego y gran fuerza que siguen manteniendo em las localidades donde se conserva com
plena vigência y actualidad em su función” (Martínez Muñiz & Porro Fernández, 1998, p. 75).
15
Na província de Zamora, subsiste apenas em quatro localidades: Cañizal, comarca de La Guareña, Tábara,
Muelas del Pan e Almaraz de Duero; nesta última, a dança foi recuperada no passado ano de 2009, após
um período de cerca de vinte anos de inatividade. Nas restantes localidades onde a dança foi referenciada,
ela perdeu-se definitivamente: Fuentesaúco, Villamor de los Escuderos, Villaseco, San Miguel de la Ribera,
Toro; a memória das danças permanece ainda nas populações mais idosas de algumas localidades alistanas
(Nuez e Sejas de Aliste), sayaguesas (Muga e Almeida de Sayago) e sanabresas (Lobeznos, Calabor, Ungilde
e San Martín de Castañeda). (Tiza, 2010, p. 143).
16
Estas danças não existem só na Europa. Não podemos deixar de referir a sua prática em outros continentes
que não o europeu. É comum encontrarem-se também em alguns países além-mar onde os Portugueses e
16 // Sociedade e memória dos territórios

os Espanhóis chegaram aquando da colonização. Se no início foi usada para evangelizar os povos integran-
do as festividades religiosas, evoluiu depois para um uso em contexto profano integrando festividades tais
que os carnavais regionais. Assim temos referência à existência da dança de espadas no Brasil e do “paloteo
mixto” na Colômbia. Na Colômbia notamos influências locais, nomeadamente “as influencias mestizas
(índio-español) y mulatas (blanco-español)”. [De acordo com este autor,] “el paloteo, en sus inicios, fuera
una danza de Corpus Christi, festividad que perdió vigencia al haber perdido con su misión evangeliza-
dora; esto condujo a que danzas que se celebraron en él, como el paloteo, quedaron sueltas y se integraran
posteriormente a los carnavales de la región” (Franco Medina, 2008, p. 169).

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são um grupo originário exclusivamente da cidade de Miranda do Douro, mas sim, prove-
nientes de um conjunto mais vasto de aldeias circundantes, ocupando com a sua prática,
um lugar de destaque na vida das gentes e dos lugares. A sua presença, estando associada
à prática de rituais festivos como aqueles realizados nas festas do Corpus Christi, procede
desde a mais alta antiguidade, de onde sobressai uma clara menção à sua existência. Nesta
menção encontramos ainda informação sobre os diferentes constituintes que compõem a
sua função e prática, no que concerne os componentes da sua indumentária, da sua prática
coreográfica, musical e artística. Deste modo, podemos discernir sobre os elementos relativos
à prática da dança, os elementos coreográficos, bem como diversas informações relativas à
prática musical que os acompanha no que concerne os conteúdos especificamente musicais,
os instrumentos utilizados, as suas características e funções.
Se as referências que deles possuímos remontam à Idade Média, encontrando-se descri-
tas em documentos em posse de distintas Confrarias da zona, percebemos na informação
recolhida que a sua existência, assim como a sua prática, se mostram bastante relevantes,
tanto a nível social como cultural, nas zonas de permanência (Vasconcelos, 1992; Correia,
2001; Tiza, 2010). Os elementos recolhidos informam sobre a organização das festas patro-
nais, festas da maior relevância no contexto social e religioso nos territórios em questão. No
que à prática musical diz respeito, não podemos deixar de mencionar a presença de conjun-
tos instrumentais constituídos pelo Bombo, a Caixa e a Gaita de Foles. Neste contexto, não
podemos deixar de mencionar também a presença dos Gaiteiros e Tamborileiros, pois que
o Tamborileiro era ele uma figura incontornável no que concerne o conhecimento de toda a
organização das festividades e da festa, da realização do Peditório, da Arruada e da Atuação
final. A sua presença, consubstanciando-se ao longo de todo o território raiano, transforma-o
numa figura ímpar a nível cultural e artístico nas regiões onde se estabelece, fazendo-o um
elemento da tradição, a par de tantos outros aqui já referidos (Correia, 2001)17.

Se em Portugal os grupos de dançarinos são exclusivamente constituídos por rapazes,


já no que concerne a região de Zamora, existe uma maior variedade na formação destes
grupos, sendo que estes podem ser só de rapazes, raparigas ou mistos, solteiros ou não.
Têm em comum o facto de serem constituídos por oito elementos por quadrilha. Alguns
17 // Sociedade e memória dos territórios

17
Tradicionalmente, e em território português, os Pauliteiros são um grupo constituído exclusivamente por oito
rapazes e três músicos (Gaita de foles, Caixa e Bombo). Tal como o Tamborileiro, o grupo serve os festejos
populares executando o peditório das festas seguindo as antigas formas da tradição. Tal como o Tamborileiro,
começam a ronda às seis horas da manhã, após a alvorada dos gaiteiros, dançando alguns lhaços em frente às
igrejas e capelas, e rezando em frente às casas daqueles que estão de luto. A dança dos Pauliteiros é interpretada
depois da missa religiosa, em frente da igreja. Os principais elementos desta dança são interpretados segundo
uma ordem específica que começa com o lhaço 25 (lhaço para partir os paus), a Bicha (em que se utilizam exclu-
sivamente as castanholas) e o Salto do Castelo (na qual um pauliteiro salta por cima de uma torre humana).

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destes grupos incorporam um elemento mascarado que adquire diferentes denominações
de acordo com a região onde se encontram: El Birria, Zarrón ou Zarragón, Chiborra ou
Zorra, todos eles com funções muito especificas no contexto da dança dos paus (Martínez
Muñiz & Porro Fernández, 1998; Díaz & Porro, 2008; Topa, 2004). Este personagem,
o El Birria, tem um papel muito importante no decorrer não só da dança como das fes-
tividades18. Integrando o grupo de dança, interage com ele sem perturbar os passos e os
movimentos dos dançantes. Isto acontece, porque o El Birria é um elemento que conhece
perfeitamente todos os passos de dança efetuados pelo grupo (Martínez Muñiz & Porro
Fernández, 1998; Díaz & Porro, 2008; Topa, 2004; Tiza, 2010)19.
O personagem do El Birria corresponde aos personagens El Bobo de Cañizal, Zorra
de Escarabajosa, na província de Segóvia (já desaparecido), Zarragón de Aranda de Duero,
Zorra de Gallegos de la Sierra, na província de Segovia20. Consoante as localidades, esta
personagem assume variadas funções. Em princípio seria o diretor de dança (o que hoje
raramente acontece), aquele que decide quais os laços que serão executados e o desenrolar
de toda a ação. A vara com chicote (zambomba) que o El Birria ostenta, uma espécie de
bastão de comando, surge símbolo da sua autoridade. Com ela castiga simbolicamente
os dançarinos que se enganam na execução do Paloteo, bem como os espectadores que se
aproximam demasiado dos dançantes, a fim de criar um espaço por entre os assistentes
para que o grupo possa executar a dança sem qualquer constrangimento e/ou dificulda-
de. Interage com os bailadores como alguém que conhece perfeitamente os movimentos
de todos os laços do Paloteo, o que nos permite, considerá-lo, como acima foi referido,
o maestro da dança. A sua autoridade é reconhecida por todos. Acresce-lhe a missão de
entregar os paus aos dançantes e de proceder à sua recolha, no final da mesma. Noutras
circunstâncias ainda é o responsável pela recolha de donativos junto dos espectadores,
donativos esses que revertem a favor da festa (Martínez Muñiz & Porro Fernández, 1998;

18
O El Birria é uma personagem estranha e misteriosa cuja indumentária lembra a figura do diabo. No rosto usa
uma máscara de velho, e na cabeça, uma pele de raposa completa que coloca sobre as costas e se estende até aos
quadris. No tronco usa uma jaleca, (chupa, termo castelhano), dividido na vertical em duas cores, a vermelha
e a verde, terminando com folhos nos punhos. No pescoço e sobre os ombros, coloca uma espécie de babeiro
de cor branca e as calças compridas, até quase aos tornozelos, são de duas cores: uma perna de cor vermelha e
18 // Sociedade e memória dos territórios

a outra verde, em oposição às cores do jaleco. Calça meias de lã (uma de cada cor) e sapatilhas igualmente de
duas cores. À volta da cintura, uma faixa de cor branca. Na mão direita segura uma corda com uma bola verde
e vermelha presa na extremidade; na mão esquerda, umas castanholas de grandes dimensões, trabalhadas em
madeira de espinheiro. De notar que nos dias de hoje, só o grupo de Tábara integra o El Birria (Tiza, 2010).
19
Existe ainda um lhaço em que o El Birria é figura fundamental pois interage com o grupo encenando uma
perseguição.
20
Este personagem pode ter outras denominações tais que Zorra, Zancarrón, Chiborra, Botarda ou Birria, na
província de Zamora, segundo os lugares de proveniência.

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Díaz & Porro, 2008; Topa, 2004; Tiza 2010)21. Em Cañizal (comarca de La Guareña, ao
sul da província), a Dança do Paloteo era inicialmente uma dança exclusiva dos rapazes
solteiros. Contudo, hoje em dia, é dançada quase exclusivamente por mulheres (jovens ou
adultas), com um ou outro elemento masculino a integrar o grupo. Na prática do Paloteo
existe também um elemento mascarado que no caso do mascarado do Paloteo de Cañizal
toma a designação de El Bobo. Veste todo de branco e nas últimas aparições, o “el bobo não
usava máscara, se bem que no passado a tivesse usado, à semelhança do birria. Com a mão,
ostentava uma vara com uma cuíca, zambomba (termo tipicamente castelhano), bexiga de
porco cheia de ar, com a qual executava as suas pantominas. Hoje em dia, caiu em desuso
e deixou de aparecer nas atuações do grupo”. (Tiza, 2010, p. 150).

Das informações recolhidas acerca desta personagem, retiramos que existem algumas
semelhanças com algumas figuras que existem em Portugal e no Planalto Mirandês como são
o Carocho de Constantim, o Farandulo de Tó, ou do Velho de São Pedro da Silva. Sem interfe-
rir na Dança dos Pauliteiros, o Carocho desempenha funções que, no seu conjunto, podemos
considerar relacionadas com ritos de fertilidade. Desde logo, faz par com uma personagem
feminina, a Velha. O Carocho e a Velha formam a dualidade indispensável, complementar e
necessária, para que a desejada fertilidade aconteça. Este par vai simulando jogos amorosos,
ao longo do Peditório (o Convite), por todas as casas da aldeia, um apelo claro à fertilidade.
O próprio Peditório constitui uma invocação à abundância que se dirige à divindade a favor
da comunidade e da natureza, através da recolha de produtos da terra oferecidos ao Santo e
consumidos por todos os moradores, numa espécie de refeição comunitária. Invocam-se os
Deuses e os Santos, pedindo a sua proteção através de rituais e ritos, festas e celebrações, de
adoração e agradecimento, pelas bênçãos obtidas (Tiza, 2004; Tiza 2010).

No que à Dança dos Pauliteiros diz respeito, ela denota, como já referido, diferentes
origens e funções. De acordo com o país, a região, época, ritual ou função a ela atribuída,
encontramos referência a elementos que compõem os rituais, a música e a coreogra-
fia, distintos. Da leitura dos documentos relativos ao assunto em análise, percebemos
que algumas personalidades, como o Abade de Baçal defendem que a dança praticada
19 // Sociedade e memória dos territórios

21
Estas são as funções visíveis do El Birria. Contudo, por detrás delas poderemos discernir outras de carác-
ter simbólico. Recuando no tempo, sabemos ter havido razões que determinaram o seu aparecimento.
O El Birria, dado o contexto festivo em que se insere, é o elo de ligação entre o profano e o sagrado. Não
obstante ser considerado uma figura diabólica (como qualquer mascarado), o El Birria é, na verdade, uma
figura mágica que, à luz das religiões, estabelece a ligação entre o mundo terreno e o sobrenatural, entre
o ser humano e as divindades. Neste sentido, Joaquín Díaz afirma que o “El Birria es un personaje al que
se le han atribuido diferentes simbolismos que van desde el demoníaco hasta el bufonesco pasando por el
taumatúrgico o por el escuetamente hierático”. (Díaz, 2008, p. 6).

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pelos Pauliteiros tem semelhanças com a clássica Dança Pírrica, uma dança guerreira
praticada pelos povos da Antiga Grécia (Mourinho 1984; Correia, 2001; Vasconcelos,
2012; Tiza, 2010). Este investigador, defende existirem poucas diferenças entre a antiga
dança e a Dança dos Pauliteiros que encontramos em Terras de Miranda, e em todo o
Planalto Mirandês. A informação por ele veiculada, concerne ainda a indumentária e as
práticas. No que à indumentária diz respeito, de referir o uso do lenço sobre os ombros
e dos chapéus enfeitados. No que aos instrumentos musicais diz respeito, verifica-se o
uso da Flauta Pastoril (a Flauta de Tamborileiro). Estes elementos surgem como forma
de amenizar o caracter guerreiro da referida dança, na semelhança que demonstra com
as danças praticadas na Antiga Grécia (Tiza, 2010). Simultaneamente mostra-nos que
a Dança dos Paulitos tem semelhanças com algumas danças populares praticadas no
sul de França, bem como com a Dança das Espadas executada pelos Suíços ao longo de
toda a Idade Média22. Na Dança dos Paulitos, os bailarinos usam armas e escudos de
paus, e simulam o ataque e a defesa num campo de batalha. Usam trajes que anunciam
o caráter guerreiro das referidas danças pois a indumentária é constituída por enáguas
brancas, camisas de linho brancas, coletes com lenços coloridos sobrepostos e chapéus
negros com flores coloridas, lembrando alguns dos elementos de segurança da armadura
de um soldado como sejam o colete e o capacete. Analisando os movimentos da coreo-
grafia averiguamos que têm muitas parecenças com as danças pírricas, pois comportam
a perseguição, a luta, os saltos e uma dança em particular, a dança da vitória. Algumas
das mais famosas coreografias e laços retratam bem essas semelhanças comportando ele-
mentos como o Salto do Castelo (saltos) ou o Vinte Cinco de Roda (dança da vitória)
(Tiza, 2004; Tiza, 2010).
Na província de Zamora existe uma maior variedade nos trajes dos dançarinos do
Paloteo. Cada grupo possui o seu próprio traje, o seu elemento identificador. Em Tábara,
a quadrilha é formada por rapazes e raparigas, num total de oito dançarinos. Os rapazes
vestem camisa branca de linho, com fitas verdes que pendem do ombro ao longo do
braço. Colocam à cintura uma faixa larga, cada qual de sua cor. Vestem calças pretas a
meia perna, confecionados com bombazina, “pegadita a la pierna y atada por el bajo de la
rodilla con hebillas, ligas o botones” (Porro Fernández, 2009, p. 61.). As raparigas vestem
20 // Sociedade e memória dos territórios

22
Os romanos seriam os responsáveis pela propagação da dança pírrica a esta região. O investigador José Leite
de Vasconcelos, contrariamente ao exposto, afirma que a dança introduzida em Roma e depois espalhada
por todo o Império Romano, nada tinha a ver com a dança pírrica. Os dançantes, com armas e escudos de
pau, simulavam o ataque e a defesa na batalha (Vasconcelos, 2012; Tiza, 2010). Como indumentária, enver-
gavam túnicas vermelhas e cinturões guarnecidos de aço. Os músicos envergavam capacetes emplumados e
os bailadores colocavam-se em duas filas e dançavam ao som da flauta. No conjunto dos elementos narrados,
encontramos, no nosso entender, notória semelhança com a forma de dançar dos Pauliteiros de Miranda
(Mourinho 1984; Correia, 2001).

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uma camisa branca também de linho e, por cima, um mandil bordado, cruzado sobre o
peito e as costas; uma saia rodada e um avental, ambos de cores diversas (seguindo a tradição
dos trajes regionais). Rapazes e raparigas calçam meias brancas trabalhadas à mão. Como
calçado, sapatos simples ou sapatilhas “en claro recuerdo al pago que recibían estos baila-
dores: un corto salario por su ejercicio y unas zapatillas” (Porro Fernández, 2009, p. 48.).
Na cabeça usam uma espécie de coroas enfeitadas com flores naturais: “muchos de estos
elementos naturales (...) fueron condicionando el indumento sirviendo de diferenciación
local, social, civil o económico, entendiéndose poco a poco como punto de distinción
en virtud de las propiedades mágicas que se suponían por su luz, color, belleza” (Porro
Fernández, 2009, p. 15.). Estas coroas são usadas apenas durante o percurso da Procissão.
Na hora de dançar retiram-nas da cabeça. Os paus são de madeira de espinheiro, por ser
rijo, e são pintados ao gosto de cada interveniente. O traje dos Pauliteiros, mormente o
dos Pauliteiros de Miranda, tem inspiração nos trajes militares greco-romanos. O chapéu
decorado representa o capacete militar, a camisa de linho branco e o colete em sorrubeco,
a armadura dos trajes militares, a saia de linho, os lenços, as meias altas de lã e as botas
em pele, remetem para épocas mais antigas na forma de trajar. Para além dos elemen-
tos do traje, definidores de uma identidade grupal e territorial, podemos afirmar que os
Pauliteiros surgem nestes territórios como figuras singulares, desempenhando funções
sociais, culturais e éticas de caráter insubstituível23. Mais recentemente, num contexto
festivo e à semelhança de grande parte das aldeias do planalto Mirandês, os primeiros
registos escritos sobre esta dança surgem relacionados com a festa de Santa Bárbara (Festa
da dança). A presença dos Pauliteiros dá-se não só a nível do ritual religioso como das
diferentes festividades e ritualidades profanas. Os Pauliteiros estão presentes no ritual
da Missa, nas Arruadas, no Peditório, na Procissão e no seu final, aquando da Atuação
final, ação realizada no largo defronte à Igreja. No caso do Peditório, participam não só
os Pauliteiros, como o Mordomo da festa. O grupo, constituído exclusivamente por rapazes
(apesar que atualmente já existem grupos femininos e mistos), enverga vestes com elemen-
tos característicos a cada grupo, região e país, executando coreografias complexas com
recurso aos paulitos. Algumas vezes, em algumas regiões da raia, surgem como adereços
para a realização dos laços as castanholas, despertando a atenção de quem os ouve e vê
(Vasconcelos, 2012; Tiza, 2010).
21 // Sociedade e memória dos territórios

23
Neste contexto devemos igualmente referir o papel do Tamborileiro, com funções semelhantes no que con-
cerne a organização das festas patronais, nomeadamente na presença aquando da Alvorada, do Peditório e
da Procissão.

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As Festividades: rituais e ritos - constituintes e função

Em todo o território nacional, as danças tradicionais e, em especial, a Dança dos


Pauliteiros, será praticada nos rituais sagrados ligados à liturgia católica. Por Terras de
Miranda, a sua presença ainda acontece aquando das festividades ligadas aos Santos
Padroeiros, na celebração da Missa em sua honra e na Procissão24. Outro momento impor-
tante a considerar é o das festividades de Nossa Senhora do Rosário ou a Festa dos Moços,
que se celebra no último domingo de Agosto. De notar ainda a sua relevância na Festa das
Colheitas, remetendo-nos para o duplo carácter das festividades, tal como em inúmeros
rituais que ainda hoje se encontram em uso por terras do Planalto Mirandês e pela região
da raia (Tiza, 2004).
A festividade religiosa a um Santo Padroeiro ou a um Santo da devoção possui uma
forte dimensão religiosa, mas também surge enfática a componente profana. Os dois caracte-
res sucedem-se ao longo de toda a festividade e ritual. A presença dos Pauliteiros acontece
a vários níveis e em diferentes ocasiões. Da análise de uma sua prática, percebemos que
os Pauliteiros podem integrar os rituais do Peditório, da Missa, da Procissão e da Atuação
final. O Peditório realiza-se por toda a aldeia. Inicia de madrugada e termina antes da
Missa Solene. Ao longo do Peditório, os Pauliteiros dançam em frente de cada uma das
casas da aldeia e, em todas elas, dançam um laço, ou lhaço, a pedido dos respetivos donos.
Na Missa festiva, a presença dos Pauliteiros dá-se, quando devidamente formados rodeiam
o andor do padroeiro da festa. Ao longo da Procissão, e com acompanhamento musical
da Gaita de foles, a incorporação dos Pauliteiros, faz-se caminhando ao lado do andor do
padroeiro que, obrigatoriamente, se destaca no conjunto de todos os outros. A atuação dos
Pauliteiros, logo após a Procissão, em frente à igreja, perante todo o povo, com o reportó-
rio completo, é um acontecimento apoteótico, próprio ao final. Alguns laços, ou lhaços,
assumem um carácter manifestamente simbólico, ao serem executados em redor de uma
medida de cereal (alqueire), permitindo-nos afirmar que se trata de um ritual agrário de
agradecimento à divindade pelas colheitas obtidas no ciclo que se completa, e de propi-
ciação para o novo ciclo que se inicia justamente nessa altura do ano, o fim do Verão e o
começo do Outono – as sementeiras (Vasconcelos, 1992; Tiza 2010).
Em Constantim, na Festa de São João Evangelista, denominada também festa da
Mocidade ou ainda Festa das Morcelas, que se realiza em Dezembro, a presença e a prática
22 // Sociedade e memória dos territórios

ritual dos Pauliteiros dá-se não só ao nível dos rituais sagrados como, e obrigatoriamente,
nos atos profanos. Aqui, e tal como noutras localidades do Nordeste Transmontano, os

24
No caso particular de S. Martinho de Angueira, estes rituais celebram-se não só no exterior como no interior
da Igreja.

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rituais da festa são compostos pelo Peditório ou Convite, pela Missa e pela Procissão.
Acresce uma Atuação no adro da Igreja quando finda a Procissão. Descrevendo cada um
dos elementos percebemos que o Peditório ou Convite (designação local), é feito de maneira
idêntica à festividade de São Martinho, com a diferença de que, para além da presença dos
Pauliteiros, intervém um par de mascarados, o Carocho e a Velha25. Os Pauliteiros acom-
panham todo o Peditório, detendo-se em cada casa em frente da qual dançam um laço,
ou lhaço, a pedido dos donos da mesma, enquanto os mordomos recolhem as oferendas
(Tiza, 2004; Tiza, 2010). A atuação dos Pauliteiros a meio da celebração da Missa, no
momento do Ofertório, é bem clarificadora da aceitação de uma dança tida como profana,
por parte da Igreja, aquando da liturgia mais solene. Também a música interpretada pela
Gaita de foles e a Flauta pastoril, de caráter profano, se faz ouvir no decorrer da Missa,
conferindo solenidade à liturgia sagrada, tal como a festividade exige. Na Procissão, a
música é executada pela Gaita de foles. De notar que os Pauliteiros não efetuam qualquer
dança porque lhes está destinado transportar o andor do santo padroeiro. A presença do
par de mascarados, o Carocho e a Velha, verifica-se apenas na Procissão, com a execução
dos seus habituais jogos amorosos e brincadeiras (com a simulação do ato reprodutor),
no espaço do adro da igreja, já depois de ter terminado todo o ritual litúrgico. De novo
se nota o carácter ritual invocando a fertilidade (Vasconcelos, 1992; Martínez Muñiz &
Porro Fernández, 1998; Díaz & Porro, 2008; Topa, 2004; Tiza 2010).

Na análise que vimos efetuando, percebemos ainda que do lado Espanhol se notam al-
gumas semelhanças entre a Danza de Palos e as atuações dos Pauliteiros de Miranda. Essas
semelhanças não se cingem somente no que às danças e trajes diz respeito, mas também
ao contexto em que se efetuam. Assim, em Muelas del Pan, a atuação solene do Paloteo
acontece no Domingo del Señor, o domingo imediatamente a seguir à festa do Corpo de
Deus26. Tal como pelo Nordeste Transmontano, a interação sagrado-profano ressalta. Os
denominados laços religiosos são executados à volta da igreja e os paganos, onde predomi-
nam temas tais que os ofícios tradicionais, a caça, os animais e o amor, são realizados em
momentos que não os que estão relacionados com a liturgia da festa. O primeiro laço, la
contradanza, é dançado quando a Procissão sai da Igreja. Os bailarinos, sempre voltados
para a imagem de Nossa Senhora, vão dançando e saindo de costas para a porta. Depois,
e aquando da Procissão, são efetuadas paragens em locais estrategicamente escolhidos para
23 // Sociedade e memória dos territórios

25
Neste ponto, encontramos semelhanças com alguns personagens que intervêm nas Danzas de Palos ou no
Paloteo, na província de Zamora, nomeadamente o El Birria, Zarrón ou Zarragón, Chiborra ou Zorra, com
funções muito especificas no contexto da dança, como já evidenciado ao longo do texto.
26
De notar, que em Espanha, esta festividade não se celebra atualmente na quinta-feira do Corpo de Deus
como em Portugal, onde é ainda mantido este dia festivo como feriado nacional.

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que as danças se efetuem e produzam impacto nos fiéis. Assim, e em função dos espaços
disponíveis, seja em largos e praças, seja noutros locais onde seja possível que os bailarinos
executem os laços, estes são dançados e é dado seguimento à festa. Os laços de carácter
religioso são efetuados, um de cada vez, dada a sua importância, no decorrer da festa. Por
outro lado, os laços ditos paganos são apresentados no período da tarde, na praça principal
da vila ou aldeia. Tal como em Portugal, as peças musicais não incluem uma componente
vocal (Martínez Muñiz & Porro Fernández, 1998; Tiza 2010)27.
Em Tábara, os rituais de dança são muito idênticos aos de Muelas del Pan. No dia da
celebração, que coincide também com a festa do Corpo de Deus, o Paloteo integra a Missa
Solene e a Procissão, caminhando mesmo à frente do pálio do Santíssimo Sacramento.
As paragens que efetuam para realizar as danças durante a procissão (laços religiosos),
são também elas efetuadas nas praças e nos largos mais espaçosos. A exibição de carácter
profano (laços profanos/lazos paganos), realizada diante de toda a população, é feita na
praça principal da vila, recorrendo ao reportório completo dos lazos paganos, cuja temática
são similarmente os ofícios tradicionais, a caça, os animais e o amor (Vasconcelos, 1992;
Martínez Muñiz & Porro Fernández, 1998; Tiza 2010)28.

No que à componente musical diz respeito, e por Terras de Miranda, os instrumentos


musicais são focos irradiadores de animação e prazer para quem os escuta e executa. Os
instrumentos que mais rapidamente identificam a tradição musical mirandesa são a Gaita
de foles, a Caixa e o Bombo, instrumentos presentes no acompanhamento da Dança dos
Pauliteiros, bem como em outras práticas culturais e artísticas de cariz popular e tradicional.
No entanto, não se esgotam aqui as possibilidades. A Flauta pastoril, que faz conjun-
to com o Tamboril, mesmo estando um pouco afastada do acompanhamento da Dança
dos Pauliteiros, usa-se no acompanhamento vocal de diversas atividades ritualistas, assim
como nas danças mistas. O seu aspeto simples, com três orifícios, esconde a complexidade
que verificamos ao nível da sua interpretação. No acompanhamento vocal o conjunto
instrumental usa com frequência ainda os Pandeiros, Pandeiretas, Conchas de Santiago,
Triângulos, Castanholas e pequenos objetos do dia-a-dia, como a saranda, garrafas, testos
de panelas e tachos.
Se no distrito de Bragança, a Dança dos Pauliteiros é acompanhada pelo Gaiteiro, a
Caixa e o Bombo, ou ainda pelo Tamborileiro e o Bombo, este último só usado em Terras
24 // Sociedade e memória dos territórios

de Miranda, na província de Zamora, o Paloteo é acompanhado somente pelo Tamborileiro


e pela Gaita de foles, que é tocada pelo mesmo instrumentista em alternância com a flauta,
27
Para que exista sincronia nos passos e nos movimentos, os bailarinos costumam cantar as peças interiormente.
28
De referir que muitos dos laços e das peças musicais são comuns dos dois lados da fronteira (província de
Zamora e distrito de Bragança).

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de acordo com os lhaços de dança a acompanhar. Nalgumas localidades este conjunto ins-
trumental foi substituído pela Dulzaina, instrumento tradicional da província de Castilla,
assim como pela Gaita de foles em algumas localidades da província de Zamora, nomea-
damente em Tábarra e Muelas del Pan. Neste caso é utilizada em alternância com a Flauta
pastoril. De referir ainda que a música que acompanha a dança é somente instrumental,
sendo que os dançarinos cantam interiormente as letras das músicas por forma a se posi-
cionarem no que concerne as coreografias executadas. As sequências dos passos são assim
controladas pelo texto das canções que cantarolam, não havendo lugar a choques durante
as danças e a concretização dos passos pelos bailadores. Destas sequências destacam-se os
cruzamentos, as cabañuelas, as quatradas, as calles e as diferentes formas de golpear com
os paus (Martínez Muñiz & Porro Fernández, 1998; Díaz & Porro, 2008; Tiza 2010).
No Paloteo, tal como nos Paulteiros, os dançarinos alinham-se em duas filas uma frente
à outra, sendo que aquando das mudanças de passe, têm que efetuar evoluções diversas,
avanços, cruzamentos, serpenteados, mudanças de lugar dos dois grupos de quatro que
formam as duas filas. Os guias são os bailarinos dos extremos das filas e os panzas, os do
meio. Os toques de paus também têm as suas designações: de frente (toque com o que está
à sua frente), de revés (toque à altura do joelho), moje de palos (toque dos seus próprios
paus à altura do peito) ou em cruz (quando paloteiam guias com panzas e vice-versa) (Tiza,
2010). Estabelecendo um paralelo com a descrição dos passes dos Pauliteiros, entendemos
que existe uma grande afinidade com estes, tanto nas designações como na sua execução,
prática e significado29.

Considerações Finais

Apesar das fronteiras físicas e geográficas, percebemos que nas regiões da raia, sempre
se mantiveram os laços e os intercâmbios sociais, económicos e culturais ao longo dos
tempos. Disso é exemplo a forma como se desenrolam as festas tradicionais, a forma como
as comunidades organizam a sua vida social e profissional, os casamentos, as festividades
e festas, as indumentárias e os trajes que envergam, e que são detentores de elementos e
características diferenciadoras, evidenciando a natureza das atividades sociais, culturais,
económicas e profissionais para as quais se capacitam, assim como as condições físicas e
25 // Sociedade e memória dos territórios

29
Na província de Zamora, nalguns laços os paus são substituídos por castanholas. Existem semelhanças do
lado português, no entanto, devemos referir que as castanholas são um instrumento musical usado com
maior frequência do lado espanhol do que do lado português, sendo que poderemos considerar que o seu
uso pelos pauliteiros, resulta de uma apropriação deste elemento pelas constantes trocas culturais, entre os
dois lados da fronteira.

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climatéricas que se vivem dos dois lados da fronteira30. Da mesma forma, as Danças de
Paus reforçam esta proximidade, seja pela música, pela coreografia ou pelos trajes comuns
dos dois lados da fronteira. De referir ainda o facto de esta dança ser maioritariamente
efetuada por grupos de rapazes, mais viris e guerreiros, do lado do Planalto Mirandês por
requisito do lhaço do Salto ao Castelo, que implica alguma destreza na sua execução. Este
lhaço implica a realização de saltos mortais por cima de colunas humanas criadas pelos
outros bailadores, facto que exige destreza física e emocional31. O mesmo não ocorre com
os grupos mistos ou femininos, característicos do lado espanhol, onde destacamos a gra-
ciosidade dos passos e dos gestos coreográficos. Comum aos dois lados da fronteira são a
música e a letra das canções que acompanham os laços. Neste sentido, salientamos as simi-
litudes encontradas nas regiões de Tábara, Muelas del Pan, Almaraz de Duero e Cañizal,
da província de Zamora, e do concelho de Miranda do Douro e de Mogadouro, e das
localidades de São Pedro dos Sarracenos, Bragança, e de Salselas, Macedo de Cavaleiros.
Existem laços específicos que estão de acordo com as peças musicais que os acompanham
tais que religiosos, amorosos, pastoris, agrícolas, venatórios, guerreiros, laborais, toponí-
micos, sarcásticos e de temáticas medievais. De notar ainda que existem laços exclusivos
de Miranda do Douro, dos quais destacamos, tal como já referimos, o Salto do Castelo
(Mourinho 1984; Correia, 2001; Vasconcelos, 2012; Tiza, 2010)32. Neste sentido, podemos
afirmar que quer sejam laços (português), lhaços (mirandês) ou lazos (espanhol), existem
pontos comuns nas danças dos dois lados da fronteira, na música e na letra que as acom-
panha, assim como nas festas e solenidades onde estão presentes, nomeadamente nas festas
do Corpus Christi, no fim das colheitas ou nas festividades dos solstícios de verão ou de
inverno, assim como em outras ocasiões onde estes bailarinos sejam solicitados por forma
a animar espaços e as comunidades. A sua ação dá-se num território que sabe preservar as
suas tradições, fazendo delas um elemento diferenciador face ao restante território nacio-
nal, delineando, assim, o ethos e o pathos de uma prática que convém estudar, preservar
e divulgar.

30
Neste sentido, referimos a semelhança que existe entre a Capa Mirandesa e da Capa Alistana. Do mesmo
26 // Sociedade e memória dos territórios

modo, a música e a língua se assemelham, pois que o mirandês deriva do leonês, que outrora se falava na
região. De notar que hoje o mirandês é falado por via do esforço encetado por parte de alguns e do reconhe-
cimento da sua importância para a região. Nesta ação, o papel e o esforço das autarquias locais para a sua
revitalização na comunidade e nas escolas mostrou-se essencial (Tiza, 2004; Tiza, 2010).
31
Este passo de dança, visa ilustrar o assalto a um castelo, o que denota o lado guerreiro da dança e a proximi-
dade fronteiriça que, e apesar de toda a colaboração entre povos, não deixa de existir.
32
Este salto, em específico, não existe do lado espanhol dado que requer alguma destreza e força física, algo
que não é possível com grupos mistos ou femininos como os que aí existem.

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Resumo – As manifestações culturais que encontramos por todo o território português, e
pela região da raia em particular, revelam-se bastante ricas ao nível dos seus conteúdos e práticas,
facto que, no nosso entender, convém analisar, refletir e expressar. Ligadas a certas celebrações, ri-
tuais e ritos de natureza não só religiosa como profana, estas manifestações constituem-se em ações
onde o misticismo, o sagrado e o profano se combinam, descobrindo-se traços de uma prática co-
mum nos dois lados da fronteira. São disso exemplo as festas solsticiais de Inverno, festas que in-
cluem rituais e ritos executados com bastante rigor e genuinidade e onde a dança dos paus se faz
presente. Recuando no tempo e no espaço, questionando sobre a sua origem e significado, verifica-
mos que os elementos obtidos no que concerne esta dança não reúnem consenso, pois as opiniões
diferem, e alguns estudiosos há, que a remetem para a idade do ferro, e para a Transilvânia. Referem
ainda que somente numa fase posterior se espalhou pelo continente europeu, nomeadamente por
Portugal e Espanha. Assim sendo, e nesta nossa proposta, pretendemos analisar não só os elementos
que permitam identificar uma sua origem e significado, como as suas componentes ritualísticas no
que concerne a indumentária e os passos, a música e a dança, os artefactos e os instrumentos musi-
cais usados nos dois lados da fronteira. Neste sentido, enfocamos a nossa atenção naquilo que nos
é oferecido em território nacional por Terras de Miranda e por todo o Planalto Mirandês, bem
como naquilo que se consubstancia como prática por Terras de Galiza e da Extremadura, em território
de Espanha. Os dados obtidos permitirão perceber as suas características mais marcantes, o ethos e o
pathos desta prática, bem como as características da música empregue nos dois lados da fronteira. Uma
maior atenção sobre os instrumentos musicais se consubstanciará, de modo a evidenciar as características
do sonoro que, e indubitavelmente, se fará alvo do nosso particular estudo, reflexão e análise.
Palavras-chave: Dança, Música, Instrumentos musicais, Pauliteiros de Miranda, Danza de palos.

Referências

Correia, M. (2001). Raízes Musicais da Terra de Miranda: Miranda do Douro, Mogadouro e


Vimioso. Vila Nova de Gaia: Sons da Terra.
Díaz, J. & Porro, C. (2008). Las Danzas. Zamora: Museo Etnográfico de Castilla y León.
Franco Medina, C. (2008). La danza en el Carnaval de Barranquilla. Revista de la Universidad del
Norte. vol. 71, 72, 73, 74, 75.
Martinez Diez, G. (2014). Los Concilios de Toledo. p. 119-138. Consultado em: https://realacade-
miatoledo.es/wp-content/uploads/2014/02/files_anales_0003_06.pdf
Martínez Muñiz, E. & Porro Fernández, C. A. (1998). La Danza de Palos: La Recuperación de
27 // Sociedade e memória dos territórios

“El Palilleo” de Villabaruz de Campos (Valladolid). Nuevas aportaciones. Revista de Folklore


nº 207. 75-83. Valladolid: Obra Social y Cultural de Caja España.
Mourinho, A. (1983). Grupo Folclórico Mirandês de Duas Igrejas-Pauliteiros de Miranda. Miranda
do Douro: Câmara Municipal de Miranda do Douro.
Mourinho, A. (1984). Cancioneiro Tradicional e Danças Populares Mirandesas. Bragança: Escola
Tipográfica de Bragança.

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Porro Fernández, C. (2009) Bailes y Danzas. León: Edilesa.
Tiza, A. P. (2004). Inverno Mágico. Ritos e Mistérios Transmontanos. Lisboa: Ésquilo.
Tiza, A. P. (2010). A dança dos paus: paloteo da província de Zamora e pauliteiros do distrito de
Bragança. Studia Zamorensia. vol. IX.
Topa, A. (2004). Lhaços de Freixenosa. Lisboa: Apenas Livros.
Vasconcelos, J. L. (1992). Estudos de Filologia Mirandesa. Miranda do Douro: Câmara Municipal
de Miranda do Douro.
28 // Sociedade e memória dos territórios

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Revitalización de los núcleos de baja
densidad a partir del estudio de las
villae romanas

Diego Piay Augusto1


Patricia Ana Argüelles Álvarez2

Introducción

En las siguientes páginas presentamos un estudio arqueológico centrado en yacimien-


tos de época romana desarrollado en el territorio rural de Asturias. Esta propuesta de
trabajo ha sido realizada durante los dos años precedentes a esta publicación, y tiene por
objetivo el poder convertirse en un referente, que sirva de modelo aplicable a la zona gallega-
-portuguesa del río Miño. No obstante, es evidente que cada territorio tiene sus propias
dinámicas de poblamiento, y que la aplicación del modelo propuesto requeriría de un análisis
previo, que permitiese definir las características específicas del territorio luso-galaico.
La distribución de los yacimientos romanos tipificados como villae proporciona una
buena oportunidad para vincular estos elementos del patrimonio cultural al desarrollo
del sector turístico. De este modo, estamos desarrollando una nueva línea en cierto modo
innovadora, que consiste en estudiar cómo impulsar las zonas rurales de baja ocupación,
a través de un elemento muy específico del patrimonio cultural, las villae romanas.
Como es bien sabido (y así lo revelan los datos estadísticos en relación al producto
interior bruto), el turismo representa uno de los motores principales de la economía en
España. Se encuentra además en fase de crecimiento exponencial. El turismo demanda,
cada vez en mayor medida, un aprovechamiento de las áreas rurales y de las actividades
29 // Sociedade e memória dos territórios

que a ellas se asocian, pues permiten alejarse del bullicio y de los problemas de estrés de la

1
Universidad de Oviedo
piaydiego@uniovi.es
2
Universidad de Salamanca
parguelles@usal.es

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vida cotidiana. En este sentido se da una situación similar, salvando las distancias, a la que
se daba en la sociedad durante la época tardorromana, pues ya los autores del período
señalaban la necesidad de alejarse de la urbe y disfrutar de las comodidades y la tranquilidad
que se disfrutaba en el campo.

Fig. 1 – Vista aérea de la villa del Casale de Piazza Armerina


30 // Sociedade e memória dos territórios

En el mundo actual, el patrimonio cultural, y los vestigios del pasado, se presentan


como un claro atractivo para esta modalidad vacacional que buscar alternativas al denomi-
nado “turismo de sol y playa”. Cultura, naturaleza y ecoturismo pueden ser considerados,
por tanto, claves como factores impulsores de la economía en las zonas rurales. Quizás
el mayor exponente del turismo rural cultural, vinculado a las villae romanas (principal

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 30 17/06/2022 18:05:45


tema de nuestro estudio), lo encontramos en el caso de Piazza Armerina3, en Sicilia. Esta
localidad de 27.726 habitantes, con una densidad de población de 71.60 hab./km2, atrae,
gracias, a la villa romana más conocida de todo el mundo (y, en especial, a sus fascinantes
mosaicos), a más de 300.000 visitantes al año. Este factor convierte a este yacimiento en
uno de los enclaves turísticos más visitados de toda Sicilia. Su fuerte atractivo desde el
punto de vista turístico hace de la villa del Casale de Piazza Armerina, no solo el motor
económico de la localidad actual (que porta el mismo nombre); sino que, además, ha per-
mitido que este enclave rural haya podido mantener su población en cifras muy similares a
las que poseía a finales del siglo XIX, sin sufrir la despoblación que, por el contrario, sí están
padeciendo prácticamente todas las zonas rurales europeas, particularmente acentuándose
dicha crisis desde los últimos 30 años.

El territorio rural

Como se ha avanzado ya en la introducción, este proyecto se enmarca dentro de un análisis


global de la ocupación rural en el territorio asturiano en época tardorromana. El ambicioso
estudio tiene su origen en un proyecto de innovación docente4, realizado en la Universidad
de Oviedo durante el curso académico 2019-20 en el grado de Historia. En el desarrollo de
dicho proyecto participó un equipo compuesto por cuatro docentes, y 84 alumnos.
La propuesta desarrollada se basaba en la realización de un catálogo de villae romanas
en Asturias, concentrándose, a partir de la realización de una serie de estudios sectoriales
y específicos, en la génesis y la evolución de este tipo de yacimientos. El proyecto de inno-
vación potenció el aprendizaje activo basado en proyectos, proponiendo una actividad
común a toda el aula que sería la creación de un catálogo de las villae romanas en Asturias
(hasta la fecha inexistente)5, y, por otro lado, introdujo al alumnado en los resortes de la
investigación con el manejo del método científico. Gracias a esta combinación, los resulta-
dos alcanzados han sido publicados en una monografía que ha visto la luz en el año 2021
en la prestigiosa editorial italiana L´Erma di Bretchsneider6. La monografía recoge los tra-
bajos de los alumnos y los miembros del equipo, favoreciendo así, no solo el estudio de un

3
Pensabene, P. (ed.). (2019). Piazza Armerina. Villa del Casale. L´Erma di Bretschneider. Roma.
31 // Sociedade e memória dos territórios

4
“Catálogo de Villas romanas en Asturias: Génesis y evolución”: Proyecto de innovación docente PIN-19-A-002,
financiado con fondos de la Universidad de Oviedo, Universidad de Salamanca, Fundación Cardín y Sidrería
El Llagar.
5
Santos, N., Montero, P. (1982). Introducción al estudio y significado de las villas romanas en Asturias. BIDEA,
36 (105-106). p. 115-154; Fernández, C., García, V., Gil, F. (2008). (eds.). Las villae tardorromanas en el
occidente del Imperio: arquitectura y función. IV Coloquio internacional de Arqueología en Gijón. Ed. Trea.
6
Piay, D. & Argüelles, P. (2021). Villae romanas en Asturias. L´Erma di Bretschneider. Roma.

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elemento fundamental dentro de la historia antigua de Asturias, sino también ofreciendo
una primera toma de contacto con la publicación científica al alumnado participante.
Por tanto, nuestro punto de partida a la hora de analizar la geografía de Asturias era
estudiar el proceso de plasmación de un elemento tan característico de la cultura romana
(las villae) en un territorio tradicionalmente considerado poco romanizado. El desarrollo
de este análisis histórico-arqueológico ha permitido ahondar en la observación de la dispersión
poblacional, en relación con la organización socio-económica, clave en el desarrollo de la
fase imperial romana en la región.
La configuración territorial histórica de la zona ha venido determinada por la pro-
pia orografía de territorio. Los pasos de montaña por los que los romanos diseñarían
las comunicaciones entre el sector cismontano y transmontano del Conventus Asturum,
son rasgos heredados de la actuación de los sistemas glaciares desarrollados durante el
Cuaternario. Y, por otro lado, otro factor relevante de la orografía asturiana, además de
sus característicos accidentes geográficos, es que, en cortas distancias de menos de 20 ki-
lómetros, sus escarpadas cumbres desaparecen en las proximidades del mar Cantábrico.
Junto a esas montañas, destaca la presencia de caudalosos ríos, que, aunque de recorrido
corto, han potenciado la erosión del marcado trazado de los profundos valles7. Éstos,
juntos a las rías, fruto del avance del mar al interior, han influido en el desarrollo del
hábitat y en el trazado de la red viaria histórica así como en la ocupación y explotación
de los recursos naturales, tal como es el caso de la minería aurífera en el occidente de este
primitivo territorio romano8.
Al abordar el presente estudio hay que tener en mente que el paisaje es un medio que
está en constante evolución, y ello aumenta la dificultad de su restauración evolutiva, lo
que hace que en ocasiones se pueda caer en el anacronismo, problema heredado del proce-
sualismo al que deberemos hacer frente en la medida de lo posible9. No obstante, en este
caso en particular, lo que presentamos es la relación entre en la realización del proyecto de
investigación sobre las villae romanas en Asturias, y su interacción con la sociedad moder-
na, a fin de lograr su aprovechamiento como un factor que posibilite la reactivación del
territorio rural de baja densidad de la zona.
32 // Sociedade e memória dos territórios

7
Morales, G. (1983). El paisaje vegetal asturiano. En Quirós, F. (Dir.). Geografía de Asturias. T.4. (pp. 5-71).
Salinas: Ed. Ayalga.
8
Perea, A. & Sánchez-Palencia, F. J. (1995). Arqueología del oro astur. Orfebrería y minería. Oviedo: Ed. Caja
de Asturias.
9
Orejas, A. & Ruiz del Árbol Mª. (2010). Los registros del paisaje en la investigación arqueológica. Archivo
Español de Arqueología, 75 (185-186), 287-311.

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Las villae y su entorno

La riqueza patrimonial del territorio asturiano es innumerable, riqueza que no dismi-


nuye al analizar el número de villae romanas dispersas por el territorio. En total se han
documentado 26 conjuntos de tipo agropecuario con cronologías tardoantiguas. Ello, sin
duda, permite tener una “materia prima” excelente sobre la que ofrecer una revalorización
turística del territorio. Por tanto, el conjunto de villae, unido a la importancia del turismo
en al región, y su propio carácter rural, crean un vínculo clave a la hora de fomentar el
desarrollo de estos entornos despoblados o de baja densidad.

Fig. 2 – Distribución de los yacimientos tipo villa documentados en el territorio de la Asturias actual
(Elaboración propia)

La interacción de la gente, los espacios y la puesta en valor de un programa turístico, con-


figuran la base que permitirá reconocer en el territorio espacios significativos para un buen
33 // Sociedade e memória dos territórios

desarrollo sostenible, tal y como se ha constatado en la villa siciliana de Piazza Armerina. Para
el caso español es preciso nombrar el caso de la villa palentina de La Olmeda, alejada de nú-
cleos de población significativos, pero que también recibe una afluencia de público notable.
Para propiciar el desarrollo de su entorno, se ha creado un aula arqueológica en la localidad
de Saldaña, que recoge materiales documentados en la villa o en las necrópolis de su entorno.

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Este caso en particular, nos pone en relación con la iniciativa “Red de Villas romanas
de Hispania”10 que, sin duda, ha logrado ser un referente del turismo arqueológico espa-
ñol. Uno de los objetivos de esta Red de villas romanas de Hispania es promover el turismo
arqueológico en todos estos enclaves rurales, así como fomentar en el ciudadano el interés y
el respeto por la protección y conservación de los yacimientos, llevando de la mano la preser-
vación e investigación patrimonial. Es por ello fundamental recordar que la transferencia del
conocimiento científico hacia la sociedad es vital.
En definitiva, este fin último de acercar el patrimonio a la sociedad a la par que favorecer
una actividad económica sostenible vinculada a las villae, es la propuesta que este estudio
preliminar trata de fomentar. El objetivo es propiciar el desarrollo de núcleos rurales de baja
densidad poblacional a partir de la explotación turística de estos yacimientos tan caracte-
rísticos del mundo tardorromano, ampliamente representados en el territorio asturiano.
Debe destacarse, además, que la frecuencia con la que en este tipo de yacimientos suelen
localizarse mosaicos y estructuras monumentales (conjuntos termales, etc), convierte a las
villae en lugares muy atractivos para fomentar la presencia de visitantes procedentes del
ámbito regional y suprarregional. En este sentido, el proyecto de innovación desarrollado
en la Universidad de Oviedo y su posterior publicación, constituye un paso previo funda-
mental, al lograr dar a conocer la riqueza del patrimonio asturiano de un período concreto
de su historia, y sus enormes posibilidades como recurso de atracción turística.
El territorio asturiano cuenta, en la actualidad, con al menos 26 yacimientos en los
cuales se han detectado estructuras o materiales que los hacen compatibles con su identi-
ficación como villae. Evidentemente, como paso previo a la explotación turística de estos
enclaves se hace necesaria una mayor investigación en la mayor parte de ellos, y una posterior
puesta en valor, a fin de crear productos del patrimonio cultural atractivos.
Es evidente que la difusión del conjunto patrimonial de las villae del territorio asturiano
se ve agravada por las grandes diferencias existentes entre las intervenciones realizadas en
cada uno de los yacimientos, siendo el referente de la región, sin duda, la villa de Veranes11.
En Murias de Beloño12, los trabajos realizados en el pasado han hecho posible definir la

10
Sánchez, M. & Mencía, P. (2014). Red de villas romanas de Hispania. Estudios del Patrimonio Cultural, 12,
39-41.
11
Fernández, C., Gil, F. (2008). La villa romana de Veranes (Gijón, Asturias) y otras villas de la vertien-
34 // Sociedade e memória dos territórios

te septentrional de la Cordillera Cantábrica. In Fernández, C., García, V., Gil, F. (eds.), Las villae tar-
dorromanas en el occidente del Imperio: arquitectura y función. (pp. 435-480). Gijón: Colección Piedras
Angulares; Fernández, C. et al. (2003). La villa tardorromana de Veranes. Nuevos métodos digitales para
la documentación de mosaicos in situ. In Seminario Internacional de Arqueología de la Arquitectura. Vitoria
2002, Arqueología de la Arquitectura 2, 123-130.
12
Fernández, C. (1984). La villa romana de Murias de Beloño ´Cenero´. In Gijón Romano, Ayuntamiento
de Gijón, pp. 25-28; Jordá, F. (1957). Las Murias de Beloño (Cenero-Gijón): una “villa” romana en Asturias.
Diputación Provincial de Oviedo, Servicio de Investigaciones Arqueológicas.

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planta de la villa con bastante precisión. De Memorana13, Puelles14 y Valduno15 los datos
son parciales, y más pobre es todavía la representación gráfica conservada de Paraxuga16.
Igualmente debemos mencionar los ejemplos de Andayón17 y Priañes18; en primer lugar,
porque son, con Veranes, los únicos yacimientos excavados siguiendo el método estra-
tigráfico; y, en segundo lugar, porque en ambos yacimientos se ha actuado en tiempos
relativamente recientes. En Andayón, se han programado campañas de excavación para el
año corriente, en lo que pretende ser un proyecto de carácter plurianual. No cabe duda de
que los resultados son, hasta la fecha, esperanzadores, no solo por el impacto visual de los
mosaicos descubiertos, sino también por la posibilidad de conocer nuevos datos sobre la
Asturias tardorromana, extrayendo de la tierra datos arqueológicos de suma relevancia, y
completando paulatinamente la planimetría de una villa que parece organizarse en torno
a un patio central. Precisamente Andayón, en el concejo de Las Regueras, es un ejemplo
ideal en el marco del presente estudio y de sus implicaciones. Se trata de un enclave que
cumple con una ocupación de baja densidad en un contexto rural, cuenta en el cercano
pueblo de La Estaca con 10 habitantes, mientras que en el núcleo de Andayón se cuentan
25 habitantes. Si tenemos en cuenta estos datos y los cotejamos con el número de visitas
que el yacimiento ha recibido desde que se han retomado los trabajos de excavación, la
información no puede ser más reveladora: el número de visitas que este yacimiento ha reci-
bido en fechas previas a la pandemia, es decir en el año 2019, ha sido de 1100 personas,

13
Aragoneses, M. J. (1954). El mosaico romano de Vega del Ciego (Asturias), BIDEA, 21, 3-24; Santos, N.
(1984). Las villas romanas en Asturias, Memorias de historia antigua, 6, 155-174.
14
Fernández, J. (1957). Excavaciones arqueológicas de Puelles (Val-de-Diós). La villa hispanorromana de
Boides, (Revista Covadonga, 154, primera ed. 1928, 503-534), Revista Valdediós, 19-27; Fernández, C.,
García, V., Gil, F. (2009). Complejos termales en Asturias. In Iglesias, J. M. (ed.). Cursos sobre el patrimonio
histórico, 13. Actas del XIX Cursos monográficos de Patrimonio Histórico, (Reinosa, Julio 2008), (pp. 47-69),
Santander: Universidad de Cantabria.
15
Estrada, R. (2006). Datos preliminares sobre los baños de época romana localizados en el lado meridional
de la iglesia de Sta. Eulalia de Valduno. In Estudios ofrecidos a José Manuel González en el centenario de su
nacimiento, La Piedriquina, 83-97; Estrada, R. (2014). Los baños de época romana de Santa Eulalia de
Valduno (Las Regueras). In Intervenciones en el patrimonio cultural asturiano 2007-2014. Gran Enciclopedia
Asturiana, (pp.123-157), Oviedo: Consejería de Educación, Cultura y Deporte.
16
Requejo, O. (1998). La “villa” romana de Murias de Paraxuga (Oviedo): Estudio cerámico. Trabajo
de Investigación Cursos de Doctorado 1986‐88. Dpto. de Historia y Artes, Área de Conocimiento de
Prehistoria y Arqueología. Inédito. Universidad de Oviedo.
35 // Sociedade e memória dos territórios

17
Muñiz, J.R. Corrada, M. (2014). Trabajos en la villa de Andayón. Documentación y conservación de la
ruina romana, La Piedriquina: anuario, 7, pp. 12-17; Muñiz, J. R. Corrada, M. (2018). Redescubriendo
la villa romana del Andayón, Las Regueras. In Excavaciones arqueológicas en Asturias, 2013-2016, (pp.262-
-272). Oviedo: Ed. Principado de Asturias.
18
Requejo, O. (2016). El registro cerámico de Priañes (Oviedo): un asentamiento rural tardorromano en la
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mientras que durante el 2020, ya en plena pandemia, ha sido de 49019. No cabe duda, por
tanto, de que realizando actividades de investigación en este tipo de yacimientos, y llevando
a cabo un plan integral de difusión y divulgación de los resultados de los trabajos, estos se
convierten en un referente en la zona en la que se ubican, propiciando el desplazamiento
de visitantes y el desarrollo de los núcleos colindantes.

Fig. 3 – Vista de los trabajos desarrollados en la villa de Andayón durante el año 2020 (Fotografía Juan Ramón Muñiz)

El desarrollo de la actividad arqueológica tiene, por tanto, el fin último de mejorar el


conocimiento histórico de las sociedades pasadas mediante la difusión de los resultados.
Dicha difusión favorece la reactivación social dando a conocer enclaves rurales, con el
beneficio económico que supone la visita de turistas. Por otro lado, potenciar la propia
investigación arqueológica, conlleva el descubrimiento de estos enclaves, paso previo fun-
damental para que se conviertan en un producto turístico20. Es necesario señalar, en contra
de la opinión común, que el yacimiento puede aportar rentabilidad desde los primeros
momentos de la investigación, tal y como evidencia la villa de Andayón. Aun excavando
36 // Sociedade e memória dos territórios

pequeñas áreas del yacimiento, la actividad arqueológica genera mucho interés, y las visitas

19
Las informaciones en relación con las visitas a la villa de Andayón han sido proporcionadas por el director de los
trabajos en el yacimiento, Juan Ramón Rodríguez Muñiz, al que agradecemos encarecidamente su colaboración.
20
Cabrini, L. (2002). Turismo, desarrollo rural y sostenibilidad. In VII Congreso AECIT (Jaén, 21-23 de
Octubre de 2002). Bilbao, AECIT, CD-Rom.

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 36 17/06/2022 18:05:45


se suceden. De nuevo debe valorarse que las villae romanas tienen un componente que las
dota de mayor atractivo desde el punto de vista turístico que otros yacimientos arqueológi-
cos; la presencia de estructuras “visibles”, restos monumentales y elementos ornamentales
son un reclamo para el turista. Pero, la riqueza del yacimiento reside también en su propio
entorno. El paisaje cultural no aparece configurado únicamente por el yacimiento (en este
caso la villa romana), sino que es posible enriquecer estas visitas turísticas a elementos del
patrimonio cultural con otras realidades del entorno, como los caminos históricos, los
museos o, incluso, otros yacimientos, etc… haciendo realmente atractiva la oferta turística
en torno a dicha entidad patrimonial y su propia singularidad.

Conclusiones

Las características del territorio actual se ven claramente influenciadas por las formas
de hábitat y estructuración territorial desde el mundo antiguo. No cabe duda de que, en
el pasado, las villae fueron estructuras vertebradoras del territorio en torno a las cuales se
desarrolló una profunda actividad socio-económica, influyendo en los núcleos de población
y la red viaria.
Las propias características de estos enclaves rurales, con funciones agropecuarias,
definen su ocupación en lo que hoy día, en su mayoría, son espacios depauperados y/o
despoblados, así como en espacios geográficos con baja densidad poblacional. Es por ello,
que consideramos que su redescubrimiento y excavación podrían propiciar el desarrollo
de estas zonas y regenerar los espacios rurales, a partir de la explotación de sus propios
paisajes culturales.
Los éxitos generados con este proyecto nos permiten ser optimistas y plantear esta
investigación para el sector transfronterizo a ambas orillas del río Miño. De esta manera
se propone continuar la línea de trabajo con un estudio que localizará los espacios de
hábitat tardoantiguos, para tener un punto de partida en las prospecciones arqueológicas
del territorio gallego-portugués. Con todo ello, podremos realizar un estudio del paisaje
englobando la vinculación de la población y las comunicaciones históricas en tiempos ro-
manos, catalogando de este modo los tipos de hábitat y creando mapas digitalizados. Todo
ello, al igual que en el caso que hemos expuesto del territorio asturiano, permitirá difundir
37 // Sociedade e memória dos territórios

los resultados con un fin último, el de poner en valor el papel del patrimonio social como
compromiso de las gentes que forman parte de dichos paisajes históricos, promocionando
el patrimonio histórico de estos espacios y su importancia como elementos de promoción
del turismo cultural.

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39 // Sociedade e memória dos territórios

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Projeto Arqueológico Outeiro do Circo
(Beja, Portugal): educação patrimonial
e envolvimento comunitário

Miguel António Paixão Serra1

Introdução

Sob a designação genérica de Projeto Outeiro do Circo englobam-se três distintos


projetos de investigação arqueológica desenvolvidos entre 2008 e 2021, para além de
outros projetos subsidiários, quer de investigação, quer de divulgação.
O ponto de partida para este conjunto de projetos é o povoado da Idade do Bronze
Final (1200 a 850 a.C.) do Outeiro do Circo, localizado na zona oeste do concelho de
Beja, dividindo-se entre a Freguesia de Beringel e a União de Freguesias de Santa Vitória
e Mombeja (Fig. 1).
Trata-se de um sítio conhecido desde o século XVIII através da menção a algumas
lendas que o relacionam com um passado remoto, recolhidas nas Memórias Paroquiais de
1758, e que haveriam de ser valorizadas posteriormente pela possibilidade de se associarem
a vestígios arqueológicos concretos. Estas lendas relevavam a presença de uma muralha,
genericamente atribuída aos “mouros”, mas também relacionavam o sítio com a fundação
da cidade de Beja, uma vez que ali teria havido uma primeira tentativa de instalação,
mudando-se posteriormente para o local onde ainda hoje permanece. Dessa jornada fica-
ram alguns vestígios, quer físicos, pela presença dos “licerses” (= alicerces) dos muros que a
rodeavam, quer toponímicos, oferecendo o nome de Beja à atual aldeia de Mombeja, que
derivaria de Montes de Beja (Parreira, 1977, p. 32).
41 // Sociedade e memória dos territórios

1
Responsável científico do PAOC - Projeto Arqueológico Outeiro do Circo (Beja) – PIPA 2019-2021; Técnico
Superior da Divisão de Cultura e Património da Câmara Municipal de Serpa; Investigador colaborador do
Centro de Estudos de Arqueologia, Artes e Ciências do Património
miguel.antonio.serra@gmail.com

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Fig. 1 – Localização do Outeiro do Circo (Beja) na Península Ibérica.

Depois de uma primeira publicação sobre o sítio, resultante de trabalhos de prospe-


ção e do estudo dos materiais recolhidos, nos anos 70 do século passado (Parreira, 1977),
o Outeiro do Circo só viria a ser novamente alvo de atenções a partir de 2001, com a
aprovação de um projeto de investigação para o sítio (Serra, Porfírio e Ortiz, 2007). Esses
primeiros trabalhos não contaram com o apoio necessário para a concretização dos objeti-
vos propostos, que passavam pela realização de escavações arqueológicas na muralha, entre
outros, limitando-se as ações à realização de prospeções e a um estudo de fotografia aérea
que permitiu a revisão da área ocupada pelo povoado (Serra e Porfírio, 2012, p. 135).
Mas seria apenas a partir de 2008 que se tornaria possível concretizar uma dinâmica de
investigação sobre o sítio, de forma regular e contínua, com exceção de alguns momentos
42 // Sociedade e memória dos territórios

de paragem nos trabalhos de campo motivados pelas crónicas deficiências em termos de


apoios. Esta permanência permitiu a criação das condições, não só para o desenvolvimento
das ações de investigação, mas também para a conceção e concretização de um programa
de Educação Patrimonial e de Arqueologia Comunitária, que souberam manter-se para
além dos próprios projetos de investigação.

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Assim, entre 2008 e 2021 decorreram três distintos projetos de investigação, o
primeiro entre 2008 e 2013, intitulado “A transição Bronze Final / I Idade do Ferro
no Sul de Portugal. O Caso do Outeiro do Circo”, integrado no Plano Nacional de
Trabalhos Arqueológicos. Este primeiro projeto permitiu a realização de sondagens
arqueológicas de avaliação sobre um troço da muralha, sendo o seu principal obje-
tivo o diagnóstico e a caraterização do sistema defensivo (Serra, 2014). Em paralelo
e face à receção positiva da comunidade local (em concreto a população da aldeia de
Mombeja), desenvolveram-se as primeiras ações de divulgação generalista e lançaram-
-se as bases para a criação de um programa verdadeiramente estruturado de Educação
Patrimonial (Porfírio e Serra, 2012).
O projeto seguinte, 2014-2017, intitulado “O Povoado do Bronze Final do Outeiro
do Circo (Beja)”, aprovado no âmbito dos Projetos de Investigação Plurianuais de
Arqueologia (PIPA), centrou atenções no espaço interior do povoado, através de uma
série de trabalhos com recurso a métodos analíticos não intrusivos complementados
com escavações arqueológicas O principal objetivo passava pela caraterização do
espaço doméstico/habitacional do Outeiro do Circo (Serra e Porfírio, no prelo). Ao
longo destes 4 anos procurou-se consolidar o programa de Educação Patrimonial e de
Envolvimento Comunitário, que passou a fazer parte integrante do próprio projeto de
investigação, sendo colocado ao mesmo nível de importância e dedicação que as questões
de ordem científica (Porfírio, 2015).
Por último, o “PAOC – Projecto Arqueológico Outeiro do Circo (Beja)”, integrado no
PIPA 2019-2021, pretendeu desenvolver escavações arqueológicas que permitissem uma
articulação de conhecimento entre o espaço ocupado pela muralha e o interior do povoado
e ao mesmo tempo manter a dinâmica de ações de divulgação de anos anteriores (Porfírio,
Serra e Silva, 2020) (Fig. 2).
Assim, o Projeto Outeiro do Circo, entendido no seu conjunto, desenvolveu ao longo
de treze anos uma série de ações de divulgação integradas nos conceitos de Educação
Patrimonial, Arqueologia Pública e Arqueologia Comunitária, que foram buscar alimento
ao conhecimento científico produzido na investigação realizada no sítio arqueológico e no
seu enquadramento local/regional, devido aos muitos trabalhos arqueológicos, maiorita-
riamente de Arqueologia Preventiva, que nos últimos 15 a 20 anos decorreram na região,
em grande parte motivados pelas operações de minimização no âmbito do Projeto Alqueva
43 // Sociedade e memória dos territórios

(Serra e Porfírio, 2020; Serra, 2021).

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Fig. 2 – Escavações arqueológicas no Outeiro do Circo. Campanha de 2020.

Da Arqueologia para a Comunidade (e vice versa…)

Desde o arranque do Projeto Outeiro do Circo em 2008 que ficou inscrita uma ver-
tente de atuação direcionada para o público, com o objetivo de promover e divulgar o
projeto de forma generalista, sobretudo junto da comunidade local mais próxima ao sítio
arqueológico, ou seja a população de Mombeja, a aldeia que simultaneamente serviria de
quartel-general para a equipa de investigação nestes primeiros anos.
Os objetivos destas ações não se limitavam a procurar transmitir à comunidade local o
conhecimento que se ia produzindo com os trabalhos arqueológicos no Outeiro do Circo,
mas pretendiam sobretudo envolver diretamente as populações como sujeitos e partici-
pantes ativos do próprio projeto. Esta intenção permitia não só um maior envolvimento e
44 // Sociedade e memória dos territórios

interligação com a comunidade local, mas também possibilitava a partilha de informação e


conhecimento entre diferentes atores do mesmo espaço, ou seja o território onde se insere
o sítio arqueológico.
Um outro aspeto passava pela capacidade de divulgar o projeto e consequentemente o
sítio arqueológico, bem como a região envolvente, para o exterior, captando o interesse de

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públicos diversos e distantes e com isso demonstrar junto da comunidade local o potencial
de aproveitamento diverso dos trabalhos arqueológicos em curso e de certa forma a criação
de uma ligação identitária com o sítio, procurando-se olhar para o património enquanto
legado e também como recurso (Porfírio e Serra, 2012, p. 879).
No entanto, o início deste projeto e mais concretamente da vertente de intervenção
com a sociedade ficou condicionado por uma dificuldade inesperada.
Apesar dos contactos prévios estabelecidos entre os responsáveis científicos do projeto
e as instituições locais, nomeadamente a Junta de Freguesia de Mombeja (atualmente
agregada na União de Freguesias de Santa Vitória e Mombeja após a reorganização admi-
nistrativa de 2013), para informar a comunidade local sobre a presença de uma equipa
de arqueologia no sítio e sobre os objetivos e natureza dos trabalhos a realizar, o contacto
direto com inúmeros elementos da população de Mombeja revelou um enorme desco-
nhecimento sobre a existência do sítio arqueológico conhecido como “Outeiro do Circo”
(Porfírio, 2015, p. 48).
Tornava-se assim necessário estabelecer ações concretas destinadas a ultrapassar
esta lacuna, concretizadas através da organização de iniciativas de abertura dos tra-
balhos arqueológicos ao público. É necessário referir que os trabalhos arqueológicos
no Outeiro do Circo sempre foram marcados por um carater sazonal, através da pre-
sença da equipa de investigação, constituída pelos responsáveis científicos e por um
conjunto de voluntários, maioritariamente estudantes universitários de arqueologia,
mas também de outras áreas de formação, o que por esse motivo implicava a concen-
tração das ações de divulgação no mês de Agosto, no decurso dos trabalhos de campo
(Porfírio, 2015, p. 38).
Desta forma, as primeiras ações de divulgação devidamente planificadas passaram pela
organização de visitas guiadas ao sítio arqueológico e às próprias escavações em curso,
direcionadas à comunidade local, mas com o duplo objetivo de também alcançar outros
interessados, numa ótica de afirmação de um futuro aproveitamento turístico-patrimonial
(Porfírio e Serra, 2012, p. 879) (Fig. 3).
Bastaram as primeiras presenças de elementos da comunidade local em visitas às
escavações arqueológicas no Outeiro do Circo para se confirmar que o desconhecimen-
to sobre o sítio era afinal ilusório, pois o contacto direto permitiu verificar que afinal o
sítio era apenas conhecido por um topónimo diferente de cariz mais popular, o “Cerro
45 // Sociedade e memória dos territórios

dos Muros” ou simplesmente “Os Muros” (Porfírio, 2015, p. 48; Serra, Porfírio e Ortiz,
2020, p. 117), referência clara às muralhas proto-históricas que mesmo ocultas sobre
o arvoredo que cobre os taludes continuam a ser uma referência na paisagem para as
populações atuais.

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Fig. 3 – Visitas da comunidade local ao Outeiro do Circo (2008).

Vencido este pequeno contratempo, foram rapidamente criadas as condições para


desenvolver e consolidar um projeto arqueológico ligado às comunidades locais, a que
não pode de modo algum ser alheio o grande acolhimento e curiosidade natural que se
estabeleceu em relação ao sítio arqueológico, aos trabalhos a desenvolver e à sua importân-
cia para o desenvolvimento local, servindo inclusivamente para alimentar discursos locais
geradores de alguma expetativa de criação de um atrativo patrimonial (Serra, Porfírio e
Ortiz, 2020, p. 116).
Deixaremos de fora as múltiplas atividades desenvolvidas em termos de divulgação
que remetemos para consulta na bibliografia produzida no seio do projeto sobre esta área
de atuação (mais bibliografia em: Serra, Porfírio e Ortiz, 2020) para nos concentrarmos
46 // Sociedade e memória dos territórios

na relação com a comunidade e na forma como evoluiu essa interligação após os primeiros
momentos atrás descritos.
Na tentativa de devolver uma certa memória do sítio arqueológico constatou-se que
também as antigas lendas que referiam o Outeiro do Circo eram desconhecidas da popu-
lação (Porfírio, 2015, p. 48; Serra, Porfírio e Ortiz, 2020, p. 117), pelo que estas passaram

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a integrar diversas ações de divulgação, quer durante as visitas guiadas, quer nas inúmeras
conferências de divulgação.
Procurou-se assim ligar o conhecimento popular transmitido pelas lendas como ele-
mento identitário e de apropriação das populações com o seu património, demonstran-
do que estas histórias encerram um fundo de verdade que a arqueologia pode ajudar a
desmitificar ou esclarecer (Serra e Porfírio, 2016, p. 401, 402). A lenda que mereceu
maior atenção popular e que hoje em dia voltou a fazer parte da memória coletiva é a
que relaciona o Outeiro do Circo com a fundação da cidade de Beja, funcionando como
motivo de orgulho local para a importância e antiguidade do sítio arqueológico (Serra,
Porfírio e Ortiz, 2020, p. 116).
Podemos assim dizer que nos primeiros anos do Projeto Outeiro do Circo a compo-
nente de envolvimento comunitário não se encontrava ainda completamente estruturada e
foi decorrendo ao sabor das oportunidades criadas à medida que um maior entrosamento
entre a equipa de investigação e os agentes locais se ia consolidando, aumentando o conhe-
cimento de parte a parte. Por um lado, a comunidade local, ao participar regularmente
nas atividades de divulgação promovidas adquiria um cada vez maior conhecimento sobre
o sítio arqueológico, criando uma relação empática com o projeto, enquanto que os res-
ponsáveis científicos obtinham um importante conjunto de elementos sobre a história do
território, indispensáveis para o evoluir dos trabalhos, mas também sobre as preocupações
e expectativas dos seus habitantes.
As principais iniciativas dirigidas à população local centravam-se numa lógica de
abordagem algo habitual em outros projetos de investigação arqueológica, procurando-se
organizar sessões em que os investigadores transmitiam a públicos não especializados os
principais resultados dos trabalhos em curso. Assim, para além das visitas ao sítio durante
as escavações arqueológicas, que permitiam uma maior interação entre os participantes,
promoveram-se sobretudo conferências e exposições de cariz generalista.
As visitas às escavações arqueológicas pretendiam em primeiro lugar marcar uma
atitude clara de abertura pública total do projeto à comunidade, aspeto que se afirmou
como uma marca distintiva deste projeto ao longo dos anos (Serra, Porfírio e Ortiz,
2020, p. 117).
As limitações existentes no local das escavações, por estarmos perante um sítio não
valorizado e numa fase inicial das escavações em que não existiam elementos estruturais
47 // Sociedade e memória dos territórios

visíveis implicou a necessidade de recorrer a diferentes estratégias explicativas para envol-


ver o público durante as visitas (Porfírio e Serra, 2012, p. 882), e que passavam por uma
abordagem de enquadramento sobre a evolução da paisagem envolvente, sobre a leitura in-
terpretativa no próprio sítio e pela explicação sobre a natureza e objetivos dos trabalhos em
curso, ações que eram apoiadas por algumas imagens aéreas do sítio, indispensáveis para

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auxiliar a sua leitura e pelo manuseamento de alguns artefactos recolhidos nas escavações
(Porfírio, 2015, p. 39; Porfírio e Serra, 2012, p. 882).
Um dos aspetos mais valorizados pela população local durante estas ações era a compo-
nente agrícola do território envolvente ao sítio arqueológico e a presença de um importante
conjunto de artefactos relacionados com as práticas agrícolas. Este interesse específico per-
mitiu uma maior aproximação com o público, que, de certo modo, por via da forte ligação
ao mundo rural de grande parte da população local, encontrava nesta componente de
análise sobre as comunidades que habitaram o Outeiro do Circo há 3000 anos, uma forma
de as compreenderem e de as assumirem com seus verdadeiros antepassados (Porfírio e
Serra, 2012, p. 882) e que iria ser regularmente utilizada no desenvolvimento posterior do
programa de divulgação.
Ao longo do projeto decorrido entre 2008 a 2013 estas ações foram ganhando cada
vez maior expressão e participação, ao mesmo tempo que o projeto arqueológico se envolvia
em iniciativas promovidas pelas instituições locais, fazendo parte integrante das várias
valências que se pretendiam valorizar, como o artesanato, a gastronomia, o cante ou o patrimó-
nio natural. Desta forma, sem que estas ações fizessem parte da planificação original,
procurou-se dar resposta positiva às várias solicitações, que resultaram em colaborações
variadas como a inclusão de pequenos conteúdos expositivos sobre o projeto em certames
locais, como sucedeu com a mostra de produtos e tradições locais de Mombeja a 24 de
Janeiro de 2010, e que valorizou elementos tão distintos como o artesanato local, os produtos
gastronómicos, as quadras populares, pintores locais e a arqueologia, numa organização
conjunta com a Associação Juvenil e Cultural de Mombeja e a Junta de Freguesia de
Mombeja (Porfírio e Serra, 2012, p. 884).
No seguimento desta iniciativa ganharam forma outras ações como a colaboração
com o Jornal de Mombeja, editado pela referida associação, e que permitiu ao Projeto
ter uma rubrica regular para transmitir, através deste pequeno órgão de comunicação
local, as suas principais atividades, mas também outros aspetos sobre a arqueologia
neste território e que foram corporizadas numa série de artigos sob o título “Viagens
pela história da arqueologia de Mombeja” (Porfírio e Serra, 2012, p. 886).
O interesse generalizado pelo projeto, associado ao aumento da sua visibilidade
pública e às solicitações surgidas levou ainda à organização de algumas visitas ao povoado,
fora da época habitual de escavações arqueológicas. Estas visitas, dirigidas a grupos orga-
48 // Sociedade e memória dos territórios

nizados com interesses específicos, promoviam o Outeiro do Circo de modo integrado


noutras mais-valias locais, associando o sítio arqueológico com o restante património
cultural, material e imaterial da região, procurando-se sempre um modelo de organização
que privilegiasse também a visita à aldeia de Mombeja e à possibilidade de associar a mos-
tra de produtos e tradições locais, utilizando-se deste modo o património arqueológico

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como meio para a promoção geral da própria localidade (Serra, Porfírio e Ortiz, 2020,
p. 120) (Fig. 4).

Fig. 4 – Mostra gastronómica, de cante e quadras populares em Mombeja para grupo


de visitantes ao Outeiro do Circo (2012).

Este período inicial do programa de divulgação ficou ainda marcado por duas
ações que produziram efeitos duradouros e alcances inesperados. A primeira é refe-
rente a uma reportagem televisiva, para o programa Portugal em Directo, da RTP,
dedicada aos trabalhos no Outeiro do Circo, mas que também valorizou a componen-
te de relação com a comunidade de Mombeja e que provocou um aumento imediato
no número de visitantes às escavações arqueológicas, bem como uma maior atenção da
comunicação social local e das instituições envolvidas (Porfírio e Serra, 2012, p. 885,
49 // Sociedade e memória dos territórios

886). Esta reportagem também permitiu a oportunidade de chamar a atenção para


outros problemas sentidos pela população, nomeadamente sobre as péssimas condi-
ções do acesso viário à aldeia e da falta de redes móveis de telecomunicações, assuntos
que seriam alvo de nova reportagem e que ficariam resolvidos pouco tempo depois
(Porfírio, 2015, p. 50)!

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 49 17/06/2022 18:05:47


A segunda iniciativa, que marca simbolicamente o final desta fase, resultou de ques-
tões científicas sobre o estudo das cerâmicas do Outeiro do Circo (Osório, 2013) e que
serviriam para criar um projeto paralelo de Arqueologia Experimental, denominado faCta
– fogo, água, Cerâmica, terra e ar, centrado na realização de oficinas de manufatura e coze-
dura de cerâmicas pré e proto-históricas, mas que simultaneamente se constituiria como
um projeto aberto à participação do público, concretizado numa sessão em Mombeja em
Abril de 2013 (Porfírio, 2015, p. 43). Este projeto haveria de ganhar uma estrutura pró-
pria que permitiu a sua continuidade e que o levaria a percorrer diversos pontos do país
ao longo dos anos seguintes, servindo como um autêntico embaixador do Projeto Outeiro
do Circo.

Consolidação e afirmação junto da comunidade

Uma nova fase de divulgação teria início com o arranque de outro projeto de in-
vestigação em 2014 (Serra, Porfírio e Silva, 2015, p. 172) e que pretendia consolidar as
dinâmicas desenvolvidas entre 2008 e 2013, quer no respeitante à intervenção científica
no sítio, quer na vertente de divulgação, para a qual se concebeu um programa específico
e devidamente conceptualizado após o acumular de experiência anterior (Serra e Porfírio,
2016, p. 406).
Este programa estruturava a organização das visitas guiadas durante as escavações ar-
queológicas, para as quais foi ainda concebido um kit pedagógico, que incluía ilustrações,
fotografias, réplicas de objetos arqueológicos e alguns artefactos passíveis de manusea-
mento pelos visitantes, de forma a promover um contacto mais direto e envolvente com
as realidades em apreciação, mas também consolidava um programa de visitas ao longo
do ano, combatendo a sazonalidade das ações de divulgação do projeto, integradas em
diferentes iniciativas relacionadas com percursos pedestres temáticos, desenvolvidas por
diferentes entidades, como a Câmara Municipal de Beja, juntas de freguesia ou associações
desportivas e culturais (Serra e Porfírio, 2016, p. 406) (Fig. 5).
O Outeiro do Circo passava assim a fazer parte integrante de roteiros património-
-culturais regulares, aumento o impacto da divulgação junto de públicos cada vez mais
heterogéneos.
50 // Sociedade e memória dos territórios

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Fig. 5 – Kit pedagógico

Outra tipologia de iniciativas que o programa de divulgação pretendia desenvolver de


forma assídua eram as conferências generalistas, destinadas a transmitir o conhecimento
resultante dos trabalhos arqueológicos junto de diferentes setores da população, incluindo
a comunidade escolar, com a qual havia dificuldade de relacionamento pelo facto dos
trabalhos arqueológicos no Outeiro do Circo decorrerem em período de férias escolares.
Algumas destas conferências seriam incluídas em eventos comemorativos, como por exem-
plo, o Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, as Jornadas Europeias do Património
ou o Dia Mundial do Turismo, passando a integrar o plano de atividades de outras entidades,
nomeadamente da Câmara Municipal de Beja.
Reforçou-se também a área de comunicação, através de uma maior articulação com os
media, quer locais, quer nacionais, o que permitiu uma atenção regular para as ações do
projeto ao longo do ano, que foram sistematicamente reproduzidas nos meios de comu-
51 // Sociedade e memória dos territórios

nicação locais, com destaque para as rádios e jornais da região. Em concomitância com
este último ponto procurou-se reforçar a utilização das plataformas digitais do projeto de
forma constante e devidamente planificada (Serra e Porfírio, 2016, p. 405), capazes de
uma divulgação quase em tempo real e que ao mesmo tempo se tornou geradora de novos
contactos para divulgação.

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Não obstante este reforço da componente de divulgação do Projeto Outeiro do
Circo, com o objetivo de atingir uma maior visibilidade e alcance, promovendo o inte-
resse sobre o sítio, a ligação específica à comunidade local não foi descurada e em prati-
camente todas as tipologias de atividades atrás mencionadas foram incluídas iniciativas
dirigidas a esta.
Para cumprir este objetivo procurou-se, com o apoio da Câmara Municipal de Beja,
concretizar algumas ações em Mombeja, que normalmente seriam desenvolvidas na cidade,
como as comemorações do Dia Mundial do Turismo em 2014, que incidiu na realiza-
ção de uma visita comentada ao Outeiro do Circo, com percurso pedestre até Mombeja,
envolvendo outras temáticas para além da arqueologia, como uma exposição oral sobre
o enquadramento geológico da região. Este percurso terminaria em Mombeja com os
participantes a serem brindados com mostras de artesanato local e com a possibilidade
de contactar diretamente com os artesãos, para além de algumas provas gastronómicas
ao som do cante alentejano que ficou a cargo do Grupo Coral Misto de Mombeja. Para
terminar, houve lugar a mais uma sessão de cante, desta vez com atuação do Grupo Coral
Feminino de Santa Vitória, para logo de seguida se iniciar a degustação de diversos produ-
tos gastronómicos da região, como o queijo, os enchidos, o presunto, a doçaria, o pão e o
vinho, materializando-se assim a ligação entre as atividades do projeto e outros pontos de
interesse locais (Fig. 6).
52 // Sociedade e memória dos territórios

Fig. 6 – Visita ao Outeiro do Circo e Mombeja no Dia Mundial do Turismo (2014).

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Outras ações destinadas a envolver a comunidade local tiveram lugar em 2016 com a
realização em Mombeja de uma conferência e um passeio arqueológico integrados num outro
projeto paralelo, designado 12 Lugares, 12 Meses, 12 Histórias – A Idade do Bronze na região de
Beja e que foi desenvolvido em todas as freguesias do concelho de Beja ao longo de 12 meses,
com conferências, exposições e percursos pedestres dedicados à Idade do Bronze (Serra, 2019).
Pouco tempo depois seria organizado novo percurso pedestre que envolveu o Outeiro
do Circo e que desta vez integrou o programa da Semana Cultural e da Juventude da
União de Freguesias de Santa Vitória e Mombeja, afirmando assim a vontade de colaboração
com as entidades locais.
Foi ainda concebida uma pequena exposição intitulada “Gestos Ancestrais”, constituída
por uma mostra de alguns artefactos e réplicas relacionados com as atividades agropecuá-
rias documentadas no Outeiro do Circo, e com os seus equivalentes contemporâneos. Esta
exposição procurava demonstrar as semelhanças entre as atividades ligadas à agricultura e à
pecuária desde tempos remotos até à atualidade e no seu sentido de permanência em terri-
tórios fortemente rurais. Tratou-se de uma exposição de curta duração, que ficou integrada
na programação das festas populares de Mombeja, um momento de forte participação da
população, e que pretendeu, mais uma vez, relacionar o projeto com as tradições da própria
comunidade (Serra, Porfírio e Ortiz, 2020, p. 122).
À semelhança do que sucedeu no projeto anterior, também no período 2014-2017
surgiram oportunidades não programadas que não só integraram o plano de divulgação, como
geraram um grande impacto junto da comunidade local. Foi o caso de dois documentários
filmados sobre o Projeto Outeiro do Circo, o primeiro, intitulado Outeiro do Circo: o guardião
da planície, realizado por Manuel Monteiro, voluntário nas escavações de 2016, e que haveria
de ser exibido em Mombeja após a estreia na Casa da Cultura de Beja durante o ano de 2017.
Nesse mesmo ano foi produzido um novo documentário, da realizadora colombiana
Andrea Mendoza, com o título Xaroco, e que se centrou, não apenas no sítio arqueológico,
mas também nas tradições e nas principais vivências da comunidade de Mombeja, permitindo
um envolvimento muito direto da população durante a rodagem. Também este documentá-
rio seria exibido em Mombeja, ação integrada novamente numa iniciativa mais abrangente
como foram as Jornadas Europeias do Património em 2018 e que permitiu juntar mais de 100
assistentes que encheram o pavilhão multiusos da localidade num momento de comunhão
entre a comunidade e o seu património (Serra, Porfírio e Ortiz, 2020, p. 123).
53 // Sociedade e memória dos territórios

A programação das ações de divulgação do Projeto Outeiro do Circo revelou duran-


te esta fase o forte empenhamento da comunidade local de Mombeja através da adesão
constante às iniciativas, mas também pelas solicitações para envolver o projeto em diversos
eventos e festividades, consolidando assim a presença da herança patrimonial na localidade
e na apropriação pelas suas gentes.

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O último ciclo

Um programa de divulgação associado a um projeto de investigação corre o risco de ter uma


duração limitada aos prazos de execução do próprio projeto e tornar-se efémero. A capacidade
de consolidar a vertente divulgativa dependerá do conhecimento produzido pela investigação e
da criação de uma estrutura permanente que só pode ser viabilizada com a concretização de um
projeto de valorização do sítio arqueológico com vista ao seu usufruto público.
Este objetivo ainda está longe de acontecer no caso do Projeto Outeiro do Circo e o
último ciclo de investigação ocorrido entre 2019 e 2021 expôs essas dificuldades, dando
por encerradas as escavações arqueológicas no sítio até que se criem as condições para um
futuro projeto que permita a preservação das estruturas arqueológicas descobertas e o seu
acesso público através da respetiva musealização.
A concretização destes objetivos, dependente em grande parte dos apoios financeiros
e logísticos dos parceiros do Projeto Outeiro do Circo, será a condição sine qua non para a
continuidade dos trabalhos, quer de investigação, quer de divulgação no sítio.
Os trabalhos desenvolvidos neste período demonstraram mais uma vez o interesse e o
grande envolvimento da comunidade local em diferentes aspetos do Projeto, nem todos men-
suráveis ou facilmente transpostos para palavras, mas também revelaram as dificuldades em
manter um programa de divulgação regular sem a continuidade da investigação sobre o sítio.
O projeto aprovado em 2019, com a designação “PAOC – Projeto Arqueológico
Outeiro do Circo (Beja)”, no âmbito do PIPA 2019-2021, incidiu na escavação arqueoló-
gica de uma área que engloba parte da muralha e o espaço interno do povoado, e que viria
a revelar um troço da muralha da Idade do Bronze em bom estado de conservação, que
poderá servir como ponto de partida para uma futura valorização do sítio.
A vertente de Educação Patrimonial expressa no projeto assentava em objetivos seme-
lhantes aos anteriores, prevendo a manutenção da tipologia de atividades já consolidada
como forma de manter o reconhecimento social do projeto e pretendendo criar uma maior
sensibilização para a proteção e valorização do património arqueológico por parte das
comunidades locais e na compreensão da importância científica do sítio.
A primeira atividade participativa deste último projeto foi a apresentação pública dos seus
objetivos e planeamento, efetuada em Maio de 2019 em Mombeja, perante a comunidade
local, com o objetivo, não apenas de explicitar as ações a desenvolver, mas de recolher opiniões
54 // Sociedade e memória dos territórios

e sugestões, quer para eventuais iniciativas a organizar, quer para avaliar as expetativas em
termos de passos futuros a alcançar, tornando assim a comunidade local participante ativo no
processo de decisão e de construção do projeto (Serra, Porfírio e Ortiz, 2020, p. 124).
A concretização das ações de divulgação ao longo deste triénio seria fortemente con-
dicionadas por dois fatores principais, a prioridade dada à intervenção arqueológica em

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termos de envolvimento da escassa equipa do projeto, o que deixava pouca disponibilidade
para a planificação de novas ações de Educação Patrimonial e a pandemia COVID19, que
criou imensas limitações a um tipo de atuação que prioriza as ações presenciais e o contacto
direto com os intervenientes.
As restrições indicadas reduziram a participação do público em algumas das atividades
típicas que se foram consolidando ao longo dos anos, como as visitas guiadas durante as es-
cavações arqueológicas ou a organização de percursos pedestres relacionados com temáticas
arqueológicas, que praticamente não existiram durante este período.
A opção pela realização de iniciativas em formato online, que sofreu maior incremento
como forma de ultrapassar as dificuldades enunciadas, permitiu alcançar novos públicos,
mas não teve qualquer impacto em termos da aproximação à comunidade local.
Apenas com o alívio momentâneo das restrições relativas ao combate à pandemia
COVID19 foi possível desenvolver algumas iniciativas destinadas a contar com a proximidade
do público, como sucedeu no final da campanha arqueológica de 2020 em que se promoveu
uma sessão pública em Mombeja sobre os resultados dos trabalhos, como forma de ultrapassar
a ausência de visitas ao sítio durante o período de escavação. Esta apresentação propiciou um
momento de contacto e discussão com a população local e incluiu os próprios voluntários do
projeto nas apresentações dos resultados, como forma de os envolver diretamente nas várias
vertentes e possibilitando uma aprendizagem prática no contacto com o público (Fig. 7).

55 // Sociedade e memória dos territórios

Fig. 7 – Sessão pública de apresentação de resultados em Mombeja (2020).

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O último ano do projeto de investigação permitiu um certo regresso à normalidade,
com a redução das restrições em termos de saúde pública, assistindo-se ao regresso das
visitas às escavações ao nível do que sucedia em anos anteriores e com alguns momentos
de maior acréscimo motivados pelo destaque televisivo dado às descobertas de 2021, que
trouxeram ao Outeiro do Circo as principais cadeias de televisão nacionais.
Foi também possível voltar a explorar o conceito de visitas “imersivas” nas escavações
no Outeiro do Circo, com os participantes a serem convidados a experienciarem o ato de
escavar juntamente com a equipa do projeto, possibilitando um contacto direto com a
realidade do trabalho arqueológico.
O regresso das colaborações com outras entidades também ficou patente na organização
de uma visita a Mombeja, no âmbito do projeto “Pelas aldeias de Beja”, da responsabilidade
da Câmara Municipal de Beja, e que propõe a realização de percursos comentados pelas
aldeias do concelho destacando as suas histórias, monumentos ou tradições. Na sessão dedi-
cada a Mombeja, que coincidiu com o período de escavações arqueológicas no Outeiro do
Circo, os elementos do projeto deram a conhecer os resultados dos trabalhos e das formas
encontradas para divulgar esse conhecimento, surgindo o património arqueológico ao lado
de poetas populares, artesãos e outras valências da aldeia.
Findos os trabalhos de campo do projeto científico em Agosto de 2021, segue-se o
desafio de manter uma divulgação regular durante um período, que se pretende curto, até
se definir a eventual continuidade da investigação sobre o Outeiro do Circo.

Motivação para um futuro incerto

Aquando da chegada dos responsáveis científicos do Projeto Outeiro do Circo a Mombeja


em 2008 para iniciar os trabalhos de campo, o primeiro contacto com a comunidade local
revelou uma realidade comum a tantas outras localidades do interior do território, vítimas de
uma desertificação e envelhecimento populacional acelerado que motivam um estado de des-
crença resultante da falta de oportunidades e de se olhar para o propalado desenvolvimento
regional como algo distante.
Na primeira reunião com o então presidente da Junta de Freguesia de Mombeja,
Inocêncio Viriato, ficaram-nos marcados na memória alguns sentimentos exteriorizados
56 // Sociedade e memória dos territórios

como o da surpresa pelo interesse dos arqueólogos por este território e o do isolamento da
aldeia em relação às principais dinâmicas da região, tal como nos foi confidenciado, “ninguém
passa em Mombeja, quem vai a Mombeja é porque precisa mesmo de lá ir”.
A relação de proximidade estabelecida entre a equipa de arqueologia e a comunidade
local foi crescendo ao longo dos anos, fazendo com que o projeto passasse aos poucos a

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fazer parte da própria aldeia e criando com isso um sentimento de responsabilidade para
um envolvimento recíproco.
Podemos hoje afirmar que o Projeto Outeiro do Circo não se limita a procurar ser di-
vulgado junto da comunidade local, mas pretende sobretudo fazer parte desta e contribuir
para o seu caminho futuro.
Assumimos assim que o património arqueológico deve ser entendido como parte
integrante do património cultural de uma comunidade e que esta deve ser envolvida
numa participação ativa que promova aprendizagens recíprocas e compromissos (Walid,
Pulido e Rodríguez, 2020, p. 23), esperando que o futuro nos traga brevemente um novo
compromisso…

Resumo – O Projeto Arqueológico do Outeiro do Circo desenvolve a sua investigação sobre a


Idade do Bronze na região de Beja desde 2008. Em simultâneo foi concebido um vasto programa
de Educação Patrimonial, centrado na utilização do património arqueológico enquanto motor de
ações de educação não formal, de Arqueologia Pública, com a missão de sensibilizar novos públicos
para a salvaguarda do património arqueológico e de Arqueologia Comunitária, pretendendo envol-
ver as comunidades locais, não só para a sensibilização patrimonial, mas sobretudo para as tornar
parte ativa do próprio processo de investigação de modo a criar uma maior relação identitária entre
a comunidade atual e as comunidades do passado. Pretende-se com este trabalho mostrar a relevância
da participação das populações locais na investigação, gestão e valorização do património arqueológico
local, como forma de integração da comunidade no processo de construção social do conhecimento
científico sobre o sítio arqueológico em estudo.

Bibliografia

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57 // Sociedade e memória dos territórios

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Iberografias43-vfinal14Junho.indb 57 17/06/2022 18:05:49


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58 // Sociedade e memória dos territórios

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A linha do tempo da patrimonialização
entre a memória e o apagamento de
um Parque Arqueológico em Ouro Preto
– Minas Gerais – Brasil1

Rodolfo Junqueira Fonseca2

“As ruínas testemunham a maneira pela qual a história se desloca para dentro
do cenário”
Walter Benjamin citado por Aleida Assmann (2011)

Poderíamos pensar o Patrimônio Cultural como uma contação de histórias do passado


no presente na forma de narrativas e intepretações tal como filmes, livros e outros produtos
culturais também o fazem? Que agentes de fato roteirizam o passado dos lugares cons-
truindo cenários para criar uma memória coletiva presente compartilhada destes espaços?
Reconhecer um Patrimônio não representaria tomar partido de um ponto de vista da
história dos lugares?
Segundo o historiador e arqueólogo Niel Silberman (2016), o Patrimônio Cultural
deve ser visto como um discurso em que cabe “a interpretação do patrimônio – constelação
de técnicas de comunicação que tentam transmitir o valor público, a importância e o
significado de um patrimônio, objeto ou tradição” (Silberman, 2016, pag. 11).
Este trabalho analisa o processo de patrimonialização do  Parque Arqueológico do
Morro da Queimada, em Ouro Preto, Minas Gerais, cerca de 400 km da cidade do Rio de
Janeiro, interior do Brasil. Ouro Preto é uma cidade da história colonial brasileira do sécu-
lo XVII, reconhecida pela UNESCO em 1980 como patrimônio cultural da humanidade.
59 // Sociedade e memória dos territórios

Vale destacar que uma pesquisa sobre Ouro Preto, representa dialogar com grande símbolo
do patrimônio cultural brasileiro por excelência. A cidade possui um perfil turístico e
1
Esta pesquisa faz parte do projeto de doutorado em desenvolvimento do autor no PPGSOL da Universidade
de Brasília -Unb
2
PPGSOL - Programa de Pós-graduação em Sociologia - Universidade de Brasília -Unb
www.filmesderodolfofonseca.blogspot.com

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universitário, com a economia baseada na exploração mineral. Muitos bairros nos arredores
da cidade monumento se desenvolveram a partir dos anos 1950 em diante.
A patrimonialização do Parque Arqueológico do Morro da Queimada trata-se de um
projeto deixado de lado por muitas décadas, e iniciado, de fato, somente a partir de 2005,
quando, de fato, seu valor público assumiu importância e o significado como patrimônio
cultural. Em todos os bairros limítrofes do Parque Arqueológico existem resquícios da
ocupação urbanística de um próspero arraial minerador do início do século XVIII, cenário
da Revolta de Felipe dos Santos em 1720.
Este artigo analisa as dimensões históricas, político-institucionais, sociais e cultu-
rais do Parque Arqueológico através de documentos institucionais, acadêmicos, ima-
gens de arquivo e imagens produzidas no levantamento em processo do trabalho de
campo, em busca dos agentes, intenções e motivações geradoras do reconhecimento e
legitimação do lugar como um patrimônio cultural a ser integrado à cidade patrimônio
de Ouro Preto.

A implantação do Sítio histórico como Parque Arqueológico

O processo de implantação e delimitação do chamado Parque Arqueológico do


Morro da Queimada ocorre na área do Sítio Arqueológico de mesmo nome, localizado
no conjunto de morros e escarpas que compõe a Serra de Ouro Preto, com cons-
truções anteriores a maioria daquelas existentes dentre o patrimônio de Ouro Preto
mais conhecido.
O chamado Morro da Queimada foi conhecido no período colonial como Morro
do Paschoal ou Arraial do Ouro Podre, e pode ser identificado em mapas de princípios
do século XX disponíveis no Arquivo Municipal como ruínas de Vila Rica, como era
conhecida a cidade na época. O Morro foi um dos primeiros arraiais a serem forma-
dos, mas destruído em 1720, em protesto contra o levante em oposição aos aumentos
dos impostos e à criação das Casas de Fundição pela Coroa Portuguesa, liderado por
Paschoal da Silva Guimarães.
A necessidade de criação do Parque Arqueológico do Morro da Queimada surgiu
sob a perspectiva de proteção de um patrimônio material aos poucos dilapidado, tanto
60 // Sociedade e memória dos territórios

pelo poder público local, quanto por parte da população (Mattos, 2009), que ocupou
com casas populares o local a partir da segunda metade do século XX. Formaram-se, dessa
maneira, quatro bairros na periferia próxima da área tradicionalmente patrimoniali-
zada de Ouro Preto, construídos sobre parte das ruínas, e hoje, limítrofes ao Parque
Arqueológico: Morro São Sebastião, Santana, São João e Morro da Queimada

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A área do Parque está em um ponto privilegiado com vista para o centro de Ouro
Preto, logo acima do Parque Municipal das Andorinhas, que já possui um fluxo turís-
tico próprio. Por outro lado, a estrada para o Parque é caminho para a cidade vizinha
Mariana. O Parque tem atualmente a delimitação demonstrada abaixo, que não corres-
ponde a todo o Sítio Arqueológico, já que não há uma delimitação exata para o Sítio.
Isto porque praticamente toda a Serra de Ouro Preto tem vestígios de ruínas de casas e
da mineração colonial.

Delimitação original do Sítio Arqueológico Morro da Queimada em relação a Pça Tiradentes,


abaixo à esquerda – Ouro Preto – MG
Fonte: Google, elaboração LAPACOM –Museologia – UFOP.

Como já podemos notar, a delimitação do Parque está bem próxima à praça Tiradentes
no centro de Ouro Preto, símbolo turístico local e centro urbano da vida da cidade, onde
61 // Sociedade e memória dos territórios

se localiza o Museu da Inconfidência. Além disso, como já colocado, o Parque faz divisa
com quatro bairros da periferia circunvizinha de Ouro Preto, localizados nos arredores da
cidade tombada a ponto de compor sua paisagem.

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Placa turística na Praça Tiradentes, na entrada de Ouro Preto indica o Parque Arqueológico
do Morro da Queimada e os bairros de Morro São João e Morro Santana
Foto: autor

Sítio Arqueológico Morro da Queimada em relação aos bairros da Serra de Ouro Preto logo acima – Ouro Preto – MG
Fonte: LAPACOM – Museologia – UFOP
62 // Sociedade e memória dos territórios

O bairro do Morro São Sebastião, de características mais rurais, com casas de maior
área livre e afastamento lateral, tem uma ocupação mais antiga, identificado como um
local de fundação de Ouro Preto, já que supõem-se que tenha sido a região por onde os
bandeirantes paulistas chegaram.

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Já os demais bairros Santana, São João e Morro da Queimada, este último sem confundir
seu nome com o do próprio Parque, são mais adensados e com aspecto construtivo de habitações
de favela de pequeno porte, apesar dos moradores locais e da própria cidade não identificarem
o lugar como tal. Tão importante quanto definir um marco espacial é importante definir um
recorte de tempo para a pesquisa. Sobretudo, para uma pesquisa com dimensões históricas a
serem consideradas como discursos sobre o lugar no presente ou num passado recente.

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Ruína do Sítio Arqueológico dentro do bairro São Sebastião com casa ao fundo
Foto: Autor

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Bairro Morro da Queimada com centro antigo de Ouro Preto no horizonte
Foto: Autor

Assim, o recorte de tempo desta pesquisa tem como função delimitar e estabelecer
marcos temporais em seu campo de estudo. Para cumprir este desafio, a proposta é clas-
sificar discursos e documentos pesquisados em quatro períodos marcados por diferentes
contextos, circunstâncias e agentes, levando em conta as políticas de patrimônio no Brasil
na relação com o Sítio Arqueológico e à cidade de Ouro Preto.

A linha do tempo da patrimonialização

A linha de tempo entre 1937 e 2020 a ser considerada nesta pesquisa tem como função
delimitar e estabelecer marcos temporais em seu campo de estudo, além de contextualizar
suas fontes, agentes e discursos diante do objeto e dos objetivos da pesquisa. Para cumprir
este desafio, a proposta é classificar discursos e documentos pesquisados em quatro períodos
marcados por diferentes contextos, circunstâncias e agentes, levando em conta as políticas de
patrimônio no Brasil na relação com o Sítio Arqueológico e a cidade de Ouro Preto: 1) 1937
64 // Sociedade e memória dos territórios

a 1969 – O primeiro marco de tempo a ser considerado é de certa forma fundante, um período
que inclui a criação do antigo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN
e o desenvolvimento das Políticas Públicas de Patrimônio Cultural no Brasil.
Um momento em que a preservação das cidades coloniais ganha proeminência em oposi-
ção às cidades modernas e industriais em desenvolvimento no Brasil. A nova capital do Estado

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de Minas Gerais, Belo Horizonte, a cidade colonial desfigurada pelas várias reformas urbanas e
então capital do país, Rio de Janeiro, e a cidade de imigrantes que se industrializava, São Paulo.
Vale destacar que Ouro Preto é tomado como monumento nacional pelo SPHAN após um
grande período de ostracismo e abandono da cidade. Entre 1897 e 1930, devido a mudança da
capital do Estado, ocorre a migração de toda população de funcionários públicos e consequen-
temente de seus recursos econômicos para a nova capital, assim como de muitos investimentos
públicos. Diversos sobrados são abandonados e a cidade se esvazia social e politicamente.
Paradoxalmente, podemos refletir que se não houvesse a mudança da capital do
Estado, a Ouro Preto monumento nacional não existiria mais nem na década de 1930.
Muito provavelmente seus sobrados teriam sido destruídos pela urbanização e especulação
imobiliária, seus morros ocupados totalmente pelo crescimento urbano e populacional
que já se iniciava no início do século XX.
Em 1951, o Morro da Queimada enquanto Sítio Arqueológico é visitado e mapeado
por uma expedição da equipe do SPHAN, incluindo Carlos Drummond de Andrade e
Rodrigo de Melo Franco, inclusive fotografados assentados sobre as ruínas em uma famosa
fotografia hoje guardada no acervo do IPHAN-Rio. Há também registros fotográficos das
ruínas feitas durante a mesma expedição em 1951 já localizadas no acervo do IPHAN-MG.

65 // Sociedade e memória dos territórios

Rodrigo de Melo Franco e Carlos Drummond de Andrade sob as ruínas do Morro da Queimada
Foto: Acervo IPHAN - RJ – Ouro Preto 1951.

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Acervo IPHAN - MG – Ruínas do Morro da Queimada com Serra de Ouro Preto – 1951

Em 1969, é criada formalmente a Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), com


a unificação das centenárias Escola de Farmácia e Escola de Minas, criadas pela ordem
colonial ainda no século XIX. Assim, a antiga cidade colonial expande seu perfil universi-
tário e de repúblicas estudantis que se consolida nas décadas seguintes. Vale destacar que
as diferentes repúblicas estudantis de propriedade da UFOP, onde pode-se ler placas me-
tálicas com os dizeres: “Propriedade da Escola de Minas”, foram em grande parte sobrados
adquiridos ou desapropriados dentre aqueles abandonados pelos funcionários públicos e
a população que emigrou para a nova Capital. 2) 1970 a 1989 – O segundo momento
corresponderia além do crescimento do perfil universitário de Ouro Preto, também do
turismo na cidade e da expansão de novos bairros, com a ocupação de parte das encostas,
inclusive, de áreas do Sítio.
66 // Sociedade e memória dos territórios

Neste contexto, algumas áreas do Sítio Arqueológico são sistematicamente ocupa-


das por loteamentos irregulares, que utilizam inclusive as pedras de ruínas do próprio
Sítio como material de construção para habitações populares. Segundo a arquiteta Maria
Raquel Ferreira (2011), que desenvolveu uma dissertação de mestrado sobre o Parque
Arqueológico do Morro da Queimada:

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“Em Minas Gerais, os sítios urbanos históricos da época colonial, preservados
até meados do século XX, a partir da década de setenta retomaram suas atividades
socioeconômicas, com um novo ciclo vinculado ao minério de ferro e também com
a atividade turística, iniciando-se um processo de crescimento urbano desordenado,
modificando a paisagem original e deteriorando o patrimônio arqueológico existente
no entorno do centro histórico” (FERREIRA, 2011).

Em pesquisa realizada no acervo da regional Minas Gerais do IPHAN, pode-se encon-


trar uma carta transcrita a seguir do diretor regional do órgão solicitando ao delegado de
Polícia de Ouro Preto que tomasse providencias “com demolições clandestinas dos velhos
muros do histórico Morro da Queimada em Ouro Preto”.

Carta de pedido de ajuda do IPHAN-MG à delegacia de polícia de Ouro Preto no controle do espaço das ruínas
do Morro da Queimada em 1976 - Documento original e transcrição de trechos do documento ao lado
Fonte: IPHAN-MG

A despeito das transformações, no ano de 1980 é concedido o Título de patrimônio da


67 // Sociedade e memória dos territórios

Humanidade pela UNESCO à cidade. O crescimento urbano de Ouro Preto no período


também é atribuído ao crescimento da exploração de minério de ferro em seu território e
na região, sobretudo pela então estatal Vale do Rio Doce. Gerando, por sua vez, migrações
urbanas do interior do Estado de Minas Gerais, e no contexto da Região Metropolitana
de Belo Horizonte, da qual Ouro Preto sofre forte influência. 3) 1990 - 2015 – O período

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seguinte, pós Constituição de 1988, é marcado pela implementação da legislação que esta-
beleceu novos marcos legais e práticas para as políticas de Patrimônio, assim como pela
renovação institucional do IPHAN.
Em 1996 é aprovado a primeira tentativa legal de criação do Parque Arqueológico
Morro da Queimada, o Projeto de Lei 76/1996, sancionado pelo então prefeito Ângelo
Oswaldo, de acordo com a determinação do Plano Diretor de Ouro Preto, que já previa a
criação do Parque naquele momento. No entanto, mesmo com a base legal o projeto foi
deixado de lado pelas gestões municipais que se seguiram.
No final da década de 1990 até início da década de 2000, são realizados os primeiros
estudos arqueológicos sistemáticos do Sítio Arqueológico do Morro da Queimada, com
levantamentos realizados pelo Arqueólogo Prof. Carlos Magno Guimarães da UFMG.
Os estudos resultaram em relatórios como o Levantamento Visual do Patrimônio
Arqueológico do Morro da Queimada (2004), onde há registros de casas populares
construídas com o material das ruínas ou até utilizando as ruínas como fundação para
as construções.
Os anos 2000 são marcados por uma redefinição das Políticas de Patrimônio no Brasil,
e novos conceitos como de Patrimônio imaterial (2009) e o de Paisagem cultural (2010)
são elaborados. Ao mesmo tempo são criadas linhas específicas de investimento em obras
urbanas para as Cidades Históricas como o Programa Monumento e o PAC Cidades
Históricas. Há também no período uma nova expansão urbana de Ouro Preto, o que exige
novas formas de controle junto ao poder público.
68 // Sociedade e memória dos territórios

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Fotos: Acervo IPHAN - MG – Levantamento Visual do Patrimônio Arqueológico do Morro da Queimada
(2004) - Laboratório de Arqueologia – FAFICH – UFMG.

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Imprensa local, maio de 2015

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A seguir pode-se ver um manifesto de abril de 2000 do Movimento Pró-Morro da
Queimada em defesa da criação do Parque Arqueológico e denunciando o “uso das ruínas
como material de construção”, assim como “invasões clandestinas” da área do Sítio.

Acervo IPHAN – MG

De 2001 a 2005 é debatido publicamente a delimitação do Parque Arqueológico por


meio de audiências públicas. Há uma forte atuação de órgãos públicos em diferentes níveis que
70 // Sociedade e memória dos territórios

contribuiu para viabilizar a criação do Parque, incluindo além do IPHAN, a Universidade


Federal de Ouro Preto - UFOP, UFMG, FIOCRUZ, a Prefeitura e Câmara de Vereadores
de Ouro Preto, e até o Ministério Público Federal, além de entidades religiosas, ONGs
e associações de moradores. Segundo a pesquisadora Maria Raquel Ferreira (2011), em
audiência em 2003 ficou decidido que o melhor seria instituir dois parques – o Parque

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Municipal das Andorinhas e o Parque do Morro da Queimada – uma vez que as duas áreas
apresentavam características distintas.

Placa de sinalização na entrada do Parque

A nova delimitação do Parque e sua efetiva implementação se deu 8 anos depois,


através da Lei Municipal 465/2008, e envolveu a desapropriação e remoção de habitações
populares situadas dentro da área delimitada no Sítio Arqueológico, além da exigência
junto ao IPHAN por meio do Ministério Público Federal do cercamento para proteção da
área, o que acabou não ocorrendo por completo.
Nos anos seguintes, se destaca a criação do Ecomuseu do Parque Arqueológico da
Serra de Ouro Preto, como um projeto de extensão do Departamento de Museologia da
Universidade Federal de Ouro Preto. Criado com o objetivo de sensibilizar, envolver e
instrumentalizar os moradores dos bairros limítrofes ao Parque na relação com o acervo
arqueológico, além de desenvolver sua própria memória social na relação com a história da
71 // Sociedade e memória dos territórios

cidade. Nesse sentido, o Ecomuseu se tornou mais um dos agentes atuantes e produtores
de discursos sobre a patrimonialização do Parque.

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Bairros do Ecomuseu - Itinerários Afetivos - mapa mental realizado pela equipe e comunidades
do Ecomuseu da Serra de Ouro Preto – Foto: Autor

Outro aspecto importante a ser considerado é o desenvolvimento de projetos técnicos


distintos e talvez até concorrentes em termos de formas de utilização presente e futura do
Parque Arqueológico. Trata-se de um levantamento ainda em processo pela presente pesquisa.
Basicamente, há um projeto que pretendia abrir em curto prazo a visitação ao Parque
Arqueológico a partir da criação de estruturas físicas e guias para atendimento ao público, agre-
gado ao incentivo ao Ecomuseu da Serra de Ouro Preto. E outro projeto que defendia que o
Parque deveria ser intensivamente estudado em termos arqueológicos antes de ser aberto ao pú-
blico, ao mesmo tempo em que fosse desenvolvida uma arqueologia pública, na medida em que
envolvesse a comunidade local na preservação, somado ao incentivo ao Ecomuseu da Serra de
72 // Sociedade e memória dos territórios

Ouro Preto. Ao final, nenhum dos dois projetos foi efetivamente desenvolvido por completo.
Do primeiro projeto, se destaca o website http://morrodaqueimada.fiocruz.br/, com
informações históricas e cartográficas do Parque. O portal desenvolvido via Lei Federal de
Incentivo à Cultura. Apesar de desatualizado atualmente, há bastante informação sobre o
sítio arqueológico que não está disponível em outros lugares.

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Foto: Ruínas do Parque Arqueológico – Autor

Impressão de tela do portal: http://morrodaqueimada.fiocruz.br/


73 // Sociedade e memória dos territórios

A Universidade Federal de Ouro Preto há vários anos, e ainda atualmente, realiza visitas
e levantamentos arqueológicos de campo na área do Parque com alunos dos cursos de
Museologia, como parte das ações de ensino e extensão da Universidade.
De fato, a patrimonialização do Parque Arqueológico do Morro da Queimada é um pro-
cesso ainda em consolidação e muito sujeito a mudanças institucionais ou mesmo políticas.

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4) 2016 – 2020 – Como esta pesquisa também reflete sobre a atualidade e o presente
da patrimonialização do Parque Arqueológico do Morro da Queimada, um quarto perío-
do de tempo, ainda que curto, se faz necessário para demonstrar as mudanças e contextos
atuais de um processo de patrimonialização não consolidado.
É importante destacar que a partir de 2016, inicia-se um contexto de enfraquecimento
de Políticas de Patrimônio no Brasil ocasionadas por mudanças políticas e a crise econômica
vivenciada pelo país. Nos anos seguintes, somam-se a este contexto mudanças institucionais
no IPHAN Nacional e no IPHAN-MG.
A nível local, mas também influenciado por questões nacionais, desde meados de
2018, está em debate um projeto de Lei na Câmara de Vereadores de Ouro Preto que prevê
a diminuição da delimitação do Parque e a mudança de categoria de patrimonialização de
Parque para Monumento.
A mudança de categoria tem claramente como objetivo a flexibilização dos limites em
relação a bairros e propriedades privadas como pousadas e chácaras e até terrenos da Igreja
Católica. Já foram realizadas seis audiências públicas para debate e a questão segue ainda
indefinida em 2020, mas será acompanhado amplamente pela pesquisa.
74 // Sociedade e memória dos territórios

Capa do projeto de Lei 149 / 2018 em discussão na Câmara de Vereadores de Ouro Preto, que altera Lei 465 de
2008 que criou o Parque Arqueológico do Morro da Queimada transformando o Parque em Monumento Natural.
Fonte: Câmara Vereadores de Ouro Preto.

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Em contraponto, em junho de 2020 oportunamente foi comemorado os 300 anos de
Minas Gerais e da Revolta de Felipe dos Santos, fato histórico que é associado a fundação
do Estado, e à história de Ouro Preto juntamente com o Sítio Arqueológico, levando o
Parque Arqueológico a ser pautado pela impressa regional e a comunidade local.

Considerações finais

Na linha do tempo da patrimonialização de 1937 a 2020, ficam evidenciadas as di-


mensões históricas, político-institucionais, sociais e culturais da patrimonialização do Sítio
Arqueológico através de documentos institucionais, acadêmicos, imagens de arquivo e
imagens produzidas pelo largo período, e, em cada momento específico. Ao longo deste
tempo encontramos forças, agentes, intenções e motivações distintas com maior ou menor
capacidade geradora do reconhecimento e legitimação do lugar como um patrimônio
cultural a ser integrado à cidade patrimônio de Ouro Preto.
A capacidade de reconhecimento e legitimação como Patrimônio Cultural pode
ser assemelhada a capacidade de convencimento de uma contação de histórias do pas-
sado no presente na forma de narrativas e intepretações tal como filmes, livros e outros
produtos culturais também o fazem. Cabe-nos questionar: que agentes, de fato, e em
que momentos, roteirizam o passado dos lugares, construindo cenários para criar uma
memória coletiva presente compartilhada destes espaços. Nesse sentido, “a pergunta
mais pertinente não seria o que é o patrimônio e sim quando há patrimônio” (Néstor
Caclini, 2016).
Afinal, não é o patrimônio cultural que cria valor em si mesmo, mas são os atores
sociais envolvidos que reconhecem sua eficácia simbólica enquanto dotados de valor re-
conhecido para o campo em que atuam (Bourdieu, 1996). Reconhecer um Patrimônio
representa tomar partido de um ponto de vista da história dos lugares, pois “o patrimônio
é um processo relacionado a um habitus de dar importância ao que conhecemos” (Chuva,
2009). Portanto, se não conhecemos e reconhecemos como daremos importância?
75 // Sociedade e memória dos territórios

Referencias

Assmann, Aleida. Remembrance spaces: forms and transformations of cultural memory, 2011.
Bourdieu, P. The Rules of Art: genesis and structure of the literary field, 1996.
Canclini, Néstor. A Sociedade sem Relato - Antropologia e Estética da Iminência, EDUSP, São
Paulo, 2016, Cap 2. Pag. 65 a 77

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Chuva, Márcia. Os Arquitetos da Memória:  sociogênese  de práticas de preservação do patrimônio
Cultural no Brasil nos anos 1930-40. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 2009, Cap. 1. Pag. 29 a 57.
Gonçalves, José Reginaldo S. A Retórica da perda. Os discursos do patrimônio cultural no Brasil.
Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/IPHAN, pág. 68, 2002, Rio de Janeiro. 
Mattos, Y.; Priosti, O. M. ; Martins, M. T. R. . Diálogo, Sentido e Significado no Ecomuseu da
Serra de Ouro Preto. In: Anais do IV Encontro Internacional de  Ecomuseus  e Museus
Comunitários, 2012, Belém. 
Oliveira, Benedito Tadeu de - Morro da Queimada  –  “a  Pompéia brasileira” - IPHAN - Ouro
Preto - sem data. Acesso em 04 novembro de 2018 - Disponível em: http://morrodaqueimada.
fiocruz.br/pdf/8_pompeia.pdf
Silberman, Neil. Desafios para o Patrimônio Cultural: em busca de novas práticas. Pág.11 Jundiaí,
Paco Editorial, 2016
Chuva, Márcia. Os Arquitetos da Memória:  sociogênese  de práticas de preservação do patrimônio
Cultural no Brasil nos anos 1930-40. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 2009, Cap. 1. Pag. 29 a 57.
Gonçalves, José Reginaldo S. A Retórica da perda. Os discursos do patrimônio cultural no Brasil.
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Mattos, Y.; Priosti, O. M. ; Martins, M. T. R. . Diálogo, Sentido e Significado no Ecomuseu da
Serra de Ouro Preto. In: Anais do IV Encontro Internacional de  Ecomuseus  e Museus
Comunitários, 2012, Belém. 
Nora, Pierre. Entre história e memória a problemática dos lugares. Revista Projeto História. São
Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993.
Silberman, Neil. Desafios para o Patrimônio Cultural: em busca de novas práticas. Pág.11 Jundiaí,
Paco Editorial, 2016.
76 // Sociedade e memória dos territórios

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Museos y Patrimonio Inmaterial en la Raya
Hispano-Portuguesa: las museografías del
contrabando

Irene Sánchez Izquierdo1

La frontera hispano-portuguesa como área cultural

Con más de 1.200 km y siglos de antigüedad, la frontera hispano-portuguesa (“la Raya”)


se considera una de las fronteras intraeuropeas más longevas, extensas y estables. Además,
en su condición de territorio periférico (Valcuende, Kavanagh y Jiménez, 2018), se ha
caracterizado históricamente por un estrecho contacto e intercambio entre los dos lados
de la Raya en diferentes formas, hecho que acarreó notables consecuencias identitarias y
sociolingüísticas y que permitió la constitución de un rico patrimonio cultural tanto
material como inmaterial a lo largo de los siglos.
La diferenciación entre la Raya -como frontera divisoria- y el Área Rayana -como espacio
de relación cultural- coincide con la distinción tradicional anglosajona entre boundary y frontier,
“contraponiendo la visión enfrentada de los estados centralizados, con la de las comunidades
fronterizas” (Medina, 2019, p.76). La frontera, vista como Área Rayana, “transgrede y difumina”
el muro ibérico (Uriarte, 1994): como área cultural, la Raya compone un espacio de intercambio
con identidad propia, diferenciando las fronteras políticas de las fronteras culturales.
Esta idea de frontera híbrida y permeable sería la principal característica de lo que
varios autores han denominado “cultura de frontera” (Lisón Tolosana, 1994; Medina, 2001;
Kavanagh, 2011), configurada por un espacio cultural más o menos homogéneo, marcado
por la interdependencia de las poblaciones a ambos lados de una frontera estable y claramen-
te demarcada. Haviland (1993, p. 29) apuntó que la cultura “consiste en valores, creencias y
77 // Sociedade e memória dos territórios

percepciones abstractas del mundo que subyacen al comportamiento del hombre y se refle-
jan en su conducta”. En definitiva, un conjunto de valores, costumbres, creencias y prácticas
que constituyen el modo de vida de un grupo específico (Eagleton, 2000). Esta cultura de
1
Universidade de Alcalá
irene.sanchezi@uah.es

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frontera, estas percepciones y comportamientos construyen también una forma de ser de los
habitantes de la Raya, “una identidad y una territorialidad percibidas en la memoria colectiva
y en la vida cotidiana de los residentes en ella” (López Trigal, 2016, p.184).
La creación de redes de subsistencia y relaciones de interdependencia entre las poblacio-
nes fronterizas fue especialmente notable durante la segunda mitad del siglo XX y constituye
hoy una parte de su patrimonio histórico-cultural de carácter intangible. Un ejemplo de
ello sería la práctica del contrabando tradicional, acto de subsistencia de las comunidades
de ambos lados de la frontera que implicó profundas relaciones de complementariedad y
confianza; y desarrolló además un sofisticado sistema de códigos, formas de hacer y saberes
específicos comunes con el objetivo de cruzar la frontera de manera ilícita para comprar
y vender todo tipo de bienes.
La transformación de este patrimonio inmaterial que responde a lo que Scott (1985)
denominó “formas cotidianas de resistencia campesina”, en un producto museológico es el
tema que ocupa este artículo y que también alude a un reciente fenómeno de explotación
de la frontera como recurso económico, turístico y cultural (Cunha, 2009; 2010). El
patrimonio cultural inmaterial es un patrimonio vivo y como tal se encuentra en constante
actualización y resignificación por parte de sus portadores y de los demás agentes sociales
implicados. Trataremos a lo largo del artículo de entender este fenómeno desde la óptica
de la cultura visual y los estudios de museos, entendiendo museología como “the critical
and theoretical examination of the museal field”, y museografía como “the practical aspect”
(Desvallées y Mairesse, 2010, p.19).

Patrimonios inmateriales en la frontera hispano-portuguesa

La UNESCO comenzó a poner el foco en la salvaguardia de las expresiones culturales


“populares” de carácter inmaterial en las décadas de los ochenta y noventa del siglo pasado
por temor a una posible pérdida de los saberes de las culturas tradicionales que podría pro-
ducir la tendencia a la homogeneización cultural causada por la globalización. En 1989 la
UNESCO dictó las “Recomendaciones sobre la Salvaguardia de la Cultura Tradicional y
Popular”, siendo el primer instrumento jurídico de su especie orientado a la salvaguardia
del patrimonio inmaterial. En esta línea, se puso en marcha el programa Obras Maestras
78 // Sociedade e memória dos territórios

del Patrimonio Inmaterial de la Humanidad (1990), y el de Tesoros Humanos Vivos


(1994). En el año 2003 se concreta el marco jurídico y legal definitivo en la Convención
de París, donde se definió el PCI como:
los usos, representaciones, expresiones, conocimientos y técnicas, junto con los
instrumentos, objetos, artefactos y espacios culturales que le son inherentes, que las

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comunidades, los grupos, y en algunos casos los individuos reconozcan como parte
integrante de su patrimonio cultural.

Tres aspectos a nuestro parecer fundamentales a destacar en esta descripción serían,


por un lado, la introducción de una visión a priori holística del patrimonio, que anota ya
la imposibilidad de separar lo material de lo inmaterial; segundo, una proyección parti-
cipativa, que pone en las comunidades la responsabilidad de designar y nominar lo que
para ellos es su patrimonio; y tercero, la dimensión identitaria y territorial del patrimonio,
que apunta para nosotros la verdadera problematización, atendiendo al valor atribuido y
al carácter construido y consensuado del patrimonio entre los portadores, las instituciones
y los discursos políticos.
Volviendo al contexto rayano y teniendo todo esto en mente, nos interesa esbozar
lo que podría ser un conjunto de patrimonios inmateriales transfronterizos que surgen
dentro de este espacio híbrido, de oportunidad y de intercambio histórico. Apoyados en
la definición de Barth (1976) una cultura o subcultura de frontera debería, en palabras
de Medina (2006) debe “contener una serie de elementos distintivos, específicos, que la
diferencien significativamente de las culturas matrices” y ser percibida en su peculiaridad y
especificidad tanto por los habitantes del territorio como por los que no lo son. Teniendo
esto en mente hemos recopilado, siguiendo a Hortelano (2015), Hortelano y Martín
(2017) y a Hernández-Ramírez (2017) manifestaciones culturales comunes intrínsecas al
espacio cultural rayano, que conformarían esta “raya patrimonial” (López Trigal, 2016).
a) La existencia de las denominadas “hablas fronterizas” como el dialecto barran-
queño, a fala de Xálima (declarada Bien de Interés Cultural en Extremadura) o el
mirandés, presentes en determinados enclaves limítrofes (Carrasco, 1997, 2001;
Medina, 2006; Navas Sánchez-Élez, 2020) y estudiados en profundidad entre otros
proyectos, el de FRONTESPO «https://www.frontespo.org» (Álvarez Pérez, 2019).
b) Fenómenos históricos de hibridación y ambigüedad, peculiares figuras territoriales
denominadas como los Povos Promíscuos – localidades en situación de indefinición
– el Couto Misto, o los “núcleos gemelos” como Rio de Onor/Rihonor de Castilla
(Calderón Vázquez, 2015).
c) Los cuentos, mitos y leyendas españoles y portugueses de tradición común estudia-
dos por Martos y Sousa (1997). Son tradiciones orales que encuentran similitudes
79 // Sociedade e memória dos territórios

a lo largo de la frontera, en comunidades espejo.


d) Las formas históricas de intercambio transfronterizos como la práctica del contraban-
do tradicional o estraperlo, que incluyó también durante el periodo de entreguerras,
un gran despliegue de colaboración hispano-portuguesa para la exportación ilegal
de wolframio hacia otros países europeos.

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e) Las costumbres comunales, como las formas históricas de cuidado de terrenos agrícolas
(como las de Aliste o Sayago).
f ) La realización de ferias de ganado y mercados, romerías y eventos religiosos trans-
fronterizos, como las romerías de primavera transfronterizas detalladas, en el caso
de la frontera castellano-leonesa, en Hortelano (2015).
g) Las fiestas de toros como la capeia arraiana, un ritual transfronterizo de la región
de Sabugal en el que, históricamente, los toros eran traídos desde España, cuya
patrimonialización ha sido estudiada por Amante (2016). Forma parte desde el año
2011 del inventario portugués del patrimonio cultural MATRIZ.
h) Otras formas históricas de vida producto del intercambio fronterizo que tuvieron
gran impacto en el desarrollo de las comunidades y forman parte importante de su
identidad y memoria histórica, como los matrimonios mixtos y la emigración.
i) Tradiciones musicales y espectáculos como las danzas de palos y las mascaradas
o caretos, especialmente en la franja fronteriza castellano-leonesa/Trás os Montes.
Una tradición cultural común con una dimensión ibérica en el cual la Máscara se
asume como elemento diferenciador.
j) Los saberes profesionales asociados al entorno natural, como son usos constructivos
de la piedra seca (Patrimonio de la Humanidad por la UNESCO, fruto de una
candidatura común entre varios países) y otros, entre los que destacan las prácticas
tradicionales de pesca y el uso de pesqueiras en el río Miño, las cuales también están
señaladas en MATRIZ y están siendo muy referidas a nivel de políticas de coopera-
ción de salvaguardia del patrimonio. También destacan los esfuerzos por visibilizar
y patrimonializar los saberes y relaciones transfronterizas en torno al río Guadiana
en Ayamonte y Alcoutim (Hernández-Ramírez, 2017).
Además, en los últimos años se han investigado y puesto en valor patrimonios transfron-
terizos que podríamos denominar “incómodos”: la migración forzosa fruto de la represión de
las dictaduras en forma de persecuciones políticas (como en Cambedo da Raia o Vilarelho
da Raia), y la solidaridad vecinal que se desplegó en los campos de refugiados como el de
Barrancos (Simões, 2017).

La narrativa transborder en el espacio post-Schengen


80 // Sociedade e memória dos territórios

Aunque estaba fraguándose desde los años sesenta con la industrialización del trabajo
agrícola y el éxodo rural, no es hasta finales de siglo cuando, con la apertura efectiva de
las fronteras en 1995 cristaliza el profundo cambio socioeconómico que vivirán las pobla-
ciones rayanas, culminando un completo cambio de sus formas de vida y de muchas de

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sus costumbres con la desaparición del hecho fronterizo (el fenómeno conocido como
“debordering”) común a la mayoría de las fronteras intraeuropeas.
Las comunidades rayanas habían basado su modelo productivo en la agricultura y
en las redes de intercambio e interdependencia que suponían una intensa colaboración y
relación entre ambos lados aun cuando las fronteras eran especialmente rígidas y los dispo-
sitivos de control del poder central más activos. A partir del Tratado de Schengen veremos
cómo, precisamente ahora que han desaparecido las fronteras físicas, sus formas de vida
ya no se articulan más en torno a las relaciones fronterizas y la interdependencia de antes.
En un esfuerzo por revertir este proceso, las políticas de financiación de la Unión
Europea han dado un giro en las últimas décadas hacia la narrativa transborder o trans-
fronteriza (Lezzi, 1994) promoviendo y apoyando proyectos en las coordenadas de este
discurso (Sideway, 2001). Esta serie de eventos históricos consolidan que se empiece a
trabajar, desde las instituciones, alrededor de un “modelo de frontera-cooperación” (López
Trigal, 2016) apoyada por estas políticas de cooperación transfronteriza y por fondos de
financiación europeos como Interreg o Feder.
Por otro lado, se empieza a postular el turismo basado en el patrimonio, especialmente
el patrimonio inmaterial o natural, como principal recurso para el desarrollo económico
de las áreas periféricas rayanas, algunas de las cuales empiezan a estar cada vez más des-
pobladas. La consolidación del patrimonio cultural inmaterial como dinamizador de una
economía basada en el turismo ha cristalizado en la creación de un gran número de mu-
seos, paramuseos y centros de interpretación a lo largo de la Raya. Estas iniciativas de de-
sarrollo turístico que se han producido en la frontera están mayoritariamente relacionadas
con procesos de patrimonialización macro, “de arriba abajo” y a grandes rasgos, creemos
que es un proceso que responde a lo que Llorenç Prats describe como «museabilización de
la frustración». Según el autor, este es un proceso a través del cual:
pueblos y zonas pierden aquello que ha constituido la base de su sustento y que,
un tiempo después, buscan, a través de la activación patrimonial, la reconstrucción
de su identidad o una alternativa, aunque sea de menor calado, al desarrollo económico,
cuando no ambas cosas a la vez (Prats, 2004: 85).

Las entidades políticas y empresariales de estas zonas deciden convertir el patrimonio


inmaterial en un recurso económico que se valora como factor de desarrollo (Jiménez
81 // Sociedade e memória dos territórios

de Madariaga, 2005), haciendo en muchos casos un uso casi mercantil de su dimensión


identitaria y desplegando un discurso autorizado del patrimonio (Smith, 2006). Además,
estas iniciativas de gobiernos municipales actuando al amparo de políticas nacionales y
europeas de desarrollo rural están basadas en la existencia de una presunta correlación
positiva entre proyectos patrimoniales, turismo y desarrollo (han estudiado esta cuestión

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en el contexto de la frontera hispano-portuguesa tanto Pereiro, 2006; como Silva, 2012).
Lo que no se cuestiona es si esa relación es siempre positiva ni a qué precio, ni la cantidad
de factores de los que depende un resultado exitoso de esta gestión, que a nuestro parecer
debería estar basado principalmente en su sostenibilidad en el tiempo (Prats, 2005; Martín
Piñol, 2011).

Iniciativas culturales transfronterizas en la Raya galaico-portuguesa:


un ejemplo

La Red de Turismo Cultural Galaico-Portuguesa nació en 2006 por iniciativa de un


grupo de ayuntamientos y entidades empresariales de la Raya norte. Este proyecto de coope-
ración transfronteriza de gran envergadura supuso la creación de 36 museos y centros de
interpretación en 28 localidades distintas de ambos lados de la frontera para la explotación
turística de diferentes patrimonios articulados en cinco rutas temáticas transfronterizas: el
agua, la historia, personajes ilustres, el mundo rural y la revolución industrial. La dirección
técnica y la gestión del plan estratégico fue adjudicada a Reyes Ávila, una empresa especializada
en el desarrollo turístico con amplia experiencia en el sector del enoturismo.
El objetivo principal del proyecto fue, en palabras de sus promotores, la creación de
un producto turístico “innovador, competitivo y de calidad” que produjera rentabilidad y
desarrollo económico en el medio rural, que pudiera suponer una alternativa laboral para
sus habitantes.
La acción principal para la consecución de este objetivo fue la creación y rehabilitación
de museos y centros de interpretación en las localidades que componen la red, junto con
un manual de identidad corporativa y otras acciones relacionadas con el marketing y el
branding. Otras de las áreas de competitividad del proyecto que presentó Ávila son el diseño
de negocio y la creación de un producto experiencia; nos dan una idea de cómo los museos
de la red se articulan de manera más o menos acertada en torno a la prioridad de ofrecer
un plan turístico que genere beneficios. Asimismo, se dibuja también la necesidad de
insertar el patrimonio transfronterizo en un sistema capitalista que lo transforma en pro-
ducto de experiencia que complejice y añada diversidad a la oferta turística de las áreas rurales
periféricas de la eurorregión Galicia-Norte de Portugal. Se construye de arriba hacia abajo,
82 // Sociedade e memória dos territórios

y tomando las palabras de Paula Godinho referidas a otras iniciativas similares en el mismo
entorno, “con un entendimiento miope” (Godinho, 2009, p. 150)
Las deficiencias en el planteamiento del proyecto — que como algunos autores apuntan se
diseñó de forma disjunta y conformado por tres áreas muy alejadas las unas de las otras (Paül
y Trillo, 2011) — y la falta de seguimiento y evaluación posteriores al lanzamiento podrían,

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en nuestra opinión, haber propiciado el fracaso de algunos de los centros que componen la
red. Varios de estos espacios de esta red que hemos visitado para este estudio no mantienen
su propósito original, otros nunca llegaron a abrir o tienen problemas de sostenibilidad, falta
de personal para su mantenimiento, pocos recursos, información desactualizada, etc.
Lamentablemente, esto es común a un gran número de paramuseos y centros de inter-
pretación en el ámbito español, como concluyó una investigación del grupo DIDPATRI
en 2011, después de analizar más de trescientos de estos espacios.

Museos y patrimonio inmaterial

Los museos fueron señalados por la UNESCO como principales responsables de la


protección y salvaguarda del patrimonio cultural inmaterial “frente a la amenaza de la
homogeneización cultural” que acarreaba la globalización, en declaraciones como la Carta
de Shanghai de 2002 o la Declaración de Seúl (2004). Al mismo tiempo, el crítico cultural
Andreas Huyssen advertía que vivimos en un periodo de obsesión por la recuperación del
pasado (1995, p.7), que nos mueve la tentativa de “museografiarlo todo” (2002, p. 54).
Esta pasión por la representación del pasado y la conservación de la memoria ha acarreado
la repetición de un modelo que podría no ser el más idóneo. Como expuso Richard Kurin:
“museums are generally poor institutions for safeguarding intangible cultural heritage –
the only problem is that there is probably no better institution to do so”. (2004. p.8; en
Carvalho, 2010).
A pesar de esta problemática, resulta natural que las exposiciones, los museos y los
centros de interpretación, como espacios para la reproducción identitaria (Barth, 1969)
donde se despliega y se refuerza la noción de comunidad imaginada (Anderson, 1983),
sean el modelo más utilizado para la difusión del patrimonio inmaterial porque actúan
como vehículos de transmisión de las narrativas sobre un territorio y sus procesos de cons-
trucción. Esta paradoja sigue estando sometida a debate y, en la línea de Kurin, cada vez
más autores critican que el sistema-museo moderno no es el más adecuado para mantener
lo que se considera un patrimonio vivo y en constante cambio (Carrera Díaz, 2017; Díaz
Balerdi, 2008). El museo, en su acepción más tradicional, “se limita a la fijación de prác-
ticas culturales, contrariamente a la naturaleza fluida y evolutiva de la cultura” (Carvalho,
83 // Sociedade e memória dos territórios

2010, traducción propia). Inevitablemente, aunque los museos no sean las mejores insti-
tuciones para salvaguardar el patrimonio, son las que lo legitiman. No hay nada que hacer,
pues, como afirma Néstor García-Canclini: “el patrimonio existe como fuerza política
en la medida en que es teatralizado: en conmemoraciones, en monumentos, en museos.”
(2006, p.159)

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No es posible ni es el objetivo de este artículo repasar exhaustivamente la historia de
los museos desde su creación, pero sí nos parece fundamental exponerla desde una lógica
del poder foucaultiana, esbozando las problemáticas que nos preocupan en este estudio: la
manera en que los museos despliegan jerarquías y modos de operar hablando sobre “el otro”
o legitiman las narrativas del poder a través de la museografía y de los recursos expositivos,
por medio del discurso construido que necesariamente se despliega en la acción de exponer.
Hay consenso en situar el origen del concepto de museo moderno en la práctica del
coleccionismo (Iniesta, 1994; Bolaños, 1997), popularizada sobre todo por la monarquía
y las clases burguesas en los siglos XVI y XVII, formando colecciones exclusivas de objetos
exóticos y raros, con valor artístico o histórico, como en las colecciones de tesoros me-
dievales o, más adelante, los gabinetes de curiosidades barrocos. El Ashmolean Museum
de Oxford fue el primer gran museo público de Europa, inaugurado en 1683 y supuso
el inicio de la democratización de los bienes culturales que culminaría con la creación de
los Museos Nacionales (lo que ahora son el Louvre, British Museum o Prado) a partir de
la segunda mitad del siglo XVIII, animados por el espíritu de la Revolución Francesa.
Reuniendo y confiscando los bienes para mostrarlos en un único lugar, los museos se con-
vertían en símbolo de la grandeza de cada nación, que proyectaba sus valores identitarios.
Aunque ahora democratizados y expropiados de las clases ilustradas, estos bienes se expondrán
como en un templo o iglesia -volviendo a recordar el templo de las musas original-, marcando
de forma clara las divisiones entre la alta cultura y la baja cultura, y distanciando el arte
genuino de las clases altas del folklore anónimo de las clases populares.
El movimiento romántico y el auge de los nacionalismos en el siglo XIX, traerá asociado
un sentimiento de nostalgia hacia el pasado y un renovado interés por la identidad nacio-
nal reflejada en la tradición y los saberes populares, que generará grandes iniciativas de
búsqueda, catalogación y recogida de muestras de estas categorías para reunirlos en museos
etnográficos. Por otro lado, el sistema colonial-imperial producirá museos antropológicos
para exponer también, desde una mirada autorizada, los objetos “exóticos” de otras cultu-
ras, fetichizándolos desde una visión eurocéntrica: los museos se convertirán de este modo
en “vitrinas de la nación” (Del Río, 2010). Por todo esto, el museo de etnografía debería
ser hoy un lugar de desconstrucción cultural (Hainard, 2005) que cuestionara su propio
nacimiento, las narrativas que proyecta y sus dinámicas de exposición. Porque, aunque lo
que se recoge y expone en estos nuevos museos es una cultura tradicional, viva, dinámica
84 // Sociedade e memória dos territórios

y en constante reproducción, se sigue exponiendo de la misma forma que en el museo de


arte, dando absoluto protagonismo al objeto sobre el sujeto. Vemos también cómo lo que
está fuera del museo, las personas y los usos que dan a las cosas no entran dentro, sino que
se utilizan recursos de imitación o reproducción como maniquíes, escenarios, maquetas o
diagramas (figura 1).

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Figura 1 – Ejemplos de “vitrinas de la nación” (Del Río, 2010)
en el Museo del Pueblo Español de Madrid, entre 1945 y 1970.
Fuente: Centro de Investigación del Patrimonio Etnológico (CIPE). Fotografías: Roberto Arranz

Los profesionales de museos somos conscientes de cuáles son los problemas de este for-
mato: la tendencia a la acumulación de objetos, la dificultad para representar los aspectos
inmateriales asociados a estos; en algunos casos, la mirada colonial con la que se presenta una
visión exótica del “otro”, ya sea una sociedad lejana o una comunidad campesina local; la
representación de un patrimonio mudo donde no se escuchan las voces de sus portadores; la
forma en la que el museo produce discursos autorizados (Smith, 2006); la ausencia en este
de las continuidades y de lo contemporáneo, fosilizando y congelando estos patrimonios en
el pasado; el anonimato forzoso de artistas, artesanos o la comunidad protagonista.
Llegados a este punto del texto, hemos de rechazar los mitos de que el museo es un es-
pacio neutral, apolítico o que representa un saber legitimado, único, autorizado, y destacarlo
como una construcción social, pues la museografía, o la acción de exponer, comprende la
construcción de un discurso complejo y subjetivo. Entender el patrimonio como construcción
social (Prats, 1997; García Canclini, 2005; Prats y Santana, 2005) además, implica reco-
nocer los procesos a través de los cuales se reconstruye el pasado. A través de este proceso el
museo despliega una voz de autoridad teatralizando “una ficción”. Como señaló el artista
85 // Sociedade e memória dos territórios

Rogelio López Cuenca en su pieza para la Exposición Universal de Sevilla de 1992 (figura
2), que ahora da la bienvenida a los visitantes del Museo Reina Sofía: dejad toda esperanza
espectadores, esto es un espectáculo, parafraseando al célebre Guy Debord.
Por último, debemos recordar que en el museo siempre hay alguien que toma deci-
siones, que decide lo que se enseña y lo que no, que por tanto señala lo que es patrimonio

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y lo que no, que redacta los textos, diseña las cartelas y que, en definitiva, produce y
reproduce una narrativa tanto visual como textual. A continuación, intentaremos detectar
estos procesos y dinámicas analizando tres exposiciones sobre contrabando en tres espacios
museísticos de la frontera hispano-portuguesa.

Las museografías del contrabando en la Raya

En esta investigación nos propusimos


analizar “museos de frontera” no solo en cuan-
to a su localización geográfica, sino en tanto
que se dedican a la musealización del patri-
monio inmaterial fronterizo y que trabajan
sobre cuestiones patrimoniales y memorias
comunes a ambos países. Para definir el área
fronteriza utilizamos un sistema de medida
que abarca 15km, siguiendo la convención
establecida en el proyecto FRONTESPO, al
que se adscribe este artículo. Consideramos,
al igual que otros autores, que existe una di-
ferenciación entre “museos de la raya”, cuyos
ejes temáticos son transfronterizos, y “museos
en la raya”, simplemente presentes en territorio
Figura 2 – Área geográfica en la que
rayano (Valadés Sierra, 2010).
se inscribe la investigación
Los museos que hemos seleccionado y visita-
do en este viaje transfronterizo son tres: el Espaço de Memória e Fronteira en Melgaço (Viana
do Castelo, Portugal), el Centro de Interpretación del Contrabando en Vilardevós (Ourense,
España) y el Museu do Contrabando en Moimenta, Vinhais (Portugal). En cuanto a su tipo-
logía, son espacios híbridos que comparten características de los museos etnográficos, de los
centros de interpretación y del formato de casa-museo, lo que en este artículo hemos conve-
nido en denominar paramuseos (al tratarse de espacios que no necesitan estrictamente de una
colección, ni de la figura de un conservador). También se acogerían a otras nomenclaturas
86 // Sociedade e memória dos territórios

ampliamente utilizadas como museos locales, museos de identidad o museos de territorio,


en cuando recogen elementos de la cultura del contexto geográfico en el que se inscriben.
Melgaço es un núcleo urbano medianamente poblado (1.300 habitantes) que cuenta
con una red de museos consolidada denominada “Museus do Melgaço”. Dentro de esta
red, el Espaço de Memória e Fronteira fue planteado por un equipo de investigación

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ligado a Universidad U-TAD, con un planteamiento museográfico definido por el sociólogo
Albertino Gonçalves. El contexto de Moimenta y Vilardevós, que son núcleos poblacio-
nales similares de menos de 2.000 habitantes, es muy diferente: ambos centros surgen a
partir de la propuesta de rehabilitar un edificio antiguo gracias a fondos europeos. Pronto
se evidenció la falta de previsión sobre su sostenibilidad: el centro de Vilardevós actúa hoy
como sede de actividad de una ONG, y el de Moimenta permanece cerrado, a excepción
de la previa petición de una visita privada por parte del viajero interesado. El Centro de
Interpretación de Vilardevós pertenece a la Red de Turismo Cultural Galaico-Portuguesa,
y en su sótano se encuentra el Museo del Olivo, también integrante de la red, que permanece
cerrado y según las informantes, lleno de polvo.
Mientras que los espacios de Melgaço y Vilardevós fueron inaugurados en 2007, el de
Moimenta lo hizo en 2014, pero todos fueron financiados por el mismo tipo de programa
de cooperación europeo en sus diferentes fases (INTERREG III y IV). Se encuadrarían
en el sistema de gestión patrimonial que responde a lo que algunos autores han convenido
llamar “cultura subvencionada” (Santacana y Hernández, 2006, p.49), que se caracteriza
por ser dependiente de fondos provenientes de la Unión Europea, fondos gubernamenta-
les y regionales, de desarrollo rural, etc. Que existan tres centros museísticos dedicados al
mismo tema en un espacio geográfico tan reducido podríamos decir que responde a lo que
Henri-Pierre Jeudy denomina “la obsesión patrimonial” (2001, p.75), dentro del fenómeno
de museabilización de la frustración que venimos describiendo, añadido al proceso de
fetichización del hecho fronterizo post-Schengen.

Continentes y contenidos

Estos centros patrimoniales tienen el mismo eje temático: el contrabando tradicional.


Sin duda una de las actividades ligadas a la frontera que más protagonismo y relevancia ha
tenido en estudios e investigaciones, y uno de los modos de intercambio más importantes
que se dieron en este espacio, así como “una forma concreta de vivir la propia identidad”.
(Medina, 2001, p. 475). Luís Cunha (2009) describía el fenómeno del contrabando en la
raya como una “explicación del mundo”. En esta misma línea, y alejándose de las perspec-
tivas tradicionales o historicistas, ciertos autores tienden a describir el patrimonio como
87 // Sociedade e memória dos territórios

conjunto de símbolos sagrados, que condensan y encarnan emotivamente unos valores y


una visión del mundo (Geertz, 1973, en Prats, 2004).
Entendemos por contrabando tradicional una actividad de intercambio realizada en la
frontera de forma continuada y desde muy antiguo por las clases populares, bien en solitario
u organizados en equipos o cuadrillas. Surgió como respuesta a la frontera del poder: debido

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a una diferencia de precios entre productos y sin libre circulación de estos, los habitantes
transaccionan ilegalmente con los productos evitando los impuestos aduaneros, ganando así
la diferencia de precio. Además, la carencia o inexistencia de productos en un país durante
determinados periodos también llevó a su importación o exportación, siendo este el caso de
la harina o el café en la posguerra española. Este tipo de contrabando sufrió transformaciones
a mediados de la década de los 70, para definitivamente extinguirse a finales del siglo XX.
Para ofrecer una primera contextualización desde el exterior de los espacios que com-
ponen este estudio, compartimos el análisis de la arquitectura de los centros. El espacio
de Melgaço se construye siguiendo el modelo de museo contemporáneo, donde la arqui-
tectura cobra un papel protagonista (el “efecto Guggenheim”) y transmite un concepto
claro en torno a la idea de cruce del río, cuya estructura incluye además un puente. Pero,
además, también incluye otro modelo muy repetido, el de rehabilitar edificios sin uso
alguno en base a ayudas económicas y fondos, con poca inversión local. Así pues, dentro
del atractivo cubo de cristal que da la bienvenida al visitante, encontramos restaurada la
fachada del antiguo Matadero Municipal. En la misma línea, los centros de Moimenta y
Vilardevós siguen también este recurrente modelo de rehabilitación de edificios históricos,
sin proyecto museológico previo, simplemente por aprovechar la oportunidad de financia-
ción institucional, sin darse cuenta de que es un “regalo envenenado” (Martín Piñol, 2011,
p.125), como veremos a continuación.
El centro de Vilardevós está emplazado en una casona antigua tradicional, “casa de
un obispo y su mujer”, según nuestra informante. La consecución de los fondos institu-
cionales para rehabilitar la casona tenía como requisito que se contemplara como espacio
relacionado con el patrimonio de la zona. Como describían Santacana y Hernández,
precisamente en un volumen editado en los años de diseño e inauguración de los centros
que estamos estudiando: “los ediles municipales o funcionarios de los gobiernos auto-
nómicos, una vez ha sido rehabilitado el conjunto, se esfuerzan en darle alguna función;
¿cuál? da igual… El dinero recaudado ha sido para financiar la obra; pero no se ha previsto
su contenido, ni su función.” (2006, p.50).
Cuando llego a Vilardevós, la técnico que allí trabaja me confiesa avergonzada, que
ella cree que el centro es “un continente sin contenido”. Nos rodea un gran grupo niños
que está realizando una actividad extraescolar, pues el espacio funciona desde poco des-
pués de su inauguración, como Centro de Desarrollo Rural en vez de como Centro de
88 // Sociedade e memória dos territórios

Interpretación del Contrabando. Aun así, las personas que allí trabajan ahora -educadoras
sociales de una ONG local- conocen bien lo que hacer si llega algún visitante como yo:
apagar las luces, encender el vídeo y entregar los folletos informativos.
Mientras en Vilardevós la actividad y los gritos de los niños llenaban el centro, la rea-
lidad era distinta el Museo de Melgaço, siendo yo la única persona que lo visitó en todo el

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día, cavilando en soledad mientras observaba los objetos. Cabría preguntarse, en cuanto a
sostenibilidad, qué continentes tienen más contenido: si los que tienen más objetos o los
que tienen más presencia de la comunidad. Esto nos llevaría también a preguntarnos, ¿cuáles
son los niveles de accesibilidad percibidos por la comunidad en cada uno de estos espacios?

Análisis museográfico: ¿un modelo común?

La tendencia del “culto al objeto” sigue vigente en la actualidad en los museos etnográ-
ficos y ecomuseos, y con demasiada frecuencia las exposiciones se centran en la recreación
de ambientes, como admitía M.ª Victoria Pontes en su tesis doctoral sobre la musealización
del patrimonio inmaterial (2017). Descontextualizar los objetos es inherente al proceso
de patrimonialización que culmina en el museo, y los desliga de sus memorias y relatos
orales. Encontramos que todavía sigue muy presente lo que algunos autores denominan
una museografía de bodegón (Arazo y Jarque 2001; Seguí y Cruz, 2015).

89 // Sociedade e memória dos territórios

Cuadro 1 – Objetos relacionados con la actividad; el cruce, el hecho fronterizo


Arriba: Moimenta. Fuente: Alberto Gómez Bautista. Abajo: Melgaço.
Fuente: Albertino Gonçalves. Derecha: Vilardevós. Fuente: Irene Sánchez Izquierdo.

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Apuntamos que el museo etnográfico debe ser capaz “no sólo de coleccionar sino
también de profundizar” (Hudson, 1987, p.8) y que “lo que hay que buscar detrás de los
objetos expuestos: al ser humano que es historia y memoria” (Santacana y Hernández,
2009, p.10). Es cierto que en los centros museísticos visitados existen proyecciones de tes-
timonios orales, el método por excelencia de la práctica etnográfica y del trabajo de campo
que la sustenta, pero están completamente alejados de los objetos a ellos asociados (cuadro
2). Estos documentos se pueden ven en salas que se encuentran apartadas del recorrido
museal, en un área con sillas separada de la exposición. Resulta amargo ver cómo los objetos,
por tanto, no consiguen encontrar esa voz que los acompañe y se ven desconectados de su
dimensión inmaterial.

Cuadro 2 – Salas de visionado de testimonios


Izquierda: Moimenta. Fuente: Alberto Gómez Bautista.
Derecha: Melgaço. Fuente: Irene Sánchez Izquierdo

En cuanto a los recursos expositivos de apoyo, los centros recurren principalmente


a paneles explicativos, con textos y mapas. Sabemos que éste es el principal recurso de
los centros de interpretación en España y que son recursos inútiles a nivel de usabilidad
(Martín Piñol, 2011). Si analizamos el diseño y maquetación de estos contenidos,
notamos cómo el diseño es producido desde arriba y desde fuera: en el caso de Vilardevós
fue realizado por una empresa especializada en el desarrollo de rutas relacionadas con el
90 // Sociedade e memória dos territórios

enoturismo. Encontramos estos paneles ilegibles principalmente por contar con una letra
diminuta y localizarse a gran altura, por lo que se trata de un diseño y una ubicación que
no tiene en cuenta a la persona que lo va a leer.

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Figura 3 – Paneles informativos en Vilardevós. Fuente: Irene Sánchez Izquierdo

Escenas congeladas, objetos y cuerpos inmóviles

El responsable de la musealización del Espacio de Memória e Fronteira de Melgaço,


el profesor Albertino Gonçalves, cuenta en su blog una anécdota relacionada con una
barca o batela usada por un veterano contrabandista que remite a la desconexión entre
la dimensión material e inmaterial de los objetos que mencionábamos anteriormente.
Mientras realizaba entrevistas que formaban parte de trabajo de campo para la exposi-
ción permanente del museo, uno de los más célebres contrabandistas de Melgaço, que en
ese momento tenía 80 años, se lanzó a hacerle una demostración de cómo cruzaba el río
Miño con su batela, pues había creado una buena reputación en el manejo de la barca.
O senhor L foi “lugar-tenente” de um dos maiores contrabandistas da região.
Granjeava a reputação de não ter igual a atravessar o rio Minho numa batela (em-
barcação típica). Numa das nossas conversas, propôs-se fazer uma reconstituição da
passagem de contrabando no rio Minho. Tinha cerca de 80 anos!

El profesor documenta en fotografías y vídeo todo el proceso y lo muestra en su blog.


91 // Sociedade e memória dos territórios

Es un momento de aprendizaje para él, y también debería haberlo sido para los visitantes
de la exposición.
Desconhecíamos o recurso aos ramos de árvore para protecção da carga. Tão
pouco sabíamos dos acenos para a outra margem. Antes da passagem do contraban-
do, um “batedor” insinuava-se na outra margem para vigiar os passos da Guarda

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Civil. Cumpria-lhe assinalar se a passagem era segura. (Gonçalves, A. 6/09/2018,
blog personal2)

Sin embargo, esta performance interesantísima -de la que el profesor confiesa haber
recopilado mucha información que desconocía, referida a las señas, códigos y movimientos
realizados a ambos lados antes de pasar, por ejemplo- desaparece de la exposición quedando
sólo la barca, confirmando la tendencia a inmovilizar y fosilizar que es inherente al modelo
de museo. Esto forma parte de una tendencia a la representación de los cuerpos inmóviles,
que tan bien representa el uso de maniquís y de escenas caricaturizadas (cuadro 3).

Cuadro 3 – Representaciones del cuerpo: contrabandistas y guardas


Arriba: Melgaço. Fuente: Irene Sánchez Izquierdo. Derecha: Moimenta. Fuente: Alberto Gómez Bautista.
Abajo: Diagrama caricaturesco en Vilardevós. Fuente: Irene Sánchez Izquierdo.
92 // Sociedade e memória dos territórios

Advertimos en nuestras visitas también una tendencia a la teatralización del fenómeno


del contrabando, después de ver un vídeo con testimonios orales de contrabandistas en

2
Gonçalves, A. (2018) “O nariz de Cleópatra: o presente no pasado”. Accesible en https://tendimag.
com/2018/09/06/o-nariz-de-cleopatra-o-presente-no-passado/ [Última consulta: 14/10/2021]

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Vilardevós. Terminado el documental, sube el telón, y observamos un escenario carica-
turesco, teñido de luces azules, de un contrabandista en una noche de trabajo. Podría
tratarse de lo que Navas Sánchez-Élez apunta como fetichización de la herencia, pro-
ducto de una constatada tendencia de fetichización de las zonas de frontera (Löfgren,
2008, p. 206).
El análisis de las museografías de los tres centros arroja la idea de que los tres repiten
un mismo modelo de representar la práctica del contrabando. Encontramos por un lado
objetos: relacionados con el cuerpo, con la práctica, tanto de contrabandistas como de
agentes de aduanas y del poder; relacionados con la experiencia fronteriza (hitos, barcas),
relacionados con los materiales contrabandeados, exclusivamente alimentos; y recursos
inmateriales: videos de testimonios, mapas y rutas asociadas a estos espacios, y una tendencia
a la rehabilitación de edificios históricos sin hacer alusión a su uso anterior.

Recursos materiales Recursos inmateriales

Objetos relacionados con el cuerpo: Testimonios orales de protagonistas (hombres) graba-


-Vestuario de los contrabandistas. Sacos para cargar en el dos en formato audiovisual, resultantes de entrevistas
cuerpo de forma escondida. (no sabemos si estructuradas o no). Se trata de do-
-Vestuario de guardia civil y guarda fiscal. cumentos de corta duración (entre 3 y 10 minutos).
-Reproducciones, a tamaño real, de los cuerpos. Formato de visualización es común a todos los centros,
-Escenificaciones, puestas en escena. existiendo una sala de visionado con sillas.

Objetos que aluden a la experiencia fronteriza: hitos o mojo- Rehabilitación de edificios históricos (sin mención a
nes, embarcaciones (batelas). su uso anterior).

Objetos relacionados con la actividad alimentaria: Alimentos Mapas y rutas de contrabando asociadas.
y mercancías susceptibles de ser comercializadas, también
máquinas de moler café.

Paneles gráficos con documentos históricos: archivos, recortes


de periódicos (NO suelen ser originales).

Tabla 1 – ¿Un modelo museográfico común?


Fuente: elaboración propia.

El problema de la narrativa única

El peligro del que nos advierten desde hace tiempo algunos expertos como Roigé
93 // Sociedade e memória dos territórios

y Frigolé (2010), es utilizar los museos locales como elementos para la promoción de
una imagen construida, incluso artificial, del pasado, y como elementos para la construc-
ción de imágenes turísticas Ya sabemos que no podemos hablar de un sólo contrabando,
sino varios contrabandos, -una pluralidad de prácticas-, pues existieron diferentes modos
de prácticas el contrabando, dependiendo de la comunidad, la localidad, el género, la

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década… Existió contrabando “de comer”, como sustento principal, como complemento
económico, se podía hacer sólo o por cuadrillas, de forma autónoma o como asalariado, se
realizó como “arma dos fracos” a nivel de resistencia campesina frente al estado, relacionado
con una cultura de izquierdas, “de oposición” (Fonseca y Freire, 2003) incluso como un
trabajo normal, insertado dentro del sistema laboral capitalista (Simões, 2020).
Sin embargo, esta variedad de micro-relatos alrededor de la práctica del contrabando
en las áreas rayanas no aparece representada en las exposiciones. Lo que se difunde es una
única macro-narrativa unificada del contrabando, basada en valores atribuidos como el
heroicismo, la individualidad o la picaresca. Cabe decir, que también es un patrimonio
incómodo: hubo contrabando de personas, relacionado con la emigración ilegal, etc. En
esta línea, la investigadora Lidia Gonçalves, en un reciente estudio basado en entrevistas
sobre la red de museos de Melgaço, concluyó que después de ver la exposición sobre con-
trabando, los turistas no conseguían imaginarse a una mujer contrabandista (Gonçalves
Aguiar, 2018, p.13).

Otros modelos desde donde mirar y museografiar

A partir de los años 70 del siglo pasado comienzan a surgir modelos de museo dentro
de un nuevo paradigma que cambió el foco de atención desde el objeto hacia el sujeto.
Entre sus características comunes encontramos una clara apuesta por la función social
y dimensión territorial del museo, la concepción participativa del patrimonio, y una
apuesta por el diálogo con la comunidad y la reflexión crítica, a través de preguntas y
cuestionamientos constantes. Elegimos este punto de partida porque estas concepciones,
especialmente la del ecomuseo, han sido consideradas experiencias referentes para la
musealización del patrimonio inmaterial (Alivizatou, 2012). Estos modelos supusieron
una nueva forma de entender la institución museal, articulándola en torno a una rela-
ción dinámica entre los conceptos de patrimonio, territorio y población; separándose del
modelo edificio-colección-público (De Varine, 1979).
Se considera el inicio de este nuevo paradigma la creación del concepto de ecomu-
seo, el cual se gestó en 1971 en la IX Conferencia Internacional del ICOM en Grenoble
(Francia) como una institución enraizada con su territorio y orientada hacia la función
94 // Sociedade e memória dos territórios

pedagógica. El primer ecomuseo fundado fue el de Le Creusot, en central France, en 1971;


en la Mesa de Santiago (1972), quedó ratificada la función básica del museo integral:
ubicar al público dentro de su mundo. Además, en este modelo de museo integrado, los
temas, colecciones y exhibiciones están interrelacionadas entre sí y con el medio ambiente
tanto natural como social. En 1983 se crea el MINOM, el Movimiento Internacional para

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la Nueva Museología, que aboga por una transformación radical de las finalidades de la
museología y de la mentalidad y las actitudes de los museólogos. Un año después, con la
Declaración de Quebec (1984), se afianza la primacía de la participación, y además “frente
a la categorización del público como un sujeto pasivo, se reconocía al colectivo social como
protagonista activo y se optaba por la interdisciplinariedad” (Salgado, 2012, p.10).
Dentro de este nuevo paradigma podemos encontrar otros movimientos con caracte-
rísticas similares, como la museología social o sociomuseología, los museos comunitarios,
la concepción del museo abierto (Salgado, 2012) e incluso se ha acuñado el término de
museología de la liberación (Priosti, 2010) para denominar a ciertas propuestas relaciona-
das con la emancipación de minorías y pueblos nativos a través de la gestión de museos en
contextos latinoamericanos.
La museología de ruptura (Hainard, 2005) propuso una transición desde el museo
del objeto al museo de la idea. Pero, en la práctica ¿qué hacemos con los objetos que ya
tenemos en nuestra colección, que son importantes para la comunidad y que además tie-
nen valor patrimonial? James Clifford, quien describió los museos de antropología como
“zonas de contacto” (1991), contaba cómo los nativos de las tribus de Canadá, al llegar
al museo y ver los objetos que habían pertenecido a la comunidad, establecerían un diá-
logo con ellos y “los utilizarían como ayuda-memoria, como excusas para narrar relatos y
cantar canciones.” (1999, p. 234). En este sentido, nosotros los museógrafos no debemos
percibir el “patrimonio” sólo como una “cosa”, un lugar o un evento intangible, sino como
una representación o un proceso cultural interesado en negociar, crear y recrear recuerdos,
valores y significados culturales (Smith, 2011).
Para finalizar, hemos visto cómo las últimas décadas han dado paso a las propuestas de
la museología crítica, con nombres como Antony Shelton y su “Critical museology mani-
festo” (2013). Los cuestionamientos y preguntas, la diversidad de discursos y prácticas, la
inclusión de las prácticas participativas y planteamientos compartidos, mensajes firmados
por gente incluso ajenas al museo, el aprovechamiento de las posibilidades de la web 2.0…
Serían algunas de las herramientas que nos ofrece esta perspectiva crítica: “en lugar de pre-
sentar ideas y cosas de una manera incontrovertible e impersonal, (…) los museos tienen
que aprender a formular las preguntas y dudas que se presentan dentro de cada área de
conocimiento” (Llorente, 2014, p. 113). El objetivo es dibujar un museo que no impone
una lectura única o experta de la cultura, del entorno, de la actualidad, sino que favorece y
95 // Sociedade e memória dos territórios

anima a una lectura múltiple (De Varine, 2010) y desplegar “una pluralidad de puntos de
vista y de representaciones sociales” (Macdonald, 2006, p. 3).

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A modo de conclusiones

Y bien, ¿qué podemos aprender de todas estas experiencias, para ir proyectando cami-
nos museográficos alternativos en nuestros museos locales? Intentando apuntar a lo que
nos mueve en este artículo, algunos elementos comunes a todas estas nuevas perspectivas
serían: el foco en el sujeto frente al objeto; la idea de un museo vivo, asociado a la función
social y dimensión territorial del museo; un entendimiento del patrimonio participativo,
la inclusión de una diversidad de narrativas y la apertura de los textos curatoriales y los
conceptos expositivos hacia preguntas, diálogos, cuestionamientos.
En consecuencia, nos animamos a esbozar una serie de conclusiones a modo de guía
para reflexionar, reinventar y sobre todo actualizar, nuestros museos de contrabando en la
Raya. Se trataría de promover proyectos “de abajo a arriba” para garantizar la sostenibilidad
de los centros, entendiendo los museos como “juegos de espejos” con la comunidad (De
Varine-Bohan, 1979). Hacer de la participación el eje central de la vida museal, pregun-
tarnos desde el contexto: ¿cómo queremos contarle a los demás nuestra historia? ¿Cómo
integrar toda esta pluralidad de relatos del contrabando? ¿Cómo reconciliarnos con
patrimonios incómodos? Entender el museo como una verdadera zona de contacto, de
oportunidades, de continuidades. Dar espacio a las prácticas actuales, al arte contemporáneo,
a la creación audiovisual: creemos que los museos de frontera deben afrontar un cambio
museológico unido a un cambio en la manera de entender la frontera, una concepción
de “fronteira para a frente, dirigida a um devir, mas olhando para trás” (Godinho, 2009,
p.149): esto es mirando al futuro a la vez que al pasado.
Tomando proyectos de referencia que también han sido creados también con el impulso
de los fondos de cooperación transfronterizos INTERREG, en este caso en el contexto de
los Pirineos (España, Francia, Andorra) el proyecto PATRIM+3 (Red Pirenaica de Centros
de Patrimonio e Innovación Rural) creemos que la fórmula de éxito para la gestión y la
musealización del patrimonio depende en gran medida de la voluntad de colaborar con la
comunidad para garantizar la sostenibilidad en el tiempo. Se hace cada vez más evidente
que, si queremos hablar de una gestión eficaz, aunque se inserte en la denominada “cultura
subvencionada”, tiene que incorporar a la comunidad para subsistir. El museólogo francés
Hughes de Varine, uno de los promotores de la nueva museología, apuntó con buen tino
que “[los programas de cooperación como Interreg] son siempre limitados en el tiempo,
96 // Sociedade e memória dos territórios

son operaciones puntuales. Es necesario completar este dispositivo con iniciativas locales,
entre comunidades vecinas” (2010, p.22).

3
https://www.igartubeitibaserria.eus/es/programa/proyectos/patrim

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 96 17/06/2022 18:05:52


Resumen – En este artículo recorremos tres centros museísticos de la frontera luso-galaica de-
dicados a la práctica del contrabando, que se crearon a lo largo de la primera década del siglo XXI
como resultado de las políticas de financiación europeas de cooperación transfronteriza. Realizamos
un análisis comparativo de sus recursos museográficos y la construcción del discurso que presentan
desde una perspectiva crítica, intentando detectar “paradojas ligadas a la gestión de las fronteras
como recurso patrimonializable” (Lois y Cairo, 2015, p. 216). Desplegamos por último propuestas
para una museología del patrimonio inmaterial donde se escuchen las voces de las comunidades, en
línea con los postulados de la museología social.
Palabras clave: contrabando, España-Portugal, frontera, museos, patrimonio cultural inmaterial

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Iberografias43-vfinal14Junho.indb 100 17/06/2022 18:05:53


Imaginar, realizar e compartilhar: oficinas
de aprendizagem criativa como instrumento
para uma educação baseada em projetos

Juliana Ramalho Barros1

Por uma educação criativa e fortalecedora

Crianças e jovens das periferias das grandes cidades brasileiras, geralmente não têm
acesso a uma educação que lhes dê autonomia. Nesse sentido, visando uma educação mais
emancipadora e fortalecedora, ancorada nas concepções de Freire (2017) e Papert (1994),
surgiu a ideia de um projeto que pudesse promover experiências emancipadoras com esco-
las públicas da cidade de Goiânia – Goiás – Brasil. Para isso, optou-se pelo engajando de
docentes e estudantes por meio de práticas criativas, a fim de lhes revelar uma educação lhes
permita se tornarem seus próprios agentes de transformação e desenvolvimento comunitá-
rio. O projeto também tem como objetivos ajudar a construir confiança criativa, promover
o pensamento crítico e fomentar o trabalho em equipe com a equipe colaborativa da escola,
como forma de assegurar que a felicidade de cada um possa ser edificada em coletividade.
É praticamente um consenso que a criatividade nunca foi tão importante como
agora, tendo em vista que é essa habilidade que nos propicia buscar alternativas para
os desafios que se colocam diante de nós. A criatividade nos permite desenvolver o
pensamento divergente, sempre em busca de novos caminhos para os problemas de
toda ordem. Desta forma, entendemos que uma educação que incentive a criatividade é
emancipadora, libertadora e transformadora.
Segundo Mouchird e Lubard (2002), criatividade pode ser definida como um con-
101 // Sociedade e memória dos territórios

junto de capacidades que permitem um indivíduo pessoa se comporte de modos novos e


adaptativos em determinados contextos. Criatividade é também a capacidade de criar uma
solução que é inovadora e apropriada ao mesmo tempo (Sternberg e Lubart, 1999).

1
Prof. Dra. Instituto de Estudos Socioambientais/Universidade Federal de Goiás. Brasil.
juliana@ufg.br

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Pode-se afirmar que a criatividade é uma dimensão da condição humana. Trata-se da
capacidade de produzir ideias. Todos os seres humanos têm capacidade criativa e que deve
ser desenvolvida, pois aí reside a evolução da humanidade. A criatividade desenvolve-se
individualmente em um contexto social e histórico. Segundo Gardner (2005), cada indi-
víduo também apresenta o seu perfil criativo distinto, por isso a dificuldade de definição
única do termo.
Todos somos seres criativos, porém, à medida em que vamos crescendo, a forma como
aprendemos as coisas, as tarefas diárias e as obrigações vão nos engessando. Passamos,
então, a acreditar que perdemos nossas habilidades para criar e essa crença se reflete na
maneira como realizamos nossas atividades. Com os professores, isso não é diferente, visto
que a maioria teve uma educação baseada em pouca ou nenhuma interatividade, centrada
mais na figura de quem ensina do que dos aprendizes. Diante, disso, se quisermos preparar
nossas crianças e nossos jovens para desenvolverem sua inventividade, precisamos, primei-
ramente, fomentar a criatividade adormecida nos professores.
Acredita-se que o Construcionismo, tanto como teoria de aprendizagem como uma
estratégia para educação, pode ser uma poderosa ferramenta, pois um de seus objetivos é
que os estudantes participem ativamente da construção e reconstrução de seus conheci-
mentos. Baseado nessa abordagem, o grupo de pesquisa Lifelong Kindergarten do MIT
Media Lab tem desenvolvido estratégias para engajar pessoas em experiências de aprendi-
zagem que culminaram no que passou a ser denominado de Aprendizagem Criativa, que
se baseia em quatro pilares (Resnik, 2017):
– Projetos: as pessoas aprendem melhor quando estão trabalhando ativamente em
projetos significativos, gerando novas ideias, projetando protótipos, refinando projetos,
compreendendo os processos.
– Paixão. Quando as pessoas trabalham em projetos que lhes interessam, trabalham
mais tempo e com mais afinco, persistem em a face dos desafios e têm a oportunidade de
aprender mais no processo.
– Pares: a criatividade é um processo social, no qual as pessoas compartilham ideias,
colaboram em projetos e constroem nos trabalhos umas das outras. A interatividade é
crucial para o desenvolvimento da criatividade.
– Aprender brincando: trata-se da dimensão lúdica da aprendizagem. O aprendizado
102 // Sociedade e memória dos territórios

deve ser cercado de novas de possibilidades e de chances de experimentar coisas novas


(assumir riscos, testar novos limites, lidar com diversos tipos de materiais, aprender com
os erros, construir coletivamente).
Diante do exposto, a fim de apresentar as bases do Construcionismo a docentes e
estudantes de diversos cursos de licenciatura, optou-se pela realização de oficinas cujos
objetivos são os seguintes:

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– Proporcionar experiência numa atividade de Aprendizagem Criativa e apresentar os
princípios básicos para uma educação emancipadora;
– Identificar desafios e oportunidades para a implementação da Aprendizagem Criativa;
– Elaborar projetos a serem aplicados pelos participantes em escolas e universidades;
– Promover a integração entre docentes de diversas áreas do conhecimento e interessados
em metodologias de aprendizagem inovadoras.
Espera-se que as oficinas sejam capazes de proporcionar uma experiência mão na
massa, seguida de reflexão e subsídios teóricos para se aplicar a Aprendizagem Criativa em
sala de aula. Durante as atividades, buscou-se fazer com que as pessoas se engajassem em
todas as fases do processo criativo, que Resnick (2017) imagina como sendo uma gran-
de espiral de aprendizagem, composta pelas seguintes etapas: imaginar, criar, executar,
compartilhar, refletir, imaginar e assim por diante.

Aprendizagem na prática

As oficinas em questão são parte do projeto de pesquisa intitulado “A aprendizagem


criativa aplicada ao ensino de climatologia e de seus conteúdos escolares: olhares, práticas
e o despertar para a ciência”, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico – CNPq do Brasil2. As atividades, destinadas a professores,
coordenadores pedagógicos e estudantes dos cursos de licenciatura, foram desenvolvidas
presencialmente ao longo dos anos de 2018, 2019 e início de 2020. No ano de 2021, ocor-
reram algumas oficinas ofertadas em formato remoto. Para atrair esse público a divulgação
foi feita em escolas, universidades, secretarias de educação, no site da Rede Brasileira de
Aprendizagem Criativa e na página do Instagram do projeto3.
A metodologia da atividade foi desenvolvida com base em Resnick (2017) e Clapp,
Ross, Ryan & Tishman (2017).
A atividade tem duração total de 4 horas e, num primeiro momento, os participantes
(no máximo 25 em cada oficina), que trabalham em grupos, são convidados a imergi-
rem em micromundos. Para isso, são convidados a pensarem como estará o Brasil no
século XXII e cada grupo se coloca em uma estação de trabalho, com os mais diversos tipos
de materiais (papelão, tecidos, cola, baterias, led, sucatas, etc) (Figura 1). Cada estação de
103 // Sociedade e memória dos territórios

trabalho, conforme se vê na Figura 2, possui um tema: moda, moradia, meios de transpor-


te e cultura e os grupos deve preparar projetos que envolvam desafios a serem superados
nessas áreas ou simplesmente projeções para o futuro.
2
Financiamento captado por meio do Edital Universal CNPq de 2016 (vigente até junho de 2021).
3
@espacomakerclima.

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Figura 1 – Materiais utilizados nas oficinas de Aprendizagem Criativa. Fotos: Barros, J. R. (2018, 2019).
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Figura 2 – Estação de trabalho com materiais diversos. Foto: Barros, J. R. (2018).

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Durante 1 hora, cada grupo precisa executar projetos que sejam capazes de demonstrar
suas ideias para que os desafios identificados sejam superados. Todos podem circular livre-
mente, trocar materiais e compartilhar ideias com colegas de outros grupos. É importante
lembrar que não existe certo ou errado. O importante é que o projeto comunique a ideia
desejada pelo grupo, mesmo que não chegue a ser finalizado. (Figura 3).

Figura 3 – Participantes das oficinas trabalhando em seus projetos. Fotos: Barros, J. R. (2018, 2019).

Ao final desse tempo, os grupos apresentam seus protótipos e compartilham suas


ideias (Figura 4). Todos são incentivados a falar sobre como foi o processo de executar a
atividade e o que aprenderam com isso. Após a apresentação dos projetos, os participantes
das oficinas são convidados a responderem algumas perguntas colocadas em painéis nas
paredes, para que depois todos possamos refletir e dialogar sobre os resultados. A escrita
nos painéis constitui-se num momento de reflexão dos integrantes da oficina, mas também
em um importante registro de suas percepções acerca da experiência na qual estão imersos.

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Figura 4 – Projetos elaborados nas oficinas. Fotos: Barros, J. R. (2018, 2019).

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Além dos painéis, todos recebem um questionário para que possam avaliar a atividade
e inserir suas impressões sem serem identificados. Fornecemos, ainda, um roteiro auxiliar
para que possam pensar em implementar atividades e projetos de aprendizagem criativa
em suas escolas e universidades.
A última etapa consiste em uma roda de conversa, a fim de avaliarmos os pontos positivos
e os negativos da oficina, bem como o que pode ser modificado e, ainda, como cada pessoa
se sentiu ao realizar a atividade. As pessoas são incentivadas a expor suas opiniões livremente
e críticas são muito bem-vindas. Para dar início a esse processo, todos são convidados a se
integrarem em nossa rede de pesquisa e trabalhos voltados para a Aprendizagem Criativa.

Considerações finais

Uma das premissas básicas do construcionismo é que os aprendizes constroem e


reconstroem conhecimentos a partir de suas experiências no mundo. Isso se aplica espe-
cialmente quando as pessoas podem se engajar em torno de objetivos comuns, visando dar
sentido real àquilo que irão aprender.
Nesse sentido, o objetivo das oficinas é proporcionar vivências nas quais as pessoas possam
perceber que é possível pensar em novas formas para se mediar a aprendizagem dos estu-
dantes, além de promover uma conexão entre as pessoas que estão interessadas em lidar isso.
Não há pretensão de que essa seja a única maneira de mobilizar conhecimentos e de se
adotar metodologias mais ativas em sala de aula, mas trata-se, sim, de uma possibilidade a
mais, em que é possível abordar o lado lúdico dos estudantes.
Cabe ressaltar que em todas as oficinas ministradas ocorreu a participação de pro-
fessores da educação básica, principalmente da pública (municípios e estado de Goiás),
discentes de graduação e pós-graduação da Universidade Federal de Goiás - UFG e da
Universidade Estadual de Goiás - UEG, além de docentes e técnicos-administrativos de
diversas unidades acadêmicas da UFG.
Outro ponto relevante é que as oficinas resultaram em um maior envolvimento dos
cursistas em projetos baseados na Aprendizagem Criativa, bem como em parcerias como
o nosso projeto de pesquisa.
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Espera-se que as oficinas possam ser replicadas pelos participantes em suas escolas e
comunidades, bem como que os preceitos da Aprendizagem Criativa sejam disseminados
entre docentes, estudantes, gestores escolares e pessoas interessadas em educação.
Os dados coletados revelam que mais de 80% das pessoas que participam das oficinas
procuram implementar projetos e atividades baseadas em metodologias ativas em suas
aulas ou se engajam em grupos e redes que ajudam a promover a Aprendizagem Criativa.

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Resumo – Este artigo trata sobre a realização de oficinas para professores que trabalham no
ensino básico e superior, coordenadores pedagógicos, estudantes de graduação e outras pessoas in-
teressadas em conhecer a abordagem construcionista e a Aprendizagem Criativa. Por meio de uma
experiência prática, que envolve a resolução de desafios, são apresentados os princípios básicos da
Aprendizagem Criativa e discute-se a sua concretização na prática. As atividades realizadas permitem
identificar desafios e oportunidades para a implementação da Aprendizagem Criativa nas escolas e
universidades, bem como para idealizar projetos a serem aplicados pelos participantes nas suas comu-
nidades, promovendo, assim, a integração entre professores de várias áreas do conhecimento e outras
pessoas interessadas em metodologias de aprendizagem inovadoras. É também intenção deste projeto
construir confiança criativa, promover o pensamento crítico e fomentar o trabalho em equipe dentro
da escola, como forma de assegurar que a felicidade de cada um possa ser edificada coletivamente. As
avaliações realizadas junto aos participantes revelaram que mais de 80% dos participantes das oficinas
estão buscando implementar projetos e atividades baseados em metodologias ativas em suas aulas ou
se envolvem em grupos e redes que ajudam a promover a Aprendizagem Criativa.
Palavras-chave: Construcionismo; metodologias ativas; educação; Brasil.

Abstract – This paper aims to present a project that consists in the realization of workshops
for teachers who work in basic and higher education, pedagogical coordinators, undergraduate stu-
dents and other people interested in knowing the constructionist approach and Creative Learning.
Through a hands-on experience, which involves solving challenges, the basic principles of Creative
Learning are presented and its implementation in practice is discussed. The activities carried out
allow identifying challenges and opportunities for the implementation of Creative Learning in
schools and universities, as well as design projects to be applied by participants in their communi-
ties, thus promoting the integration between teachers from various areas of knowledge and other
people interested in innovative learning methodologies. It is also this project intent, to build up
creative confidence, promote critical thinking and foment team work with the school’s collabora-
tive staff, as a way to assure that one’s happiness may be edified into collectiveness. The evaluations
carried out with the participants revealed that more than 80% of the workshop participants are
seeking to implement projects and activities based on active methodologies in their classes or get
involved in groups and networks that help promote Creative Learning.
Keywords: Constructionism; active metodologies; education; Brazil.

Referências bibliográficas
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Clapp, E. P.; Ross, J.; Ryan, J. O. & Tishman S. (2017). Maker-centered learning: empowering young
people to shape their worlds. San Francisco, CA: Jossey-Bass.
Gardner, H. Las cinco mentes del futuro. Barcelona: Editorial Paidós, 2005.
Mouchiroud, C. e Lubart, T. (2002). Social creativity: A cross-sectional study of 6-to 11-yearold
children. Int. J. Behav. Develop., 26 (1), 60-69.

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Sternberg, R. J. e Lubart, T. I. (1999). The Concept of Creativity: Prospects and Paradigms. Em:
Sternberg, R. J. (Ed.). Handbook of Creativity. Cambridge University Press.
Freire, P. (2017). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa (55ª ed.). Rio de
Janeiro/São Paulo: Paz e Terra.
Papert, S. (1994). A máquina das crianças: repensando a escola na era da informática. Porto Alegre:
Editora Artes Médicas.
Resnik, M. (2017). Lifelong Kindergarten: cultivating creativity through Projects, Passion, Peers and
Play. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press.
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A leitura literária como experiência
geográfica na escola

Maíra Suertegaray Rossato1

Introdução

Este texto abordará as possibilidades de conexões entre a leitura literária e a Geografia, a


partir dos princípios da Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER) e do pensamento
decolonial. A intenção é de resgatar autores, que propõem o trabalho interdisciplinar entre
Geografia e Literatura, mas, também, trazer, para essa discussão, referências e elementos mais
atuais dessa construção, conectando, à importância da educação antirracista e decolonial, a
prática da Geografia na Educação Básica. Associo a essa conversa minha experiência, en-
quanto escritora de literatura infantil, resgatando relatos dos impactos que a leitura literária
traz para os leitores e as transformações, que promove entre as crianças (Rossato, 2020).
A Geografia escolar, para além dos conhecimentos acadêmicos produzidos e trans-
postos para um público específico, constrói-se, também, a partir da escola, dos alunos e
das diretrizes pedagógicas, que orientam essa prática. Sua contribuição, a partir do pensar
geográfico, é desenvolver a “[...] capacidade de se questionar a realidade, entendendo que
os fenômenos não estão localizados por acaso em um ‘receptáculo’ chamado espaço geo-
gráfico; diferentemente, há uma lógica que justifica esta localização” (Cavalcanti, 2019,
p. 120). Esta lógica se relaciona aos processos históricos e sociais, que se articulam, para
compor a espacialidade do fenômeno. Para Santos (2010), ensinar Geografia na escola é
importante para que o estudante se posicione no mundo, para conhecê-lo, bem como para
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ter ciência de sua posição nele, para, então, tomar posição neste mundo e agir, colocando-se
politicamente, para a sua transformação.

1
Professora Titular do Departamento de Humanidades do Colégio de Aplicação da UFRGS. Atua na área
de Geografia na Educação Básica e como professora da Linha de Ensino de Geografia no Programa de
Pós-Graduação da mesma universidade. E-mail: mairasuerte@gmail.com.

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A Geografia se apresenta, então, com enorme potencial de mudança, que ganha ainda
mais força, a partir de uma abordagem interdisciplinar com a literatura. Vários autores já
apresentaram possibilidades de trabalhar nesta perspectiva.
Barcellos (2009) retoma a sistematização dos trabalhos, que integravam a Geografia
com a literatura, desenvolvidos a partir dos anos de 1970 por Brosseau (2007). Neste
levantamento, o autor identificou duas linhas de trabalho: literatura como transcrição da
experiência dos lugares, numa perspectiva humanista; e literatura como crítica da realidade,
desenvolvida pela Geografia Crítica.
A literatura, na concepção humanista, teria importância para o estudo geográfico por
transcrever as experiências concretas que o autor tem com os lugares, sendo vista, assim,
como resultado de uma percepção, da qual guardará o vestígio. Sob a lente da Geografia
Crítica, é imprescindível que o texto literário seja interpretado, a partir das contextualiza-
ções social e histórica da sua produção (Barcelos, 2009). Para Brosseau (2007), a maioria
dos trabalhos aborda a literatura, sob uma ótica instrumental, isto é, a partir do que ela
pode nos ensinar sobre o mundo exterior ou sobre nossa relação com o mundo. Para
Barcellos (2009, p. 42), “[...] a literatura não somente reconstitui uma experiência, como,
também, formula experiências”.
Não há uma única forma de olhar o mundo e de construir o conhecimento geo-
gráfico. Esta é a premissa defendida por Beraldi e Ferraz (2012), que destacam a im-
portância de apresentar, aos estudantes, a possibilidade de experimentarem o mundo,
através de diferentes lentes, incluindo as das produções artísticas. “[...] A interação
com a literatura permite a elaboração de sentidos geográficos para aquilo que é lido”
(Rossato, 2020, p. 3).
A linguagem estética, considerada fundamental no desenvolvimento espacial e críti-
co dos estudantes, é trazida por Silva e Barbosa (2014) para a abordagem da Geografia na
escola. Os autores propõem a metodologia denominada estética geográfico-literária,
que entende as experiências dos estudantes como “[...] categorias e conceitos geográficos
vivos”, que poderão ser conectadas às ficções apresentadas pela leitura literária, contribuin-
do para a reflexão sobre suas próprias vivências. Para eles, ensinar Geografia pela literatura
amplia a capacidade de interpretação do mundo e de sua organização, decorrente das
experiências dos estudantes com leituras conectadas a sua realidade, mas, também, a partir
110 // Sociedade e memória dos territórios

de outras articulações escalares.


Numa perspectiva orientadora semelhante, apresento as ideias de Michèle Petit (2009
e 2019), que pesquisa sobre a leitura literária e sobre a sua capacidade de transformar a vida
das pessoas nos planos individual e coletivo, ou seja, sobre a capacidade da transformação
individual impulsionar a transformação coletiva.
A leitura ajuda a encontrar um sentido para a existência, a constituir-se, a construir-se:

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Os escritores nos ajudam a nomear os estados pelos quais passamos, a distingui-
-los, a acalmá-los, a conhecê-los melhor, a compartilhá-los. Graças as suas histórias
escrevemos a nossa, por entre as linhas. E porque tocam o mais profundo da experiên-
cia humana – a perda, o amor, o desespero, a separação, a busca de sentido. (Petit,
2009, p. 39)

A autora aponta o potencial que a leitura literária tem para recompor identidades e
relações de pertencimento, configurando-se como possibilidade de resistência aos proces-
sos de marginalização, pois “[...] elabora uma identidade singular, aberta, em movimento,
evitando que se precipitem modelos preestabelecidos de identidade, que asseguram seu
pertencimento integral a um grupo” (Petit, 2009, p. 37).
Assim, ler nos lança ao devaneio, no qual outras possibilidades são cogitadas, outras
realidades são possíveis.
Ler contribui para que nos tornemos mais agentes de nossas vidas. Permite abrir
um pouco o espaço de possibilidades e assim encontrar um lugar – mas um lugar em
um mundo, em uma sociedade que transformamos um pouco, onde temos a nossa
parte, onde nos inscrevemos. (PETIT, 2009, p. 54)

Petit (2019, p. 23) retoma Hannah Arendt, quando diz que a leitura e a disseminação
cultural são importantes para “[...] transmitir o mundo às crianças, para ensiná-las a amá-
-lo, para que elas um dia tenham vontade de assumir a responsabilidade por ele”.
Desta forma, o trabalho com a literatura abre espaço para “[...] construir um mundo
habitável, humano; poder encontrar ali o seu lugar e se locomover; celebrar a vida no coti-
diano, oferecer as coisas poeticamente; inspirar as narrativas que cada pessoa fará da sua
própria vida; alimentar o pensamento [...]” (Petit, 2019, p. 23).
Pensando a Geografia nesta interação, destaco o excerto:
As palavras que eu tiver dito, lido ou cantado vão possibilitar uma experiência
poética do espaço. As ruas ou os bairros ganharão relevo, farão você sonhar, sair à
deriva, associar, pensar. Para que o espaço seja habitável e representável, para que
possamos nos situar, nos inscrever nele, ele deve contar histórias, ter toda a sua espes-
sura simbólica, imaginária. Sem narrativas – nem que seja uma mitologia familiar,
111 // Sociedade e memória dos territórios

umas poucas lembranças – o mundo permaneceria como está, indiferenciado; ele


não nos seria de nenhuma ajuda para habitar os lugares em que vivemos e construir
nossa morada interior. (Petit, 2019, p. 19-20)

Enquanto professores de Geografia, podemos pensar que a experiência da leitura


literária, ao mobilizar sentimentos e reflexões sobre temas, sobre vivências comuns ou

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diferentes, permite ao estudante se descentrar, abrindo-se para novos pontos de vista, que
podem lhe autorizar a mudar a forma de agir sobre o mundo. A leitura impactará cada
leitor de um modo singular, pois constitui uma experiência individual, que, ao contribuir
para o autoconhecimento, amplia o nosso repertório, para pensarmos a relação com o que
nos rodeia, criando um caminho criativo, que valoriza os saberes individuais e que promove
uma prática mais significativa para os estudantes.

As educações antirracista e decolonial

A população afrodescendente do Brasil, conforme dados da PNAD/IBGE de 2018, é


de 116,9 milhões de pessoas, o que representa 55,8% dos brasileiros. Ainda que em maio-
ria numérica, os negros e as negras do Brasil são historicamente oprimidos econômica,
política e/ou culturalmente (Rossato, 2020).
A subalternização do negro e, em oposição, a dominação branca, estruturam a
sociedade brasileira econômica, política, jurídica e ideologicamente. Os indicadores
sociais difundidos pela mídia não escondem: o negro é marginal em termos de con-
dições de trabalho e salários, acesso à educação básica e superior, acesso à saúde, é a
população mais encarcerada, são marginais em termos de representação política, e
vivenciam um verdadeiro genocídio de sua juventude. (De Mesquita, 2019)

Neste sentido, Kilomba (2019) aponta que a colonização dos corpos e das mentes,
imposta pelo entendimento racista de posições de superioridade e de poder, em torno da
branquitude, resulta que os povos não brancos sejam tratados como “os outros”, em relação
aos brancos. Desta forma, historicamente, pessoas negras têm usufruído de um acesso desigual
aos recursos necessários para a implementação de suas vozes (De Mesquita, 2019).
Esta situação favorece à disseminação do que Adiche (2019) chama de “[...] perigo da
história única”. Segundo a autora:
[...] assim como o mundo econômico e político, as histórias são definidas pelo
princípio de nkali (em igbo “ser maior do que outro”): como elas são contadas, quem
as conta, quando são contadas e quantas são contadas depende muito de poder. O
112 // Sociedade e memória dos territórios

poder é a habilidade não apenas de contar a história de outra pessoa, mas de fazer
que ela seja a sua história definitiva. (Adiche, 2019, p. 23)

Como forma de resistir a essa estrutura racista, conceitos, como os de representati-


vidade, de empoderamento (Berth, 2019) e de lugar de fala (Ribeiro, 2017), ocupam
diversos espaços, contribuindo para mudar realidades. Ver-se representado valida a nossa

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existência, amplia nossas noções do que podemos ser e fazer e dá espaço e voz para as
minorias, que não conseguem se fazer ouvir na realidade ou, mesmo, que são fortemente
incompreendidas e hostilizadas (Rossato, 2020).
Ribeiro (2017 e 2019) defende que todas as pessoas falam, a partir de um lugar social,
definido por relações de poder e entrecruzado por questões de raça, de gênero e de classe.
Esse lugar social, ocupado por grupos de pessoas, definirá suas trajetórias e as oportunida-
des que terão ou deixarão de ter. Para Ribeiro (2017, p. 75), “[...] os saberes produzidos
pelos indivíduos de grupo historicamente discriminados, para além de serem contradiscursos
importantes, são lugares de potência e de configuração do mundo por outros olhares e por
outras geografias”.
Desta forma, é essencial pensar a escola e a Geografia escolar, diante desses processos
de estigmatização e de invisibilidade. Dar espaço para outras histórias, para outras referências,
para outras vozes, é fundamental. Neste sentido, a educação, nas perspectivas antirracista
e decolonial, aponta-nos alguns caminhos, no sentido de promover desenvolvimento de
consciências política e histórica da diversidade; fortalecimento da identidade e dos direitos;
e ações educativas de combate ao racismo e à discriminação.

A leitura literária e a transformação (de estudantes, de professores, de


práticas pedagógicas)

Ainda encontramos formas de racismo em muitos textos literários, voltados para crianças
e para jovens, expressas na ausência da imagem do negro ou na estigmatização e na constante
afirmação ideais de comportamento e de beleza brancos. Uma criança que não se reconhece,
dentro do padrão estabelecido, mesmo inconscientemente, passa a atribuir características
negativas ao seu próprio corpo. A construção da sua identidade fica, então, prejudicada, uma
vez que não encontra correspondência corporal positiva nos seus repertórios imagéticos ou
é marcada pela invisibilidade. Adiche (2019, p. 13) destaca “[...] o quão impressionáveis e
vulneráveis somos, diante de uma história, particularmente, durante a infância”.
Para os pesquisadores da Geografia da Infância Lopes e Vasconcelos (2006), a vivência
da infância se conecta com o lugar, em que esta criança vive, pois, a partir deste lugar e
113 // Sociedade e memória dos territórios

da cultura de seu grupo, ela desenvolverá as suas subjetividades e as suas territorialidades


infantis. Importante destacar que “[...] os sentidos de infância variam, de acordo com os
interesses destinados pela sociedade as suas diferentes camadas sociais, estabelecendo diferentes
caminhos para a vida adulta” (Lopes; Vasconcelos, 2006, p. 116).
Desta forma, retomamos o que Petit (2009) escreve sobre modelos pré-estabelecidos
de identidade, que tornam a criança/jovem parte de um grupo. Infelizmente, podemos

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pensar que, no Brasil, país em que a base estrutural da sociedade se ancora no racismo,
no machismo e na desigualdade social, alguns grupos têm sua trajetória precocemente
definida pela realidade, em que vivem, e isso pode ser estagnante ou, mesmo, assustador.
A leitura literária oferece, então, as possibilidades de criar e de sonhar com outras reali-
dades, promovendo a libertação desses modelos. A Geografia, a partir da literatura, pode
contribuir para essa transformação. Trago, na sequência deste texto, vivências das minhas
atuações como docente e como escritora de literatura para crianças.
Comecei a escrever histórias para infância há doze anos. À época, literatura com
protagonistas negros(as) e com temáticas relacionadas a questões de racismo ou de gê-
nero, por exemplo, eram raras. À minha filha, menina negra, e a tantas outras crianças,
era negado o conhecimento, a respeito de outras histórias (o que remete a Chimamanda
Adiche), de outras belezas, de outras referências, pois a ausência da figura do negro
era explícita, ou seja, a etnia negra era constantemente negada, não, pela presença de
estereótipos negativos (ainda que isso estivesse presente, também), mas pela constante
afirmação do ideal do branco.
O letramento racial é essencial, para que crianças, desde as mais pequenas, possam iden-
tificar e questionar os papéis que, normalmente, são atribuídos a brancos e a negros, bem
como para que possam desnaturalizar o racismo entranhado na sociedade. Mostrar o prota-
gonismo negro, sua beleza, sua força, suas conquistas, é relevante, para que crianças negras
se vejam representadas e para que possam visualizar diferentes realidades (Rossato, 2020).
Como nos diz Adiche (2017, p. 52):
Esteja atenta também a lhe mostrar a constante beleza e capacidade de resistên-
cia dos africanos e dos negros. Por quê? A dinâmica de poder no mundo fará com
que ela cresça vendo imagens da beleza branca, da capacidade branca, das realizações
brancas, em qualquer lugar onde estiver. Isso estará nos programas de tv a que as-
sistir, na cultura popular que consumir, nos livros que ler. Provavelmente também
crescerá vendo muitas imagens negativas da negritude e dos africanos. Ensine-lhes
a sentir orgulho da história dos africanos e da diáspora negra. Encontre heróis e
heroínas negras na história.

As temáticas da história da África e dos afrodescendentes, da representatividade, do


114 // Sociedade e memória dos territórios

respeito às diferenças e das questões indígenas ganham destaque nas minhas histórias, uma
vez que, ao longo da docência e da maternidade, fui indagada sobre questões, relativas à
desigualdade social e ao racismo estrutural no Brasil, bem como em relação à valorização
da beleza branca, em detrimento de outros padrões de beleza. Tais questionamentos foram
feitos por crianças, a partir de suas experiências pessoais, de seu mundo vivido, de suas
dores, na busca de um entendimento.

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Precisava dar estas respostas! Foi, então, que, com leituras e com pesquisas na área,
desenvolvi textos literários, que buscavam responder àquelas inquietações, discutindo
temas socialmente relevantes e apresentando, aos leitores, personagens, com os quais se
identificassem. Foi a partir destes temas que percebi a importância da literatura na construção
da identidade da criança.
Questões como estas pautavam o meu debate com os estudantes, quando visitava as
escolas, para falar sobre a beleza das princesas africanas, que aparece no livro Dandara e a
Princesa Perdida (Suertegaray, 2012), ou para falar sobre a valorização das nossas origens e
sobre as histórias de antepassados, que moldam o nosso corpo e que dão cor a nossa pele e
forma aos nossos cabelos, como na história de Dandara, seus cachos e caracóis (Suertegaray,
2015). Apresentarei algumas situações, vivenciadas com leitores-estudantes, que mostram
o quão significativa pode ser a leitura literária.
Certa vez, uma colega docente me sugeriu a leitura do trabalho de conclusão do curso
de Pedagogia (da FACED/UFRGS) da estudante Michelle Maciel Ribeiro, que abordava,
dentro de sua experiência de estágio, o desenvolvimento de propostas pedagógicas, com
foco na Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER). Neste trabalho, a professora faz
um relato emocionante sobre Mariele, adolescente que estava sempre vestida com blusa de
moletom e capuz – e nunca o tirava. A menina sofria com apelidos, dados pelos colegas, o
que contribuía ainda mais para que ela quisesse esconder seus cabelos curtinhos. A iden-
tificação da adolescente com a princesa Makena, do livro Dandara e a princesa perdida, é
imediata e transformadora.
Na manhã seguinte, ao terminar a primeira proposta de atividade, Mariele
pediu o livro para que pudesse terminar a leitura. Entreguei para ela e reiterei que
só ela poderia olhar. Algum tempo depois ela veio até a minha classe, abriu o livro
e me mostrou com muita empolgação uma figura, dizendo: “Olha profe! Eu pareço
com ela! Nosso cabelo é parecido!” a figura do livro que ela me mostrara, era uma das
princesas negras. Confesso que levei alguns segundos sorrindo, com imensa alegria,
até que comecei a minha intervenção, perguntando “tu viu que linda? Ela é uma
princesa negra, tem os cabelos crespos e tem orgulho disso!” ela sorria, ainda empol-
gada e concordava “aham, profe”. O sorriso que ela abria no rosto era inenarrável.
Continuei: “Tu achou o cabelo dela parecido com o teu?” e com a cabeça e um jeito
115 // Sociedade e memória dos territórios

tímido ela concordou, então prossegui “me diz, porque tu usa capuz e esconde teu
cabelo, que é lindo?
(...) Mariele com seus onze anos representava muito mais uma adolescente por
suas falas, gírias e atitudes, do que uma criança. Percebia muita confiança e atenção
da parte dela nos momentos de conversas, e, mesmo assim, não esperava que ela
revelasse para mim, o significado que o livro impulsionou nela. Na semana seguinte,

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na segunda-feira senti uma alegria imensurável logo que cheguei à escola. Mariele
havia tirado seu capuz! Ela havia não só aceito seu cabelo, mas também estava o
valorizando com um delicado laço vermelho. Naquela manhã senti como se tivesse
alcançado muito mais que alguns objetivos. Senti orgulho pela coragem dela em tão
jovem assumir seu papel na sociedade, papel de mulher e negra. Senti orgulho por
saber que demorou, mas que enfim ela sentia-se capaz de enfrentar os desafios que
encontraria pela frente (como comentários e perguntas de seus colegas, etc.). Além
disso, como docente, vi na prática como os diferentes suportes pedagógicos, como
os livros, imagens, representações e falas, compõem juntos um potencial educativo
que ultrapassa a sala de aula. (Ribeiro, 2017, p. 29-30)

Alguns meses, após um encontro de contação da história do livro Dandara e a princesa


perdida para estudantes do bairro Restinga, na periferia de Porto Alegre, a professora que
acompanhava aquele grupo de jovens, ao me encontrar em outra atividade de conversa
com os leitores, contou-me, com os olhos marejados, como aquela experiência tinha sido
importante para uma de suas alunas, tendo mudado sua forma de se portar em sala de aula.
Reconhecer-se bela, como uma princesa, ver a importância da sua história e identificar
histórias parecidas com a dela teve uma influência positiva na sua autoimagem, deixando-a
mais confiante. A menina, após a leitura do livro, permaneceu em silêncio – como se esti-
vesse organizando, internamente, um novo mundo de sentimentos –, mas passou a falar e
a participar mais em sala de aula, fazendo colocações, o que, antes, não acontecia.
No Colégio de Aplicação da UFRGS, o trabalho com o livro Dandara, seus cachos e
caracóis numa turma do primeiro ano do Ensino Fundamental impulsionou a transformação
de uma menina tímida, que estava sempre de cabelo preso. O livro traz histórias, conta-
das pelos caracóis de Dandara, remetendo a sua ancestralidade, às ricas trajetórias de seus
antepassados, a suas lutas e a seus desafios, culminando com as ideias da valorização e do
respeito às diferenças. Após o trabalho de leitura literária, realizado pela professora, a estu-
dante passou a usar seu cabelo solto, fazendo um penteado diferente a cada dia, e mudou
a relação consigo e com os outros. No dia em que fui conversar sobre o livro com a turma,
esta menina me mostrava, com orgulho, o quão lindos eram os seus cabelos.
Também é importante o depoimento deixado pela professora Lívia Meister em minha
116 // Sociedade e memória dos territórios

página de escritora da rede social Facebook, após visita à Escola Estadual Brigadeiro André
Sampaio, de Alvorada, município da Região Metropolitana de Porto Alegre, por meio do
projeto Lendo pra Valer:
Hoje recebemos na escola a visita da Maíra Suertegaray. Maíra é professora e
escritora de literatura infantil. Suas personagens são, predominantemente, meni-
nas negras, inspiradas nas suas filhas. Ela nos contou que a intenção dela foi dar

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protagonismo às meninas negras, representatividade. Que assim como as suas filhas,
outras meninas também pudessem se ver, se reconhecer e entenderem sua ances-
tralidade. Mais do que isso, a Maíra conseguiu que eu me identificasse com cada
história dela que eu li. Eu sou uma menina negra que cresceu sem se ver representada
também. E que aprendeu muito cedo que o padrão de beleza é branco e liso. Menina
negra de pele clara, que levou 30 anos pra se assumir negra.
Que falta me fizeram Dandaras e Anahís na infância! Que as nossas meninas
possam se identificar e se empoderar desde cedo. Que se apropriem e se amem com
tudo o que são. Parabéns, Maíra, teu trabalho é importante e necessário. E obrigada!
Minha menina negra desperta pra te agradecer e a professora de hoje se enche de
alegria em saber que não estamos sós nessa caminhada!

Lívia também leciona em turmas de magistério e discute essas questões com os futuros e
as futuras docentes, que está formando. Recebo muitos relatos, semelhantes a esses, de mães,
de pais, de professores. Quando encontro com os leitores, para dialogar e para responder
a perguntas sobre meus livros, sempre surgem muitas histórias de crianças, que ficaram
surpresas, ao conhecer mais sobre as suas origens, e que declaram como isso foi significativo.
É importante, para essas crianças, que se autorreconheçam belas e belos, princesas e
príncipes, heroínas e heróis. Chimamanda (2017) aponta que é fundamental oferecermos
alternativas às crianças, diferentes tipos de belezas, além de pessoas (homens e mulheres)
inspiradores, para que possam se contrapor aos estereótipos. A autora diz, ainda:
As histórias importam. Muitas histórias importam. As histórias foram usadas
para espoliar e caluniar, mas também podem ser usadas para empoderar e humanizar.
Elas podem despedaçar a dignidade de um povo, mas também podem reparar essa
dignidade despedaçada.
(...) Quando rejeitamos a história única, quando percebemos que nunca existe
uma história única sobre lugar nenhum, reavemos uma espécie de paraíso. (Adichie,
2019, p. 32-33)

Munanga (2004, p. 7), nesta linha, destaca:


A igualdade supõe também o respeito do indivíduo naquilo que tem de único,
117 // Sociedade e memória dos territórios

como a diversidade étnica e cultural e o reconhecimento do direito que tem toda


pessoa e toda cultura de cultivar sua especificidade, pois fazendo isso, elas contribuem
a enriquecer a diversidade cultural geral da humanidade.

Foi para contribuir com a transformação dessas crianças que me tornei escritora.
Escrevo para mostrar a sua beleza, para exaltar as suas histórias – histórias de luta e de

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resistência dos povos africanos, que construíram este país –, mas, também, para trazer à
tona a importância dos debates sobre a representatividade e sobre o letramento raciais.
Em País de Anahí (Suertegaray, 2015), apresento um país fictício, com suas paisagens,
com seus habitantes, com suas características e com seus conflitos, trazendo, novamente,
as temáticas do respeito às diferenças e da representatividade. Esta história destaca, ainda,
conceitos da ciência geográfica (como o de espaço, de território, de paisagens, de fron-
teiras) e permite pensarmos sobre as formas de nos relacionarmos em sociedade e com
o ambiente. Esta história desperta, nos leitores, o que salientava Petit, anteriormente: a
possibilidade de imaginar algo diferente, um mundo, um país, um lugar, em que possamos
agir de outro modo, mudar as coisas, ocupar outros espaços.
Lopes e Vasconcelos (2006, p. 119), ao abordar as territorialidades infantis, destacam
que, assim como os adultos, territorializados em um local concreto, com fronteiras delimita-
das, pertencentes a diversos grupos sociais, que se diferenciariam, a partir de suas extensões,
e com regras a serem seguidas, de acordo com as redes de significado nelas tecidas:
[...] o mesmo ocorreria com as crianças em seus diferentes contextos, pois para
“além das diferenças individuais, as crianças distribuem-se na estrutura social segundo a
classe social, a etnia a que pertencem, o género e a cultura” (Sarmento & Pinto,1997,
p.22). Isso significa demarcações de alteridades e a organização de fronteiras, cons-
tituindo limites entre diferenças, o que torna possível o processo de territorialização
e de identificação, constituindo suas identidades locais, criando uma estreita relação
entre identidade infantil e os territórios de infância.
Porém, longe de parecer algo simples e estável, diferentes territórios podem se
amalgamar, se sobrepor, se cruzar, se diferenciar, revelando muitas vezes conflitos de
diversos grupos sociais em suas espacialidades e, implicitamente, o destino esperado
para seus diferentes sujeitos.

Pensar sobre esses conflitos também me motiva, quando escrevo. Valorizar as histórias
ancestrais, as trajetórias de povos, que contribuíram para a formação do território brasi-
leiro, e mostrar a diversidade de pessoas, que formam os nossos espaços e que neles atuam
(com suas contradições, inclusive), desperta o olhar e a sensibilidade do leitor para as
questões/conflitos, nos quais estão inseridos. Essa tomada de consciência contribui, para
118 // Sociedade e memória dos territórios

criar uma nova forma de olhar e de se posicionar, em relação a isso. Assim, temos crianças
mais conscientes e mais questionadoras da sua realidade e, a partir daí, mais empoderadas
e mais empáticas, em relação à diversidade.
Por fim, destaco a temática da representatividade, ligada às questões do povo guarani,
com o livro Anahí: a flor que queria ser menina (Suertegaray 2017), e dos povos da floresta,
em particular, com os ribeirinhos, que vivem na Amazônia, com o livro Boyrá e o menino

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(Suertegaray, 2015). A história de Boyrá e o menino surge, dentro de um projeto, desenvol-
vido junto ao Núcleo de Estudos em Geografia e Ambiente (NEGA/UFRGS) e o Instituto
Chico Mendes para Biodiversidade de Tefé (ICMBio/Tefé), por demanda de comunitários
ribeirinhos e de professores das escolas da Floresta Nacional de Tefé, para que as crianças
em fase de alfabetização tivessem as possibilidades de ler sobre seu espaço de vida e de se
verem e de se identificarem com suas origens ribeirinhas, além de serem protagonistas no
cuidado de seu espaço de vida, a floresta.
O tema da ancestralidade indígena, por meio da lenda guarani da flor de corticeira,
também chamada flor de Anahí, bastante conhecida no sul do Brasil, é o mote de Anahí:
a flor que queria ser menina. Esta lenda aborda a luta dos guaranis em defesa da sua terra
e de seu povo, por meio da resistência de uma mulher indígena. As ilustrações deste
livro foram elaboradas, a partir das texturas de cestarias, e seu texto incorpora palavras
da língua guarani.
Relacionar a leitura com o espaço vivido, com as formas de sentir e de entender o seu
espaço individual, abre a possibilidade de pensar um mundo, uma realidade e, até mesmo,
um futuro distintos. Os depoimentos anteriores mostram isso: leitores passaram a se ver
de maneira positiva, entendendo a relevante contribuição dos povos africanos e afrodes-
cendentes na construção do país, orgulhando-se dessa ancestralidade e se posicionando de
forma diferente, frente a isso.
A apropriação da língua, o acesso ao conhecimento, como também a tomada de
distância, a elaboração de um mundo próprio, de uma reflexão própria, propiciados
pela leitura, podem ser pré-requisito, a via de acesso ao exercício de um verdadeiro
direito de cidadania. Pois os livros roubam tempo do mundo, mas eles podem devolvê-lo,
transformado e engrandecido, ao leitor. E ainda assim, sugerir que podemos tomar
parte ativa no nosso destino. (Petit, 2009, p. 148)

O excerto acima não poderia ser mais geográfico e mais significativo, para entender-
mos a riqueza de possibilidades permitidas pelo trabalho interdisciplinar da Geografia com
a Literatura.
119 // Sociedade e memória dos territórios

Reflexões finais

Entender-se no mundo, para agir sobre ele. Reconstruir-se, reconstituir-se, enquanto


sujeito, para, então, coletivamente, pensar ações de transformação. Esta é a experiência
geográfica que a leitura literária pode vir a proporcionar. Esta é uma contribuição impor-
tante, que o trabalho interdisciplinar consistente, planejado e profundo, pode oferecer aos

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estudantes da Escola Básica. Nesta reflexão, é essencial que estejam inseridas as diferenças
humanas, em seus diferentes aspectos no contexto das relações sociais, uma vez que têm
relações com a condição material de existência das pessoas e com as representações, que
podem oprimir ou emancipar crianças e adolescentes.
Nesse sentido, apropriada das premissas das educações antirracista e decolonial, ante-
riormente referidas, entende-se que, na sala de aula de Geografia, na escola, é fundamental
escutar, ler e debater vozes há tanto silenciadas, confrontando os saberes destas vozes com
a história única e construindo possibilidades diferentes de pensar o mundo. Ribeiro (2019,
p. 65) destaca que “[...] o privilégio social resulta em privilégio epistêmico, que deve ser
confrontado, para que a História não seja contada, apenas, pelo ponto de vista do poder”.
Dentro desta perspectiva de pensar ações transformadoras dos estudantes, não perden-
do de vista os contextos de inserção dos estudantes brasileiros, Kilomba (2019) destaca a
importância da mudança de enfoque na questão do racismo, como forma de descolonizar
o sujeito. Ela aponta que, quando colocamos certos questionamentos, como “o que o
racismo fez com você?”, por exemplo, passamos a escutar aqueles que sofrem o racismo,
direcionando a atenção para a reflexão sobre os sentimentos da pessoa agredida. Esse pro-
cesso é importante, pois é caminho para que o interlocutor se torne sujeito, novamente,
para que tome consciência da sua negritude, para que narre sua própria história, para que
se torne autor e autoridade de sua própria realidade. A partir desta riqueza de vivências, o
professor de Geografia poderá encontrar elementos para a sua prática.
Como encerramento deste texto, penso ser importante destacar que as vivências de
professora e de escritora me permitem diferentes possibilidades de atuação no contexto da
educação geográfica, uma vez que a docência e a relação com os estudantes me enriquecem,
com elementos e com ideias para a escrita dos textos literários.
A Geografia presente em meus textos, decorrente das vivências com os estudantes, é
uma possibilidade de trabalho, dentro da sala de aula. A Geografia está na forma como nos
relacionamos com o mundo e, nesse sentido, a leitura literária abre um universo enorme
de possibilidades distintas de reflexão sobre isso, tornando as atividades pedagógicas mais
ricas, transformando-as em experiências individuais/coletivas transformadoras, como
defende Petit. Nesse caminho, retomo a importância do trabalho interdisciplinar na esco-
la, por possibilitar a abordagem de temáticas, de formas diversas e conectadas, construindo
120 // Sociedade e memória dos territórios

aprendizagens mais sólidas e abrindo espaço para reflexões, que incluem argumentos mais
aprofundados e respeito a diferentes pontos de vista.

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Referências

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Adichie, C. (2017). Para educar crianças feministas: um manifesto. São Paulo: Companhia das letras. 96 p.
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Beraldi, F. B. & Ferraz, C. B. de O. (2012). Diálogo necessário entre a geografia e a literatura
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Berth, J. (2019). Empoderamento. São Paulo: Pólen. 184 p.
Brosseau, M. (2007). Geografia e Literatura. In R. L. Correa & Z. Rozendahl (orgs.). Literatura,
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Cavalcanti, L. S. (2021). Pensar pela Geografia: ensino e relevância social. Goiânia: C & A Alfa
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Suertegaray, M. (2015). Boyrá e o menino. Ilustrado por Carla Pilla. 1a ed. Porto Alegre: Compasso
Lugar-Cultura. 20 p.
121 // Sociedade e memória dos territórios

Suertegaray, M. (2015). Dandara, seus cachos e caracóis. Ilustrado por Carla Pilla. 1a ed. Porto
Alegre: Mediação. 40 p.
Suertegaray, M. (2015). No país de Anahí. Ilustrado por Martina Schreiner. 1a ed. Porto Alegre:
Edelbra. 32 p.
Suertegaray, M. (2017). Anahí: a flor que queria ser menina. Ilustrado por Carla Pilla. 1a ed. Porto
Alegre: Compasso Lugar-Cultura. 32 p.

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O mar entre Cecília Meireles e Sophia
de Mello Breyner Andresen: partilhas
espaciais e literárias através de imagens
poéticas entre Portugal e o Brasil

Valéria Cristina Pereira da Silva1

Introdução

O mar foi uma travessia, uma paisagem poética e um sentimento entronizado em


Cecília Meireles e Sophia de Mello Breyner Andresen. Essas duas autoras, a primeira bra-
sileira e a segunda portuguesa “encontraram-se” cruzando o Atlântico, encontraram-se
também no interlúdio do período histórico em que viveram, mas sobretudo, encontraram-
-se a partir da leitura e das possíveis influências da obra de Cecília Meireles na poesia de
Sophia de Mello Breyner Andresen e por último encontraram-se no encantamento com
que viram, cada qual, o outro lado do Atlântico. A Geografia que Sophia de Mello Breyner
Andresen encontra no Brasil converte-se em poesia. Do mesmo modo a paisagem sensível
que Cecília Meireles experimentara em Portugal converte-se em imagens dos lugares nos
seus poemas. Para além da travessia empreendida, a força do mar é um topos na obra dessas
poetas e os sentidos das paisagens vigoram nos poemas, assim como o sentimento do mar,
o mar sonoro e tonal, a envolvência líquida “sem que nada separe o homem do vivido”
(Andresen, 2018, p. 870). Quando cessa a travessia, a experiência “em terra” também é
cheia de sabores, de impressões, de espaços que são geradores poesias, gravam paisagens
numa articulação entre o olhar e a sensibilidade dessas escritoras, argutas observadoras e
poetas navegadoras. Desse modo, este trabalho consiste numa abordagem de geografia
literária e fenomenológica, envolvendo a premissa de uma geopoética da partilha entre as
123 // Sociedade e memória dos territórios

duas autoras, sobretudo, através das imagens literárias do mar e das paisagens vividas por
elas em seus encontros e desencontros. Serão analisados neste ensaio, da obra de Sophia de
Mello Breyner Andresen, especialmente, o livro intitulado Geografia (2010), entre outros

1
Universidade Federal de Goiás-UFG-Brasil
vpcsilva@hotmail.com

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poemas que trazem a temática do mar, assim como poemas dedicados ao Brasil e aos
poetas brasileiros lidos por Andresen. Da obra de Cecília Meireles o livro Mar Absoluto
(1983), assim como poemas e narrativas de suas viagens a Portugal, bem como entrevistas,
teses e outros textos que abordam as possíveis influências entre Sophia de Mello Breyner
Andresen e Cecília Meireles.
Para essas autoras o horizonte da viagem é permeado de encantamentos e a ação de
contemplar envolve o sujeito e a paisagem, neste movimento articulam-se a memória o
imaginário e atribuem sentido ao espaço habitado, visto e (ou) lembrado. A paisagem
aberta aos sentidos forma a geopoética, na qual cenas, imagens, tramas, histórias interrom-
pem o vazio e instauram infinitas condições de ver. A paisagem na sua dimensão onírica,
é ornada com ramagens líricas. Nesse ponto o sujeito que sonha envolve-se totalmente na
paisagem sonhada. A paisagem continua a permitir-nos contemplá-la ao infinito através
dos tempos, das imagens poéticas que são retratos líricos do visto e do vivido.

Geografia de viajantes e olhares de poetas

Trabalhar a paisagem poética nos versos de Cecília Meireles e Sophia de Mello Breyner
Andresen consiste numa escolha pelo sensível para compreender a relação entre paisagem
e poesia, e seu onirismo. Tal escolha não recai tão somente quanto à qualidade inextrin-
cável e beleza dos poemas das duas autoras, mas sobretudo pelo modo como apreendiam
os sentidos e a ambiência dos lugares de forma poética. Também devido a relação a qual
estabeleciam com os lugares em que viviam e com as paisagens longínquas que visitavam
através do amor pelas viagens. Cecília Meireles afirmava que “se pudesse conheceria o
mundo a pé”, expressando o modo como a viagem e o contato com novos lugares e paisa-
gens eram fundamentais tanto para vida como para sua criação poética. Sophia de Mello
Breyner Andresen também traduz o alimento que a viagem tem para com a escrita poética:

Gosto de ouvir o português do Brasil


Onde as palavras recuperam sua substância total
Concretas como frutos nítidas como pássaros
124 // Sociedade e memória dos territórios

Gosto de ouvir a palavra com suas sílabas todas


Sem perder um quinto de vogal
Quando o Helena Lanari dizia o “coqueiro” ele ficava muito mais vegetal
(Andresen, 2010, p.81)

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Tudo que é experimentado torna-se matéria de poesia entre o imaginário e a memória. Na
percepção da sonoridade da língua, no poema de Andresen (2010), um espaço verdejante, nas
suas palavras uma paisagem com coqueiros, pássaros, frutos de sentidos. Não é uma paisagem
da descrição, mas uma paisagem da profundidade do ser entre a paisagem vista e lembrada,
uma paisagem ontológica na sua inteireza. Essa mesma tonalidade de imagens que perduram
em formas associativas de ver o mundo também está presente em Meireles:

O mar é só mar, desprovido de apegos,


matando-se e recuperando-se,
correndo como um touro azul por sua própria sombra,
e arremetendo com bravura contra ninguém,
e sendo depois a pura sombra de si mesmo,
por si mesmo vencido. É o seu grande exercício [...]

Não é apenas este mar que reboa nas minhas vidraças,


mas outro, que se parece com ele
como se parecem os vultos dos sonhos dormidos.
E entre água e estrela estudo a solidão.

E recordo minha herança de cordas e âncoras,


e encontro tudo sobre-humano.
E este mar visível levanta para mim
uma face espantosa.
(Meireles, 1983, p.12)

As paisagens oníricas emergem nos poemas próprias de um espaço profundo topofílico


como apresenta Bachelard (1993). Aparece com frequência, de acordo com Santi (1999),
elementos da paisagem: nuvens, estrelas, o mar. É uma paisagem vista de uma perspectiva
íntima, profunda, etérea, diáfana, mas a poeta está no mar, navega. Integra-se na paisagem
que emoldura: uma moldura de sonhos para ver o mundo. A poesia intemporal de Cecília
ultrapassa o cotidiano, dá vida as paisagens e as reconstitui na sua essência visiva: traz vo-
125 // Sociedade e memória dos territórios

lumes, cores, formas e a põe em movimento como nos fragmentos de Tarde amarela e azul:

Viajo entre poços cavados na terra seca


Na amarela terra seca
Poços e poços de um lado e de outro

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Saris amarelos e azuis
homens envoltos em velhos panos amarelados,
crianças morenas e dóceis
tudo se mistura aos veneráveis bois
que sobem e descem em redor de poços

Dourados Campos Solitários,


Longas e longas extensões cor de mostarda
são flores?
Lua do crepúsculo abrindo no céu jardins aéreos,
nuvens de opalas delicadas

Poços e poços. E mulheres carregando ramos ainda com folhas,


árvores caminhantes ao longo da tarde silenciosa.
Passeiam os pavões, reluzentes e felizes
Caminham bufálos mansos, de chifres encaracolados.
Caminham os búfalos ao lado dos homens: uma só família.
E os ruivos camelos aparecem como colinas levantando-se,
e passam pela última claridade do crepúsculo.
Todas as coisas do mundo:
homens, flores, animais, água e céu... (Meireles, 2011, p. 101).

Rangel (2011) identifica em Sophia de Mello Breyner Andresen também uma geografia
visual, no mundo produzido pelas palavras e que funciona como a imagética da fotografia,
é como se suas palavras soletrassem imagens, como observamos:

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,


A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho,
Que momentos há em que eu suponho
126 // Sociedade e memória dos territórios

Seres um milagre criado para mim.


(Andresen, 2018, p. 132)

A minha vida é o mar o abril a rua


O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta

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A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro


Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações


Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento
A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto [...]
(Andressen, 2018, p. 920)

Essa mesma inteireza poética no trato com a paisagem, a subjetividade e consigo


mesma encontramos também em Cecília Meireles. Podemos perceber como observavam
as paisagens e as “fotografavam” poeticamente nos seus versos. Em ambas o sentimento e
o sentido de existir se fundem ao espaço. Há densidades nesses poemas, um mundo outro
que está sendo observado: a natureza e a cultura com suas cores e suas singularidades, a
tonalidade poética que é impressa a essa contemplação, a capacidade de apreender miríades,
ver cores, ouvir sons, perceber detalhes, escapar habilmente do lugar comum, apreender
essências do que é observado e trabalhar essas imagens na lembrança.
Russell (2017) disserta sobre como Sophia de Mello Breyner Andresen leu vários poetas
e, sobretudo, Cecília Meireles, além de destacar o modo como Andresen fora influenciada
por ela:
O capítulo “Brasil ou do outro lado do mar”, do livro Geografia, em que estão
presentes os poemas “Descobrimento”, “Manuel Bandeira”, “Brasília” e “Poema
de Helena Lanari”; além de outros, como “Carta de Natal a Murilo Mendes”, do
livro O nome das coisas, são exemplos. Porém, esse interesse não é visto apenas
nos poemas, mas também nos ensaios, como é o intitulado “A poesia de Cecília
Meireles”. Nesse texto, reflexões acerca da produção escrita da autora brasileira
são realizadas de modo bastante significativo no que diz respeito, sobretudo, à
127 // Sociedade e memória dos territórios

constatação da importância que a obra de Cecília Meireles teve para a de Sophia


Andresen. (Russell, 2017, p 42).

Esse olhar para o mundo sem que nada separe o ser do vivido parece ser a grande partilha
entre as duas poetas navegadoras, a forma de sentir e existir que encontramos nas duas auto-
ras viajantes parecem fazer parte da mesma flor d’água que as liga e um continente à outro.

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Um mundo sensorial produzido pelas palavras

Nos versos de Cecília a tônica destas descrições poéticas: “Ando à procura do espaço
para o desenho da vida” (Meireles, 2002, p.30). Tal verso tem, simetricamente, correspon-
dência com o verso de Andresen “Sem que nada separe o homem do vivido” (Andresen,
2018, p. 870). Desse modo, espaços sempre cantados, descritos e plenos de imagens, como
no poema Madrugada na Aldeia. De acordo com Goldstein (2002), neste poema Cecília
Meireles retratou a aldeia natal de seu marido, Moledo de Penajóia, em Portugal, numa
viagem realizada em 1934.

Madrugada na aldeia nevosa,


Com as glicíneas escorrendo orvalho,
Os figos prateados de orvalho
As uvas multiplicadas em orvalho,
As últimas uvas miraculosas

O silêncio está sentado pelos corredores,


Encostado às paredes grossas,
De sentinela.

E em cada quarto os cobertores peludos envolvem o sono:


Poderosos animais benfazejos, encarnados e negros.

Antes que um sol luarento


Dissolva as frias vidraças,
E o calor da cozinha perfume a casa
Com lembrança das árvores ardendo,
A velhinha do leite de cabra desce as pedras da rua
Antiquíssima, antiquíssima,
E o pescador oferece aos recém-acordados
Os translúcidos peixes,
128 // Sociedade e memória dos territórios

Que ainda se movem, procurando o rio (Meireles, 1983, p. 87)

O caráter descritivo vai delineando a aldeia no tempo e no espaço e apresentando a


paisagem do amanhecer no vilarejo e a harmonia dos citadinos com a natureza e o cotidiano.
Goldstein (2002) apresenta que a imagem das uvas e do orvalho seria uma indicação cli-
mática e espacial apontando a colheita das frutas no final do outono europeu, pouco antes

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da chegada do inverno. “A paredes grossas” remetem a uma casa antiga, cheias histórias
e de memória. As paisagens trazidas por Cecília envolvem os cinco sentidos percepções
visuais e táteis e um intenso efeito cromático:
Um efeito de plasticidade cromática resulta da alternância e da sucessão de
cores: a primeira estrofe é marcada pelo tom prata da névoa e do orvalho, na segunda
os corredores sugerem penumbra e ausência de cor; na terceira, os tons fortes dos
cobertores se sobressaem, num contraste indicador de mudança: a chegada da luz do
dia... Na quarta estrofe é introduzido o fogo...também aqui é marcante a sinestesia,
combinando tato, olfato e visão...(Goldstein, 2002, p.57)

Os vínculos entre o homem e a natureza também são celebrados nesta poesia descritiva de
Cecília: as frutas, o orvalho, o outono, as árvores dotadas de lembranças. Goldstein (2002) re-
força essa sugestão da aliança entre o homem e a natureza presente nas imagens de Madrugada
na Aldeia e o modo como essa aliança vai se aprofundando gradativamente, a pessoas que dor-
mem ao ritmo da natureza e acordam de madrugada com os primeiros raios de luz e a poeta
fecha o retrato da antiga vila com a bela imagem do pescador, oferecendo aos recém acordados,
os translúcidos peixes. Vemos as escamas brilhantes dos peixes batendo-se... o brilho, o frescor
o aconchego das suas impressões são paisagens poéticas que também podemos ver e sentir.
Sophia Andresen, assim como, Cecília Meireles estabeleceu com os lugares e as paisa-
gens vividas algo que resulta no trabalho cuidadoso do olhar e na apreensão dos sentidos.
De certo modo, a forma como estas autoras relacionaram-se com os lugares e paisagens
visitadas indica que a experiência é fundamental para nutrir a escrita literária.

A noite e a casa
A noite reúne a casa em seu silêncio
Desde o alicerce desde o fundamento
Até à flor imóvel
Apenas se o bater o relógio do tempo
A noite reúne a casa seu destino
Nada agora se dispersa se divide
Tudo está como o cipreste atento
129 // Sociedade e memória dos territórios

O vazio caminha em seus espaços vivos


(Andresen, 2018, p. 525)

Este poema A noite e a Casa de Andresen alinha-se a mesma sensibilidade de Madrugada


Na Aldeia de Meireles. Podemos dizer que utilizam da mesma metodologia do olhar para
captar as qualidades do espaço no horizonte da percepção. Na primeira a casa está povoada

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de seres, na segunda a casa é o vazio da noite. Nas duas uma ambiência que constitui a sen-
sibilidade do olhar para o qual o resultado são impressões e registros que se transformam
em narrativas pungentes, perenes e eternas.
Carregadas de poesia tem em si relacionadas a percepção dos lugares, somadas a
imaginação e a memória. Conforme Prada (2002) a poética de Cecília Meireles, por
exemplo, tinha uma forma associativa com a qual ela olhava o mundo e o retinha na
memória, a partir daí articulava o seu modo de olhar e apreender o vivido “tudo quanto
naquele tempo vi, ouvi, toquei, senti, perdura em mim com uma intensidade poética
inextinguível... o mundo visto através de um prisma de lustre.” (Meireles, apud. Prada,
2002, p. 29).
Podemos dizer que há um repertório mnemónico-imaginário associado aos sentidos
que transforma o contato com o mundo. Um mundo prismático, multifacetado que brilha
e oscila cores conforme a sensibilidade. Tais autoras tinham plena consciência da qualidade
do olhar e da presença do verdadeiro viajante nos lugares. Essa percepção oferece, inclusive,
uma bagagem simbólica para fixar os lugares e são fontes de encontro com o outro, de
inspiração, de conhecimentos e reconhecimentos e também de doação.
Os poemas trazem um lugar, uma paisagem e são construídos na articulação entre per-
cepção, imaginário e memória; paisagem e lugar, espaço e tempo e a tessitura inextrincável
destes elementos e estas impressões são entrecruzadas nas poéticas de Cecília e Sophia.

Entre o mar e olhar: o feixe de sentidos do espaço

Busco de modo relacional e sintético apresentar, um pouco que seja, a poética do


olhar e o sentido da poética do espaço presentes nos poemas de Cecília Meireles e Sophia
de Mello Breyner Andresen, autoras que trazem de modo profundo a experiência, o es-
panto e o encantamento do mundo. Essas autoras reúnem o poético e o geográfico através
da viagem e se “encontram” através da poesia e da narrativa dos lugares: Cecília e Sophia
tem em comum a viagem e, por meio desta, de maneira muito significante a paisagem
do mar que está presente na obra das duas autoras. “No universo de Sophia, trata-se da
aglutinação da sua própria viagem ao espaço do mediterrâneo que povoa a obra, do mito
130 // Sociedade e memória dos territórios

do eterno retorno e do rito de passagem [...]”(Langrouva, 2004, p.202). Também confor-


me o diário de bordo, Meireles (2015), esta realizou a sua primeira viagem à Portugal de
navio e o mar tornou-se um tema para ela, tanto como paisagem, quanto como metáfora
da eternidade e do absoluto. Dedicou muitos poemas e crônicas às viagens e ao mar,
tal qual vemos em Meireles (1983, 1999, 2016a, 2016b). Assim, a relação de Sophia
e Cecília com a viagem e com o mar são igualmente profundas. Conforme Langrouva

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(2004), Sophia, tem o mar como seu próprio espaço, viajou para o Mediterrâneo e o
Atlântico. Assim o mar tanto sintetiza como está entronizado na poética do espaço e da
viagem ao longo da obra de Sophia. Desse modo, “[…] pela presença permanente do mar
com todos os seus mundos, vivências, metaforizações e alegorizações, viagens, espantos
e esperas.” (Langrouva, 2001, p.177). No registro poético de sua viagem ao Brasil2 nos
anos de 1960, Sophia também encontra outros modo de relacionar-se com o mar e com
o outro. Cecília e Sophia, cada qual com seu modo de olhar e registrar, escrevem sobre as
impressões que tiveram. Comparar esses textos poéticos que tem a viagem e o sentido dos
lugares como foco é também um modo de aproximar Sophia Andresen e Cecília Meireles,
a viagem e a literatura. Descortinar uma geografia.

Um oceano de músculos verdes


Um ídolo de muitos braços como um polvo
Caos incorruptível que irrompe
E tumulto ordenado
Bailarino contorcido
Em redor dos navios esticados [...]

O mar tornou-se de repente muito novo e muito antigo


Para mostrar as praias
E um povo
De homens recém-criados ainda cor de barro
Ainda nus ainda deslumbrados (Andresen, 2010, p. 77)

Nesse poema Descobrimento o mar que se atravessa é também aquele da história da


colonização, ao mesmo tempo novo para a navegadora, mas também muito antigo. Suas
imagens contam uma história e colocam em perspectiva poética uma cena tantas vezes
vista e repetida, porque toda viagem nova é uma viagem de descobrimento. Esse mar verde
que se atravessa para encontrar do outro lado uma mesma língua em outra cultura. Se no
caso de Sophia essa viagem significava descobrimento, no caso de Cecília o mar verde que
lhe penetrava o olhar e atingia a alma significou redescoberta.
131 // Sociedade e memória dos territórios

A poesia de Cecília segue um movimento em Mar Absoluto, este se converte em ima-


gens poéticas, como ondas e barcos, transmuta-se em corais e pérolas, um mundo de seres
e ao mesmo tempo a vastidão, o desconhecido. Esse mar absoluto e poético de Cecília,

2
Sophia de Mello Breyner Andresen em: http://purl.pt/19841/1/1960/1960-2.html. Acesso em 07 de julho
de 2015

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facilmente, se converte em metáforas, para nós, do conhecimento e do saber. A natureza
na poética de Cecília é plástica, fluída, disponível, sem exigências de princípio e fim.
Descobrir é também içar velas, navegar e apreender num espaço fluido e cada vez mais
líquido e essa mesma natureza também não se apresenta em Sophia?
Ninguém melhor do que poetas-viajantes para escavarem a fundo os sentidos que
os espaços evocam na alma. Não carregam, porém, na bagagem tão somente a paisagem
apreendida, mas toda palavra que a antecedeu, que as nutriu, antes que esse fosse um ter-
ritório da experiência, o destino almejado era já um vivido poético, como expresso através
do poema dedicado a Manoel Bandeira:

Este poeta está


Do outro lado do mar
Mas reconheço a sua voz há muitos anos
E digo ao silêncio os seus versos devagar [...]

Estes poemas caminharam comigo e com a brisa


Nos passados campos de minha juventude
Estes poemas poisaram a sua mão sobre o meu ombro
E foram parte do tempo respirado (Andresen, 2010, p.78-79)

Manoel Bandeira, como Cecília Meireles, já estava no imaginário literário de Sophia


de Mello Breyner Andresen tal como aponta a investigação de Russell:
Um breve olhar para a vida de artista de Cecília Meireles nos mostra que as idas
da autora a Portugal eram frequentes, fato que era um facilitador para a divulga-
ção de seus textos, e, além disso, as primeiras publicações de seus livros de poemas
foram anteriores as de Sophia. Esta, por sua vez, interagiu, evidentemente, com os
poemas daquela, interagiu de modo a apropriar-se de versos e títulos, por exemplo.
O poema “Mar Absoluto”, de Cecília Meireles, por exemplo, certamente, inspirou o
livro intitulado Mar novo, de Sophia de Mello Breyner, vide a marcante relação entre
as palavras e os temas. Esse poema, aliás, é citado e analisado no ensaio intitulado
“A poesia de Cecília Meireles”. (Russell, 2017, p 43).
132 // Sociedade e memória dos territórios

Em 1958 Sophia de Mello Breyner Andresen escreve o ensaio sobre Cecília Meireles e
vários estudiosos e críticos apontam a influência da obra Cecília sobre a poesia de Sophia,
e este fora um encontro literário feliz que significou, em nossa análise, uma poética plena
do espaço vivido, grafada de paisagens que conservam sempre uma novidade ao olhar de
quem busca descortiná-las, pois os sentidos permanecem vivos em formas de palavras.

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Contudo, na vida esse encontro entre as duas escritoras de fato não aconteceu, como deixou
registrado em entrevista a própria Sophia:
Foi o primeiro ensaio que eu fiz. Sabe, eu nessa época achava que não sabia
escrever em prosa. Eu tinha uma grande admiração pela Cecília, realmente. Há poe-
mas da Cecília que eu continuo a saber de cor. “Foste tu que ensinaste aos homens
que havia tempo e para te medir se inventaram as horas.” [...] Aconteceu uma coisa,
que não foi um encontro, foi mais um desencontro, porque nesse tempo eu estava
muito metida nas lutas contra o salazarismo, e a Cecília estava em casa de um escultor
que era muito boa pessoa, mas tinha uma mulher -ela já deve ter morrido- que lhe
disse que eu era uma perigosa, e isso fez um bocado de confusão. Eu consegui... orga-
nizamos com os melhores escritores portugueses, com o Casais, o Jorge de Sena etc.,
uma sessão de homenagem à Cecília. E a Cecília não apareceu. E depois soubemos
que lhe tinham dito que éramos uma organização de comunistas. E eu fui à sessão e
li os poemas da Cecília com o mesmo entusiasmo. Quando daí a dois dias o amigo
da Cecília que lá estava disse a ela que a sessão tinha sido muito bonita, a Cecília
ficou arrependidíssima, porque tinha feito uma figura pouco simpática. A Cecília
era muito bonita. Mas era uma mulher muito dominada. [...]mas deixe-me contar o
fim da história. Então, daí a dois dias, dela recebi um grande cacho de uvas, pinhas
do Natal e flores. Você sabe que eu nunca agradeci? Mas todos os Natais eu pus no
presépio as pinhas que a Cecília me deu. Penso que ela sentiu um certo arrependi-
mento. (Andresen, Sophia de Mello Breyner, Folha de São Paulo, Entrevista feita por
João Almino em 26/09/1999).

A parte desse desencontro a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen carrega


marcas indeléveis dessa influência. Como ela disse em seu ensaio sobre Cecília: “A beleza
e a verdade dum poema de Cecília Meireles têm que ser vividas imediatamente e sem
explicações, como a beleza e a verdade de uma rosa.” (Andresen, 1958, In: Russell, 2017,
p. 122).
A objectividade de Cecília Meireles está na forma real e exacta em que ela fala de
estrelas, ondas e árvores. Está naquelas imagens dos seus poemas que nos mostram
as coisas tais como elas são em si, na sua forma própria e na sua própria natureza.
133 // Sociedade e memória dos territórios

Cecília Meireles é um poeta objetivo porque nos diz que o mar é um “cavalo épico”
e uma “anêmona suave”. Porque é um poeta que vê as coisas e não um poeta que
as sonha. Porque quando ela nos fala do “vento liso”, da “clássica luz de Maio”, do
“desequilíbrio dos oceanos”, a natureza nos mostra aquela sua face divina que o
homem não lhe acrescenta pois ela a possui interiormente. (Andresen, 1958, In:
Russell, 2017, p. 125).

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Para Sophia de Mello Breyner Andresen “só em poesia se pode falar de poesia” ela
observou em Cecília o eco de Camões que ela mesma o tinha e com qual aprendera outras
lições do mar e, sobretudo, no modo de ver as coisas para recolher nas praias poéticas os
seus próprios búzios, espaços e brisas. Marcadamente, observamos a presença de uma pai-
sagem que se desenha por dentro do ser dessas poetas e participam da aventura de existir.

Escrever o poema como um boi lavra o campo


Sem que tropece no metro o pensamento
Sem que nada seja reduzido ou exilado
Sem que nada separe o homem do vivido
(Andresen, 2018, p. 870)

Considerações Finais

A viagem da poesia, suas descobertas e redescobertas sinalizam um outro vivido. Entre


o afeto e a surpresa, entre encantamento e o espanto podemos adentrar as paisagens de
Cecília Meireles e Sophia de Mello Breyner Andresen, apreender deste mar e desta travessia,
saborear o gosto e sentir o perfume dos lugares reunir em instantâneos poéticos aquilo que
só experimenta uma vez.
Quem percorre a obra de Cecília Meireles e Sophia de Mello Breyner Andresen
depara-se com uma outra forma de apreensão do mundo com a qual podemos aprender
fenomenologicamente. Na poesia dessas autoras, o espaço vivido está sendo descortinado,
não apenas numa descrição, mas na reflexão profunda: a grande abertura para o exterior,
nos significados da travessia, do mar, o mar como trajeto e como imagem de si que coin-
cide com longas viagens e temporadas por espaços figurados de um olhar caleidoscópico.
O tema da viagem é também o tema da própria existência e o feixe de sentidos colhidos na
travessia convidando-nos também a atravessar o espaço e descobrir o outro.
O motivo da viagem, seu universo sempre movente, como analisa Moraes (2006),
surge cadentemente nos versos, imagens sem sossego, ondas e embarcações a exprimir a
movência e a instabilidade da própria existência. Toda viagem implica em colheitas no
134 // Sociedade e memória dos territórios

caminho e erguer a vista na plenitude de olhar o horizonte. Tais autoras colocam ao nosso
alcance espaço-tempo com a sensibilidade e argúcia que só a poesia pode conter. Estar
no mundo em deslocamento, apreendendo, juntando, refletindo. Carrega em sua viagem
existencial a lanterna da poesia que se reverte para nós em forma de tradução do sentimento
do mundo. Paisagens traduzidas pela poesia que implicam em cartões-postais simbólicos e
abertos, deixando-nos pistas para que pensemos nossa própria viagem existencial. Em cada

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poema, que elas nos devolvem a paisagem mirada, tem muito mais do que um instante do
mundo, um lugar fragmentado no tempo, tem a significância do aprendizado a ser transmitido
e o silêncio guardado junto com a chave.
Fotografias de sentidos são o equivalente de cada verso-imagem, em que Cecília Meireles
e Sophia de Mello Breyner Andresen, conscientes de suas fronteiras, perdas, esquecimentos
e lembranças nos dão a ver.
O imenso mar é a consciência de que espaço-tempo e as subjetividades da travessia são
a mesma coisa. Não deveríamos seguir o mesmo caminho? Todas as paisagens que reco-
lhemos não são um pouco de nós mesmos? Os passos e percursos desse encontro poético
mostra-nos que elas souberam vislumbrar o lustre do mundo e multiplicar os seus reflexos
de sentidos na sala iluminada do tempo.

Referências

Almino, J. (1999, September 26). A literatura da cisma. Folha de S. Paulo. https://www1.folha.uol.


com.br/fsp/mais/fs2609199907.htm
Andresen, S. d. M. B. (2010). Geografia. Caminho.
Andresen, S. d. M. B. (2018). Obra Poética. Tinta da China.
Bachelard, G. (1993). A poética do espaço. Martins Fontes.
Goldstein, N. S. (2002, March). Uma leitura de Madrugada na Aldeia. D. O. Leitura, 20(3), 54-58.
Langrouva, H. C. (2004). De Homero a Sophia: viagens e poéticas. Angelus Novus.
Meireles, C. (1982). Viagem e vaga música. Nova Fronteira.
Meireles, C. (1983). Mar Absoluto/Retrato Natural. Nova Fronteira.
Meireles, C. (1983). Mar Absoluto/Retrato Natural. Nova Fronteira.
Meireles, C. (1999). Crônica de Viagem 2. Nova Fronteira.
Meireles, C. (2002). Melhores poemas uma antologia poética. Global.
Meireles, C. (2011). Cecília de bolso: uma antologia poética (1st ed.). LP&M.
Meireles, C. (2015). Diário de Bordo. Ilustrações de Fernando Correia Dias. Global.
Meireles, C. (2016a). Crônica de Viagem 1. Global.
Meireles, C. (2016b). Crônica de Viagem 3. Global.
Moraes, M. A. d. (2006). Três Marias de Cecília. Moderna.
Prada, C. (2002, May). O mundo visto através do prisma de um lustre. D. O. Leitura, 20(5), 27-33.
135 // Sociedade e memória dos territórios

RAngel, I. A. (2011). A Geografia Visual de Sophia [Doctoral dissertation, Faculdade de Belas


Artes, Universidade do Porto-PT]. https://hdl.handle.net/10216/67719
Russell, E. S. (2017). Sophia De Mello Breyner Andresen, Leitora De Poetas [Doctoral dissertation,
Instituto De Letras, Universidade Federal Fluminense]. https://app.uff.br/riuff/handle/1/3683
Santi, A. (1999). A casa e seus componentes: uma leitura da obra de Cecília Meireles à luz da
“poética do espaço”de Bahcelard. Letras Rev. Do Instituto de letras da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas, 18(1 e 2), 215-233.

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Toponímia, identidade e processo de
colonização do estado da Paraíba-Brasil

Inocencio de Oliveira Borges Neto1


Dirce Maria Antunes Suertegaray2
Rui Jacinto3
Doralice Sátyro Maia4
Bartolomeu Israel de Souza5
Carlos Augusto de Amorim Cardoso6

Introdução

O objetivo expresso neste texto é refletir, a partir da designação dos lugares, sobre a
formação do espaço geográfico, enfatizando a amalgama das relações deste processo com
as características naturais e com a ocupação populacional. Constitui uma leitura dos mu-
nicípios que compõem o estado da Paraíba-Brasil, a partir da decifração dos significados
toponímicos. A análise foi construída a partir de um ensaio de classificação elaborado para
esta finalidade cujos eixos de análise dizem respeito: ao povoamento original; manifesto
nos topônimos indígenas e seus significados; as denominações, portuguesas e africanas,
considerando, nomes de pessoas, de santos, ou localidades; aos elementos primordiais de
ocupação. Dito de outra forma, remetem à matriz primordial e a qualitativos identitários,
137 // Sociedade e memória dos territórios

1
Universidade Federal do Paraná (UFPR-BR)
iobngpb@gmail.com
2
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Federal da Paraíba (UFRGS/UFPB-BR)
3
Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território e Centro de Estudos Ibéricos
(CEGOT/CEI-PT)
4
Universidade Federal da Paraíba (UFPB-BR)
5
Universidade Federal da Paraíba (UFPB-BR)
6
Universidade Federal da Paraíba (UFPB-BR)

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 137 17/06/2022 18:05:54


ou seja, relacionados ao modo incipiente de formação do povoamento, associado a condições
naturais, a particularidades e a especificidades locais. 
Após a classificação dos 223 municípios paraibanos, procedeu-se à identificação do
significado de suas nomeações, em particular, aos termos indígenas em sua maioria asso-
ciados às características naturais e, à busca por dados, referentes ao processo de ocupação
destas terras, em diferentes fases do processo de colonização/ocupação. 
Na continuidade, foram elaborados mapas de distribuição desses municípios, tomando
como referência: a compartimentação do relevo; a cobertura vegetal original; a hidrografia; e,
a divisão regional (fitogeográfica) do estado. Um estudo toponímico, como o aqui expres-
so, permite considerar diferentes dimensões da análise geográfica, o sentido das palavras,
sobretudo de origem indígena, indicam a realidade inseparável entre natureza e sociedade;
o processo histórico, como procedimento de compreensão do espaço geográfico; os con-
flitos territoriais, no que se referem à posse da natureza e dos seus recursos. Todos estes
processos são plasmados na originária denominação dos lugares.
Com base em uma compreensão histórico-espacial neste estudo, se busca analisar a
toponímia dos municípios do estado da Paraíba-Brasil7.
A toponímia acaba por ser uma sugestiva forma de exprimir a semiótica e a semân-
tica do território. O alto grau de resistência dos topônimos em desaparecer leva-nos,
pelas suas próprias marcas, ao entendimento da construção do espaço humanizado,
pois estes guardam uma relação com o tempo lento da ocupação e da evolução do ter-
ritório e, portanto, com a comunidade e com as raízes culturais, o que equivale a dizer
que a toponímia é uma herança de indubitável significado patrimonial, cujas marcas,
ricas e expressivas, permanecem na paisagem (Suertegaray et al., 2020, p. 18).

Os nomes de muitos lugares que encontramos no Brasil mimetizam os que ocorrem


em diferentes regiões de Portugal Continental, como acontece com outros topónimos que
remetem para os nomes de pessoas ou funções que certos lugares desempenharam na fase pri-
mordial do povoamento. O tempo em que se desenrolou a colonização e os vários contextos
sociogeográficos influenciaram o processo como a toponímia tatuou os territórios coloniais
portugueses. Ela é, em certa medida, tanto o reflexo do tempo em que a colonização ocorreu
como do espaço onde se implantou a diáspora portuguesa nos diferentes continentes.
Embora conheçam um paradigma similar e os contornos sejam relativamente próxi-
138 // Sociedade e memória dos territórios

mos, a denominação dos lugares observam variantes e padrões diversos no caso do Brasil
7
Num comparativo entre a denominação dos lugares pode-se dizer, a partir de uma leitura prévia, que, tanto
para um português, quanto aos brasileiros, em relação à denominação dos lugares é semelhante à forma
como se manifestam com a língua, em geral, e com o nome das pessoas, em particular. Constituído uma
expressão de criatividade, que parece ir além da gramática e doutros cânones, que impõem normas e padrões
mais restritos (Suertegaray et al., 2020).

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 138 17/06/2022 18:05:54


ou outras colônias, sobretudo Angola e Moçambique, as de maior dimensão, localizadas
na África. Apesar do meio geográfico, dos contextos naturais e dos recursos locais, mais ou
menos propícios ao desenvolvimento da atividade econômica quase sempre extrativista,
tenham sido determinantes, a atribuição dos nomes dos lugares não se pode desligar de
aspectos mais intangíveis, sejam de natureza simbólica, ideológica ou decorrente duma
política apostada em afirmar o domínio territorial, sem negligenciar o peso da religião na
hora de dar o nome a um determinado lugar.
O caso brasileiro é, contudo, relativamente distinto por razões históricas, pois a declara-
ção da independência foi relativamente precoce (1822). Nesta altura ainda não se tinha ve-
rificado a corrida à ocupação dos sertões africanos, que só iria acontecer décadas mais tarde.
As grandes viagens de exploração para a África destinadas a ocupar o interior dos territórios
africanos sob domínio português vão ocorrer sob instigação da Sociedade de Geografia de
Lisboa, criada em 1875, e a pressão geopolítica da partilha de África pelas potências euro-
peias, desenhada na Conferência de Berlim (1885). O grau de cúmplice da geografia colonial
neste processo foi elevado por fornecer suporte técnico e científico, além de mentora e legi-
timadora do exercício de poder que conduziu ao domínio e efetiva ocupação do território.
A cartografia não só continuou como veio aprofundar este exercício ao mostrar na práti-
ca, como afirmou Yves Lacoste (1976) em seu livro A geografia serve antes de mais nada para
fazer a guerra, não só real e ideológica como simbólica. Embora a preocupação fundamental
dos cartógrafos que desbravaram os espaços coloniais fosse colocar fronteiras e assinalar rotas
e lugares que permitissem definir eixos de penetração para facilitar a ocupação e o domínio
do território, não é despiciendo o poder simbólico ao seu alcance quando decidiam inscrever
num mapa certos nomes. Ao colocar um dado nome num mapa, fossem reais, inventados
ou fantasiosos, dizendo respeito a lugares ou a qualquer outra referência, estavam a assinalar
e a apagar, no mesmo momento, um eventual nome pré-existente. Os mapas dos territórios
colonizados são, por esta razão e ao mesmo tempo, o início dum novo mundo e o cemitério
de muitos nomes nativos que foram, assim erradicados, extintos. Estes mapas pioneiros, ao
votarem ao esquecimento o pré-existente, podem ser lidos como a cartografia duma ausência
onde se consuma uma espécie de genocídio toponímico. Estes mapas, como as fotografias,
valem tanto pelo que mostram como pelo que escondem, pelo que apagaram.
139 // Sociedade e memória dos territórios

Pra ler a geografia


Precisa ter atenção
Nem tudo lá é sertão
Na sua cartografia
Dissemelhanças
Damião de Lima (Damlima)

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 139 17/06/2022 18:05:54


O presente ensaio não pode esquecer esta dimensão ao tentar olhar para as camadas mais
profundas da estratigrafia toponímica que só pode vir á luz do dia através duma arqueologia
da ausência que se encontra escondida nos subterrâneos da memória. Desocultar essa topo-
nímia começa por olhar para os nomes dos lugares de raiz indígena, onde está mais presente
uma dimensão telúrica representativa de uma cosmovisão mais próxima da topofilia.
Ao tomar como base da reflexão os 223 lugares sedes de município do estado da Paraíba
também enferma do mesmo problema de ocultar a riqueza de informação que se esconde
nos lugares que não estão representados ou se escondem na toponímia. As limitações do mé-
todo seguido neste trabalho está desde logo patente quando se analisam os topónimos com
nomes semelhantes a lugares que encontramos em Portugal. Apenas três sedes de concelho
têm nomes de lugares portugueses: Alhandra, Belém (uma outra Belém do Brejo do Cruz) e
Pombal; Bayeux, nome estrangeiro, recebeu esta designação em 1944, que foi sugerido pelo
então jornalista Assis Chateaubriand ao interventor do estado na época, Rui Carneiro, que
modificou com o intuito de homenagear à primeira cidade francesa (de mesmo nome) a ser
libertada do poder nazista pelos aliados durante a Segunda Guerra Mundial8.
A razão para que tal aconteça já a teria sido adiantada em 1880 por Oliveira Martins
quando se referiu nestes termos ao processo de colonização da Paraíba:
A exploração do littoral fôra, de 580 a 640, seguindo para o norte, desde a
Parahyba (585) a Sergige (590), ao Rio Grande do Norte (599), ao Ceará (610), ao
Maranhão (615), ao Pará (616). A crise da ocupação hollandeza, isolando o Estado
do Maranhão do governo da Bahia, embaraçou por annos o desenvolvimento do
extremo norte do Brazil, por cujos sertões agora se alongam os estabelecimentos por-
tuguezes” (1718-9 - Fundação de Campo-Maior e Parnaiba; Jeromenha, Valença,
Marvão. Explorações fluviaes provocadas pelo desenvolvimento das minas no sul)
O desenvolvimento que accusam a segunda metade do XVII seculo e a primeira
do seguinte, adquire uma intensidade maior ainda durante o governo do marquez
de Pombal que mandou reger o Estado do Maranhão a seu irmão Francisco Xavier
de Mendonça. Numerosas colonias vão do reino fundar povoações n’essa região do
Brazil, e, ao que parece dos nomes dados a essas cidades, são alemtejanos que as
fundam. Em 757 já o districto do rio Negro, a futura provincia do Amazonas, tem
importância bastante para ser erigido em governo separado” (Maranhão- Vinhaes,
140 // Sociedade e memória dos territórios

Vianna (57) ; Guimarães, Tutoya (58); Amazonas - Moura, Thomar (58); Serpa,
Olivença, Ega (59) ; R. g. do norte - Estremoz (60); Espirito Santo- Almeida (60);
Benavente (61}; Pará - Mazagão (65) ; Piauhy- Amarante (66); Bahia - Villa Viçosa
(68) ; Porto Seguro - Alcobaça (72). Comparem-se os nomes das terras do norte,

8
Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pb/bayeux/historico>. Acesso em: Out. 2021.

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reproduzidos de Portugal, com os das do sul, indígenas; e por isto só se verá como
temos n’um lado um desenvolvimento colonial, no outro natural ou espontâneo
(Oliveira Martins, 1880, p. 73-74)9.

Uma simples observação no Google Maps permite ver outros lugares escondidos
pela escala de análise que os esconde e, assim, retira detalhe a uma análise mais fina.
Encontramos, então, além dos três atrás referidos, nomes como: Rio Tinto; Torres; Olho
d’Água Branca; Pocinhos; Teixeira; Salgueiro; Jardim; Viveiro; Várzea; Pedra Lavrada.

Por isso, pra descrever


Tudo o que você vai ver
Necessita de cuidado...
Toponímia é acuidade
Há muita diversidade
Nas regiões do Estado
Dissemelhanças
Damião de Lima (Damlima)

Esta análise permite considerar que nomes vinculados a categoria Elementos funda-
mentais do povoamento primordial indicando nomes aos municípios: Feira Nova; Alcantil;
Guarita; Recanto; Estiva Velha; Curral de Cima; Logradouro, ou ainda, aqueles classifi-
cados como O paraíso na terra/sentimento (espírito do lugar) como as cidades de: Chã de
Alegria; Mundo Novo; Liberdade; Soledade; e, Esperança. Nova Olinda; Buenos Aires;
Boa Vista dos Nunes; e, Boa Vista, expressam sob nome portugueses a ocupação associada
ao sentido topofílico a esses lugares atribuídos.

Toponímia e leitura do território

O sentido dado à toponímia está vinculado originalmente à linguística e associa-se à


interpretação do significado do nome atribuído a um lugar. Conforme Houaiss (2001), constitui:
141 // Sociedade e memória dos territórios

9
A propósito de “A crise no Ultramar”: “Os governos coloniaes não descansavam na mira da exploração
do interior do Brazil; e o valle do Amazonas, com as suas vastidões infinitas, tentava constantemente a
insaciavel ambição dos dominadores. Se o estabelecimento recente do Rio de Janeiro não merecia ainda o
nome de colonia, no fim do XVI seculo; se outro tanto succedia aos do norte de Pernambuco, Itamaracá e
na Parahyba; e se as colonias marítimas da província de S. Paulo (Santos, S. Vicente) declinavam, porque
essa região desenvolvia-se agricolamente;- o progesso era evidente em todas as colonias littoraes, cujo, centro
foram Pernambuco e a Bahia” (40-41) (Oliveira Martins, 1880).

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[...] parte da onomástica que estuda os nomes próprios de lugares; lista, relação
de topônimos; estudo etimológico e/ou histórico sobre os topônimos. Compreende
diversas subdivisões, como corônimos, limnônimos, eremônimos, potamônimos;
livro (ou outro suporte) que contém tal relação ou estudo (HOUAISS, 2001).

Para Dick, a toponímia pode ser entendida como “um imenso complexo línguo-cultural,
em que os dados das demais ciências se interseccionam necessariamente e, não, exclusiva-
mente” (Dick, 1990, p. 16). Na sua definição mais restrita, topos (lugar) e onoma (nome), a
toponímia dá voz ao lugar e ao espaço e, em sentido mais amplo, à paisagem e ao território.
Constitui um caminho de análise, que permite uma construção interdisciplinar, que vem
sendo resgatado, com o advento das análises culturais, no terreno da Geografia, para uma
compreensão do significado dos lugares e de suas correspondentes nomeações, dentro do
contexto histórico.  No entanto, tem-se desde os clássicos da Geografia o indicativo da
pertinência de entender o significado dos nomes dos lugares, conforme expresso em Reclus:
Nossos ancestrais mais recuados tinham perfeitamente apreciado perfeitamente os
contrastes que apresentavam, como locais de habitação, as diversas partes da Terra, e
no – lo dizem em seus cantos, em suas lendas, e sobretudo nos nomes dos locais com
os quais recobriram o mundo (RECLUS, 2010, p. 79).

Os nomes das localidades com que a humanidade encheu o mundo evidenciam a


conexão entre Geografia (o lugar), História (o período e o contexto de nominação) e
Linguagem. Entre os geógrafos contemporâneos Paul Claval, no tópico Nomear os lugares, qua-
lificar os espaços do seu livro La Geographie Culturelle, faz referência a toponímia; em seu texto
indica que o explorador quando deseja conservar a memória das terras que percorre promove
a nominação dos lugares como forma de qualificar os lugares, expressar suas caraterísticas,
ou seja, promove o“batismo dos lugares” (Claval, 1995).
Ainda que a linguística tenha sido quem privilegiou os estudos dos topônimos, do
ponto de vista geográfico, uma análise sobre toponímos são relevantes e adquirem uma
verdadeira capacidade explicativa. Sugerindo-se que estes estudos, certamente, poderiam
encontrar-se no conceito de geotoponímia, expressando uma dimensão complexa, dia-
crónica e interdisciplinar e ligando-se, particularmente, a um conhecimento geográfico,
142 // Sociedade e memória dos territórios

tanto físico como humano10. 


Nomes de lugares revelam características físicas e biológicas, assim como explicam
muitas características do modo de vida dos seus habitantes. Nesse contexto,

Os topônimos ‒ fitotoponímia, orotoponímia, hidrotoponímia, zootoponímia e hagiotoponímia ‒ permitem


10

uma explicação detalhada do meio natural e do seu entorno.

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[...] o topônimo não é algo estranho ou alheio ao contexto histórico-político da
comunidade. Sua carga significativa guarda estreita ligação com o solo, o clima, a
vegetação abundante ou pobre e as próprias feições culturais de uma região em suas
diversas manifestações de vida (Dick, 1992, p. 47).

Entretanto, é preciso ficar claro que “[...] o topônimo não é o lugar em si, mas uma de
suas representações carregando em sua estrutura sêmica elementos da língua, da cultura,
da época de sua formação, enfim, do homem denominador” (Carvalhinhos, 2009, p. 83).
Para a Geografia, a legenda de um mapa, enquanto registro da denominação de luga-
res, é o produto toponímico por excelência. Essa representação pode ser entendida, como
o nome, como uma tatuagem no corpo da terra, uma marca profunda e perene. Sendo
assim, o mapa expressa a distribuição dos lugares no território, uma vez que cada nome
atribuído tem um significado histórico e linguístico. Assim, num estudo desta natureza,
a legenda (denominação das cidades sedes de municípios) constitui o tema, que permite
construir a narrativa.
Enquanto a toponímia maior reflete as formas de povoamento – os nomenclátor
são uma boa fonte –, a toponímia menor (caminhos, montes, ruas) fornece informação
do máximo interesse, para entender as circunstâncias e os estratos cronológicos de
um território. Os mapas topográficos e cadastrais contêm uma rica memória, a este
respeito. Possivelmente, a vegetação e sua história são as que mais eloquentemente
perduram, na toponímia fossilizada. Na toponímia da Península Ibérica, por exemplo,
convergem as raízes pré-romanas, com um substrato autóctone (iberos, celtas, celti-
beros, tartésios e vacções) ou colonizador (Fernandes; Trigal; Sposito, 2016, p. 494).

Os lugares e, consequentemente, os estudos toponímicos, têm profundidades temporais


diferentes, consoante os continentes e os países. No continente europeu e, particularmen-
te, em Portugal, os lugares remetem a tempos mais longínquos, obrigando a tentar des-
cobrir ligações de nomes a outros povos, que habitaram tais territórios (suevos, romanos,
árabes, etc.). A similitude do caso brasileiro prende-se, fundamentalmente, à permanência,
ou à sobrevivência, de nomes indígenas11.
143 // Sociedade e memória dos territórios

11
A este propósito, Jean-René Trichet observa: Na Europa ocidental, a interpretação das camadas toponímicas
da Antiguidade é da alta Idade Média, presta-se ainda a várias hipóteses. Na França, sabemos que vários
tipos de topónimos de origem galaco-romano ou germânico, que deram origem a vários milhares de nossos
nomes de comunas atuais, têm muitas vezes como radical um nome de pessoa. [...] Trata-se então de uma
especificidade das sociedades tradicionais europeias, nas quais a marca precoce do território pela autoridade
administrativa, com um objetivo principalmente fiscal, tem relevo sobre uma outra lógica que era a fixação
indígena dos nomes dos lugares (TRICHET, 1998, p. 180-181).

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As sociedades sedentárias e organizadas têm necessidade duma toponímia fixa. As rela-
ções complexas não são possíveis, se os indivíduos ou os grupos não podem ser localizados
e se os encaminhamentos são podem ser guiados por referências bem visíveis, na paisagem.
O poder de se apropriar das terras faz colocar sob os registros, sob os planos ou sob os
mapas as coleções de nomes dos lugares.
A toponímia é um traço de cultura e uma herança cultural (Nègre, 1963) e é marcada,
muitas vezes, por um grande conservadorismo: guardam-se, através da história, os nomes
antigos, os quais se modificam, somente, acompanhando a evolução da língua: a propriedade
de Viucytorius, Victoriacum, para os Galaico-Romanos, permanece, segundo as regiões,
Vitrac, Vitry ou Vitré. Se o sentido original dos nomes dos lugares se perde, é papel da
toponímia linguística reencontrá-lo.
Os nomes mudam brutalmente, em todo um espaço, às vezes, pela instauração dum
novo poder ou por uma invasão ou pelo triunfo de novos modos – por exemplo, havia o
hábito, na Idade Média, de dar um prenome germânico aos lugares, o que tinha efeitos
sobre a toponímia. Um pouco mais tarde, as aldeias, muitas vezes, antigas, receberam
nomes de santos, o que parece levar a crer que são de origem medieval.
Do mesmo modo, aos nomes dos lugares juntam-se os regionalismos. Estes traduzem a
memorização, pelo grupo, de uma mudança de escala na percepção do espaço. “Temos a cons-
ciência da recorrência sobre um certo entendimento das mesmas paisagens” (Claval, 1995).

Paraíba: contexto geográfico e toponímia

Paraíba meu amor


Eu estava de saída
Mas eu vou ficar
Não quero chorar
O choro da despedida
O acaso da minha vida
Um dado não abolirá
Pois seguirás bem dentro de mim
144 // Sociedade e memória dos territórios

Como um são joão sem fim


Queimando o sertão
E a fogueirinha é lanterna de laser
Ilumina o festejo do meu coração.
Paraíba Meu Amor
Chico César

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O estado da Paraíba (Figura 1), localiza-se no Nordeste brasileiro e na atualidade está,
administrativamente, subdividido em 223 municípios. A denominação deste conjunto de
municípios constitui a base para este estudo sobre a toponímia da Paraíba.

Figura 1 – Localização e Divisão municipal do estado da Paraíba-Brasil.


Fonte: CDC e IBGE. Elaborado por Borges Neto (2021).

Condições naturais, processo de colonização, povoamento e toponímia

Uma breve caracterização das condições naturais do estado (PB) é apresentada a partir
dos mapas (Figura 2), conforme as espacializações relativas ao relevo (Figura 2 – A), a
cobertura vegetal original (Figura 2 – B), a hidrografia (Figura 2 – C), e a divisão regional
- fitogeográfica (Figura 2 – D).
145 // Sociedade e memória dos territórios

No cariri se inicia
Da Borborema um serrão
Na zona da Mata, o chão
É verde e sem avaria
Dissemelhanças
Damião de Lima (Damlima)

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Analisando estes mapas, em articulação, pode se observar que; em relação às unidades
geomorfológicas o estado apresenta-se compartimentado em seis unidades, aqui indicadas no
sentido Leste-Oeste, Planície Costeira, o Baixo Planalto Costeiro, a Depressão Sublitorânea, o
Planalto da Borborema, a Depressão Sertaneja e a Bacia Sedimentar do Rio do Peixe. Associando
estes compartimentos com a cobertura vegetal tem-se a Vegetação Litorânea e a Mata Atlântica,
como coberturas originais das unidades Planície Costeira e Baixo Planalto Costeiro, respectiva-
mente. A presença da Caatinga (Mata Branca), por sua vez tem sua distribuição nas regiões
interiorizadas do estado, Depressão Sublitorânea e, sobretudo no Planalto da Borborema e na
Depressão Sertaneja, ainda que seja observável a presença da Mata Serrana, ao longo dos con-
trafortes (áreas de maior altitude na borda do Planalto da Borborema). Em menor escala tem-
-se o Cerrado, em parte da Depressão Sublitorânea e, presença interiorizada de Mata Atlântica,
sobretudo em áreas Serranas e de Brejos.
146 // Sociedade e memória dos territórios

Figura 2 – Condições naturais do estado da Paraíba-Brasil.


Fonte: IBGE. Elaborado por Borges Neto (2021).

Em relação a hidrografia destacam-se dois rios, o Rio Paraíba, que drena o estado no
sentido Leste-Oeste e o Rio Piancó, sentido Sul-Norte. Estes dois rios foram fundamentais

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no processo de ocupação do estado, conforme indicado nos estudos relativos ao processo
de colonização, ainda que o Rio Paraíba, cujo significado toponímico corresponda a rio
“impróprio para navegação”, seja um rio, em alguns trechos intermitente em decorrência
das áreas de semiaridez que percorre, constituiu uma via de acesso neste processo. Já o Rio
Piancó eixo de penetração Sul-Norte, tem sua denominação indígena entendido como
“pequena ave que canta”, ou sob outra decifração “homem astuto” ou “chefe da tribo” é o
principal percurso de penetração de bandeiras vindas da Bahia e/ou São Paulo, através do
rio São Francisco e, também, do Piauí e/ou Ceará, e que dividiram as terras entre si.
Estas condições naturais se expressam na divisão regional de base fitogeo-
gráfica, escolhida como base dos estudos nesta pesquisa. Esta regionalização compreende
7 regiões: Mata Paraibana - associada à Planície Costeira e o Baixo Planalto Costeiro e
recoberta, originalmente, pela Mata Atlântica, progressivamente devastada, pela implan-
tação, desde o início da colonização, da cultura do açúcar, predominantemente; Agreste
- significando “rústico ou rude”, essa região corresponde a porção mais interiorizada, do-
minada pela vegetação original de transição entre a Mata Atlântica e a Caatinga, sua maior
extensão assenta-se sobre a Depressão Sublitorânea; entretanto, no Cordel Dissemelhanças de
Damião do Lima, tem-se:

O agreste é diferente
Intermezo e claridade
As chuvas vem à vontade
Alegrando sua gente.
Dissemelhanças
Damião de Lima (Damlima)

Brejo - denominação que expressa áreas úmidas em zonas serranas do interior, onde
temos enclaves de Mata Atlântica (mais interiorizada) e a Mata Serrana. Devido seu po-
tencial agrícola foram pontos de parada, produção de alimentos e instalação de vilas e
povoados; Curimataú - região cujo nome deriva da palavra Tupi que significa “rio dos
curumatás” (peixe tenro), região dominada pela vegetação de Caatinga, compreendida
pela porção noroeste do Planalto da Borborema foi considerada propícia a criação de
147 // Sociedade e memória dos territórios

gado nos primórdios da colonização; Seridó - palavra proveniente da língua Cariri ex-
pressa “árvores sem folha” ou de “pouca sombra”. Essa região era dominada pela Caatinga
e sua atividade está vinculada à pecuária e a criação de caprinos; Cariri - indicado pelo
significado indígina “lugar silencioso” é, também, a designação da principal família de
línguas indígenas do sertão do Nordeste do Brasil. Esta região ocupa uma parcela (Sul) do
Planalto da Borborema, no estado da Paraíba constituída, originalmente, pela vegetação

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de Caatinga, tem suas terras utilizadas pela pecuária, a criação de caprinos e o algodão;
região mais interiorizada do estado...

Sem chuvas, tal cariri


Tem o Curimataú
Na seca só escapa umbu
Aveloz e juquiri
Dissemelhanças
Damião de Lima (Damlima)

[...] o Sertão, palavra que entre tantos significados pode corresponder a “espaços
distantes do mar”, ou entre “terras continentais”, até o significado de agreste, distante “das
povoaçõe”s ou de “terras cultivadas”. Esta região, originalmente, recoberta pela Caatinga,
é a região mais distante do litoral e pouco povoada. Sob clima Semiárido, tem na criação
do gado a sua ocupação lusitana.

Processo de colonização e organização espacial

O processo de ocupação e dominação territorial da Paraíba-Brasil, remonta ao


século XVI desde as primeiras expedições em 1501 (Almeida, 1966). Contudo, como
já relatado por vários historiógrafos e historiadores, mas também por geógrafos e outros
profissionais, o território que constituirá a Capitania da Paraíba compunha a Capitania de
Itamaracá e desmembrada desta tendo por limites o rio Popoca ao sul e a Baía da Traição
ao norte. Várias foram as expedições enviadas para a “conquista da Paraíba” (Almeida,
1966, p. 55). A dominação efetiva-se no ano de 1585, ano em que se fundou a cidade
Nossa Senhora das Neves, atual João Pessoa (capital do estado). Assim, a fundação de
povoados, vilas e cidades na Paraíba segue o sentido Leste-Oeste. A faixa Leste, terras ocu-
padas pelos povos indígenas Potiguaras e Tabajaras, posteriormente marcada pela cultura
canavieira. Os nucleamentos indígenas (aldeamentos) encontravam-se “às margens dos
rios Mamanguape e Camaratuba e na bahia da Traição, dos quaes desaparecerão uns, e
outros servião de nucleos ás actuaes cidades de Mamanguape e villa da Bahia da Traição”
148 // Sociedade e memória dos territórios

(Joffily, 1977, p. 105). Já o interior do território era dominado pelo grupo indígena Cairys
“desde o platô da Borborema, a que deixarão o seu nome, nos limites com o Ceará, Rio
Grande do Norte e Pernambuco, cujos sertões eram igualmente habitados por tribos dessa
raça, assim como o da Bahia (rio S. Francisco)” (Joffily, 1977, p. 103).
No período do domínio holandês (1634-1654), não se tem registros da fundação
de novas povoações. Assim, tem-se a formação de missões para o interior do território

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na segunda metade do século XVII: a de Pilar pelo rio Paraíba e seguindo o rio Ingá, no
planalto da Borborema, “em uma verdejante collina, ao pé de grande campina, fundarão a
segunda aldea dos Carirys, no seu proprio territorio, dando-lhe o nome de Campina-Grande
(hoe cidade)” (Joffily, 1977, p. 114).
Ainda no século XVII registram-se as bandeiras para a “conquista” do sertão. Assim,
é fundada a povoação de Pilar, antigo aldeamento. O então capitão-mor Theodósio de
Oliveira Ledo adentra o território pelo rio Paraíba, avançou no sentido Oeste, descendo o
planalto da Borborema, atingindo o rio Piranhas. Além desta, há a bandeira de Domingos
Jorge e Domingos Affonso Mafrense, que a partir do rio São Francisco atinge a ribeira do
Piancó. Tais bandeiras expulsam, escravizam ou exterminam os povos indígenas que ali
habitavam e instalam as fazendas de criação de gado bovino. No século XVII, foram cons-
truídas capelas que deram origem a povoados e as freguesias de Piancó, Campina Grande,
São João do Cariri e Caicó (na época pertencente à Paraíba).
No século XVIII, foram criadas as vilas de Pombal (antiga aldeia dos Pegas), Vila
Nova da Rainha (atual Campina Grande) e Vila Nova de Sousa (atual Sousa). A segunda
década deste século é conhecida como o Período Pombalino (1750-1777), reconhecido
por impulsionar a formação do que se pode denominar da origem de uma rede urbana
no território paraibano. A política de Pombal caracterizou-se por ser “mais centralizadora’’
cujo objetivo era, em linhas gerais, garantir a posse do território português por meio de um
programa de construção de vilas (Flexor, 2004, p. 203).
Moraes (2012) escreve que:
No Sertão de Piranhas e Piancó, vários patrimônios foram doados dessa forma,
principalmente os que constituem as atuais cidades de Pombal (1740), Sousa (1740),
Piancó (1748), Caicó (1748), Brejo do Cruz (1760 e 1773), São João do Rio do
Peixe (1761), Coremas (1765), Patos (1768), Catolé do Rocha (1773), Santa Luzia
(1773), Catingueira (1774) e Teixeira (1792) (Moraes, 2012, p. 19).

Na segunda metade do século XVIII, “a primeira povoação a ser elevada à condição de


vila foi a de Nossa Senhora do Bom Sucesso, com o nome de Vila de Pombal” (Moraes,
2012, p. 148). A autora complementa:

Anos após a fundação da Vila de Pombal, mais especificamente em 1788, serão


149 // Sociedade e memória dos territórios

elevadas para vilas, na Capitania da Paraíba, a Povoação de Campina Grande, com o


nome de Vila Nova Rainha, e, no Rio Grande, as Povoações de Santa Ana do Seridó
e do Açu, com os nomes, respectivamente, de Vila Nova do Príncipe e de Vila Nova
da Princesa (Moraes, 2012, p. 149).

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Ainda neste século, mas no último ano, 1800, duas outras povoações foram elevadas a
vilas: a dos Carirys Velhos e a de Jardim do Rio do Peixe.
Já no século XIX, ainda no período colonial, ou seja, nos 22 primeiros anos do século,
surge a Vila Real de Areia (atual Areia). Joffily (1977) ao escrever Notas sobre a Parahyba
publicado em 1902, apresenta a divisão administrativa da Paraíba de acordo com a sua
localização: no maciço da Borborema e serras; no litoral até a Borborema e “além das fral-
das ocidentaes da Borborema” (Joffily, 1977, p. 247). Tal divisão está disposta a seguir, no
Quadro 1.

Localização Cidades Vilas


Litoral até a Parahyba (atual João Pessoa); Conde ou Jacoca; Pedras de Fogo; Alhandra; Pilar;
Borborema Mamanguape; Guarabira e Itabaiana. Santa Rita; Ingá; Bahia da Traição; e, Alagoa Grande.
Serra da Raiz; Alagoa Nova; Araruna; Cuité; Pilões;
Maciço da Picuí; Bodocongó; Soledade; Umbuzeiro; Fagundes;
Borborema e Bananeiras; Areia; e Campina Grande. Cabaceiras; Teixeira; São João do Cariri; Alagoa do
Serras Monteiro; Batalhão (atual Taperoá); e, Princesa (atual
Princesa Isabel).
Patos; Piancó; Brejo do Cruz; Conceição; Santa Luzia
Além das fraldas
do Sabugy (atual Santa Luzia); Catolé (atual Catolé do
ocidentais da Pombal; Sousa e Cajazeiras.
Rocha); Misericordia (atual Itaporanga); São João do
Borborema
Rio do Peixe; e, São José de Piranhas.

Quadro 1 – Sedes de Município por localização (Vilas e Cidades) da Paraíba-Brasil.


Fonte: Adaptado de Joffily (1997, p. 103-247)

As primeiras décadas do século XX na Paraíba são marcadas pelo impulso da cultura


algodoeira. O plantio do algodão já disseminado no semiárido nordestino, passa a ser
cultivado no sertão da Paraíba de forma latente. O capital acumulado com a venda do
algodão e também dos seus derivados, em especial o óleo do algodão, vai ser aplicado
em grande medida na modernização de algumas cidades, como a Cidade da Parahyba
(capital do estado) e mais fortemente em Campina Grande que passa por uma reforma
urbanística. Além disso, há também a instalação dos equipamentos técnicos urbanos
como energia elétrica e abastecimento de água nestas cidades e em algumas outras, a
exemplo de Patos.
150 // Sociedade e memória dos territórios

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 150 17/06/2022 18:05:56


1900-1920 Alagoa Nova; e, Caiçara.
1920-1940 Bonito de Santa Fé; Esperança; Picuí; e, Sapé.
Água Branca; Alagoinha; Alhandra; Araçagí; Aroeiras; Barra de Santa Rosa; Bayeux; Belém; Boqueirão;
Borborema; Cabedelo; Cacimba de Dentro; Catingueira; Congo; Coremas; Cubatí; Desterro; Dona
Inês; Gurinhém; Ibiara; Jericó; Juarez Távora; Juazeirinho; Malta; Marí; Mulungú; Nova Floresta; Pedra
1940-1960
Lavrada; Pedras de Fogo; Pilões; Pirpirituba; Pocinhos; Prata; Remígio; Rio Tinto; São Bento; São
José de Lagoa Tapada; São Mamede; São Sebastião de Umbuzeiro; Serra Branca; Serra da Raiz; Serra
Redonda; Solânea; Sumé; Tacima; Tavares; e, Uiraúna.
Aguiar; Arara; Areial; Barra de São Miguel; Belém do Brejo do Cruz; Boa Ventura; Bom Jesus; Bom
Sucesso; Brejo dos Santos; Caaporã; Cachoeira dos Índios; Cacimba de Areia; Caldas Brandão; Camalaú;
Carrapateira; Conceição; Condado; Conde; Cuitegí; Curral Velho; Diamante; Duas Estradas; Emas;
Fagundes; Frei Martinho; Gurjão; Igaracy; Imaculada; Itapororoca; Itatuba; Jacaraú; Junco do Seridó;
Juripiranga; Juru; Lagoa; Lagoa de Dentro; Lagoa Seca; Lastro; Livramento; Lucena; Mãe d’água; Manaíra;
1960-1980 Massaranduba; Mataraca; Mogeiro; Montadas; Monte Horebe; Natuba; Nazarezinho; Nova Olinda; Nova
Palmeira; Olho D’água; Olivedos; Ouro Velho; Passagem; Paulista; Pedra Branca; Pilõezinhos; Pitimbú;
Puxinanã; Queimadas; Quixaba; Riacho dos Cavalos; Salgadinho; Salgado de São Félix; Santa Cruz; Santa
Helena; Santa Terezinha; Santana de Mangueira; Santana dos Garrotes; São João do Tigre; São José de
Caiana; São José de Espinharas; São José do Bonfim; São José do Sabugí; São José dos Cordeiros; São
Miguel de Taipú; São Sebastião de Lagoa de Roça; Seridó; Serra Grande; Triunfo; Várzea; e, Vista Serrana.
Alcantil; Algodão de Jandaíra; Amparo; Aparecida; Areia de Baraúna; Assunção; Baraúna; Barra de
Santana; Bernardino Batista; Boa Vista; Cacimbas; Cajazeirinhas; Capim; Caraúbas; Casserengue  ;
Caturité  ; Coxixola; Cuité de Mamanguape; Curral de Cima; Damião; Gado Bravo; Logradouro;
Marcação; Marizópolis; Matinhas; Mato Grosso; Maturéia; Pararí; Pedro Régis; Poço Dantas; Poço de
1980-2000
José de Moura; Riachão; Riachão do Bacamarte; Riachão do Poço; Riacho de Santo Antônio; Santa
Cecília; Santa Inês; Santarém; Santo André; São Bentinho; São Domingos; São Domingos do Cariri;
São Francisco; São José de Pilar / São José dos Ramos; São José de Princesa; São José do Brejo do Cruz;
Sertãozinho; Sobrado; Sossego; Tenório; Vieirópolis; e, Zabelê.

Quadro 2 – Emancipação de municípios paraibanos durante o século XX.


Quantidade de municípios emancipados: 1900-1920 (2); 1920-1940 (4); 1940-1960 (47);
1960-1980 (83); 1980-2000 (52). Fonte: Assembleia Legislativa da Paraíba (2021)12.

O Quadro 2 revela a intensidade de criação de municípios após 1960, até os anos


2000. A emancipação de municípios incorre na criação de cidades sedes dos mesmos. Em
relação a toponímia, os novos nomes seguem os mesmos critérios de denominação das
cidades indicados nesta classificação.

O nome dos municípios da Paraíba e o ensaio duma tipologia


151 // Sociedade e memória dos territórios

Metodologia e procedimentos cartográficos 


Os procedimentos metodológicos, que dão suporte a esta investigação cuja centralidade
é a análise dos municípios do estado da Paraíba-Brasil, é confrontada com o conhecimento

12
Disponível em: <http://www.al.pb.leg.br/espaco-do-cidadao/emancipacao-dos-municipios>. Acesso em
Out. de 2021.

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sobre a temática, relativo a estudos já realizados em Portugal. Num primeiro momento,
uma análise do conjunto dos 223 municípios que compõem o estado da Paraíba mostrou
uma grande dispersão de topônimos. Esta dispersão indicou, em primeiro lugar, a neces-
sidade de elaborar um procedimento de sistematização relativa, perante os significados tão
díspares, apresentados pelos lugares. 
O caminho escolhido para esta sistematização se consistiu na adaptação de um ensaio
de tipologia, anteriormente aplicado, no âmbito desta pesquisa em relação ao estado do
Rio Grande do Sul-Brasil (Suetergaray; Jacinto; Borges Neto, 2021). Nos referimos a um
ensaio, uma vez que, ao longo do processo, a proposta inicial poderá ser modificada,
ampliada ou reduzida, conforme as definições das interpretações, em cada lugar e em
cada sub-região de análise. Ou seja, ao transportar o ensaio de classificação para outro
estado brasileiro, houve necessidade de adequação, ainda que muitas categorias tenham
permanecido equivalentes. As denominações previamente analisadas foram colocadas em
grandes grupos, obedecendo a sugestões de identificações mais específicas. Cabe ressaltar
que municípíos com nomes compostos, foram classificados em todas as suas possibilida-
des e, dependendo da temática que se deseja abordar, poderão ser classificados conforme
a categoria em análise. A partir da classificação foram elaborados mapas que expressam a
distribuição desta classificação em diferentes bases cartográficas relativas à espacialização
dos domínios naturais e ou processos de regionalização, sócio-econômicas.

Nome dos municípios: ensaio duma tipologia - estado da Paraíba-Brasil


Este ensaio adaptado de pesquisa (Suetergaray; Jacinto; Borges Neto, 2021), destaca
como elementos aglutinadores da nominação dos municípios:
i. Os que remetem a acidentes morfológicos, hidrológicos e cobertura vegetal,
espécies vegetais e animais, ou seja, lugares que têm denominação que expres-
sam forte vínculo com a natureza, predominante na denominação de cidades de
origem indígena, bem como à formação incipiente do povoamento primitivo
(curral, etc.);
ii. A base conceptual e ideológica, cujos exemplos de nomes deixam transparecer
pontos de vista e expectativas dos primeiros colonos, tais como as de alcançarem
um paraíso na terra, de terem, finalmente, acesso à terra, alegria, felicidade e bem-
152 // Sociedade e memória dos territórios

-estar, entre outras;


iii. O importante papel da religião, que se manifesta na presença e na ligação com a
Igreja cristã, através da frequência com que foram atribuídos nomes de santos aos
lugares.
iv. O nome de pessoas e localidades sobretudo portuguesas demonstrando a presença
e a gênese do processo de colonização.

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Com base nestes pressupostos, foi feita uma análise dos municípios do estado (PB) e,
na continuidade foram estabelecidas três coordenadas principais:
1) Toponímia e matriz identitária, que inclui os nomes dos lugares, que remetem a
uma matriz primordial, inicial, ou a certos qualificativos identitários; 
2) Rotas do povoamento primordial, que engloba os nomes dos lugares, que, de certa
forma, revelam a gênese do povoamento e o processo de colonização, através do
nome de pessoas, de santos, ou de lugares portugueses;
3) Condições naturais, particularidades e especificidades locais, agregando nomes de lugares,
relacionados à biogeografia local, com animais, com a água ou com acidentes morfológicos.
Em relação a classificação cabe esclarecer que lugares com nomes indígenas são
classificados como tal, mas que numa classificação de maior detalhe com base no signifi-
cado da palavra no idioma original (tupi-guarani, na sua maioria) estes foram incluídos,
igualmente, na tipologia respectiva a exemplo de Cajazeiras e Cajá, classificados como
nome indígena, mas também, conforme o significado do termo como referência a plantas
(árvores e frutos); Catolé do Rocha, está como nome indígena, mas também, refere-se
ao coco da palmeira, coco catolé + Rocha = nome de família, da mesma forma Areia de
Baraúnas; Cuité de Mamanguape. Deste modo, se respeita o topônimo ancestral, como
também o seu significado qualificativo. 
Quando os nomes são compostos, independentemente da classificação que parece ser
mais pertinente atribuir, estes remetem para outros significados que obrigam a uma aprecia-
ção mais aprofundada. Alguns exemplos: Nova Olinda; Nova Floresta; Nova Palmeira; Alagoa
Nova, Boa Ventura, Bom Sucesso; Bonito de Santa Fé, Santana de Mangueira; Santana dos
Garrotes, São Domingos do Cariri; São João do Rio do Peixe; São José da Lagoa Tapada; São
José de Caiana; São José de Espinharas; São José de Piranhas; São José de Princesa; São José
do Bonfim; São José do Brejo do Cruz; São José do Sabugi; São José dos Cordeiros; Algodão
de Jandaíra; Campina Grande; Junco do Sérido; Mato Grosso; Água Branca; Alagoa Grande;
Cachoeira dos Índios; Cacimba de Areia; e, Cacimba de Dentro.
Explicitando, Belém do Brejo do Cruz está como referência a nome de lugares por-
tugueses – mas também Brejo = elemento natural + Cruz (referência ao cristianismo,
religião). É um dos casos em que remete, hipoteticamente, para duas referências: Belém,
cidade santa, que deu origem a uma localidade portuguesa, que poderá ter migrado com a
153 // Sociedade e memória dos territórios

colonização portuguesa, Torre de Belém ou Belém do Brejo do Cruz: está como referência
a nome de lugares portugueses, mas, também Brejo constitui um elemento natural e Cruz
uma referência ao cristianismo, religião. Baía da Traição – está como referência a hidro-
toponímia, porém, “Traição” refere-se ao momento da ocupação territorial. Sertãozinho,
está como referência a paraíso, sentimento, mas, também há referência ao processo de
ocupação territorial, deriva de Sertões. Da mesma forma, Campina Grande foi classificada

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 153 17/06/2022 18:05:56


com referência à plantas, vegetação, mas a nomenclatura deriva do lugar de pouso, onde
pastavam os animais, portanto faz referência ao processo de ocupação territorial. É consi-
derada uma das portas do sertão. A função passou a ser esta, mas, considerando o signifi-
cado da palavra, Campina foi classificada na categoria plantas. Ou mesmo, Pombal, cujo
nome faz referência a nome de lugares portugueses, é uma homenagem ao Marquês de
Pombal, responsável pela criação de várias vilas no interior do território paraibano. Enfim
a cosmovisão que os nomes compostos podem revelar, são complexos, mas são ricos de
informação sobre a interpretação dos lugares. Por fim, sem ser um nome composto, porém
apresentando um duplo significado tem-se Conceição: classificado como nome de pessoa,
mas também é uma homenagem à Nossa Senhora da Conceição.
É fundamental deixar registrado que este estudo está centrado na seguinte questão: por
que se criam e se destacam as duas tipologias nomes indígenas e localidades portuguesas? Em
resposta tem-se a expressão da centralidade desta análise: por representarem, porventura,
o confronto entre o existente/ local/ autóctone e o que vem de fora/ exógeno colonizar e
ocupar o espaço. Podemos perguntar porque nuns casos se mantiveram uns nomes e em
outros se vão impor os nomes trazidos pelos que chegam? É curioso que deem nomes de
lugares de onde partiram; noutros, acabaram por lhe atribuir o nome da nova morada.

Procedimentos cartográficos
Os procedimentos, para a elaboração dos mapas cartográficos, que fundamentam essa
investigação, estão embasados nas seguintes etapas:
1) Classificação das Toponímias e vinculação dos resultados à base cartográfica dos
municípios da Paraíba;
2) Vetorização/Georreferenciamento das seguintes bases cartográficas: Unidades
Geomorfológicas; Vegetação Pioneira/Original; Hidrografia principal; e, Divisão
Regional - Fitogeográfica;
3) Composição dos mapas, com a sobreposição das bases cartográficas: Unidades
Geomorfológicas; Vegetação Pioneira/Original; Hidrografia principal; e, Divisão
Regional – Fitogeográfica.
Após a classificação das toponímias dos municípios do estado da Paraíba, construída,
a partir de pesquisa bibliográfica, além da busca do significado dos topônimos indígenas,
154 // Sociedade e memória dos territórios

em dicionários específicos e ou textos históricos específicos, vinculou-se os resultados das


classificações à base vetorial dos municípios do estado da Paraíba (IBGE, 2020), possibilitando
o agrupamento dos topônimos, conforme sua origem e classificação.
A vetorização/georreferenciamento dos mapas foi realizada com o auxílio do software
ArcGis para as bases cartográficas não encontradas, durante as etapas de pesquisa e de aquisição
de dados cartográficos, quais sejam: Unidades Geomorfológicas e Vegetação Pioneira/Original.

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 154 17/06/2022 18:05:56


A composição dos mapas se deu utilizando as 4 bases cartográficas (Unidades
Geomorfológicas; Vegetação Pioneira/Original; Hidrografia principal; e, Divisão Regional
- Fitogeográfica) previamente selecionadas, com o auxílio do software livre do Quantum
Gis (QGis: versão de longa duração 3.16.6 Hannover).

Topônimos dos municípios da Paraíba-Brasil: comentários e apontamentos

Promovida a classificação dos topônimos considerando a denominação dos municípios


do estado da Paraíba-Brasil (Tabela 1), na continuidade foi elaborada (a Tabela 2), para
fins de caracterização geral um quantitativo, buscando demonstrar a maior e ou menor
intensidade de nominação, por categoria.

Tipologias de nomes
Municípios equivalentes a cada tipologia
de lugares
1. Toponímia e matriz identitária
Araçagi; Arara; Araruna; Areia de Baraúnas; Aroeiras; Baraúna; Borborema; Caaporã;
Caiçara; Cajazeiras; Cajazeirinhas; Camalaú; Caraúbas; Catingueira; Catolé do Rocha;
Caturité ; Coremas ; Coxixola ; Cubati ; Cuité ; Cuité de Mamanguape ; Cuitegi; Guarabira;
1. Nome Indígena Gurinhém; Ibiara; Igaracy; Ingá; Itabaiana; Itaporanga; Itapororoca; Itatuba; Jacaraú; Jericó;
Juazeirinho; Juripiranga; Juru; Mamanguape; Manaíra; Mari; Massaranduba; Mataraca;
Mogeiro; Mulungu; Natuba; Parari; Piancó; Picuí; Pirpirituba; Pitimbu; Puxinanã; Quixaba;
Sapé; Sumé; Tacima; Taperoá; Uiraúna; Umbuzeiro; e, Zabelê.
2. Rotas do povoamento primordial
2.1. Nome de lugares
Lugares portugueses: Alhandra; Belém; Belém do Brejo do Cruz; e, Pombal. Lugar francês:
portugueses e de lugar
Bayeux.
francês
2.2. Elementos
Condado; Conde; Curral de Cima; Curral Velho; Duas Estradas; Logradouro; Malta;
fundamentais do
Marcação; Montadas; Nova Olinda; Passagem; Paulista; Princesa Isabel; e, Sobrado.
povoamento primordial
2.3. O paraíso na terra/ Amparo, Boa Ventura; Boa Vista; Bom Sucesso; Esperança; Sertãozinho; Soledade;
sentimento (espírito) do lugar Sossêgo; e, Triunfo.
Aguiar; Bernadino Batista; Conceição; Congo; Dona Inês; Fagundes; Gurjão; João
2.4. Nome de Pessoas
Pessoa; Joca Claudino; Juarez Távora; Lucena; Marizópolis; Monteiro; Pedro Régis;
(Antroponímia)
Remígio; Sousa; Tavares; Teixeira; Tenório; e, Vieirópolis.
Aparecida; Assunção; Damião; Desterro; Livramento; Bom Jesus; Bonito de Santa Fé; Cruz
do Espírito Santo; Frei Martinho; Imaculada; Nazarezinho; Santa Cecília; Santa Cruz;
Santa Helena; Santa Inês; Santa Luzia; Santa Rita; Santa Teresinha; Santana de Mangueira;
155 // Sociedade e memória dos territórios

Santana dos Garrotes; Santo André; São Bentinho; São Bento; São Domingos; São
2.5. Nome de Santos Domingos do Cariri; São Francisco; São João do Cariri; São João do Rio do Peixe; São João
do Tigre; São José da Lagoa Tapada; São José de Caiana; São José de Espinharas; São José de
Piranhas; São José de Princesa; São José do Bonfim; São José do Brejo do Cruz; São José do
Sabugi; São José dos Cordeiros; São José dos Ramos; São Mamede; São Miguel de Taipu;
São Sebastião de Lagoa de Roça; São Sebastião do Umbuzeiro; e, São Vicente do Sérido.
3. Condições naturais locais
3.1. Biogeografia: Animais Emas; Gado Bravo; e, Patos.

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Algodão de Jandaíra; Bananeiras; Cabaceiras; Campina Grande; Capim; Carrapateira;
3.2. Biogeografia: Plantas Casserengue; Junco do Seridó; Matinhas; Mato Grosso; Maturéia; Nova Floresta; Nova
Palmeira; Olivedos; Queimadas; e, Solânea.
Água Branca; Alagoa Grande; Alagoa Nova; Alagoinha; Brejo do Cruz; Brejo dos
Santos; Cachoeira dos Índios; Cacimba de Areia; Cacimba de Dentro; Cacimbas; Caldas
3.3. Hidrotoponímia: Rio,
Brandão; Lagoa; Lagoa de Dentro; Lagoa Seca; Mão d’Água; Olho d’Água; Pocinhos;
Lagoa, Poço,…
Poço Dantas; Poço de José de Moura; Riachão; Riachão do Bacamarte; Riachão do Poço;
Riacho de Santo Antônio; Riacho dos Cavalos; Rio Tinto; e, Salgado de São Félix.
3.4. Hidrotoponimia: Barra Baía da Traição; Barra de Santa Rosa; Barra de Santana; Barra de São Miguel; e, Cabedelo.
3.5. Acidentes morfoló- Alcantil; Boqueirão; Lastro; Monte Horebe; Pilar; Pilões; Pilõezinhos; Serra Branca;
gicos: Monte, Vale, Serra,... Serra da Raíz; Serra Grande; Serra Redonda; Serraria; Várzea; e, Vista Serrana.
3.6. Geologia: Areia, Areia; Areial; Diamante; Pedra Branca; Pedra Lavrada; Pedras de Fogo; Prata; Ouro
Rocha, Mineral, Metal,.. Velho; e, Salgadinho.

Tabela 1 – Tipologias e nome dos municípios da Paraíba-Brasil.


Fonte: Elaboração própria (2021).

Tipologias de nomes de lugares Nº % Indígenas


1. Toponímia e matriz identitária
1. Nome Indígena 58 26,0 58
2. Rotas do povoamento primordial
2.1. Nome de lugares portugueses e de lugar francês 5 2,2
2.2. Elementos fundamentais do povoamento primordial 14 6,3 4
2.3. O paraíso na terra/sentimento (espírito) do lugar 9 4,0 2
2.4. Nome de Pessoas (Antroponímia) 20 9,0 3
2.5. Nome de Santos 44 19,7
3. Condições naturais locais
3.1. Biogeografia: Animais 3 1,8 12
3.2. Biogeografia: Plantas 16 7,2 28
3.3. Hidrotoponímia: Rio, Lagoa, Poço,… 26 11,7 2
3.4. Hidrotoponimia: Barra 5 2,2
3.5. Acidentes morfológicos: Monte, Vale, Serra,... 14 6,3 4
3.6. Geologia: Areia, Rocha, Mineral, Metal,... 9 4,0 3
Total Municípios 223 100,0
156 // Sociedade e memória dos territórios

Tabela 2 – Dados numéricos e percentuais relacionados a classificação


toponímica dos municípios da Paraíba-Brasil.
Fonte: Elaboração própria (2021).

As Tabelas 1 e 2, mostram as principais tipologias criadas, os grupos e os subgru-


pos definidos, para enquadrar a generalidade dos nomes dos municípios das diferentes

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mesorregiões naturais e administrativas da Paraíba. Cada tipologia, individualmente ou
com outras, que lhe sejam afins, originaram mapas, que nos permitem analisar a dispersão
geográfica dos nomes dos municípios. A classificação, numa primeira análise nos remete,
em termos de quantidade, a distribuição quantitativa dos nomes dos municípios, con-
siderando a classificação adotada. No total, foram levantadas informações para todos os
223 municípios do estado.
Com base nos dados, são destacáveis, no grupo Toponímia e matriz identitária, os nomes
indígenas. Esta categoria corresponde a 58 municípios, o que equivale a 26% de nomes
indígenas nominando municípios do estado. No grupo Rotas do povoamento primordial, o
destaque é para Nome de Santos (44) o que representa 19,7%, do total de municípios do
estado. No grupo Condições naturais locais, os elementos constituintes da hidrotoponímia
(26), equivalente a 11,7% corresponde ao maior percentual nesta categoria.
Uma análise mais detalhada da categoria indígena, de maior presença em relação aos
nomes dos municípios no estado da Paraíba, torna visível a dominância de indicações de
plantas, sobretudo, nos 28 municípios cujo significado da palavra indígina indica esse
atributo, seguido da denominação de espécies de animais.
Esta breve caracterização quantitativa, a partir de seus topônimos já expressa infor-
mações que permitem encaminhar na continuidade maior detalhamento e aproximação
com os objetivos deste trabalho, trata-se de pensar a permanência e a ausência das de-
nominações originais indígenas, da substituição por nomes, dominantemente, de santos
católicos, que expressam a presença da religião, seguidos das cidades com denominação
de pessoas, nomes e sobrenomes portugueses como classificado em Rotas do povoamen-
to primordial. Esta categoria é reveladora do processo inicial de povoamento a partir
da colonização/ocupação do território brasileiro, envolvido em conflitos e dominação,
desde os primeiros períodos de dominação do Império português, sugerindo uma análise
de maior detalhe.
Importa considerar que levamos em consideração, apenas, os nomes dos municípios,
sem termos elaborado uma análise em maior detalhe escalar, isto é, sem fazer uma análise
mais pormenorizada da microtoponímia de cada lugar. A título de exemplo, ao analisar
mapas de denominações locais é observável, a mesma lógica atribuída aos municípios,
que ficam ausentes, pela escala de análise nesta pesquisa que retira o detalhe a uma análise
157 // Sociedade e memória dos territórios

mais fina. Encontramos, então, nomes como: Rio Tinto; Torres; Olho d’ Água Branca;
Pocinhos; Teixeira; Salgueiro; Jardim; Viveiro; Várzea; Pedra Lavrada; que expressam a
mesma lógica de classificação na medida que indicam nomes de condições naturais, como:
água, relevo, vegetação, acidentes morfológicos, e nome de pessoas.
Da mesma forma, em escala regional, as denominações da regionalização adotada
neste trabalho apresenta as denominações associadas a significados indígenas vinculadas às

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 157 17/06/2022 18:05:56


condições naturais. Há ainda nominação, cuja origem é passível de várias interpretações,
a exemplo do termo Sertão13.

A toponímia da Paraíba: identidade, (processo de) colonização e


formação/organização do espaço

Nas estradas espinhosas


Que segui pelo sertão
No meu cavalo alazão
Naquelas terras gostosas
De vidas laboriosas
Que vivia na campina
Banho em água cristalina
Hoje fico recordando
A gente aprende apanhando
As lições que a vida ensina
Valdemir Mendes

Toponímia e matriz identitária: os nomes Indígenas

Entre os critérios utilizados para a classificação dos municípios da Paraíba considerando


seus topônimos, tratamos neste tópico as denominações indígenas, enquanto matriz identitária.
Num primeiro momento foram classificados municípios que preservam os nomes indígenas e
num segundo momento, considerando o significado da palavra na língua original (Tabela 3).
A Tabela 3 revela que, para o conjunto dos municípios do estado (223) 58, pre-
servam a denominação indígena. Estes, por sua vez, expressam significados associados

i. Mata Paraibana (vegetação + Paraíba do tupi, significa “rio ruim” (pará, “rio grande” + aíb, “ruim”; ii. Agreste
13

(relativo a campo rústico); iii. Brejo (relativo a área úmida); iv. Curimataú (rio do peixe-Curimatã, do Tupi =
¨peixe tenro, delicado); v. Seridó (Seridó é uma palavra da língua cariri e significa literalmente: ¨sem folha; pouca
sombra¨; vi. Cariri (Kariri, Kairiri ou quiriri (do tupi kiri’ri, “silencioso”), Kariri enfim, grupo e linguagem indí-
158 // Sociedade e memória dos territórios

gina; vii. Sertão a origem da palavra “sertão” é controvertida. Alguns afirmam ser derivada de um vocábulo de
origem angolana: “muceltão”, que quereria dizer “lugar interior”, “terra entre terras”, “local distante do mar”.
O vocábulo angolano teria sido alterado para “celtão” e depois “certão” até adquirir a forma atual “sertão”.
Pode derivar da expressão “desertão” (ou seja, “deserto grande”), utilizada pelos portugueses para se referir às
regiões despovoadas da África Equatorial. Com a eliminação do “de”, o termo virou “sertão”, pode provir do
quimbundo muchitum pela voz angolana muceltão, cujo significado é “região distante da costa”, “interior”,
“mato”, pode provir de Domingos Afonso Sertão, que, em 1676, teria recebido uma sesmaria às margens do
rio Gurgueia, no atual estado do Piauí, no Brasil,pode provir da vila de Sertã, em Portugal.

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dominantemente com elementos da natureza sobretudo, Nome de Plantas (28) a exem-
plo das cidades: Araçagi; Araruna; Aroeiras; Baraúna; Cajazeiras; Caraúbas; Catingueira;
Catolé do Rocha; Cubati; Cuité; Cuitegi; Cuité de Mamanguape; Ingá; Jericó; Juazeirinho;
Juripiranga; Juru; Mulungu; Natuba; Pirpirituba; Puxinanã; Quixaba; Sapé; Umbuzeiro;
Massaranduba; Caaporã; Cabaceiras; e Cajazeirinhas. Nome de Animais estão representa-
dos em (12) municípios, sendo exemplos: Arara, Coremas, Guarabira, Gurinhém, Jacaraú,
Mataraca, Mogeiro, Parari, Picuí, Tacima, Uiraúna, Zabelê. Nomes relacionados com a
morfologia do terreno compõem a denominação desta categoria, estando representada em
4 municípios: Borborema, Itatuba, Mamanguape; e, Mari. Nomes relacionados com a geologia
é composto por 3 municípios: Itabaiana, Itaporanga; e Itapororoca.
Em relação às demais categorias tem-se: Elementos fundamentais do povoamento pri-
mordial – Caiçara, Coxixola, Ibiara, e, Taperoá (4); O paraíso na terra/sentimento do lugar –
Piancó e Sumé (2); Nome de Pessoas – Camalaú, Caturité, e, Manaíra (3); e, Hidrotoponímia
(Rio, Lagoa,...) – Igaracy e Pitimbu (2) (Tabela 3). Tipologias sem referência nas denomi-
nações indígenas dizem respeito as categorias: 2.1. Nome de lugares portugueses e de lugar
francês; 2.5. Nome de Santos; e, 3.4. Hidrotoponimia: Barra. Isto não descarta, numa análise
de maior detalhe a substituição de nomes indígenas por nomes associados categorias com
essas denominações promovidos no processo de colonização e povoamento.

Tipologias de nomes de lugares de origem indígena Nº %


1. Toponímia e matriz identitária
1. Nome Indígena 58
2. Rotas do povoamento primordial
2.1. Nome de lugares portugueses e de lugar francês
2.2. Elementos fundamentais do povoamento primordial 4 6,9
2.3. O paraíso na terra/sentimento (espírito) do lugar 2 3,4
2.4. Nome de Pessoas (Antroponímia) 3 5,2
2.5. Nome de Santos
3. Condições naturais locais
3.1. Biogeografia: Animais 12 20,7
3.2. Biogeografia: Plantas 28 48,3
3.3. Hidrotoponímia: Rio, Lagoa, Poço,… 2 3,4
159 // Sociedade e memória dos territórios

3.4. Hidrotoponimia: Barra


3.5. Acidentes morfológicos: Monte, Vale, Serra,... 4 6,9
3.6. Geologia: Areia, Rocha, Mineral, Metal,... 3 5,2
Total de Municípios 58 100,0

Tabela 3 – Tipologias presentes nos topônimos de origem indígena.


Fonte: Elaboração própria (2021).

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Associando esta categoria de análise ao mapa (Figura 3), é observável a predominância
da preservação de nomes indígenas, na unidade geomorfológica Depressão Sublitorânea
que, por sua vez, está associada a uma cobertura de Mata Atlântica (Leste da área) e
Cerrado que compõe predominantemente, a região do Agreste, área de transição entre o
Litoral e o Sertão. Não obstante, a denominação de sedes de municípios com indicativo
indígena expressam uma distribuição espacial presente nas demais regiões do estado, Cariri
e Sertão com significativa presença.

Figura 3 – Toponímia e matriz identitária: Nomes de origem Indígena.


Fonte: IBGE (2020). Elaborado por Borges Neto (2021).

Cabe ainda fazer referência a hidrografia, elemento fundamental na ocupação do es-


160 // Sociedade e memória dos territórios

tado. Conforme indicado anteriormente, dois eixos de ocupação foram fundamentais no


processo de colonização da Paraíba. Em relação a ocupação primordial, indígena, confor-
me a distribuição de nomes vinculados a linguagem de diferentes etnias é observável que
há uma indicação na categoria Hidrotoponímia: rios, lagoas,... que corresponde a Igaracy e
Pitimbu. Não obstante, ao analisar denominação de cidades que preservam essa a presença
de nomes indígenas, algumas questões surgem dessa distribuição: os indígenas em sua

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 160 17/06/2022 18:05:57


maior parte ocupavam a região do Agreste e Litoral por ser esta a área de melhor presença de
recursos para subsidiar às suas existências, comparativamente ao Sertão (Semiárido). Tanto
nesta região como nas demais, os municípios, que mantêm seus nomes originais indígenas,
estão localizados às margens ou próximas aos cursos d’água demonstrando o significado da
presença da água como critério de localização, em região ambientalmente seca.

Processo de colonização/rotas do povoamento primordial, demanda


da terra da redenção e nomes de lugares portugueses
Os nomes de lugares portugueses 
Os nomes de alguns lugares revelam a gênese do povoamento e o processo de colo-
nização na Paraíba, seja pela ocorrência de nomes de pessoas, de nomes de santos e de
nomes de lugares portugueses. Bayeux, nome francês, foi incluído nesta categoria como
único nome estrangeiro no intuito de homenagear à primeira cidade francesa (de mesmo
nome) a ser libertada do poder nazista pelos aliados durante a Segunda Guerra Mundial,
conforme indicamos anteriormente.
O mapa (Figura 4) expressa a distribuição de nomes de santos e de pessoas para a Paraíba.

161 // Sociedade e memória dos territórios

Figura 4 – Rotas do povoamento primordial: Nome Pessoas e Nome de Santos, identificado na Paraíba-Brasil.
Fonte: IBGE (2020). Elaborado por Borges Neto (2021).

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Nele visualiza-se a expressiva ocorrência de nome de santos, nesse estado (Figura 4). Em
relação ao povoamento primordial, especificamente, representado pelos nomes de pessoas
e nomes de santos, considerando a distribuição espacial é observável: em relação aos nome
de pessoas (Antroponímia) um reduzido nome de municípios classificados nesta categoria,
em comparação ao nomes de santos. Enquanto os nomes de pessoas aparecem registrado de
forma esparsa em todo o estado, os nomes de santos são identificáveis, em maior intensidade,
nas regiões, Sertão e Seridó paraibano. Notadamente, ao observar o mapa da hidrografia é
possível inferir de um lado a importância da rede fluvial, ainda que intermitente, no processo
de povoamento, sobretudo para o interior a região denominada Sertão.
Esses nomes revelam a história da ocupação portuguesa evidenciada, sobretudo no
Sertão em que os nomes de santos permitem uma associação a colonização portuguesa e a
religiosidade cristã.
Outras categorias relacionadas as rotas do povoamento primordial, podem ser observadas
no mapa (Figura 5).
162 // Sociedade e memória dos territórios

Figura 5 – Rotas do povoamento primordial: Elementos fundamentais do povoamento primordial.


Fonte: IBGE (2020). Elaborado por Borges Neto (2021).

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 162 17/06/2022 18:05:59


Nesse mapa (Figura 5), é possível identificar uma predominância no estado da Paraíba
de nomes de municípios que se vinculam aos elementos fundamentais do povoamento
primordial e, os que se vinculam ao paraíso na terra, e aos nomes portugueses já anterior-
mente referidos. Esta identificação revela, sobretudo, em relação aos nomes classificados
como paraíso na terra, o sentido topofílico atribuído pelos seus ocupantes ao chegarem a
novas terras. Os nomes remetem aos elementos fundamentais do povoamento primordial
(Condado; Nova Olinda; Malta; Sobrado; Montadas; Curral Velho, entre outros) e a
expectativa dos ocupantes que vinham em busca de redenção ou de encontrar o paraíso na
terra (Boa Ventura; Boa Vista; Bom Sucesso; Esperança; Sossego, entre outros).
O resgate da presença das capelas e povoados criados no século XVIII conforme siste-
matização no Quadro 3, expressam a permanência e a característica predominante das
denominações de santos na região de Piranhas e Piancó, eixo de ocupação para o interior
do estado (PB) associados, em menor números a nomes relativos aos constituintes da
natureza incluindo aqui, os nomes indígenas. Destaca-se neste quadro (Quadro 3) as mu-
danças dos nomes de povoados, por vezes acrescendo nome de pessoa ou um constituinte
natural e, como único nome completamente modificado é o nome do povoado de Canudos
substituído pelo nome Teixeira.

Doação de
Capelas Data* Povoação Nome Atual
Patrimônios
Nossa Senhora dos Milagres 1760 1760 e 1773 Povoação do Brejo Brejo do Cruz (PB)
Santa Rita de Cassia 1765 1765 Boqueirão Coremas (PB)
Nossa Senhora da Guia 1768 1768 Patos Patos (PB)
Nossa Senhora dos Remédios 1773 1773 Catolé Catolé do Rocha (PB)
Santa Luzia 1773 1756 Santa Luzia Santa Luzia (PB)
São Sebastião 1774 1774 Catingueira Catingueira (PB)
Nossa Senhora do Rosário 1775 - São João São João do Rio do Peixe
São José 1777 1777 São José São José de Piranhas
São José 1783 1783 Paulista Paulista
Santa Maria Madalena 1792 1792 Canudos Teixeira

Quadro 3 – Capelas no Sertão de Piranhas e Piancó na segunda metade do século XVIII.


163 // Sociedade e memória dos territórios

*A data corresponde à referência mais antiga encontrada na capela.


Fonte: Adaptado de Acervo do Cartório I Ofício de Notas “Cel João Queiroga” (Pombal-PB);
Abreu (2011); Pires (2003); e Seixas (1962) apud Soares (2012, p. 120).

Num comparativo com outros estados, particularmente, do Nordeste brasileiro


(Quadros 4) verifica-se a presença da toponímia portuguesa na denominação das vilas da

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 163 17/06/2022 18:05:59


capitania de Pernambuco e anexas. Especificamente em relação a Paraíba é observável uma
denominação vinculada a nomes de lugares portugueses, além de indicativos imperiais
como: Vila do Conde; Vila de Pombal; e, Vila Nova da Rainha, além de nomes de lugares
portugueses e de santos, demarcando com base nesses nomes o domínio português nessa
capitania, hoje, representando parte da região Nordeste do Brasil.

Nome Ano* Nome Ano*


Ceará
1 Vila do Soure 1755 7 Vila Real do Crato 1764
2 Vila de Messejana 1758 8 Vila Real de Sobral 1773
3 Vila de Arrounches 1759 9 Vila de Granja 1776
4 Vila de Viçosa Real 1759 10 Vila de Campo Maior 1789
5 Lugar de Monte - Mor-o-Novo 1760 11 Vila de El Rei 1791
Vila de Monte - Mor-o-Novo (Elevação
6 1764 12 Vila de São Bernardo das Russas 1801
do Lugar de Monte - Mor-o-Novo)
Rio Grande
Vila de Mipibu (Vila de São José
1 Vila Nova de Extremoz (Guajiru) 1760 5 1762
do Rio Grande)
2 Arês (Guaraíras) 1760 6 Vila Nova da Princesa (Assu) 1788
3 Vila de Portalegre 1761 7 Vila do Príncipe (Caicó) 1788
4 Vila Flor (Igramació) 1762
Paraíba
1 Vila de São Miguel da Baia da Traição 1762 6 Vila de Pombal 1772
2 Vila de Monte-mor - o -novo 1762 7 Vila Nova da Rainha 1790
3 Vila de Nossa Senhora do Pilar 1763 8 Vila Real de São João 1800
4 Vila do Conde 1764-5 9 Vila Nova de Souza (1776) 1800
5 Vila de Alhandra 1765
Pernambuco
1 Vila da Ilha de Santa Maria 1761 5 Lugar de Águas Belas 1762
2 Vila da Ilha de Assunção 1761 6 Lugar Barreiros 1763
3 Lugar de Porto Real 1762 7 Vila Atalaia 1764
4 Vila de Cimbres (Pesqueira) 1762
164 // Sociedade e memória dos territórios

Quadro 4 – Vilas constituídas na segunda metade do século XVIII na Capitania de Pernambuco e Anexas.
*Ano de instituição das respectivas Vilas.
Fonte: Adaptado de Carvalho (2008); Demtl e Carvalho (2010); Jucá Neto (2009, p. 52-53);
Medeiros (2007); Pinto (1977); e, Seixas (1962) apud Soares (2012, p.138).

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Condições naturais locais: biogeografia, hidrotoponímia,
(geo)morfologia14

A leitura dos topônimos oriundos das condições naturais locais (biogeografia, hidro-
grafia e elementos morfológicos/geológicos) indica que, um número significativo de lugares
estão impressos e distribuídos no espaço paraibano.
Os mapas, a seguir, representam a distribuição dos nomes de municípios denomi-
nados a partir das condições naturais originais e locais (Figuras 6, 7 e 8). Estas estão
expressas através da biogeografia, acidentes morfológicos e hidrotoponímia. Na Paraíba
os topônimos de maior presença correspondem a Hidrotoponimia: Rios, Lagoa, Poço,...
a exemplo de municípios denominados Água Branca; Alagoa Grande; Alagoa Nova;
Alagoinha; Brejo do Cruz; Brejo dos Santos; Cachoeira dos Índios; e, Cacimba de Areia
(Figura 6). A Biogeografia: Plantas sendo exemplos os municípios Algodão de Jandaíra;
Bananeiras; Cabaceiras; Campina Grande; Capim; Carrapateira; Casserengue; Junco do
Seridó (Figura 7) e em menor número os denominados na categoria Acidentes morfológi-
cos: Monte, Vale, Serra,... a exemplos dos municípios de: Pilar; Pilões; Pilõezinhos; Serra
Branca; Serra da Raíz; e, Boqueirão entre outros. Representativos da Geologia (rochas, areia,
minerais e metais) tem-se os municípios de: Pedra do Fogo; Areia; Areial, entre outros
(Figura 8).
O mapa relativo a hidrotoponímia (Figura 6) indica que esta nominação em relação
as condições naturais é a mais expressiva. Com topônimos distribuidos por todas as re-
giões paraibanas do Litoral ao Sertão e sobretudo associados aos cursos d’agua permitem
considerar a importância da presença da água, no processo de ocupação e povoamento,
sobretudo num estado dominado pelo ambiente semiárido.

14
Categorias relativas aos componentes naturais adotada na pesquisa: (i) mato; (ii) condições biogeográfi-
cas locais: pinhal, coqueiral, mata; (iii) campina, sertão, gramado. Os nomes relacionados à água foram
agrupados em três classes: (i) continental: rio, cachoeira, arroio, passo, ponte, lagoa, pântano; (ii) porto;
(iii) barra. Foram destacados, ainda, os nomes relacionados a acidentes morfológicos (monte, morro,
morrinho, vale, serra, planalto, cerro, chapada) ou à Geologia (mineral, rocha, lajeado). Os subgrupos
constituídos são os seguintes: 3.1. Biogeografia: animais; 3.2. Biogeografia: plantas; 3.3. Condições bio-
165 // Sociedade e memória dos territórios

geográficas locais: mato; 3.4. Condições biogeográficas locais: pinhal, coqueiral, mata; 3.5. Condições
biogeográficas locais: campina, sertão, gramado; 3.6. Hidrotoponímia: rio, cachoeira, arroio, passo,
ponte, lagoa, pântano; 3.7. Hidrotoponímia: porto; 3.8. Hidrotoponímia: barra; 3.9. Acidentes
morfológicos: monte, morro, morrinho, vale, serra, planalto, cerro, chapada; 3.10. Geologia: areia,
mineral, rocha, lajeado. Para a Paraíba os agrupamentos 3.3. Condições biogeográficas locais: mato;
3.4. Condições biogeográficas locais: pinhal, coqueiral, mata; 3.5. e, Condições biogeográficas locais:
campina, sertão, gramado e 3.7. Hidrotoponímia: porto - não foram considerados na classificação utilizada
neste texto.

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Figura 6 – Hidrotoponímia: Rio, Lagoa, Poço, Barra, entre outros.
Fonte: IGBE (2020). Elaborado por Borges Neto (2021).
166 // Sociedade e memória dos territórios

Figura 7 – Biogeografia: Nome de Animais e Nome de Plantas.


Fonte: IBGE (2020). Elaborado por Borges Neto (2021).

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O mapa dos topónimos com relação a categoria da Biogeografia: Animais e Plantas
(Figura 7) revela que no espaço paraibano, apresenta uma maior concentração de
nomes de plantas nas regiões próximas ao Litoral (área originalmente de mata) e, em
menor número no Sertão. Ainda analisando o mapa (Figura 7, canto inferior esquerdo)
tem-se que há uma expressiva denominação de topónimos de plantas, sobretudo, ao
longo dos cursos d’água. Por outro lado os topônimos que indicam nomes de animais
são pouco expressivos estando presentes no Sertão e Cariri, sendo eles: Emas, Gado
Bravo; e, Patos.
E por fim, o mapa que representa os topónimos classificados como Nomes relaciona-
dos com a morfologia e/ou geologia do terreno (Figura 8). Comparando a denominação
dos municípios sob esta categoria, sobretudo em relação aos associados a Hidrotoponímia
(Figura 6) e a Biogeografia (Figura 7), denota-se um baixo número de municípios com estas
denominações, sua distribuição é exparsa pelo espaço do estado. Considerando a geomor-
fologia do Semiárido (de natureza excêtrica e singular), com presença de serras, inselbergs,
lajedos com significativa área de rochas expostas é curioso serem poucos os nomes dados
aos lugares sob essa categoria, independente de serem em número menores, os nomes
topônimos revelam características expressivas dos locais.

167 // Sociedade e memória dos territórios

Figura 8 – (Geo)morfologia: Nomes relacionados com a morfologia e/ou geologia do terreno.


Fonte: IBGE (2020). Elaborado por Borges Neto (2021).

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De todo modo, os elementos que compõem as condições naturais expressas nos topónimos
dos nomes dos municípios paraibanos, permitem, num primeiro momento compreender
a relação existente entre sociedade (por incorporar a interferência humana) e natureza (por
fornecer recursos essencias à subsistência humana – sociedade), e num segundo momento
entender a historicidade primordial desses lugares, atráves da origem topónimca de suas
respectivas denominações.

Remate

Os resultados deste trabalho demonstram o predomínio de nomes indígenas na matriz


identitária da Paraíba, estando ainda hoje presentes em 58 municípios, dos 223 existentes,
o que agrega 26% do total, exteriorizando assim, através da linguagem, a relação dos
primeiros povos a ocuparem essa parte do país com a natureza (Melo, 2013), assim como
a herança cultural deixada por estes.
Dentre as condições naturais locais, sobressaíram os nomes de plantas, presentes ainda
hoje em 28 nomes de municípios da Paraíba. Esse aspecto, também observado no trabalho
de Melo (2013), no estado de Alagoas, reflete a abundância original da flora encontra-
da no ambiente, associada, novamente, a forte influência indígena nessa denominações
(Sampaio, 1928) e, para além disso, demonstra também a relação de uso que esses povos
teriam com a espécie que denominou o lugar, ou ainda que a sua abundância proporcio-
naria maior presença de elementos da fauna que se alimentariam dessa planta e seriam
passíveis de uso na alimentação humana, ou que também poderiam representar presença
de maior umidade local ou recursos hídricos de superfície, elementos fundamentais para
a sobrevivência, principalmente em se tratando do clima semiárido dominante na maior
parte do território da Paraíba-Brasil.
E marcante também, o nome de Santos, particularmente no interior do estado, sobre-
tudo no Sertão. Expressam a presença da colonização portuguesa, na dimensão do culto
a religiosidade Católica. Os nomes dos lugares à chegada do ocupante eram batisadso, na
sua grande maioria, por nomes de santos e santas, sugeridos pelos recém ocupantes de
terras, por vezes influenciados pela religiosidade femenina.Isto explica também a presença
168 // Sociedade e memória dos territórios

de nomes compostos que associam santos (as) as condições naturais do local.

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 168 17/06/2022 18:06:01


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II. CIDADE E DESENVOLVIMENTO
URBANO

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Cidade Universitária de Coimbra e a sua
relação com a população: uma evolução
ao longo do tempo, vivências e memórias

Joana Capela de Campos1


Claudete Oliveira Moreira2
Vítor Murtinho3
Norberto Santos4

Introdução

Em 22 de junho de 2013, a candidatura Universidade de Coimbra – Alta e Sofia (UC-AS)


viu reconhecido e declarado o seu Valor Universal Excecional5 (VUE), sendo inscrita na
Lista do Património Mundial (LPM) da UNESCO (Figura 1).
Uma das considerações proferidas, na sessão de avaliação da pretensão da candida-
tura da UC-AS, sublinhava a pertinência desta, ao assumir a intervenção realizada pelo
Estado Novo – a construção da Cidade Universitária de Coimbra (CUC), com toda a sua
complexidade – como espaço incluído na delimitação da área candidata à LPM. Com um
total de 36,2 hectares correspondentes à área delimitada do Bem UC-AS – tendo a Alta
29,7 hectares e a Baixa 6,5 hectares6 – grande parte da área inscrita na LPM corresponde

1
Universidade de Coimbra, CEGOT; HTC-CFE NOVA FCSH
2
Universidade de Coimbra, CEGOT, Faculdade de Letras
3
Universidade de Coimbra, CES-UC, DARQ-FCTUC
4
Universidade de Coimbra, CEGOT, Faculdade de Letras
173 // Sociedade e memória dos territórios

5
A justificação do VUE teve por base os critérios (ii), (iv) e (vi), sendo também justificadas a sua autentici-
dade e a sua integridade (Universidade de Coimbra - Gabinete de Candidatura à UNESCO, 2012; World
Heritage Committee, 2013, pp. 208–9).
6
A área delimitada do Bem UC-AS é enquadrada pela sua respetiva área de proteção com 80,8 hectares, per-
fazendo a área total do Bem inscrito na LPM 117 hectares, depois da 43.ª sessão do Comité do Património
Mundial, realizada em Baku (Azerbaijão), em 07/07/2019, onde foi anunciada a decisão de inscrever o Museu
Nacional de Machado de Castro (anteriormente, localizado na área de proteção do Bem) na constituição do
Bem UC-AS, alargando, assim, a área inscrita da Alta Património Mundial dos 29 para os 29,7 hectares.

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 173 17/06/2022 18:06:01


ao resultado da construção concretizada pela Comissão Administrativa do Plano de Obras
da Cidade Universitária de Coimbra (CAPOCUC), que entre 1941 e 1975 se objetivou
como causa de destruição de património urbano que, ao longo de séculos, havia conformado
o Bairro Universitário na Alta de Coimbra.
O princípio de relação estabelecido pelos processos de patrimonialização (Davallon,
2002) passa por atribuir ou reconhecer valor a um determinado Bem, por uma comuni-
dade. Com o início do processo de candidatura da UC-AS à LPM, em 2003, a Cidade
Universitária de Coimbra passava, deste modo, a integrar o declarado VUE reconhecido
ao Bem e formalizado pelo Estado Português. Todavia e em rigor, a relação que se foi
estabelecendo entre a população da Alta universitária7 e o novo espaço construído não se
apresentou constante ao longo dos últimos 85 anos.
O presente artigo assenta na investigação de processos de patrimonialização que se
estabelecem em cada momento, ao longo do tempo. Tendo em conta que a aceitação
que a população vem demonstrando em relação à construção da Cidade Universitária de
Coimbra tem vindo a sofrer variações, do passado ao presente, o propósito desta pers-
petiva baseia-se no processo da evolução da relação estabelecida entre este património e
a sua cidade.
Por conseguinte, a pertinência do estudo deste caso paradigmático assenta na
análise de processos de patrimonialização que se estabelecem ao longo do tempo: por
um lado, a partir da evolução da noção sobre o património construído e, por outro
lado, a partir da vivência nesses espaços construídos correlacionada com um fenómeno
transformativo de relação entre a perda e a criação de memórias. Deste modo, esta refle-
xão convoca alguns episódios e acontecimentos ocorridos ao longo da construção da
Cidade Universitária de Coimbra (CUC), que sugerem a tradução dessa relação Cidade
Universitária-cidade, permitindo aferir o propósito deste estudo, que recorre, para tal,
a uma revisão bibliográfica, à análise documental e a alguns indicadores da atividade
turística na cidade antes e após a inscrição do Bem Universidade de Coimbra - Alta e
Sofia na LPM.
174 // Sociedade e memória dos territórios

7
Para este estudo, a população da Alta universitária compreende as comunidades e os indivíduos que se
estabelecem no lugar e que desenvolvem laços de relação de identidade e de pertença com o lugar, a cultura,
os hábitos e tradições que vão sendo produzidos e reproduzidos ao longo do tempo, pese embora as suas
variações de grupo – os residentes, os habitantes, os comerciantes, os salatinas, a academia, os estudantes, os
conimbricenses, os visitantes, os turistas.

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 174 17/06/2022 18:06:01


Figura 1 – Planta do Bem Património Mundial UNESCO Universidade de Coimbra – Alta e Sofia
e da sua área de proteção, em 2021. Elaboração dos autores.

Universidade sagrada
175 // Sociedade e memória dos territórios

“A fôsca feição mediévica que a cidade mostrava ainda, sobretudo no pendor da


colina e à roda da Universidade; vielas e betesgas; o casario miúdo e sórdido; arcos e
passadiços; decrepitude e bolor; e a mesma imóvel fisionomia das coisas.”
Manuel Ribeiro, 19258

8
Cf. (Ribeiro, 1925, p. 80).

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Manuel Ribeiro relata-nos como a circunstância de Coimbra e a sua colina sagrada
se constituía como um dado adquirido pela sua população, cuja realidade e perceção do
existente vinham a ser consolidadas paulatinamente desde a Idade Média, sobretudo, na
Alta universitária.
Não seria de estranhar que a Universidade de Coimbra se insurgisse quando, desde
1918 o Governo de Portugal decidira atribuir verbas para a construção das novas instala-
ções universitárias em Lisboa9 e não considerava aquela que, até há poucas décadas, havia
sido a única universidade portuguesa10. Na sessão de 23 de maio de 1934, o Senado da
UC, nas palavras do Diretor da Faculdade de Direito, Mário de Figueiredo, exaltava as
condições de ambiente e tradição da UC e reclamava “a valorização material da que já
existe, de forma a habilitá-la a cumprir completamente a sua função cultural e educativa”
(Senado da Universidade de Coimbra, 1929, vol. 4, p. 156).
A estes argumentos não era alheio o antigo aluno da UC e presidente do Conselho,
António de Oliveira Salazar, que reforçava, no discurso da Festa da Independência Nacional,
em 1937, a ideia do programa dos melhoramentos que pessoalmente ambicionava para a
parte universitária de Coimbra, designadamente, “isolar a colina sagrada, só activa para o
estudo na doce e calma atmosfera coimbrã”, tendo em conta que “a «Alta» é já de si, por obra
dos nossos antepassados, uma grandiosa cidade universitária” (Salazar, 1945, vol. II, p. XX).
Depois de duas tentativas falhadas11, em 15 de outubro de 1941, era constituída
oficialmente a Comissão Administrativa do Plano de Obras da Cidade Universitária de
Coimbra (CAPOCUC), assumindo a continuidade da equipa e do trabalho desenvolvido
pelo Atelier de Belém12, com o engenheiro Sá e Mello e o arquiteto Cottinelli Telmo a
responderem diretamente ao ministro Duarte Pacheco.
Não obstante as obras da CUC terem sido enquadradas nas comemorações dos
Centenários da Nação13, dois meses depois da sua constituição, a CAPOCUC iniciava o

9
Em 1918, o governo de Sidónio Pais convocava o início dos trabalhos de estudo para as instalações da
Universidade de Lisboa; durante a década de 20, eram desenvolvidos esforços para a construção do Instituto
Superior Técnico; e o ministro das Obras Públicas Duarte Pacheco dava autorização, por Decreto-Lei em
13/12/1934, para se avançar com as obras de construção dos edifícios que haveriam de albergar a Reitoria,
a Faculdade de Letras e a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
10
Criada em 1 de março de 1290, a universidade portuguesa conhece morada definitiva e única em Coimbra
desde 1537 – excetuando o período de funcionamento da Universidade de Évora (1559-1759) – até ao
176 // Sociedade e memória dos territórios

início do século XX com a criação das Universidades de Lisboa e do Porto, em 1911. Cf. (Universidade de
Coimbra, 1997).
11
Cf. (Capela de Campos, 2019; Rosmaninho, 1996).
12
O Atelier de Belém era liderado pelo Eng.º Sá e Mello e pelo Arq.º Cottinelli Telmo, responsável pela con-
cretização da Exposição do Mundo Português em 1940 e do Plano de Obras da Praça do Império e Zona
Marginal de Belém de 1941 (Capela de Campos, 2019, pp. 245–58).
13
Cf. (Ministério das Obras Públicas e Comissão Administrativa das Novas Instalações Universitárias, 1961,
p. 10).

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processo de expropriação dos terrenos particulares que seriam necessários para a construção
da CUC14, beneficiando da experiência adquirida na capital, pelo Atelier de Belém.

Minerva monumental

“Da conversa, uma noite, lastimávamo-nos que o eixo principal da Cidade


Universitária não pudesse ser mais extenso, ou prolongado – e foi por ter mandado
vir a planta da Cidade de Coimbra que sua Excelência se lembrou da possibilidade
de lançar uma grande escadaria que satisfaria o objectivo apontado ao mesmo tempo
que contribuiria para a grandeza do conjunto.”
Cottinelli Telmo, 194315

Em 26 de fevereiro16 e 9 de abril17 de 1942, a CAPOCUC dava continuidade ao


processo das expropriações. Em 7 de setembro, o Plano de Obras da Cidade Universitária
de Coimbra, assinado por Cottinelli Telmo, era aprovado. Em 12 e 17 de dezembro de

14
Ofícios 1-A a 10-A e 11 a 17, de 15/12/1941, do diretor-delegado da CAPOCUC Sá e Mello, para os
proprietários das ruas da Alta que estariam sujeitos a expropriação, designadamente, nas Ruas do Cabido,
da Ilha, Dr. Guilherme Moreira, das Parreiras, Camilo Castelo Branco, de São Pedro, José Falcão, Dr. Luiz
Costa Almeida, do Borralho, do Guedes, Sá de Miranda, Travessa da Rua de São Pedro e Marco da Feira,
para procederem à nomeação de perito para a fixação do preço para a aquisição das propriedades, dentro
do que era estipulado pela Lei de julho de 1938 (decorrente das necessidades da execução das obras da
Exposição do Mundo Português). Cf. PT/AUC/ACD/CAPOCUC: Fundo CAPOCUC: Correspondência
expedida (1941-1942).
15
Documento manuscrito “Cidade Universitária de Coimbra – determinações, desejos e ideias do Senhor
Ministro das Obras Públicas e Comunicações. O que está a ser feito e o que está por fazer”, sem data, sem
autor e atribuído a Cottinelli Telmo, o arquiteto-chefe da CAPOCUC, (possivelmente) em 1943, pelo teor
e referências ao projeto, aos programas a equacionar e aos eventos. Cf. PT/AUC/ACD/CAPOCUC: Fundo
CAPOCUC: Pasta 103.
16
Ofícios 110 a 173, de 26/02/1942, de Sá e Mello, para os proprietários das ruas da Alta, designadamente, nas
Ruas do Cândido dos Reis, Dr. Guilherme Moreira, Camilo Castelo Branco, de São Pedro, José Falcão, Dr. Luiz
Costa Almeida, do Borralho, do Guedes, Sá de Miranda, Travessa da Rua de São Pedro, Largo da Feira e Marco
da Feira. Cf. PT/AUC/ACD/CAPOCUC: Fundo CAPOCUC: Correspondência expedida (1941-1942).
17
Ofícios 238 a 500 e 501 a 644, de 09/04/1942, de Sá e Mello, para os proprietários das ruas da Alta, de-
signadamente, nas Ruas Guilherme Gomes Fernandes, do Rego de Água, do Cotovelo, do Arco da Traição,
do Arco do Bispo, Câmara Pestana, Dr. Daniel de Matos, de São Pedro, Dr. Costa Simões, Dr. José Falcão,
177 // Sociedade e memória dos territórios

Dr. Luiz Costa Almeida, do Borralho, do Guedes, das Cozinhas, Sá de Miranda, Borges Carneiro, do
Norte, Dr. José Rodrigues, Cândido dos Reis, dos Estudos, do Forno, dos Anjos, dos Militares, Terreiro
do Pela, Beco dos Militares, Travessas da Trindade e da Rua do Norte, Couraça de Lisboa, Marco da Feira
e Largos do Castelo, da Feira e Dr. José Rodrigues. Em ofício 645, de 09/04/1942, Sá e Mello requeria ao
chefe de Secção das Finanças do Concelho de Coimbra, para apurar se os proprietários de 200 matrizes
prediais estariam em situação de incumprimento ao Estado, como devedores de qualquer contribuição ou
imposto. Cf. PT/AUC/ACD/CAPOCUC: Fundo CAPOCUC: Correspondência expedida (1941-1942) e
Correspondência expedida (1942).

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1942, por aprovação do ministro das Obras Públicas e por Despacho da Presidência do
Conselho, era dada a autorização para se procederem às expropriações da Alta e pagamento
de indemnizações, com dispensa de formalidades legais (Vítor, 1999), conforme estava
previsto para a primeira fase de expropriações, embora sem grande publicidade18.
Nesta sequência não houve lugar a que as reclamações dos proprietários visados, realizadas
em 16 de dezembro, sobre a discordância do plano e das construções da CUC, tivessem
qualquer influência sobre Salazar (Rosmaninho, 2006, p. 323). Quando confrontada com
as expropriações e as demolições, a população da antiga Alta universitária começou a ter
a verdadeira noção da escala da área de intervenção. Possivelmente, até ao final de 1942,
a concretização de uma intervenção tão profunda ainda não havia sido consciencializada
pelas pessoas (Figura 2).
O crescendo da expectativa e ansiedade pela nova CUC, que se verificava até então,
começava a esvanecer-se face à consciência da perda – do lugar e de toda uma atmosfe-
ra – com o início das demolições nas Ruas das Parreiras e da Trindade, em abril de 1943
(AAEC 1991), para dar início à construção do Arquivo da UC, em 5 de outubro seguinte
(Rosmaninho, 2006).
Neste processo, um momento particularmente simbólico no espaço e no tempo, diz
respeito à inovação das Escadas Monumentais. A ideia da sua construção foi atribuída
a Duarte Pacheco, tendo surgido, possivelmente, durante o ano de 1943. Com projeto
de Cottinelli Telmo, com início do estudo em 194319 e prolongando o projeto de exe-
cução por 1944, a construção das Monumentais tinha início em 4 de janeiro de 1945
(Rosmaninho, 2006, p. 324).
Nesta fase, este elemento simbolizava a imposição da regra da axialidade e da monu-
mentalidade ao eixo ordenador da conceção de projeto da CUC, representando o poder
e a vontade do Estado. Camilo Castelo Branco já havia constatado, numa Coimbra do
século XIX, que “o Progresso é barrigudo: não cabe em ruas estreitas” (Castelo Branco,
1981, p. 64). As Monumentais ilustravam essa ideia e passavam a ser o acesso privilegia-
do na nova estrutura cénica universitária, tendo em vista o isolamento da colina sagrada
conforme o desejo de Salazar, constituindo-se num autêntico desafio ao esforço físico e
simbólico, para aqueles que pretendiam aceder ao valeroso ofício de Minerva (Camões,
1572, p. 54) (Figura 3).
178 // Sociedade e memória dos territórios

18
Em 12/12/1942, o presidente da CAPOCUC Maximino Correia em entrevista ao Diário de Coimbra
relativizava o volume da intervenção e referia que “todas as expropriações serão feitas com a maior equidade,
quanto a indemnizações” (Rosmaninho, 2006, p. 201).
19
Tendo em conta a datação do seu desenho, publicado na revista Panorama (Telmo, 1944, p. 4), a propósito
da homenagem ao ministro Duarte Pacheco que havia falecido precocemente em 16 de novembro de 1943.

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Figura 2 – Registo fotográfico da exposição do
Plano de Obras da CUC, na Encadernação de
António Maria Correia, para que a população
tivesse o seu conhecimento.
Fonte: (AAEC, 1991, p. 27).

Figura 3 – Desenho de Cottinelli Telmo para as


Escadas Monumentais, datado de 1943.
Fonte: (Telmo, 1944, p. 4).

179 // Sociedade e memória dos territórios

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Apesar das demolições que já avançavam sobre o património arquitetónico e urbano
do bairro universitário, Vergílio Correia lembrava que “Cidade Universitária é, desde há
vários séculos, Coimbra. Para Portugal Coimbra continua mesmo a ser, por antonomásia,
a Cidade Universitária. – Hoje como no passado” (Correia, 1946, p.191).
No entanto, eram as comunidades da Alta que iam sentindo na pele o avanço e a imposição
do progresso, esse “iconoclasta implacável que subverte as coisas santas da religião artística de
antiquários e poetas” (Castelo Branco, 1981, p. 64), sob o esforço do camartelo. As demolições
iam respondendo às necessidades, consoante o avanço das obras dos novos edifícios universitários,
sendo estruturadas e organizadas por sectores identificados de A a W (Figura 4).
Em paralelo à construção da CUC era desenvolvida a construção de bairros sociais e
residenciais para alojar os mais desfavorecidos, que estavam a ser despejados da Alta, desig-
nadamente, em Celas (1945-1947), Cumeada (1945-1951), Lomba da Arregaça e Fonte
do Castanheiro (1946-1950) e Conchada (1948-1952), num esforço que a CAPOCUC
havia impelido para o Município20.

Figura 4 – Planos das expropriações, tendo por base o Plano da CAPOCUC,


estruturado e organizado por sectores identificados de A a W e por fases.
Fonte: Fundo CAPOCUC-AUC, GCU-UC.

Realojamento

“… da ocupação do Bairro de Celas, pelas famílias desalojadas da Alta, coagidas


pela força do progresso, isto é, em virtude da demolição do velho Bairro Alto, para a
180 // Sociedade e memória dos territórios

construção da Cidade Universitária.”


João Benedito, 195321
20
Cf. (Rosmaninho, 2006, pp. 324–27; Vítor, 1999).
21
Na edição de O Despertar de 10/01/1953, João Benedito expressava na sua coluna “Notícias do Bairro
de Celas”, o ‘estado de espírito’ dos Salatinas da Alta, passados cinco anos da mudança forçada para o Bairro
de Celas, ocorrida em 1948 (J. M. A. e Silva, 1988).

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Em janeiro de 1948, cem famílias salatinas da Alta universitária iniciavam a mudança
para o novo Bairro de Celas, onde as esperavam “100 moradias térreas e geminadas, com
pequenos logradouros ajardinados, dispostas ao longo de 6 arruamentos, baptizados com
nomes de ruas da velha Alta” (J. M. A. e Silva, 1988, p. 137). Conquanto muitos tenham
ficado beneficiados pelas novas condições de habitabilidade, deixaram de estar no espaço
referencial de toda a vida, nados e criados, como referia o relato de João Bernardino (J. M.
A. e Silva, 1988). A saudade e a tristeza pelo espaço que existia, da vivência e da vizinhança
quotidiana passavam a ser a tónica dos antigos residentes do bairro universitário.
Por contraste, em novembro do mesmo ano, a revista Defesa Nacional22 defendia que
o empreendimento imposto a Coimbra era um “dos mais transcendentes” fatores “da reno-
vação material, base do ressurgimento moral e intelectual da Nação”, lançados pelo Estado
Novo. Contrariamente à realidade concretizada no terreno, o discurso oficial sublinhava
essa mesma realidade noutros moldes: “parece, à primeira vista, que teria sido preferível
construir uma cidade universitária nova, em terreno livre23, mas já assim não pensará quem
conheça a Universidade e souber que ela, nesses séculos da sua gloriosa existência, acumulou
um património que tem de ser mantido, respeitado e utilizado”24.
O descontentamento com o processo de intervenção na Alta começava a alargar a
outros públicos e a manifestar-se sob algumas reações que se faziam sentir contra as cons-
truções dos edifícios que começavam a conformar o novo espaço universitário. A propó-
sito da inauguração da Faculdade de Letras (FLUC), o jornal A Voz, em 19 de abril de
195125, dava nota desse evento assistido por algumas considerações sobre a estética do
edifício, referindo que “externamente, aquilo tanto poderia ser uma fábrica como outra
coisa qualquer”. Não obstante, as críticas tornavam-se mais duras a propósito da esta-
tuária do exterior da FLUC, cujo gosto era colocado em causa, quando a mesma notícia
rematava que “aqui em Coimbra está patente mais um espectáculo: as obras pornográficas
da Cidade Universitária!”.

22
No artigo “A urbanização de Coimbra imposta pelas grandiosas obras da Cidade Universitária”, nas páginas
173-174, da Revista Defesa Nacional, n.º 175, novembro de 1948. Cf. PT/AUC/ACD/CAPOCUC: Fundo
CAPOCUC: Pasta CUC 2008-75.
23
De acordo com a coluna “Notícias do Bairro de Celas”, de João Benedito, de 10/01/1953, o espaço dispo-
nível para a construção do Bairro de Celas havia sido avançado como proposta alternativa para a construção
181 // Sociedade e memória dos territórios

da CUC (J. M. A. e Silva, 1988, p. 141), corroborando a hipótese de terem surgido propostas alternativas
da construção da CUC noutros locais da cidade, embora não tivessem sido consequentes ou sequer consi-
deradas pelo governo.
24
No artigo supra citado, página 174, da Revista Defesa Nacional, n.º 175, novembro de 1948. Cf. PT/AUC/
ACD/CAPOCUC: Fundo CAPOCUC: Pasta CUC 2008-75.
25
Em ofício de Maximino Correia, presidente da CAPOCUC, de 04/05/1951, para o engenheiro diretor-de-
legado da CAPOCUC, Manuel de Sá e Mello, onde anexava o respetivo recorte de jornal. Cf. PT/AUC/
ACD/CAPOCUC: Fundo CAPOCUC: Pasta CUC 2008-75.

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Para além do desagrado sobre a estética, também a morosidade da execução das obras
da CUC começava a revelar-se um problema de difícil resolução, desde a dificuldade de
obtenção de materiais, aos seus preços especulativos e à falta de mão-de-obra26.
Paralelamente a esta vivência local, a CUC era divulgada internacionalmente, sob o
signo da propaganda do Estado Novo, ainda no rescaldo da Exposição de Obras Públicas,
realizada entre maio e novembro de 1948. Sobretudo, de Moçambique, do Brasil e da
Suíça, de 1952 a 1955, chegavam à CAPOCUC solicitações de informação, fotografias,
publicações e outros materiais que pudessem ser partilhados, tendo em conta o interesse
manifestado em conhecer e dar a conhecer os projetos, a construção e a moderna arquitetura
da CUC (Capela de Campos e Murtinho, 2018).

Estagnação

“Respira-se, na «Alta», como que uma atmosfera de estagnação, em que o que se


vai fazendo parece ser apenas para que não se diga que nada se faz.”
Diário de Coimbra, 04/11/195927

A leitura e aceitação do construído – pelo confronto entre o velho e o novo – foram


sofrendo transformações mediante a vivência dos espaços e a gestão das memórias – aque-
les e aquelas que se foram perdendo e os novos espaços e as novas memórias que se foram
construindo. Este contexto da perda e da demolição dos espaços exaltava a valorização
do que havia sido destruído, uma vez que esses lugares e essas memórias constituíam-se
como referências de vida quotidiana da população da Alta universitária. Embora a CUC
tivesse sido apresentada como um valor acrescentado de inovação, de renovação e de
espírito empreendedor do Estado Novo, a sua receção pelas comunidades locais não
seguia essa leitura.
Não só o espaço da cidade universitária havia sido destruído, em que a assunção da
tabula rasa se assumia como premissa de projeto (Capela de Campos e Murtinho, 2017),
como também a sua população residente havia sido realojada noutros espaços da cidade,
construídos para esse efeito – outros locais que não aquele de pertença quotidiana e de
182 // Sociedade e memória dos territórios

‘uma vida inteira’.

26
Algumas notícias de periódicos, como o Correio de Coimbra, de 09/03/1952, referiam que as obras da CUC
avançavam com 7 trabalhadores (Vítor, 1999).
27
Em 04/11/1959, o Diário de Coimbra publicava a notícia “Os «Arcos» do Aqueduto de S. Sebastião vão
ficar libertos dos prédios que os maculavam”, na página 1, conforme o recorte de jornal arquivado pela
CAPOCUC. Cf. PT/AUC/ACD/CAPOCUC: Fundo CAPOCUC: Pasta 340.

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Todavia, em 1965, já se fazia sentir a objetiva falta de espaço das novas instalações
universitárias, tendo em conta o paulatino aumento da população universitária (Cravidão,
1991). Nesse sentido, o engenheiro diretor-delegado da CAPOCUC Louza Vianna solici-
tava28 ao arquiteto Vaz Martins que orientasse “o estudo das zonas limites e de protecção
da CUC”, na Alta e em Santa Clara (na outra margem do rio Mondego), de modo a
definir e integrar “zonas de reserva”, tendo em conta a “eventualidade da sua futura utili-
zação”. Ainda nesse ofício de 29/03/1965, Louza Vianna assumia que “essas áreas dariam
não só a possibilidade de desafogo e de ampliação para a CUC – que naturalmente terá
necessidade de se expandir no futuro e de dispor de locais para novas instalações dada a
próxima saturação do espaço disponível actual”. Para Louza Viana esta medida impediria
que, no futuro, se evitassem “tentações para inconvenientes e condenáveis demolições de
novas áreas da parte velha, mas tão característica da cidade”.

Crise académica

“Em nome dos estudantes da Universidade de Coimbra, peço a palavra!”


Alberto Martins, 17/04/196929

O ano de 1969 ficava marcado pela crise académica. Durante a cerimónia de inaugu-
ração do edifício da Faculdade de Matemática, com a presença do Presidente da República,
os estudantes de Coimbra, representados pelo presidente da Associação Académica de
Coimbra (AAC) Alberto Martins, pediram a palavra para reivindicar melhores condições
de renovação das metodologias de ensino para uma universidade mais democrática. A
recusa da licença para os estudantes falarem e o abandono das instalações por parte das
autoridades, levaram a que seis mil estudantes se reunissem em Assembleia Magna, nos
jardins da AAC, decretando o luto académico, após a prisão do presidente da AAC e de
outros estudantes, pela PIDE, nesse mesmo dia (Figura 5).
A propósito das comemorações do cinquentenário do 17 de abril de 1969, Alberto
Martins relembrava o país de então: “nós vivíamos em ditadura! Era uma ditadura com
censura; com uma polícia política; Portugal a cumprir uma guerra colonial em três frentes
183 // Sociedade e memória dos territórios

– Angola, Guiné, Moçambique; um país pobre, analfabeto, subdesenvolvido, muito desi-


gual; em que o nosso destino (dos jovens) estava traçado! Era este o país” (Martins, 2019).

28
Em ofício n.º 464, de 29/03/1965, de Augusto Louza Vianna, para o diretor dos Serviços dos Monumentos
Nacionais, João Filipa Vaz Martins. Cf. PT/AUC/ACD/CAPOCUC: Fundo CAPOCUC: Pasta 593.
29
Cf. (Martins, 2019).

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Sob outra perspetiva, o declínio do poder do Estado Novo, na sua fase final, ficaria
evidenciado pelo ‘ajuste’ que era operado na organização das Obras Públicas. A Alta uni-
versitária não ficaria alheia a esta nova realidade e a extinção da CAPOCUC era publicada
por Decreto-Lei, em 5 de agosto de 1969. A partir de 1 de outubro, os serviços e bens da
CAPOCUC transitavam para a Direção-Geral das Construções Escolares, que assumiria a
concretização das obras da CUC, até à finalização da construção do edifício da Faculdade
de Ciências, em 1975.
Os acontecimentos de 1969 tornavam-se no mote necessário para a transformação
de uma consciência crítica, e cada vez mais comum, sobre as ações e os órgãos de poder
da ditadura, no espaço da Alta universitária. Também por isto, para o atual reitor da UC
Amílcar Falcão, 17 de abril de 1969 tornar-se-ia no dia que abria caminho à revolução de
24 de abril de 1974 (Martins, 2019).
Ficaria concluído, em 1975, já em período pós-revolução, o último edifício da CUC
para acolher a Faculdade de Ciências. No entanto, a sua inauguração passaria despercebida
e sem grande publicidade. A intervenção na Alta cumpria, assim, grande parte do plano
de implantações arquitetado por Cottinelli Telmo, embora deixasse por resolver alguns
momentos de ligação e de conformação espacial que, apesar da monumentalidade e axiali-
dade atribuída ao lugar, limitam a plena leitura dessa intenção projetual. O momento mais
evidente destaca-se na praça desenhada como plataforma privilegiada de acesso, receção e
distribuição espacial, onde os eixos visuais permitiam decifrar a composição cénica estru-
turada e ordenada da acrópole universitária e que, devido à não execução do plano na sua
totalidade, limita essa leitura espacial. O Largo D. Dinis aconteceu porque o desenho da
praça não se concretizou, faltando para tal propósito a execução do edifício para o novo
Hospital da Universidade – facto que, por sua vez, garantiu a não destruição dos Colégios
das Artes e de São Jerónimo.
Numa análise retrospetiva, Carneiro da Silva (1981) advogava que uma de duas
hipóteses teria que ser concretizada no espaço da Alta universitária: ou a demolição,
no âmbito em que ocorreu; ou caso a opção oficial tivesse passado por outra forma que
não a construção da CUC tal como se ia concretizando, as construções e edificações
existentes na Alta teriam que ser totalmente saneadas e reconstruídas. Como fazia notar,
“a maioria das casas seriam hoje inadiáveis porque numerosas delas nem saneamento
184 // Sociedade e memória dos territórios

tinham, e quando tinham era uma cloaca na escada que servia vários andares” (A. C.
da Silva, 1981, III). Em todo o caso, Carneiro da Silva reconhecia que a operação do
Estado Novo e da CAPOCUC no bairro universitário tinha sido o mote necessário para
uma efetiva expansão da cidade.

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Figura 5 – Protesto dos estudantes, a caminho da AAC, no dia 17/04/1969.
Fonte: GCU-UC.

Introspeção

“Recuperação e vivificação da Lusa-Atenas – Coimbra considerada como mo-


numento de interesse europeu ou mesmo mundial.”
Diário de Coimbra, 18/03/198230

Na década de 80 do século XX, alguns acontecimentos também refletem a relação


emotiva então estabelecida entre a CUC e a cidade. Pese embora alguns discursos ainda
demonstrassem as mágoas pelo espaço destruído de um modo bastante incisivo, a con-
tinuidade da vida, porém, proporcionava novas formas de olhar e aceitar o acontecido,
como sendo a nova realidade.
Em 17 de março de 1982, Matilde de Sousa Franco, enquanto diretora do Museu Nacional
185 // Sociedade e memória dos territórios

de Machado de Castro, propunha candidatar o Centro Histórico de Coimbra à LPM, dando


início a um processo que a cidade abraçou e promoveu. Com efeito, as sucessivas propostas
de candidatura a Património Mundial (PM) demonstram que a Alta se constituía como a área
eleita e imprescindível para justificar o VUE reconhecido pela e à cidade.
30
Cf. (Diário de Coimbra, 1982).

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Todavia, dessas propostas, também se verifica que o resultado das intervenções do
Estado Novo nem sempre era considerado como meritório para englobar a delimitação da
área candidata à LPM. Por um lado, o complexo do Pátio das Escolas – a representação da
história da Universidade e da cidade por excelência – apresentava-se como uma constante
enquanto parte integrante das sucessivas áreas propostas (Capela de Campos, 2019). Por
outro lado, a CUC nem sempre era considerada para integrar a delimitação desse VUE:
1) Em algumas propostas a CUC não era considerada e, deste modo, a intervenção da
CAPOCUC era votada ao esquecimento;
2) Em outras propostas, como no caso da Candidatura da Área Monumental, a CUC
era entendida como objeto morfológico e unitário que não se podia dissociar da leitura da
Alta de Coimbra;
3) Em outras propostas, ainda, apenas seria considerada parte da CUC, como no
Documento Preliminar de Candidatura a Património Mundial de 1997, em que os edifí-
cios da Faculdade de Letras e da Biblioteca Geral enquadravam o Largo da Porta Férrea e
o edifício da Faculdade de Medicina fazia a ligação espacial para os Colégios das Artes e de
São Jerónimo, que tinham sido poupados às demolições (Figura 6).
186 // Sociedade e memória dos territórios

Figura 6 – Planta “A Alta de Coimbra e a sua envolvente”, no Documento Preliminar de Candidatura a


Património Mundial, de 1997, da CMC.
Fonte: GCH-CMC.

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À década de 1980 ainda conhecia outros eventos onde habitantes e ex-residentes da
Alta Universitária expressavam as suas leituras emotivas sobre a renovação de grande parte
da área da colina. Com testemunhos feitos na primeira pessoa, durante o 1.º Encontro
sobre a Alta em 1987, antigos moradores da Alta e demais palestrantes davam conta das
transformações nas dinâmicas urbanas de um quotidiano secular, nas vivências, nos hábi-
tos e usos socioculturais, nas memórias, na imagem da cidade e na leitura do espaço urba-
no. Certamente que a relocalização dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC),
em 1987, para as atuais instalações, geraram oportunidades para repensar as dinâmicas
funcionais e vislumbrar ocupações compatibilizadas com os edifícios entretanto libertados.

Transformação do paradigma

“… sendo a cidade uma expressão assumida da cultura universitária, não pode


deixar de funcionar como exemplo e retrato das capacidades de intervenção do
nosso tempo.”
Domingos Tavares, 199831

A partir de 1995, um momento chave altera o paradigma da leitura e do entendimento


entre ‘a obra que destruiu património’ e ‘a obra que criou novos valores’. Esse paradigma
começa a transformar-se quando a obra apelidada como “lesa património”32 precisa, ela
própria, de intervenção para a sua requalificação e conservação.
Com a construção dos novos polos universitários das ciências e tecnologias e das ciências
da saúde e a consequente disponibilização de espaços universitários no polo universitário
da Alta e as anteriores instalações ocupadas pelos HUC, sob o mote da reconversão dos
espaços universitários – Colégios de São Jerónimo, das Artes, Laboratório Químico e área
da encosta nascente até à AAC –, a Reitoria lança um concurso de ideias, para o qual, qua-
tro docentes do Departamento de Arquitetura seriam convidados a participar33. O projeto
de Gonçalo Byrne saiu vencedor, acabando por dar origem ao Plano de Pormenor da Alta
Universitária (1996-2001).
187 // Sociedade e memória dos territórios

31
Cf. (Tavares, 1998, p. 89).
32
Cf. (J. M. A. e Silva, 1988, p. 142).
33
Sob a iniciativa do Departamento de Arquitetura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UC, a Reitoria
elaborava um estudo de reorganização dos espaços universitários, sendo aprovados pelo Senado da UC
em julho de 1995. Alexandre Alves Costa, Fernando Távora, Gonçalo Byrne e Raúl Hestnes Ferreira
responderiam ao repto lançado pela Reitoria, apresentando quatro propostas de intervenção para a área
definida. Cf. (Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de
Coimbra, 1997).

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 187 17/06/2022 18:06:02


O final de milénio é revelado por um interesse crescente em estudar o processo da
construção da CUC34, enquanto objeto disponível para o conhecimento, não só de si
próprio, mas também para contextualizar e caracterizar as dinâmicas de atuação do Estado
Novo, das suas influências e metodologias.

Apaziguamento

“… incluir a Universidade de Coimbra entre os locais classificados pela UNESCO


(…) tem também um fortíssimo sentido de futuro: o de prevenir a agressão patri-
monial e a dispersão da memória colectiva, mobilizando a comunidade coimbrã e
proporcionando-lhe o alento necessário à afirmação da velha Aeminium…”
Reitor Fernando Seabra Santos, 200535

Em 2003, a Reitoria da UC assume a intenção de liderar o processo de candidatar a


universidade à LPM, beneficiando de estudos, conferências e colóquios, desenvolvidos na
década anterior, que promoviam o conhecimento sobre a UC, a sua história, a sua implan-
tação, a evolução da construção dos seus múltiplos espaços e as transformações operadas no
desenvolvimento da cidade. Por uma questão de princípio, a UC assumia toda a sua história
enquanto valor adquirido, que esteve sujeito à evolução de mentalidades, políticas e opções
de poder, ao longo do tempo – incluindo o período das intervenções do Estado Novo.
Por conseguinte, a força motriz da candidatura apoiou-se nessa valência da transfor-
mação evolutiva, constituindo-a como argumento justificativo do VUE declarado pelo
Estado Português, em dossier de candidatura entregue ao Comité do Património Mundial.
Enquanto se finalizava o processo de candidatura da UC-AS, um acontecimento
marcava, definitivamente, a compreensão da CUC enquanto património. Em maio de
2011, estudantes protestavam contra as pinturas murais que haviam ocupado os degraus
da escadaria com mensagens político-partidárias, reivindicando que as Monumentais se
constituíam como património universitário e referentes a um período da história da UC
(Rosmaninho, 2014). Por conseguinte, a inscrição do Bem UC-AS, em 22 de junho de
2013, seria o culminar do processo evolutivo de patrimonialização a que este espaço da
188 // Sociedade e memória dos territórios

cidade esteve sujeito, não só pela universidade, mas também pela sua população.

34
Para tal também contribuiu a “descoberta” do espólio da CAPOCUC, que se constituiu num acervo
fundamental para este caso, abrindo caminho à sua investigação, sistematização e organização de con-
teúdos. Cf. (Bandeira, 1995, 1997; Rosmaninho, 1996, 2006; Vítor, 1999; S. V. Costa, 1998; Torgal,
1998, 1999).
35
Cf. (Universidade de Coimbra, 2005, p. 5).

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Património Mundial, uma nova equação

“… para os visitantes, a construção de um centro de acolhimento (Centro de


Interpretação e Divulgação da Universidade de Coimbra, vulgo CIDUC), com as
mais relevantes valências, é uma das ações fundamentais para influenciar a atitude
dos visitantes.”
Candidatura da UC-AS a Património Mundial, 201236

À luz do que está consagrado na Convenção para a Proteção do Património


Mundial, Cultural e Natural de 1972, a inscrição de um Bem na LPM da UNESCO,
tem como objetivo a identificação, a proteção, a conservação e a valorização do patrimó-
nio tangível que possui um VUE. A chancela de Património Mundial, atribuída ao
Bem em si mesmo e ao lugar onde este se localiza, reveste-se de grande valor simbólico,
sendo muito importante no processo de construção da identidade do lugar (Bourdeau,
Gravari-Barbas e Robinson, 2016). Este fenómeno confere uma projeção internacional
muito relevante e aumenta a capacidade de atração do Bem e do seu território, sendo
visíveis os reflexos no turismo (UNESCO WHC, 2008; Santa-Cruz e López-Guzmán,
2017; Adie, Hall e Prayag, 2018; Canale, Simone, Maio e Parenti, 2019; Cravidão e
Santos, 2020).
Consequentemente, também a inscrição do Bem UC-AS na LPM UNESCO
teve reflexos na atração turística. O aumento da procura turística na UC, a principal
atração turística da cidade de Coimbra, e uma das mais importantes do Centro de
Portugal, foi particularmente expressivo após 2013 (Figura 7). O número de visitantes
chegou a ultrapassar os 500 mil no ano de 2017, ano de comemoração do Centenário
das Aparições em Fátima, com a deslocação ao Santuário, em Maio, do representante
máximo da igreja Católica, o Papa Francisco. Este evento, relevante para o destino
Centro de Portugal, repercutiu-se na procura turística, tendo tido reflexo no aumento
do número de visitantes das atrações turísticas da região. Em contraponto, o corona-
vírus SARS-CoV-2, responsável pela doença Covid-19, e a situação pandémica vivida
refletiram-se num decréscimo abrupto do número de visitantes desta atração turística
nos dois últimos anos.
189 // Sociedade e memória dos territórios

36
Cf. (Universidade de Coimbra, 2012, vol. 1, pp. 203-204).

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Figura 7 – Número de visitantes do Bem Universidade de Coimbra – Alta e Sofia,
declarado Património Mundial UNESCO a 22 de junho de 2013, de 2007 a 2020.
Fonte dos dados: Turismo da Universidade de Coimbra.

A capacidade que os Bens UNESCO têm para atrair turistas é reconhecida. Com a
inscrição na LPM da UNESCO em 2013, verificou-se um aumento da internacionalização
de Coimbra como destino turístico, ainda que no contexto da situação pandémica se tenha
assistido, no ano de 2020, a uma retração do número de turistas internacionais (Figura 8).
A inscrição refletiu-se, também, de um modo muito expressivo no alojamento turístico.
Surgiram novos empreendimentos turísticos no tecido urbano consolidado, intervenções
de reabilitação, de requalificação e de refuncionalização, que muito contribuíram para qua-
lificar a hotelaria da cidade de Coimbra. O alojamento local proliferou, densificando-se no
Centro Histórico e dispersando-se pela cidade. Foram criadas novas empresas de animação
turística e serviços de transporte de turistas mais personalizados. Após a inscrição do Bem
registou-se um aumento do número de dormidas, tendo havido um decréscimo muito
acentuada, em 2020, devido às medidas de contenção relativas à Covid-19 (Figura 9). A
oferta de estabelecimentos de restauração aumentou, tendeu a segmentar-se e a qualificar-se.
190 // Sociedade e memória dos territórios

Os estabelecimentos de comércio a retalho orientados para a venda de souvenirs aumenta-


ram em número, alinhando-se no principal circuito pedestre dos turistas que viajam em
grupos organizados (Moreira, Santos, Silveira, 2020). Constata-se que “muitos dos novos
estabelecimentos de comércio e serviços (...) despontam no Centro Histórico a partir de
2013. Após a inscrição da Universidade de Coimbra – Alta e Sofia na Lista Representativa
do Património Mundial” (Santos e Moreira, 2018, p. 333).

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Figura 8 – Nível de internacionalização do destino Coimbra de 2007 a 2020, antes e após a inscrição
do Bem Universidade de Coimbra – Alta e Sofia como Património Mundial UNESCO, em 2013.
Fonte dos dados: Instituto Nacional de Estatística, 2021, Lisboa

191 // Sociedade e memória dos territórios

Figura 9 – Número de dormidas no destino Coimbra de 2007 a 2020, antes e após a inscrição
do Bem Universidade de Coimbra – Alta e Sofia como Património Mundial UNESCO, em 2013.
Fonte dos dados: Instituto Nacional de Estatística, 2021, Lisboa.

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Paralelamente, a chancela UNESCO pressupõe responsabilidades acrescidas para
aqueles que têm a competência da gestão do património e para a sociedade, por se tratar
de um legado que passa a “pertencer” à humanidade. Perante a ausência de uma estrutu-
ração adequada da oferta e da falta de uma gestão estratégica ao nível da procura, no que
concerne aos Bens Património Mundial, assiste-se a um adensar da capacidade de carga
turística num número muito restrito de atrações. No caso do Bem UC-AS persiste uma
concentração da procura na principal atração turística - a Biblioteca Joanina. É evidente,
em termos territoriais e funcionais, a dificuldade de dispersar a procura turística que visita
a Universidade para as demais atrações que integram o Bem, para a cidade e para o
território envolvente.
A multissecularidade do Bem; os três conjuntos urbanos que o constituem e a estreita
relação entre eles (i. Universidade de Coimbra; ii. a Alta e iii. a Rua da Sofia); as diferentes
conceções arquitetónicas, artísticas, estéticas e funcionais que coexistem no Bem; as vicissi-
tudes históricas que perpassam o Bem (de que a Cidade Universitária é apenas um exemplo);
a grande diversidade de atrações que o Bem e a sua área de proteção contemplam (Colégios,
Igrejas, Claustros, Museus, jardins, Bibliotecas, uma Imprensa Universitária, Faculdades,
Repúblicas, a mais antiga associação de estudantes do país – A AAC criada em 1887 –,
Centros de Investigação, as vivência e as tradições académicas, as serenatas e a Canção de
Coimbra, indumentária e simbologias muito singulares, trajes e insígnias, cerimónias e corte-
jos, entre outros), justificam a criação de um Centro de Interpretação do Bem Universidade
de Coimbra – Alta e Sofia. Embora ainda não construído, um Centro de Interpretação e
Divulgação da Universidade de Coimbra (CIDUC) já estava previsto no Plano de Pormenor
da Alta Universitária de 2001, dentro da proposta estabelecida para requalificar o largo dos
Colégios (das Artes e de São Jerónimo), da autoria do Arquiteto Gonçalo Byrne (Universidade
de Coimbra, 2012, vol. 6, pp. 328-345). Este seria um equipamento relevante para o turis-
mo cultural urbano, facilitador para as gerações atuais, assim como para as gerações futuras,
do conhecimento do Bem cultural que é Património Mundial.
Como refere Santos (2010, p. 436) “os lugares com uma retrospetiva histórica signi-
ficativa são o resultado da sobreposição de camadas de heranças que se vão imbricando e
que nos dão hoje uma paisagem eclética e dinâmica que permite identidades muito mar-
cadas”. Trata-se de um sítio Património Mundial em que a primeira ocupação da colina,
192 // Sociedade e memória dos territórios

que lhe serve de suporte, remonta ao neolítico, onde se vem a fundar a cidade romana de
Aeminium. O Paço Real da Alcáçova – alcáçova que havia sido edificada por Almançor
a partir de 994, após a conquista da cidade em 987 – tornou-se a primeira e mais anti-
ga das residências régias portuguesas, convertendo-se na residência principal de Afonso
Henriques, o primeiro rei de Portugal, em 1130 e elevando Coimbra à primeira capital do
reino e tendo ainda acolhido as Cortes de 1385.

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Está-se na presença de um Bem que é detentor de um vasto património e de tradi-
ções culturais profundamente identitários, autênticos e singulares. As camadas da cidade
são múltiplas e estão estreitamente ligadas à Universidade: no século XII à fundação do
Mosteiro de Santa Cruz; no século XIII à fundação da primeira Universidade Portuguesa
ou Estudos Gerais, caracterizando-se por uma itinerância entre Lisboa e Coimbra durante
a Idade Média; no século XVI à reforma manuelina, com a fixação definitiva da instituição
na cidade de Coimbra em 1537 e a sua reforma, com um vasto número de instituições
colegiais ligadas a ordens religiosas a configurarem e a consolidarem a estrutura urbana;
no século XVIII à expulsão dos Jesuítas e à extinção da Companhia de Jesus, em 1772
com os novos Estatutos e a reforma do ensino na Universidade, por ação de Marquês de
Pombal; no século XIX, 1834, à extinção das ordens religiosas masculinas, com o encerra-
mento de colégios e a alienação de património, a extinção do foro académico, a laicização
da Universidade, o surgimento de movimentos de associativismo e a sociabilização dos
estudantes; no século XX às transformações efetuadas pelo Estado Novo com a criação da
CUC, a democratização e a massificação do ensino universitário, a sua decentralização e a
criação de novos campus universitários, Pólo 2 Engenharias e Pólo 3 – Ciências da Saúde.
Num Sítio Património Mundial a interpretação é pedra angular. A interpretação per-
mite: estreitar a relação da comunidade local com o seu Bem, envolvendo particularmente
todos os que detêm conhecimento formal e informal sobre o Bem; evitar que a memória
coletiva se esboroe com o tempo; conferir coesão aos patrimónios do Bem, conhecendo
o(s) seu(s) significado(s); aumentar a capacidade de atração do Bem, assim como enriquecer
a experiência turística.
A construção de um Centro de Interpretação do Bem UC-AS, que fosse central, que
beneficiasse de uma boa acessibilidade e que adotasse as melhores práticas em termos de
interpretação, revelar-se-ia como algo extremamente importante.
Detalhando um pouco mais, alude-se à concretização de um equipamento orientado
para a valorização e para a divulgação do património histórico, cultural (material e ima-
terial) do Bem. Um espaço que levasse a uma tomada de consciência da importância da
conservação, da preservação e do restauro do património. Um espaço que se constituísse
como atração, que contribuísse para o conhecimento do valor excecional do património
em presença e que fosse um repositório da memória coletiva, dos factos mais marcantes,
193 // Sociedade e memória dos territórios

dos momentos de destruição, de criação e de construção do lugar, dos seus patrimónios e


das suas vivências. Um equipamento que se constituísse como um espaço de acolhimento
da comunidade local e de receção dos visitantes e dos turistas, que lhes desse a conhecer o
património. Um equipamento que tirasse partido das tecnologias multimédia, das tecno-
logias digitais, da realidade virtual, da realidade aumentada, que valorizasse experiências
multissensoriais, interativas e imersivas. Um espaço com conteúdos e atividades orientados

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 193 17/06/2022 18:06:03


para diferentes públicos, para a comunidade local, para os visitantes e para os turistas, com
um programa educacional pensado para a comunidade escolar, valorizando atividades de
caráter pedagógico e lúdico, através de atividades práticas ou de simulação. Um espaço que
também contemplasse atividades de formação de profissionais ligados à conservação, ao
restauro e à interpretação do património. Para além de poder ser um espaço de exposições
permanentes e temporárias temáticas, o centro de interpretação vocacionado para o Bem
Património Mundial poderia constituir-se como um espaço de comunicação, de apresen-
tação e de explicação do(s) significado(s) do lugar e dos seus patrimónios, assim como um
ponto de partida para percursos interpretativos temáticos pela área do Bem e de proteção
do Bem (Santos, Moreira, Seabra e Silveira, 2019).
Há história, há estórias e há conteúdos nucleares sobre o(s) lugar(es) e sobre os seus
patrimónios que devem ser transmitidos à comunidade local, aos visitantes e aos turistas,
dando conta da relação multissecular das pessoas com os lugares e com o património, das
necessidades funcionais, das soluções técnicas, dos gostos estéticos e das conceções artísti-
cas. A história, as estórias e as mensagens são muito importantes para que a comunidade
local, os visitantes e os turistas desenvolvam uma sensibilidade crescente (estética, ética,
conservacionista, protecionista, entre outras). É muito importante que a observação e a
apreensão dos lugares, da sua ambiência e do seu património, se faça à luz do conhecimen-
to científico e seja orientada e não casuística, evitando-se perspetivas fugazes e experiências
superficiais do lugar e dos patrimónios.
O fim último é o de que se alterem as experiências, as atitudes e os comportamentos da
comunidade local, dos visitantes e dos turistas em relação ao património que possui reconhe-
cido VUE. Importa que se proporcione uma maior proximidade das pessoas ao património,
uma maior conexão e uma maior tomada de consciência da relevância do património, que
deve ser entendido como relicário da história, de estórias e de vivências. Importa que o conhe-
cimento do património não se reduza a uma mera enunciação de factos, de figuras e de datas.
A interpretação pressupõe ir além disto, é criteriosa e seletiva. De uma grande multitude de
conteúdos, que mobiliza a partir de fontes credíveis, busca, com base em aconselhamento
científico de académicos reconhecidos, o que há de mais interessante e relevante, adequando
os conteúdos a diferentes segmentos da procura e às suas motivações. Neste contexto, importa
identificar mensagens chave e procurar transmiti-las. Para além disto, a interpretação valoriza
194 // Sociedade e memória dos territórios

os contextos, sendo a contextualização importante para a apreensão.


A interpretação presume conhecimento, curiosidade, aprendizagem, enriquecimento,
imaginação, criatividade, interesse, atenção, recreação, divertimento, emoção, fascínio,
relaxamento, repto multisensorial, inspiração, orientação, exploração, interação, envol-
vimento e sensibilização. Por tudo isto, a interpretação vai além da mera informação,
diferencia-se e distancia-se desta, ainda que a pressuponha. Acresce que a informação

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muitas das vezes é parcial, enquanto a interpretação, por seu turno, é holística. No caso
dos Bens Património Mundial este particularismo é muito relevante pois o todo, que é o
Bem, é mais do que a soma das suas partes. Ora a interpretação ao pôr em relação os ele-
mentos que integram o Bem cimenta as relações entre os atrações patrimoniais, materiais
e imateriais, que o compõem, conferindo-lhes nexo. Refira-se, ainda, que a interpretação
evidencia uma outra preocupação não menos relevante: a de procurar estabelecer a ligação
de factos locais a factos globais.
A interpretação tem efeitos benéficos, deve configurar-se, por princípio, como um
serviço acessível a todos e acrescentar valor à experiência turística, tornando-a transfor-
mativa. A interpretação permite reduzir as agressões ao património, minimiza atos de
vandalismo e de destruição, favorecendo iniciativas de conservação, de restauro, de rea-
bilitação e de fruição do património, aumentando a vigilância, a segurança e a proteção
do património. A boa prática de interpretação preocupa-se com o rigor científico dos
conteúdos, evitando a deturpação e a perpetuação de erros em matéria de lugares e de
patrimónios. Pressupondo organização e uma gestão sustentável da procura turística, a
interpretação secciona a procura turística, dirigindo-se o interprete para pequenos grupos,
proporcionando, por isso, experiências mais relacionais e mais personalizadas. As virtudes
da interpretação são evidentes. A criação de um centro de interpretação, um equipamento
de suporte a estes serviços, reveste-se de extrema relevância num Bem Património Mundial
como é a Universidade de Coimbra – Alta e Sofia.
No dossiê de candidatura do património da cidade de Coimbra, da Universidade, da
Alta e da Rua da Sofia, com o objetivo de integrar a lista representativa do Património
Mundial da UNESCO, foi equacionada a criação de um Centro de Interpretação orien-
tado para parte do Bem, no caso, para a Universidade de Coimbra, afirmando-se a sua
importância para a sensibilização dos que afluíssem ao Bem: conforme se refere, a “cons-
trução de um novo edifício, o Centro de Interpretação e Divulgação da Universidade de
Coimbra, incorporador de um toque de modernidade, garantindo assim ao sector turístico
os serviços necessários à sua boa gestão” (Universidade de Coimbra, 2012, v. 1, p. 230),
sendo assim reconhecido a relevância de um equipamento como o Centro de Interpretação
para a atividade turística.
No contexto da gestão do Bem importa estruturar adequadamente a oferta, pondo
195 // Sociedade e memória dos territórios

em relação as diferentes atrações turísticas e os diferentes equipamentos orientados para a


atividade turística que integram a área do Bem e a sua zona de proteção (buffer zone), assim
como os responsáveis pela direção ou gestão dos mesmos, criando um conjunto coerente e
articulado, também com o objetivo de organizar e qualificar o espaço público, valorizando
os espaços de circulação pedonal, aumentando o conforto no espaço público, dotando-o
de mobiliário urbano e de sinalética. Esta deve ser informativa e servir não só de marcador

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 195 17/06/2022 18:06:03


do território, mas também orientar e direcionar fluxos, motivando visitas, propondo
percursos turísticos de atravessem o Bem em várias direções. Apesar de ter sido implantada
recentemente sinalética na área do Bem esta apresenta-se ainda como insuficiente. A mo-
nitorização do fluxo de visitantes e de turistas, e a dispersão da procura turística pelo Bem
e pela sua envolvente mais ou menos próxima é essencial no contexto da gestão.

Considerações finais

Assumindo a ideia do tempo como escultor (Yourcenar 1996), este trabalho pretendeu
perceber a variação e transformação emotiva que um processo de poder e de arquitetura,
num determinado lugar, promoveu sobre a sua população residente e visitante, ao longo
do tempo.
Compreende-se que, a nova realidade construtiva da Alta de Coimbra, a partir do ano
de 1942, promoveu duas reações em simultâneo. Por um lado, processos de patrimoniali-
zação eram consciencializados sobre o património edificado e urbano perdido, enquanto
espaço de memórias coletivas e individuais daqueles que viviam o espaço quotidiano da
Alta universitária. Por outro lado, compreende-se a não-aceitação, ou pelo menos, a desi-
lusão que se ia manifestando sobre os novos espaços e edifícios da CUC, sobretudo, por
aqueles que ficaram sujeitos à alteração tempestiva do seu local de trabalho e/ou residência.
A implementação de uma inovação urbana pela ‘régua e esquadro’, votando ao iso-
lamento a ‘colina sagrada apenas para o estudo’, transformava o esforço para aceder
ao espaço da Universidade com uma tónica física e simbólica. A construção da CUC
concretizava-se como uma ação de poder do Estado Novo, que através da obra pública
impunha uma nova ordem projetada.
Todavia, setenta anos após o início da sua construção, as transformações sobre a
perceção social e/ou cultural do que é ou não património desencadeiam um processo de
patrimonialização sobre este espaço urbano e, em 2013, a UC-AS vê o seu VUE reconhecido
com a sua inscrição na LPM.
Se durante algum tempo a Alta universitária foi tendencialmente considerada uma
fortaleza quase inexpugnável e que irradiava saber, é certo que após o reconhecimento da
196 // Sociedade e memória dos territórios

UC-AS como Património Mundial, permitiu oferecer-se a Coimbra como parte integrante
de um todo que estendeu funções à zona baixa da urbe, criando expectativas seguras de
que este pode ser um cadinho que deve ajudar a consolidar e a desenvolver todo o espaço
urbano que constituiu a cidade.
No contexto da atividade turística importa estruturar adequadamente a oferta, qualifi-
car o espaço público na área do Bem e da sua área de proteção, conferir coesão às atrações

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turísticas ligando-as entre si. A criação de um Centro de Interpretação apresenta-se como
uma possibilidade de ligar os diferentes elementos patrimoniais, materiais e imateriais,
permitindo uma leitura de conjunto do Bem e um enriquecimento da experiência turística,
podendo constituir-se como mais uma atração turística que qualifica o lugar, sendo um
investimento que se integraria numa estratégia de afirmação competitiva da cidade.
De facto, o decurso da história tanto pode acentuar descontinuidades como ajudar a
desenvolver apaziguamentos e (re)interpretações que repensam os espaços e gradualmente
lhes vão conferindo valor. É neste último sentido que poderemos afirmar o tempo como
um grande escultor.

Resumo – O princípio de relação estabelecido pelos processos de patrimonialização passa por


reconhecer valor a um determinado Bem, por uma comunidade. A Universidade de Coimbra – Alta
e Sofia foi inscrita na Lista do Património Mundial da UNESCO (2013), pelo reconhecimento do
seu Valor Universal Excecional. A denominada Alta – parte do Centro Histórico de Coimbra
(CHC) que integra, também, a Baixa –, incorpora o Polo I da Cidade Universitária de Coimbra
(CUC). Todavia, esta obra, concretizada na vigência do Estado Novo, resultou da desterritorializa-
ção do património urbano, tangível e intangível, que, ao longo dos tempos históricos, havia conformado
social, económica, cultural e simbolicamente, a Alta Universitária. Estes elementos são expressos
em imagens que ficaram para a história da cidade, assumidas, por exemplo, entre os futricas (os
residentes de Coimbra) e os estudantes. O propósito deste artigo constitui-se na compreensão da
evolução da relação estabelecida entre a CUC, a cidade e a população que, mais recentemente,
visita as atrações turísticas, corporizadas no Bem Unesco Universidade de Coimbra – Alta e Sofia.
A pertinência do estudo deste caso paradigmático assenta no seu processo de patrimonialização
estabelecido ao longo do tempo, por um lado, pelo património construído; por outro, pela vivência
diária nesse espaço correlacionada com um fenómeno transformativo entre a perda e a criação de
memórias; e finalmente, pela constituição de um elemento de forte capacidade de atração turística,
que tem alterado a imagem da cidade e a sua vivência de forma significativa, nos últimos anos.
Desta forma pretende-se estabelecer relações que, procurando ir ao encontro de um novo visitante
consciente, informado e criativo, precisam de dar atenção a uma população, simultaneamente
autóctone e eclética, que usufrui quotidianamente da cidade; e, paralelamente, perceber como se
articulam a gestão do património construído, a qualidade do património cultural imaterial e a
vivência conjunta das populações que usufruem destes territórios.
197 // Sociedade e memória dos territórios

Palavras-chave: Cidade Universitária de Coimbra (CUC); Centro Histórico de Coimbra


(CHC); turismo cultural; tempos de vivência; memória; processo de patrimonialização

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 197 17/06/2022 18:06:03


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Património Mundial.

201 // Sociedade e memória dos territórios

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 201 17/06/2022 18:06:03


Iberografias43-vfinal14Junho.indb 202 17/06/2022 18:06:03
Patrimônio: imagens e retratos a partir da
paisagem urbana

Eline Dornelas1

O presente texto pauta-se em um trabalho de Educação Patrimonial realizado para


formação de professores na rede Municipal de Londrina numa perspectiva de preservação
e manutenção do Patrimônio Cultural da cidade de Londrina, pensando a cidade não de
maneira estática, mas com uma dinâmica cultural e histórica na qual os indivíduos estão
inseridos como agentes de transformação e mudança e a partir da observação conhecer a
função social de cada espaço e instituições existentes na cidade.
A história das cidades é contada e recontada pelos lugares, praças, ruas, imóveis, paisagens
e imagens, que fazem parte do seu processo de urbanização. Como compreender esses elemen-
tos e pensar a cidade e seu espaço a partir da história local foi o nosso objetivo, como a cidade
com suas imagens e retratos pode ser ressignificada pelos seus habitantes. A história local
pode ser um indicador de construções de identidade para a compreensão do conhecimento
histórico a partir de proposições que tenham a ver com o interesse das pessoas, sua vivência
cultural e a possibilidade de desenvolver atividades vinculadas diretamente á vida cotidiana.
Deste modo, o conceito de patrimônio cultural está continuamente passando por um
processo de reconstrução, pois, não se trata de um meio ou recurso para conhecer o passado
e construir a história, mais das evidências da história, o que resta do passado e que é dado
valor no presente.
Assim, o passado torna-se um elemento que proporciona aprendizagens significativas
que são extremamente sugestivas, permitindo uma primeira abordagem da realidade que,
203 // Sociedade e memória dos territórios

embora distantes no tempo e até no espaço, são próximas no imaginário e no emocional-


mente vivenciado, provocando sentimentos de curiosidade e instigando a conhecer mais
sobre essa paisagem urbana.

1
Doutoranda em Geografia- FCT/UNESP- Campus de Presidente Prudente- SP.
e.dornelas@unesp.br

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 203 17/06/2022 18:06:03


O contato com acontecimentos históricos possibilita a construção gradual de referên-
cias temporais para viver num mundo onde a pluralidade e a diversidade de escolhas é vista
como uma possibilidade de ações dos diferentes sujeitos, compreendendo que a História é
uma produção da realidade pelos indivíduos numa sociedade, por meio das experiências e
da ação humana, uma vez que somos produto e produtores de História.
Para Hobsbawm (1998), o passado, presente e o futuro constituem um continuum,
todos os seres humanos estão enraizados no passado, suas famílias, comunidades e a
nação que define sua posição em relação a ele, a maior parte da ação humana é baseada
em aprendizado, memória e experiência constituindo um mecanismo para comparar
passado, presente e futuro. As pessoas não podem evitar a tentativa de prever o futuro
mediante alguma forma de leitura do passado. Elas precisam fazer isto. E elas fazem com
base na suposição justificada de que, em geral, o futuro está sistematicamente vinculado
ao passado.
O autor refere-se ao passado como uma dimensão permanente da consciência humana,
um componente inevitável das instituições, valores e outros padrões da sociedade que não
se pode perder de vista, pois esse passado é uma seleção daquilo que a sociedade quer que
seja lembrado.
Dessa forma, é possível que, por meio da socialização política, ou da socialização históri-
ca, ocorrem um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão
forte que podemos falar numa memória quase que herdada. Existem lugares da memória,
lugares particularmente ligados a uma lembrança, que pode ser uma lembrança pessoal,
mas também pode não ter apoio no tempo cronológico.
Para Pollak, (1989), as preocupações do momento constituem um elemento de estru-
turação da memória, ou seja, é um fenômeno construído social e individualmente, quando
se trata da memória herdada, podemos também dizer que há uma ligação fenomenológica
muito estreita entre a memória e o sentimento de identidade.
A memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto
individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente
importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um
grupo em sua reconstrução de si. (POLLAK, 1989).
204 // Sociedade e memória dos territórios

Com isso, a paisagem urbana por meio das suas edificações materiais é testemunho
desses acontecimentos contínuos. De acordo com Turri (2002), o território é considerado
produto histórico de mudanças e permanências ocorridas em um ambiente no qual se desen-
volve uma sociedade, um ambiente construído com múltiplas variáveis e relações. O homem
age no espaço natural e social, sendo território resultado das relações espaço-temporais
socialmente construídos.

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Para Saquet (2008), o tempo significa nesta compreensão um movimento contínuo.
O tempo presente, passado e futuro indicam a processualidade e a simultaneidade, pois
vivemos diferentes temporalidades e territorialidades, em processo constante e concomi-
tante de desterritorialização e reterritorialização que gera novas territorialidades e novos
territórios que contêm traços característicos dos velhos territórios e territorialidades.
A partir dessa paisagem urbana, e por meio da cientificidade pode ser estabelecido
um diálogo para a compreensão de como as pessoas se organizam e são representadas nos
espaços. Dessa forma, a paisagem está presente na nossa memória, podemos dizer que é
produzida historicamente pelos homens, a partir da sua organização social, tanto na dimensão
natural, social e histórica. Estes elementos da paisagem organizam-se de maneira dinâmica,
ao longo do tempo e do espaço.
Qualquer parte do ambiente urbano, uma praça, uma esquina, ou edificação possui
um significado, e simbolizam a relação entre o lugar e seus habitantes, fatores importantes
de expressão cultural.
A necessidade de conservar os ambientes que tornam as cidades mais humanas faz com
que a preservação assuma um significado mais amplo, é uma garantia de permanência das
áreas, contribuindo para a compreensão do conjunto de elementos que caracterizam as
tradições, instituições sociais, enfim, tudo que ali ocorre e ocorrerá.
Recuando um pouco no tempo, de acordo com Raffestin (2008) desde o século XVIII
até a atualidade podemos elencar seis princípios que influenciam no desenvolvimento de
uma cidade: centralização, verticalização, concentração, mediação, heterogeneidade e me-
canização. O que ilustra bem as transformações que aconteceram na cidade de Londrina
em um primeiro momento tem a centralização que é o processo por meio do qual a cidade
começa a atrair uma população sempre mais numerosa e, por isso, precisa desenvolver-se
verticalmente.
Neste contexto, percebemos as imagens urbanas trazidas por meio da arquitetura que
se apresentam no traçado nos edifícios, nas calçadas, praças e nos remetem a diferentes
temporalidades. Em relação ao patrimônio cultural que nos transporta ao passado, é
pensado e sentido a partir do presente. O espaço urbano, na sua materialidade imagética,
toma-se, assim, um dos suportes da memória social da cidade. Portanto, o espaço é sem-
pre portador de um significado, cuja expressão passa por outras formas de comunicação.
205 // Sociedade e memória dos territórios

(Pesavento, 2002 pag. 9).


Essa verticalização, portanto, torna-se necessária pelo aumento populacional e aqui o
destaque é para mudança de utilização do espaço de residencial para as atividades comerciais.
Portanto, a paisagem nasce quando há um cruzamento entre a observação e um território
a partir das trajetórias lógicas e históricas que o caracterizam, tanto no plano simbólico
como no material e estrutural. Já o território é um espaço natural, social, historicamente

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organizado e produzido; a paisagem é o visível e percebido deste processo, ou seja, um
espaço em três dimensões natural, social e histórico.
Na contemporaneidade as paisagens urbanas apresentam um contexto social, econô-
mico, ambiental e cultural, sendo fundamental compreender suas relações e interações nos
modos de viver e habitar, já que as atividades desenvolvidas nessas paisagens são formas
de apropriação do espaço urbano e se desenvolvem na medida em que as relações sócio
espaciais se articulam de forma desigual.
Nesta perspectiva, o olhar para o patrimônio nos permite observar os lugares onde os
eventos históricos aconteceram, podendo estabelecer diálogos entre a história, a memória
e os elementos patrimoniais que os rodeia, e construir o conhecimento histórico e social.
O lugar permite pensar a articulação do local com o espaço urbano que se manifesta
na análise do lugar quando o processo de produção do espaço é também um processo de
reprodução da vida humana, assim, o lugar permite entender a produção do espaço atual
em uma perspectiva para se pensar o viver e o habitar, o uso e o consumo, os processos de
apropriação do espaço.
As relações que os indivíduos mantêm com os espaços habitados se exprimem todos
os dias nos modos do uso, no espaço passível de ser sentido, pensado, apropriado e vivi-
do, é à base da reprodução da vida e pode ser analisado pelos habitantes. De acordo com
Carlos 2007,
(...) a natureza social da identidade, do sentimento de pertencer ao lugar ou
das formas de apropriação do espaço que ela suscita, liga-se aos lugares habita-
dos, marcados pela presença, criados pela história fragmentária feitas de resíduos e
detritos, pela acumulação dos tempos, marcados, remarcados, nomeados, natureza
transformada pela prática social, produto de uma capacidade criadora, acumulação
cultural que se inscreve num espaço e tempo. (Carlos, 2007, p. 18).

Pensar o patrimônio a partir da paisagem urbana é entender que a cidade não é a


mesma para todos os indivíduos, é uma soma de temporalidades entrelaçando os lugares e
as memórias das pessoas que as constroem.
Para Pesavento, (2002) a cidade é objeto de múltiplos discursos e olhares, que não se
hierarquizam, mas que se justapõem, compõem ou se contradizem, sem por isso, serem
206 // Sociedade e memória dos territórios

uns mais verdadeiros ou importantes que os outros. É o “lugar do homem”, de uma multi-
plicidade de olhares entrecruzados que, de forma transdisciplinar, abordam o real na busca
de cadeias de significados.
A partir da observação podemos perceber como esses espaços foram sendo ocupados
e reocupados, assim, a imagem é o que o olhar capta no presente, os retratos são as nossas
memórias locais que se modificam e se transformam a cada dia.

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E a partir da experiência do contato direto com as evidências e manifestações culturais
é que as pessoas vão valorizar e se apropriar da sua herança cultural.
Quando escrevi o projeto, a questão era: o que queremos deixar, ou melhor, como
queremos deixar para as gerações futuras esse patrimônio?
Para tanto, utilizamos uma metodologia a partir da observação. Por meio da vivência
do trabalho de campo foi possível à descrição e compreensão do funcionamento deste espa-
ço, assim, a partir da valorização do contato direto com o ambiente, os professores foram
registrando as informações por meio das anotações de campo, fotografias, vídeos, desenhos
entre outros tipos de documento, contribuindo para a contextualização espacial da paisa-
gem urbana, não de forma isolada e reduzida percebendo os processos de transformação
física e simbólica dos elementos do espaço, as construções, suas características, histórias, esta-
do de conservação, seu entorno, suas formas de uso e apropriação que foram submetidos.
Dessa forma o projeto foi dividido em parte teórico e prática e atendeu 200 professores.
A prática incluiu um roteiro a partir da região central da cidade de Londrina onde
estão localizados os bens patrimoniais locais, o deslocamento foi realizado a pé e cada um
foi responsável pelo seu transporte até o local. Reservamos de 16 horas para esta programação
divididas em (prática e teórica), para a sistematização do que foi visto e apreendido utilizamos
ficha pedagógica, nesse material elaboramos atividades reflexivas abordando o que foi visto
no trabalho de campo, que serviu de feedback para análises dos resultados.
Ao longo das discussões, os conceitos relacionados à identidade, memória, preserva-
ção, conservação foram nos mostrando que tudo isso envolve lutas e conflitos, instigando a
pensarmos em diferentes ações e possibilidades de participação e engajamento das pessoas
para a sensibilidade dos motivos que nos levam a preservação desse patrimônio, mostrando
a necessidade da continuidade do curso, o que motivou a pensar para próximas turmas um
curso a partir do ambiente virtual de aprendizagem.
O desafio foi instigar discussões para que as pessoas se apropriem desses espaços como
construção, não só para a preservação, por meio da educação, podemos contribuir
substancialmente para politicas públicas nas áreas de patrimônio cultural, preservação,
planejamento urbano e ambiental, provocando novos olhares para a paisagem urbana.
207 // Sociedade e memória dos territórios

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208 // Sociedade e memória dos territórios

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O processo de gentrificação em
Moçambique: mudanças e perspectivas

Joaquim Miranda Maloa1

Introdução

O processo de gentrification2 (gentrificação) foi estudado pela primeira vez em Londres


pela socióloga alemã de nacionalidade britânica, Ruth Glass (1964), no seu livro “London:
aspects of change”3. A expressão gentrification deriva do substantivo inglês “gentry, que desig-
na indivíduos ou grupos “bem-nascidos”, de “origem nobre””. Concebida originalmente
para fazer referência a um processo de elitização ou de “enobrecimento” de determinados
locais da cidade, anteriormente caracterizados como áreas predominantemente populares
(Pereira, 2014, p.308). A mesma autora reconhece o caráter classista no movimento e difusão
da gentrificação, como sintoma de ampliação das desigualdades sociais.
No entanto, foi o geógrafo escocês Neil Smith (1954-2012), radicado nos Estados
Unidos da América, que analisou com profundidade os vários processos de enobreci-
mento dos bairros pobres de Nova Iorque, com destaque para os bairros de Harlem em
Manhattan, um dos mais antigos de Nova Iorque4 e em Londres, no bairro do Soho, um
dos mais tradicionais e famosos da cidade.

1
Professor Auxiliar do Departamento de Geociências da Universidade Rovuma – Extensão de Niassa,
Moçambique. Pós-Doutor pela Universidade de São Paulo (USP), Brasil. Doutor em Geografia pela
mesma Universidade e Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Contato: joaaquimmaloa@gmail.com
209 // Sociedade e memória dos territórios

2
Para Gutiérrez (2014), o termo gentrificação é polissêmico.
3
Ver. Glass (1964). O termo quando foi criada em 1964, pela autora [Ruth Glass], para descrever o processo
que teve início nos anos 1950, através do qual algumas áreas residências no centro de Londres, ocupadas
pela classe trabalhadora, estavam se transformando em áreas residenciais para a classe média. Para um resumo
da ideia de Glass, ver. Furtado (2014).
4
Para uma compreensão do conceito de gentrificação, ver: Lee; Slater; Wyly (2008); Zolini (2007); Siqueira
(2014); Cerqueira (2014); Mourad (2014); Ribeiro (2014); Gargalhardo (2014); Hoffman (2014); Morales
(2014); Santos (2014).

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Smith tentou sistematizar o fenômeno, nos seus vários trabalhos. Apenas citando al-
guns: “Toward a theory of gentrification: a back to the city movement by capital not people”;
“Gentrification and capital: theory, practice and ideology in Society Hill”5; “Gentrification and
uneven development”, “The gentrification of Harlem?” e, com Williams, “Gentrification of the city”.
Para Smith (1979a), a gentrificação é um processo de filtragem dos moradores de
alguns bairros degradados da cidade, isto implica a substituição social dos antigos mo-
radores de menor renda pelos de maior rendimento6. O processo de seleção dá-se com a
renovação urbana, cujo traço é um novo desenho da segregação socioespacial nas áreas
onde o fenômeno se instala.
Segundo Benis (2001)7, a gentrificação é um fenômeno urbano e social, caracterizado
pelo enobrecimento do parque habitacional degradado das classes populares pela classe
média que o substitui gradualmente. Em conformidade com Mendes (2010), a gentrifica-
ção é entendida como um processo de reestruturação urbana, marcado pela reestruturação
econômica que é caraterística do “capitalismo tardio” e avançado, condicionado por um
regime de acumulação de capital subsidiário mais flexível, que lhe é próprio.
Desde meados da década de 1990, as principais cidades moçambicanas, como:
Maputo, Beira, Inhambane, Xai-Xai, Beira, Chimoio, Tete, Quelimane, Nampula, Pemba
e Lichinga, estão passando por transformações urbanas significativas que acabam por
remodelar o conjunto das relações geográficas, sociais e políticas, ao produzir novas
urbanidades8 e a estabelecer novos padrões de sociabilidade muito diferentes daqueles do
período anterior à década de 1990.
Os vizinhos fecharam-se em si, mesmo. Podemos dizer que foi no período em que
começou a surgir em Moçambique o “individualismo de massa”, para usar o termo da pro-
fessora Angelina Peralva (2000)9. É importante destacar que no país a individualização foi
acompanhada de rupturas na antiga ordem social. Entre nós, predominou certo arranjo,
certo egoísmo fomentado pelo consumo.
E que afeta cada vez mais a esfera do mercado residencial, reorganizando o espaço
para produção, circulação e consumo de mercadorias. Já nos finais da década de 1980
e no início da década de 1990 despertava-se o surgimento de um mercado imobiliário
210 // Sociedade e memória dos territórios

5
As obras citadas: Smith (1979a; 1979b, 1982,1984, 1986a, 1986b;1987,1987b,1992, 1996, 2002).
6
Um dos críticos do termo foi ZUKIN, Sharon. Gentrification: culture and capital in the urban core. American
Review of Sociology, n. 13,1987, p. 129-147.
7
Ver. Benis (2001).
8
Segundo Raposo e Salvador (2007, p.110), “os níveis de urbanidades podem ser observados através de condi-
ções de satisfação dos residentes, ou condições objetivas, mensuráveis, podendo recorrer-se a uma variedade de
indicadores [...]”. O nível de infraestrutura, tipo de ocupação, atividade econômica, serviços etc.
9
Ver. Peralva (2000).

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destinado principalmente para a construção de edifícios, que no prelúdio da década de 1980,
mostravam-se deteriorados com a crise urbana, que se tinha instalado em Moçambique.
Tal enobrecimento estava ligado à entrada de novos atores urbanos no núcleo, que
reconfiguraram o espaço com uma nova dinâmica de consumo de sistemas de objetos que
encareceu a vida nos “núcleos urbanos”, que crescia por dentro (“implosão urbana”). Mas
o crescimento foi exclusivamente demográfico (Araújo, 2003).
Em síntese, podemos afirmar que o enobrecimento de alguns bairros na década de 1990
foi impulsionado pela entrada de novos atores urbanos, influenciado pela uma cultura neoli-
beral, cujo um dos exercícios do consumo, opera pela aquisição de moradias luxosas.
Nos dias que correm, o mercado mobiliário moçambicano transforma o uso dos anti-
gos edifícios em novos, e renova os espaços mais centrais para o desenvolvimento de uma
economia de serviços e novas áreas residenciais. A consequência desse consumo neoliberal
pode ser resumida em pelo menos em quatro ideias básicas: i) flexibilização da (re)pro-
dução da pobreza urbana; ii) maior precarização das infraestruturas e serviços urbanos;
iii) deterioração das condições de vida urbana e; iv) surgimento de crime-negócio.
Podemos afirmar que nos finais da década de 1990 e no início dos anos 2000, o
enobrecimento de alguns bairros se deu pela massificação de edifícios de tipo duplex.
Principalmente nas periferias da cidade de Maputo (bairro da Costa do Sol), e depois se
expandiu para outros bairros e outras cidades.
A cidade de Maputo é o local por excelência onde se pode observar claramente esse
processo de enobrecimento de alguns bairros, com casas elegantes, que o professor Manuel
G. Mendes de Araújo (2003), chama de vivenda, nós chamamos de “palacete moçambicano”
e condomínios fechados nas periferias.
O estabelecimento das casas elegantes vai dia-a-dia, expulsando progressivamente
a população de baixa renda que aí mora para locais muito distantes. A repulsão ocorre
com o aumento do custo de vida, o que dificulta a permanência dos antigos moradores
de baixa renda.
O fenômeno só foi claramente percebido em sua dimensão geográfica e urbana a par-
tir da década de 1990, em Moçambique. Atualmente o processo tornou-se sintomático
no crescimento dos principais centros urbanos do país. Temos que ter em mente que os
processos de gentrificação do mundo europeu, americano e latino, apresentam diferenças
211 // Sociedade e memória dos territórios

significativas em relação ao africano e em particular ao moçambicano.


Como aponta Siqueira (2014), a gentrificação dos países em via de desenvolvimen-
to, portanto, não pode ser compreendida por meio da definição clássica que a indica
como um processo pontual de reforma de unidades residenciais, em edifícios históricos e
bairros centrais, por um grupo de classe média. Ou seja, o entendimento clássico da ca-
tegoria analítica gentrificação, lhe dá substância como um processo urbano específico de

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bairros centrais, com uma historicidade que lhe destaca da parte restante do espaço urbano
(Ribeiro, 2014).
Para o autor a categoria possui três etapas específicas: a primeira, espacial (associada
a bairros centrais); a segunda, a temporal (a massificação desse fenômeno foi depois da
segunda Guerra Mundial) e a terceira, a social (a substituição de uma população de baixa
renda por uma mais abastada)10.
Mas têm alguns processos que são comuns à substituição social dos moradores de
baixa renda pelos da renda média nos núcleos dos principais centros urbanos, ao expulsar
e a expropriar os lotes dos pobres que moravam nas periferias para a construção de
condomínios e moradias elegantes, ou de luxo, se assim quisermos chamar11.
Como sabemos a gentrificação é consequência da mudança de composição da popula-
ção residencial e da reorganização do espaço de circulação e consumo (Furtado, 2014) por
estratos de renda mais elevados.
Para organizar didaticamente, grosso modo, como se processou o fenômeno de gen-
trificação nas principais cidades moçambicanas, indicamos duas etapas: i) a primeira que
vai de 1990 a 2000, quando ocorreu a saída da população de baixa renda dos núcleos das
principais cidades, alguns vendendo as chaves (expressão típica moçambicana que significa
a venda do apartamento ou flat12), enquanto que outros davam de aluguel as casas, com
contratos ou sem. As casas ou flats foram ao longo de tempo, ficando caras e; ii) a segunda,
de 2000 até os dias atuais, quando as periferias urbanas estão em constante mutação com
construções de novos pontos comercias ou de novos edifícios e condomínios fechados.
Convém afirmar que as duas formas de gentrificação devem ser vistas como nos dias
de hoje imbricadas uma na outra na produção e acumulação rentista do capital no cir-
cuito imobiliário formal e informal moçambicano. Portanto, existem nas cidades mo-
çambicanas, espaços de gentrificação consumadas, por exemplo, nos bairros de Triunfo,
Sommercheald 1 e 2, entre outros bairros na cidade de Maputo, mas também há bairros em
processos de gentrificação, o que demostraremos ao longo desse artigo.
O objetivo deste artigo consiste em descrever o processo de gentrificação em
Moçambique, enfatizando mudanças e perspectivas. Para tanto, utilizou-se como mé-
todo a pesquisa exploratória-descritiva com abordagem qualitativa, baseada em dados
secundários acerca do processo de gentrificação no país e pesquisa biográfica. Nesse
212 // Sociedade e memória dos territórios

contexto, dividiu o artigo em duas partes que enfatizando mudanças e perspectivas. Na

10
Para Gargalhardo (2014), uma nova vaga de trabalho a partir dos anos 2000 procuram atenuar ou reformu-
lar o termo gentrificação. Conclui dizendo que as análises de Neil Smith e da Ruth Glass, são ineficazes para
a realidade atual.
11
É positivo lembrar que conclusões desta ordem se encontram igualmente em Mendes (2014).
12
E para mais detalhe, ver. Muhambe (2000).

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primeira parte, debruça-se sobre a primeira fase de gentrificação que decorreu no centro
urbano, com a requalificação e a na segunda parte apresenta-se a dinâmica do processo
de gentrificação, estimulada pela urbanização extensiva, que está a decorrer na periferia
com a renovação urbana.

A primeira fase de gentrificação: o surgimento do mercado imobiliário

Desde o início da década de 1990 formou-se na cultura urbana moçambicana uma


ideia de que morar no núcleo urbano ofereceria certo status na hierarquia que conferia
um grau de reconhecimento no interior da sociedade. Esta ideia foi impulsionada por três
movimentos que embora contrários, remetem um ao outro e se interpenetram.
. O primeiro movimento diz respeito à chegada de Organizações Não Governamentais
(ONGs) internacionais no final da década de 1980 e no início da década de 1990, que
vinham para dar um apoio a Moçambique que acabava de sair de uma prolongada guerra
civil. Seus integrantes passaram a alugar flats e casas para moradia ou para transformá-los
em escritórios, o pagamento era feito em dólar.
Resultou que todo o tecido urbano do núcleo passou a ser afetado pela dolarização.
Ruas comerciais inteiras, parques, restaurantes, mercados, museus, cinemas e todo tipo
de imóvel residencial e de uso comercial foi valorizado pela dolarização. Podemos dizer
que foi o período do início da “mercadorização da cidade” (Ferreira, 2011)13. Como bem
aponta Muhambe (2000) afirma que a entrada do fluxo dos técnicos de diferentes países
ocidentais na década de 1990, tornou em parte, insustentável o custo de vida urbana para
muitos profissionais urbanos, na sua maioria funcionários públicos. Muitos deles tiveram
que arrendaram as suas casas.
O segundo movimento foi afervorado pelo “espírito neoliberal da época”, fortificado
com o fim da guerra civil. O que proporcionou que muitos moçambicanos urbanos apro-
veitam-se de dividendos através das rendas dos imóveis localizados no núcleo. Não podemos
esquecer que neste período, a produção da vida urbana estava na estratégia de sobrevivência.
E o terceiro foi o fim da nacionalização dos prédios, protegidos pelo Decreto Lei
5/76. O Decreto-Lei 2/91 de janeiro instituiu a alienação dos imóveis nacionalizados pelo
213 // Sociedade e memória dos territórios

Estado. O artigo 1 afirmava que todos os moçambicanos em situação legal com os imó-
veis tutelados pela Administração do Parque Imobiliário do Estado (APIE), se estivessem
interessados, podiam alienar. Aí qualquer cidadão que quisesse fazê-lo podia realizar o que

13
Para uma ideia sobre a mercantilização da cidade, city-marketing, ver. Ferreira (2011).

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lhe conviesse com o imóvel: vender, alugar, restaurar, etc., este último, desde que pedisse
autorização ao município14.
Podemos afirmar que a década de 1990 foi o decênio do arranque do arrendamento
das casas, como estratégia de uma população urbana que em curto espaço de tempo, estavam
falidos, os seus salários não correspondiam a inflação. “O índice do preço ao consumidor
aumentou fortemente entre 1989 a 1995, mas a partir de 1996 teve a sua tendência cres-
cente fortemente reduzida” (Carsane, 2005, p.7). O aluguel das casas transformou-se em
meio para obtenção de rendimento familiar15.
A Lei da alienação aumentou a rentabilidade dos imóveis, sobretudo nas principais
cidades moçambicanas. Isso porque a inflação era alta e motivava os donos de imóveis a
alugarem as suas propriedades como mecanismo de sobrevivência, contra o aumento do
custo de vida urbana.
Os moradores de “baixa renda”16 que haviam adquirido imóveis no período da nacio-
nalização, dadas as circunstâncias, foram para os “bairros periféricos” a procura de locais
onde pudessem erguer novas casas para residir e sobreviver com a renda do imóvel.
Muitos moçambicanos que conseguiram no momento de alienação comprar o imóvel
do APIE alugavam ou vendiam e iam morar na periferia, o que permitia que pouco a
pouco os lotes da vizinhança se tornassem caros. Os novos moradores ergueram casas com
construções definitivas em blocos de cimento e zinco, o que vai paulatinamente substituir
as casas de caniço que aí existiam.
Por isso atualmente deve existir reserva para falar de dualidade urbana, do ponto de
vista do material construtivo: (“cidade de cimento” versus “cidade de caniço”). Talvez seja
correto concordar com Serra (2003) quando diz que atualmente as periferias estão a se
configurar como um espaço híbrido, com casas elegantes, de caniço, cimento, chapa de
zinco, cartão etc17.
Ainda, em fins da década de 1990, nos bairros de Costa de Sol e Polana Caniço, na
cidade de Maputo, os antigos moradores foram obrigados por um grupo novo de poder
aquisitivo, a vender as casas e a deslocarem-se para outros locais mais distantes e aí floresceram
palacetes (vivendas).
Obviamente, neste processo os que possuíam capitais iam construindo vivendas im-
ponentes ou casas elegantes do tipo duplex ou tríplex na periferia (Fotos 1,2 e 3), um local
214 // Sociedade e memória dos territórios

onde eles menos se identificavam, o que altera por completo a antiga nomenclatura de
“cidade de caniço”. Casas elegantes, que foram construídas numa economia urbana de

14
Para um ponto de situação, veja (SILVA, 2011).
15
Principalmente os que tinham obtidos casas no período da nacionalização dos edifícios (1976).
16
Neste domínio, ver. o trabalho de Muhambe (2000).
17
Sobre as estratégias de sobrevivência da população da periferia da cidade de Maputo, ver. Costa (2011).

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circuito superior marginal, onde os seus proprietários se utilizavam de um lado de crédito
bancário e de outro do seu próprio bolso, acumulado ao longo do tempo. Nesse sentido,
utilizam-se da presença do circuito superior, como forma de obter recursos intermediários
necessários para autoconstrução dos palacetes.

Foto 1 – Palacete do tipo tríplex, em construção.


Fonte: MALOA, J. M. (2014).

215 // Sociedade e memória dos territórios

Foto 2 – Palacete do tipo duplex.


Fonte: MALOA, J. M. (2014). Palacetes da cidade de Matola. (Bairro de Mussumbuluco)

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Foto 3 – Palacete Garden ou Giardino de Moçambique
Fonte: MALOA, J. M. (2014). Os duplex Garden ou Giardino, com jardim e piscina, entre outros.

Convém esclarecer que os palacetes estão alterando as paisagens urbanas das periferias,
na medida que vão, gradualmente, surgindo construções elegantes no interior dessas áreas
precárias. Em verdade, essas casas nobres são resultado de acções de especulação, por inter-
médio da super-valorização do espaço onde se instalam.
É incorreto dizer que a ideia da casa própria atingiu apenas a população da “classe
média” ou indivíduos de poder aquisitivo médio. Muitos dos altos funcionários do Estado
procuraram nas periferias novos espaços para construção das casas dos seus sonhos. Essas
residências elegantes são na sua maioria unifamiliares, com dois ou mais pisos erguidos
por construtores privados, principalmente aqueles que pertencem a entidades particulares
fora do alcance administrativo dos órgãos do Estado18. Estes construtores obtêm licença
de construção.
O licenciamento abrange todos os trabalhos a serem executados e, em relação
a projetos faseados, é necessário auferir uma licença de construção. A competência
para efetuar o licenciamento de empresas privadas é das Direções Províncias das Obras
216 // Sociedade e memória dos territórios

18
Alguns contratam pedreiros individuais. Ver., por exemplo, a ASSOCIAÇÃO DE COMÉRCIO E INDUSTRIA.
O quadro legal para obras de construção em Moçambique. Maputo: GIZ, 2008. Ver também: DIPLOMA
MINISTERIAL 49/2013. Aprova fórmulas de revisão de preços de empreitadas de obras públicas e DECRETO
NÚMERO 15/2010. Regime de contratação de empreitada de obras públicas. Aprovado pelo Conselho de
Ministros no dia 24 de maio do mesmo ano. Publicado no Boletim da República, I Série, n° 20, suplento,
de 24 de maio de 2010.

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Públicas enquanto, a licença para obras particulares cabe às autarquias, caso se situem
dentro das áreas municipais.
Ao longo das três décadas, à autoconstrução de vivendas luxuosas, vão aumentando
nas periferias. Como aponta Malauene (2005), essas vivendas ou palacetes moçambi-
canos surgiram na década de 1990 na cidade de Maputo, principalmente na avenida
Julius Nyerere, numa extensão de 12 hectares, com seis condomínios, com um total de
124 casas, dos quais 101 estavam habitadas. Destes, 5 hectares encontravam-se nos li-
mites administrativos com o bairro de Sommershield. Os empreendimentos surgiram na
forma de renovação urbana de destruição do anterior, velhas palhotas foram demolidas
e construídos os palacetes.
Como mostra Araújo (2008), houve a demolição do existente e o subsequente deslo-
camento da população pobre.
Estas práticas levantam algumas resistências, há relatos de que, recusa de alguns mo-
radores em receber menos de 5.000 USD (dólar americano), apesar de saberem que a sua
vida já não era compatível com o novo vizinho19.
Convém esclarecer que muitos dos jovens com poder aquisitivo20 que moram atualmen-
te no “núcleo urbano” das principais cidades moçambicanas, observaram nas vizinhanças,
casas mais baratas e mudaram com frequência de um bairro para bairro, para encontrar,
com facilidade, toda infraestrutura e serviços, a custo baixo.
Muitos jovens com poder aquisitivos que moram no núcleo urbano das principais
cidades moçambicanas estão ligados também a uma rede “imobiliária informal” e não vêm
empecilho em adaptar-se a um modelo de vida urbana alternativo. Por exemplo, alugar
a casa principal e ir morar na dependência (edícula), quer na rede-chão ou nos terraços.
O fenômeno tem sido comum nas cidades moçambicanas.
O ponto fundamental desta sumaríssima descrição está na explicação de caráter
geral que comporta o surgimento do circuito imobiliário informal na década de 1990,
impulsionado por luta pela sobrevivência numa sociedade de pobreza.
Nesta fase os promotores imobiliários eram indivíduos que detinham conhecimentos
do circuito imobiliário de venda e aluguel. Segundo Muhambe (2000), estes promotores
foram conhecidos como Mazumbe na cidade da Matola. Os seus serviços eram pagos por
comissão (dinheiro), que recebiam dos proprietários num negócio fechado. Há atual-
217 // Sociedade e memória dos territórios

mente na cidade de Maputo, um grupo de mulheres e homens que se dedicam a essa


“atividade informal”.

19
Consultar os trabalhos coordenados por Oppenheimer e Raposo (2013).
20
Estamos a falar de uma população com o ensino superior.

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Podemos dizer que foram os primeiros corretores imobiliários, até atualmente úteis
ao mercado imobiliário, visto que era fácil, naquela altura, entrar naquele ramo, porque
pouco dependia de conhecimentos muito avançados na matéria de correção imobiliária,
apenas dominar a rede de oferta.
Nesse período, as casas ou flat de aluguel, no núcleo urbano confirmou-se como uma
das principais formas de acesso à moradia urbana para os novos atores urbanos – os jovens
com poder aquisitivos.

A segunda fase de gentrificação

A configuração do mercado imobiliário

A indústria de construção imobiliária privada de capital nacional e internacional


começou principalmente a incidir sobre Moçambique urbano nos anos 2000, como
modelo de financiamento e constituição do sistema financeiro imobiliário. Como sabe-
mos a urbanização moçambicana pós-colonial contou com pouca solução acomodatícia
estatal para o problema habitacional dos altos funcionários do Estado e para um grupo
com poder aquisitivo em ascensão. Estes tornaram-se a partir dos anos 2000, a ser símbolo
do consumo da máquina imobiliária.
Nos anos 2000 houve o surgimento de muitas empresas de construção civil, os
homebuiders, eles configuraram a indústria de construção imobiliária numa época em
que a urbanização se intensificava e o mercado de trabalho com altos valores salariais se
formava e muitos estrangeiros entravam para trabalhar em Moçambique, nas grandes
corporações, incrementando a circulação de capitais. O país permitia uma confiança nos
investidores estrangeiros, pois já havia passado quase dez anos que se tinha terminado
a guerra civil.
Nessa fase, dá-se a passagem do aluguel rentista dos imóveis no núcleo urbano
para a promoção imobiliária rentista para os condomínios nas periferias. Uma requa-
lificação urbana centrada no incorporador21 e nos parceiros: o governo e as empresas
nacionais e internacionais. A produção em massa dos condomínios fechados, horizon-
218 // Sociedade e memória dos territórios

tais ou verticais, em Moçambique, está intimamente articulada à uma população com


poder aquisitivo.

21
Incorporador imobiliário é nome dado ao agente que executa um conjunto de atividades exercidas com a
finalidade de construir ou promover a construção de edificações ou conjunto de edificações, bem como a
sua comercialização, total ou parcial composta de unidades autônomas que, em seu conjunto, formam um
condomínio (TOPALOV, 1974).

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Como deixa antever a publicidade do condomínio Julius Estate de que o empreendi-
mento é da elite, com acomodação privilegiada numa área de 36 hectares de zona residencial
em volta de um lago pitoresco e perto das praias imaculadas da província de Gaza, região
sul de Moçambique, cuja cidade capital é Xai-Xai, que se situa acerca de 210 quilômetros
da capital, a cidade de Maputo.22
Na verdade, o processo de gentrificação que está a efetuar-se nas periferias urbanas,
é um processo de atuação de capitais globalizados: corporações, bancos e empresas na-
cionais23 em aliança com o grande capital multinacional. Muitos capitais multinacio-
nais despossuem vínculo com as cidades moçambicanas onde projetam os investimentos
imobiliários como fonte de acumulação do capital. Como mostra Jemuce (2016), a
busca, ou aceitação pelo Estado nacional moçambicano por grandes investimentos,
seja do capital internacional globalizado, seja de capitais nacionais torna esse equilíbrio
ainda mais difícil com efeitos de “círculo perverso” para os mais pobres, que são deslo-
cados dos centros urbanos e das áreas rurais do entorno urbano para áreas mais distantes
e interiores.
Neste ponto, a solidariedade entre o internacional e o local, forma uma verticalidade
fundada na circulação do capital (Santos, 1996). Como aponta o professor Milton Santos
(1996), as verticalidades são resultados de novas demandas de intercâmbios.
Vale apontar que as evidências de capitais estrangeiros nos empreendimentos
imobiliários moçambicanos, podem ser percebidas nos nomes dos condomínios:
Mwenemutapa, Matola Kings Village, Djuba´s Ville, Malampsene Village, ambos na ci-
dade da Matola; na cidade de Maputo, Vila Amber; na cidade de Tete, condomínio
imobiliária Ritch – no bairro Mpadwé, na cidade de Nampula, condomínio Fatemah; na
cidade de Xai-Xai, condomínio Julius Estate; na cidade de Maputo, Matchik Village, con-
domínio residencial The Palm, condomínio Xiluva24, na cidade de Nacala, Vila Clarinha,
Vila Mulala, etc.
Assim sendo, o status da periferia está se alterado por um grupo que já possuía uma
posição econômica definida na urbe. O consumo dos condomínios cria uma demanda
do circuito superior, uma vez que ela depende de capital intensivo para a sua constru-
ção, assalariamento dos moradores para pagar as prestações do apartamento ou casa que
adquiriram por meio de créditos bancários.
219 // Sociedade e memória dos territórios

22
Ver., por exemplo, CONDOMÍNIO JULIUS ESTATE. Disponível em: <juliusestate.com/assets/portolio-for-
-web.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2015.
23
As empresas nacionais estão muitas das vezes ligadas a empresas de construção de obras públicas. Os cons-
trutores de obras públicas têm alvará para efetuar a construção, reconstrução, reparação e adaptação de
imóveis para o Estado, governos municipais, empresas públicas e privadas.
24
Ver. Silva (2011).

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220 // Sociedade e memória dos territórios

Fotos 4 e 5 – Condomínios da cidade da Matola


Fonte: MALOA, J. M. (2015).

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A segunda fase da gentrificação está sendo acompanhada por uma gentrificação sprawl
(dispersa), de condomínios e casas de alto padrão (palacetes), responsável pela transformação
das periferias, dividindo lado a lado condomínios luxuosos com ocupações irregulares (Foto 6).
Nesse caso, a existência de condomínios e palacetes é influenciada por forças verticais
de uma racionalidade hegemônica do discurso pragmático do setor da indústria de cons-
trução civil no mercado imobiliário, com objetivo de atender as necessidades do restrito
segmento social que reuni as condições necessárias para o endividamento junto às instituições
financeiras (Silva, 2014).

Foto 6 – Condomínios de alto padrão nas proximidades de habitações precárias


Fonte: Costa; Henriques (2014).
221 // Sociedade e memória dos territórios

Os fluxos de capitais estrangeiro que entram no circuito imobiliario de Moçambique,


vão colocar novos problemas para o pensamento crítico sobre o urbano e para os estudos
sobre financeirização, numa época onde o direito à infraestrutura e serviços urbanos enfren-
tam novos desafios com a acumulação da dualidade urbana, o aumento de investimento

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 221 17/06/2022 18:06:04


de capital privado seletivo, marcado pelo condicionalismo no financiamento imobiliário,
como: ter um salário ou rendimento regular, auferir níveis de rendimentos elevado
compatíveis com os encargos do financiamento; pagamento de seguros de vida25; entre
outros requisitos para otimizar a acumulação do capital e as dificuldades das periferias em
responderem aos critérios universais dos direitos urbanos26.
A lei que rege a produção da nova personagem gentrificadora (condomínios - Decreto
nº 17/2013), contribui para o aumento da produção de imóveis, ao mesmo tempo em que
amplifica a especulação imobiliária e seus efeitos, como o estoque de terrenos ou lotes vazios,
a espera de serem transformados em mercadoria, como base na criação do capital fictício.
Para usar as palavras de Fix (2011), guardadas as diferenças entre Brasil e Moçambique,
há no pensamento desses proprietaries dos espaços vazios, uma promessa de ganhos num
futuro antecipando o que poderá ser construído nos terrenos adquiridos, impondo novos
obstáculos para o acesso às infraestruturas e serviços urbanos, à população instalada há
muito tempo. Uma vez que desestimula o investimento público.
Também, impede o compartilhamento de infra-estruturas e serviços urbanos, ao per-
mitir que os condomínios fechados tenham autonomia de estabelecerem por si mesmos os
equipamentos, tais como: bomba de água, transformadores e geradores de energia e outras
instalações27, deixando de lado a população carenciada que reside num mesmo espaço.
A expansão dos condomínios e palacetes de luxo está a representar um movimento de
aguda diferenciação social e habitacional nas períferias. Como revela Fix (2011, p.198), “o ca-
pital transforma os espaços que encontra em espaços de produção e acumulação […]. É próprio
deste modo de produção criar, destruir e recriar novas bases, espaços e condições para sua
expansão, construindo e alargando mercados e horizontes ampliados para a valorização”.
Residem nesses condomínios de alto padrão, estrangeiros como sul africanos, brasilei-
ros, chineses, europeus de várias nacionalidades, entre outros. Os fluxos dos condomínios
estão ligados provavelmente ao deslocamento de capitais e pessoas qualificadas que tanto a
burocracia estatal, quanto a montagem dos novos empreendimentos capitalistas requisitam.
Mas também a situação está ligada à necessidade do capital internacional se reproduzir
e acumular a partir do circuito imobiliário.
Quase todos os empreendimentos de luxo estão situados nos bairros periféricos.
Reforçando essas áreas como espaços, por excelência, da gentrificação28, onde inaugura a
222 // Sociedade e memória dos territórios

25
Ver. Silva (2014).
26
Nesta perspectiva, recomenda-se a leitura da realidade brasileira para tirar lições. Ver. Fix. (2011).
27
Decreto n° 17/2013. Regulamento do regíme jurídico do condomínio. Boletim Da República De
Moçambique, I Série- número 34, Sexta-feira, 26 de abril de 2013. O Decreto define o condomínio como
pessoa singular ou coletiva que é simultaneamente proprietária de uma ou mais frações e coproprietária das
partes comuns do edifício.
28
Também Baia (2008) capta esta realidade na cidade de Nampula.

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metamorfose da paisagem que outrora foi dominante, do caniço. A escolha desses espaços
é influenciada pelo mercado financeiro, baixo custo da terra urbana para os dos poderes
aquisitivos e incentivo público, com baixo imposto.
Em suma, Mendes (2010), aponta que o processo de gentrificação resulta em parte do
desenvolvimento irregular e flexível do mercado do solo urbano, que integra o processo de
acumulação do capital pelos imobiliários. Como aponta Fix (2011, p. 3), a “vinculação do
mercado de terras ao mercado de capitais é uma característica do capitalismo financeiro.
Smith (1979a) já apontava que o processo de gentrificação resulta em parte da acumulação
de capital por imobiliárias que atendem o objetivo particular dos gentifiers (“classe média”
e “classe média alta”, os filtering up – os relativamente endinheirados), em detrimento do
interesse social amplo.
Como apontamos, as periferias eram nos anos anteriores à 1990, locais indesejados
pelos indivíduos compoder aquisitivo, agora se expandem como locais de pretensão
desses cidadãos.
Tudo indica, por conseguinte, que o conjunto de mudanças nas paisagens das periferias
urbanas, causadas pelas instalações de condomínios e palacetes luxosos, está provocando
aumento de fluxo de empreendimentos de serviços – lojas comercias, bancos, caixas ele-
trônicas e pequenos negócios que se voltam para se adequar aos interesses dos novos mora-
dores que, por sua vez, justificam o crescimento dos investimentos privados naquelas áreas.
Também se pode verificar a mudança das atividades gerais, por exemplo, no termi-
nal de ônibus de Malhampsene na cidade da Matola, há um florescimento de atividades
específicas, como bancos, shops que existiam apenas no núcleo urbano e que atualmente
satisfazem os consumidores que prevalecem no local.
Enquanto isso, o valor do solo urbano aumenta com novos empreendimentos de con-
sumo. Portanto, a indústria da construção imobiliária gera nas periferias pressão sobre a
especulação de terra, pois motiva os moradores a venderem seus lotes.
A dramática situação está provocando migrações internas, acompanhadas pela acumu-
lação da dualidade urbana, uma vez que os imigrantes constroem nos locais longínquos as
suas moradias em condições precárias.
A gentrificação é atualmente mais um fato pulverizado do que uma localização que
ocorria apenas no núcleo urbano, como anteriormente, ela passou a ser um sintoma geral
223 // Sociedade e memória dos territórios

da nova urbanização moçambicana, ao explorar cada vez mais as periferias distantes e ao


acompanhar a acumulação da dualidade urbana.
Assim sendo, as periferias urbanas estão se configurando como mosaico de múltiplas
combinações de temporalidades, diversidade, oposição, enfim para falar como a profes-
sora Maria Monica Arroyo (2008), estão afeiçoando muitas formas de fazer, de sentir e
de viver.

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Para terminar, esta seção, reafirmamos que a segunda fase de gentrificação nas cidades
moçambicanas começou aproximadamente nos anos 2000, com o surgimento do circuito
imobiliário privado de capital misto (nacional e internacional), impulsionado por incor-
poradores e promotores imobiliários. Interresados apenas em lucros. Esta realidade é o
ponto de partida de um novo colonialismo urbano29, para utilizar a expressão de Atkison e
Bridge (2005).
O aumento da demanda habitacional de alto padrão vem como resposta à falta de
uma política nacional de habitação, que respondesse o interesse de todas as classes, mas
também a busca de lucros por intermédio do mercado imobiliário. Como sabemos no
período atual, as áreas urbanas estão cada vez mais sintonizadas com o ritmo do mundo
(Arroyo, 2008).
O que está acontecendo atualmente em Moçambique, para servir-se de uma expressão
de Ermínia Maricato (1979) é uma verdadeira produção capitalista das cidades, alcançada
por autofinanciamento dos que possui um poder aquisitivo, em especial para aqueles que
têm renda entre 8 a 15 salários mínimos30, com condições de investir parte dos recursos
mensais em uma casa própria.
Vista de perto, a actual paisagem da periferia revela alguns aspectos novos de vínculos
entre a organização espacial e o processo de circulação de capital desenvolvido ao longo
dos últimos dezasseis anos. Que evidencia a expansão de um mercado imobiliário que tem
consequência para a população de baixa renda.
Como sabemos, a segunda fase de gentrificação é acompanhada pela especulação imo-
biliária, como se explica que o aluguel de uma residência no bairro de Triunfo em Maputo,
custe 165.000 MZN (Meticais), aproximadamente 11.000 Reais31? Quem possui tal dinheiro?
Essa situação comporta um quadro de segregação urbana, ao criar apenas bairros para
os que possui poder aquisitivo. Vejamos também, a seguinte publicidade (Foto 51), sobre
a venda de um apartamento de condomínio:
Djuba Estate – Matola, 60 moradias unifamiliares. Com facilidades de paga-
mento extraordinária! $77,000, pagamento inicial e $1,750 prestação mensal de
36 meses. Casas Tipo 3, 2 Casas de Banho, Estacionamento para 3 carros. T3 custa
USD140.000, podemos oferecer facilidade pagamento conforme a promoção em
vigor ou credito de habitação a partir do Banco. Cumprimentos32.
224 // Sociedade e memória dos territórios

29
Ver. Atkison e Bridge (2005).
30
Valor calculado segundo, o salário mínimo do funcionário público moçambicano (3.002.00 meticais).
Aprovado pelo Governo, entre (01-06-2013 a 30-04-2014). Podemos ver. <http://www.meusalario.org/
mocambique/main/salario/salario-minimo>. Acesso em: 18 mar. 2015.
31
Essa estimativa pode ser maior ou menor, dependendo da oscilação do câmbio do dia. Por exemplo, 1 Real
esta neste último tempo por 15 Meticais.
32
Publicidade disponivel em: https://www.facebook.com/DjubaEstate. Aceso em: 10 jun. 2015.

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Foto 7. Publicidade de uma imobiliária na cidade da Matola
Fonte: Condomínio Djuba Estate (2015)33.

É preciso encerrar dizendo que a atual combinação entre a indústria de produção


imobiliária e a economia neoliberal, para além de gerar gentrificação nas periferias urbanas
moçambicanas, aumentou a desigualdade social, a pobreza urbana e a segregação urbana,
tornando incompatível o grande desafio que o Estado Moçambicano deve enfrentar sobre
o problema de infraestrutura, serviços urbanos e moradia de interesse social para as camadas
desfavorecidas.
Como documenta Raposo (2007), a dualidade entre o núcleo e a periferia intensifi-
cou-se nos últimos anos com a proliferação de grandes projectos urbanos (infra-estruturais
e imobiliários).
A urbanização moçambicana está longe de conduzir uma integração da periferia –
escreve Oppenheimer e Raposo (2007)34.
O que mostra o verdadeiro esquecimento das periferias, acompanhado por compor-
tamento demagógico ou autoritário dos presidentes dos municípios; domesticação das
associações de defesa das “questões urbanas”; influência partidária nas escolhas das prio-
ridades; excessiva burocratização; indiferença; comodismo da administração municipal,
225 // Sociedade e memória dos territórios

postura paternalista; corrupção; adaptação insuficiente e inadequada de práticas demo-


cráticas; fraca infraestrutura institucional; fraca autonomia financeira ; fraco capital para
investimento; fraca base tributária (impostos e taxas), etc.

33
Ibidem.
34
Podemos ver. Oppenheimer e Raposo (2007).

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Falta à elite política moçambicana a consciência e o comprometimento social amplos,
para atacar principalmente o dilema de infraestrutura e serviços urbanos nas periferias35.
É preciso encará-lo como um problema de “desenvolvimento urbano”, para que a
população urbana faça jus ao direito de ter direitos. “Um espaço urbano justo é garantidor
de uma boa qualidade de vida [...]” (Souza, 2012, p. 344).
O acesso à infra-estrutura e serviços urbanos, principalmente, o acesso a transporte
público, energia eléctrica, água canalizada deve ser reconhecida pelo Estado como um
direito e um compromisso irrestritos. Como mostra Jemuce (2016), essa urbanização
produz cidades com muitas diferenciações internas, expressas em bairros que se dis-
tinguem uma das outras quer pelo espaço construído, pela composição da população,
pelas características sociais relacionadas. Consequentemente, como diz Sambo (2016),
esta situação coloca a população vulnerável a passar de uma condição de exclusão social
para uma outra pior, isto é, são marginalizados socialmente como efeito da gentrificação
resultante da complexidade do sistema habitacional e da onerosidade dos seus processos.

Conclusões

Conforme demonstrado, o processo de gentrificação em Moçambique é novo, está


associado a entrada da indústria de construção imobiliária privada de capital nacional
e internacional, que começou a incidir nos finais da década de 1990 e no início dos
anos 2000, no espaço urbano do país com a financeirização e transformação do circuito
imobiliário, que revitalizou ou renovou o espaço urbano. Este processo de revitalização
e renovação urbana é acompanhado pelo crescimento de novos e modernos edifícios
em pequena quantidade no centro da cidade e em grande quantidade na periferia, que
actua em combinação com a indústria de produção imobiliária e a economia neoliberal
que acaba de gerar o aumento da desigualdade social, pobreza urbana e a segregação
urbana, tornando incompatível o grande desafio do desenvolvimento urbano de resol-
ver o problema de infraestrutura, serviços urbanos e moradia de interesse social para as
camadas desfavorecidas.
226 // Sociedade e memória dos territórios

35
Os problemas de serviços e infraestrutura urbana, podem criar a regeneração urbana, isto quer dizer que
podem atuar como uma resolução dos problemas urbanos, a nível de condição económica, física, social e
ambiental das áreas que tenha sido sujeitas a transformações (Ribeiro, 2014).

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Resumo – O processo de gentrificação em Moçambique é novo, está associado a entrada da
indústria de construção imobiliária privada de capital nacional e internacional, que começou a
incidir nos finais da década de 1990 e no início dos anos 2000, com o financiamento e transfor-
mação do circuito imobiliário moçambicano, acompanhado com a revitalização e renovação urba-
na. Como sabemos a urbanização moçambicana pós-colonial contou com pouca solução acomo-
datícia estatal e privado para o problema habitacional dos altos funcionários do Estado e para um
grupo com poder aquisitivo em ascensão, que atualmente são os símbolos do consumo da máqui-
na imobiliária. O objetivo deste artigo consiste em descrever o processo de gentrificação em Mo-
çambique, enfatizando mudanças e perspectivas. Para tanto, utilizou-se como método a pesquisa
exploratória-descritiva com abordagem qualitativa, baseada em dados secundários acerca do pro-
cesso de gentrificação n566+3 o país e pesquisa biográfica. Nesse contexto, observa-se mudanças
no processo de gentrificação do centro da cidade para periferia, como produto da renovação urba-
na, que traz consequências nocivas, para grande parcela significativa da população urbana, apenas
uma parte que reside nas áreas renovadas das periferias tem acesso à habitação “condigna”, infraes-
trutura e serviços urbanos, o que aumenta a desigualdade, pobreza e exclusão urbana.
Palavras-chave: Gentrificação. Renovação. Requalificação. Centro. Periferia e Moçambique.

Abstract – The gentrification process in Mozambique is new, it is associated with the entry
of the private real estate construction industry with national and international capital, which
began to affect the late 1990s and early 2000s, on the financialization and transformation of the
Mozambican real estate circuit, with revitalization and urban renewal. As we know, post-colonial
Mozambican urbanization had little state and private accommodative solution to the housing
problem of senior state officials and for a group with rising purchasing power, which are current-
ly the symbols of the consumption of the real estate machine. The purpose of this article is to
describe the process of gentrification in Mozambique, emphasizing changes and perspectives.
Therefore, exploratory-descriptive research with a qualitative approach was used as a method,
based on secondary data about the gentrification process in the country and biographical re-
search. In this context, there are changes in the gentrification process from the city center to the
periphery, as a product of urban requalification and renovation, which brings harmful conse-
quences for a significant significant portion of the urban population, only a part of which resides
in the requalified and renovated areas has access to urban infrastructure and services.
Keywords: Gentrification. Renovation. Requalification. Peripheries and center. Mozambique.
227 // Sociedade e memória dos territórios

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230 // Sociedade e memória dos territórios

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O crescimento urbano na Ilha do Maranhão
e suas contradições socioespaciais

Tiago Silva Moreira

Introdução

Encontramos, na essência da urbanização brasileira, as desigualdades socioterrito-


riais, que foram perpetradas ao longo de toda a história social, econômica e política do
país, sendo impressas nas cidades dispersas por todo território nacional. Nesse contexto,
observamos as lutas por acesso à cidade e as contradições socioespaciais enraizadas nos
centros urbanos das cidades brasileiras que perduram até os dias atuais, em menor ou
maior escala.
Assim, a cidade, durante todo o processo de evolução do sistema capitalista, tornou-se
palco e espaço fundamental para a reprodução do próprio capital, não obstante, tornou-
-se, também, espaço das desigualdades oriundas das contradições do sistema. Conforme
ressalta Maricato (2015, p. 18), os capitais, em cada momento histórico, buscam moldar
cidades aos seus interesses, ou melhor, aos interesses de um conjunto articulado de
diferentes forças que podem compor uma aliança.
Em vista desta configuração, partiremos das seguintes hipóteses: a) que o espaço urbano
está em constante mudança, principalmente, acompanhado pelas dinâmicas econômicas
e técnicas, as quais são produzidas em uma lógica desigual e excludente, agravada diante
de uma grande inflexão neoliberal, a partir da qual o Estado incorpora reformas sociais e
econômicas que retiram ou reduzem direitos e garantias sociais; b) o Estado interfere em
231 // Sociedade e memória dos territórios

maior ou menor atuação no espaço urbano através das suas ferramentas institucionais,
entretanto, notamos que as disparidades entre os espaços urbanizados estão ligadas aos
interesses de reprodução do capital através dos agentes estatais. Segundo Corrêa (2004,
p. 24), o Estado pode assumir distintas formas na produção do espaço urbano, destacando-se
como um “grande industrial, consumidor de espaço e de localizações específicas, proprie-
tário fundiário e promotor imobiliário, sem deixar de ser também um agente de regulação

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do uso do solo e alvo dos chamados movimentos sociais urbanos”. Como reflexos dessas
ações, geralmente há, por um lado, as benesses da estrutura urbana e, em outra perspectiva,
as lutas pelo seu acesso.
Todavia, nosso intuito não é abordar uma ideia generalizante de que a produção do
espaço urbano é apenas um processo a cargo dos agentes estatais ou do poder econômico
dos agentes imobiliários, pois ressaltamos que esses processos, sem contrapeso, podem
gerar grandes desigualdades. A respeito disso, Rosa (2010, p. 43) afirma que:
O espaço é um espaço político, por ser uma materialização de diversas ações
dotadas de intencionalidade, podemos estabelecer uma relação entre a produção espa-
cial e o planejamento urbano, entendido aqui, como uma estratégia política adotada
para reproduzir o espaço de acordo com as novas demandas do capital.

Portanto, a cidade e os espaços que a compõem são transformados em mercadorias


e dotados de valor através da incorporação dos equipamentos públicos ou privados que
atraem capital, convergindo, dessa forma, no processo de valorização destes espaços que,
por conseguinte, transformam-se em um negócio. A “cidade mercadoria” ganha forma, e
as terras, nos espaços urbanos, são convertidas em lotes negociados pelos agentes imobi-
liários, um produto consumível caracterizado pelo acesso desigual e excludente de grande
parte da população.
Nesse sentido, a ocupação espacial da ilha do Maranhão apresenta uma diversidade
de assentamentos urbanos que podem ser vistos na forma de condomínios fechados de
“alto padrão” ou no formato de assentamentos “irregulares” de ocupação desordenada
em áreas de vulnerabilidade socioambiental ou terras devolutas. Esse cenário revela as
grandes desigualdades sociais das cidades brasileiras, as quais não atendem e/ou não
ofertam uma infraestrutura básica para sua população. Portanto, ressaltamos que as
relações entre a financeirização e a mercantilização do solo urbano geram impactos na
organização territorial das cidades, pois se inter-relacionam ou interferem no processo
de democratização de lotes urbanos, gerando grandes desigualdades socioespaciais dentro
das cidades.
232 // Sociedade e memória dos territórios

A cidade como mercadoria

Uma das alternativas criadas para ampliar a acumulação capitalista foi a ruptura com o
chamado capitalismo produtivo, passando-se para o capitalismo financeiro, do qual trata-
remos como passagem de transição do urbano-industrial para o metropolitano-financeiro.
Para Leopoldo (2018, p. 43):

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[...] o período metropolitano-financeiro implica em uma nova concepção do
espaço e do tempo, da técnica e da arte, da cultura e da natureza. O espaço negativo,
o “eterno presente”, as redes de informação em tempo real, a indústria da inovação,
a arte contemporânea, a arquitetura contemporânea, as formas, estruturas e funções
metropolitanas e financeiras evidenciam um novo momento histórico, que pressupõe
uma teoria e uma prática.

Neste cenário, as cidades periféricas, que passam por um rápido processo de crescimento
urbano, entram na lógica de replicação e reprodução do espaço, em tentativas de homoge-
neização desse, mas, com uma diferenciação de aspectos naturais endógenos e temporais,
em um processo que segue uma mesma conjuntura, entretanto, desigual.
No novo diagnóstico, os males urbanos são explicados como consequências da
dissociação entre a cidade e a economia global, fruto da incapacidade dos governos
em torná-las competitivas na atração do capital internacional. Como sustentação,
ressurgem narrativas dualistas que descrevem a cidade sob a ameaça de perda da
sua coesão social, tornando-se necessárias ações que criem a competitividade local.
(Ribeiro, 2018, p. 48).

Espaços que estão loteados como reserva de valor, áreas de antigos centros comerciais,
áreas que passam por terraplanagem de nivelamento, aterros, dentre outros, servem de
base para a criação de projetos de revitalização, apoiados em “modelos internacionais”
que, por vezes, acabam tornando-se uma urbanização banalizada e excludente. Capel, ao
escrever o prólogo do livro “A cidade no século XXI: segregação e banalização do espaço”,
de Ferreira (2011, p. 24), ressalta que:
[...] é perturbador comprovar que os valores do solo expulsam cada vez mais
a população das áreas que adquirem nova centralidade e valor, como acontece em
várias cidades [...]. Segundo o discurso dominante, com os investimentos públicos e
privados, nacionais e internacionais, objetiva-se também colocar a cidade no cenário
internacional, torná-la competitiva, melhorar sua imagem para atrair investimentos.
Quer dizer, transformar a cidade em uma mercadoria para ser vendida nos mercados
mundiais e não para o uso de seus habitantes.
233 // Sociedade e memória dos territórios

Portanto, a financeirização do espaço urbano gera aspectos que produzem debates


sobre novos dilemas e velhos problemas de ordem social, política, econômica e cul-
tural, pois cada uma dessas ordens de organização da sociedade relaciona-se de modo
dinâmico e complexo. Assim, é de suma importância o debate sobre a produção do
espaço urbano, o acesso e o direito à cidade e as resistências aos processos de exclusão
socioespacial.

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Breve discussão sobre o crescimento urbano na Ilha do Maranhão

A ilha do Maranhão está inserida na Região Nordeste do Brasil e ao norte do estado


do Maranhão, composta por quatro municípios, são eles: São Luís (capital do estado), São
José de Ribamar, Paço do Lumiar e Raposa (Figura 1).

Figura 1 – Localização da Ilha do Maranhão


Fonte: BARROS; BANDEIRA (2020).

O processo de crescimento urbano na Ilha do Maranhão destacou-se, sobremaneira,


a partir da década de 1970, com a implantação do complexo portuário em São Luís, um
234 // Sociedade e memória dos territórios

dos quatro municípios da ilha e capital do estado. Esse fato atraiu um grande contingente
populacional oriundo do interior do estado, pessoas que estavam em busca de melhores
condições de vida e, para tanto, ofertavam sua mão de obra pouco qualificada, a qual
representava um número significativo de força de trabalho de reserva, necessária para os
setores de comércio e serviço, além da construção civil, que começava a se desenvolver nos
anos seguintes.

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 234 17/06/2022 18:06:05


Os Grandes Projetos minero-metalúrgicos instalados na Ilha do Maranhão
(ALUMAR e VALE), a partir da década de 1970, e a viabilização do Corredor
Norte de exportação pelo sistema Multimodal composto pelo Complexo
Portuário de São Luís, rodovias e ferrovias, possibilitaram a “complexificação”
dos serviços oferecidos na capital, assim como um aumento na renda mensal dos
trabalhadores formando um mercado consumidor em potencial recém-nascido
(com a expansão da classe média), atraindo diversos empreendimentos comer-
ciais, residenciais e de lazer, antes inexistentes na cidade provinciana. (Oliveira,
et al., 2010, p. 7).

O crescimento urbano da ilha, ao longo das últimas décadas dos séculos XX e início
do século XXI, ganhou contornos influenciados por um mercado imobiliário conservador
e focado na pequena classe média da capital que, outrora, deslocava-se internamente entre
os bairros mais afastados do centro, seguindo em direção à foz do Rio Anil (Caminho
Grande). Após a construção das pontes Bandeira Tribuzzi e José Sarney (São Francisco) e
da Barragem sobre o Rio Bacanga (Figuras 2, 3 e 4), “a cidade passa a ocupar novos terri-
tórios, com novas formas de habitar, trabalhar e conviver, expressas no traçado urbano de
grandes avenidas e na arquitetura moderna dos conjuntos habitacionais e prédios comerciais”
(Lopes, 2008, p. 36).

235 // Sociedade e memória dos territórios

Figura 2 – Comparação da área de construção Figura 3 – Construção da ponte Bandeira Tribuzzi


da ponte “José Sarney” década de 1970 e atualmente
Fonte: GOULART (2021). Fonte: BASTOS (2020a).

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Figura 4 – Construção da Barragem do Bacanga década de 1970.
Fonte: BASTOS (2020b).

Essas novas áreas de ocupação passaram rapidamente por uma grande especulação
imobiliária, decorrente da abertura de avenidas duplicadas, loteamentos regulados pelo
estado, formação de centros comerciais e serviços, além do deslocamento da sede adminis-
trativa do governo estadual da região do centro histórico para esses novos espaços e o sur-
gimento, por exemplo, de agências bancárias, representando novos conceitos arquitetônicos
e de ocupação residencial de médio e alto padrão.
No outro eixo de expansão da mancha urbana da Ilha do Maranhão, houve a ocupa-
ção da área Itaqui Bacanga (margem esquerda do Rio Bacanga), principalmente composta
pela população oriunda da Baixada maranhense, influenciada pela proximidade da área do
236 // Sociedade e memória dos territórios

complexo portuário e pela relativa equidistância com o centro histórico-comercial de São


Luís. Seguindo pelo divisor de água da margem direita do Rio Bacanga e esquerda do Rio
Anil, houve uma expansão rápida da mancha urbana nas décadas de 1980/90 pelo des-
locamento inicial de áreas comerciais em várias avenidas após a execução dos serviços de
pavimentação e a formação de conjuntos populares no entorno, destacando-se as avenidas
Guaxenduba, Médici (Africanos), Casemiro Júnior, Franceses e Guajajaras. Essas áreas

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caracterizam-se, predominantemente, pela ocupação popular sem a regularização estatal,
e as edificações são marcadas pela autoconstrução, com algumas exceções de conjuntos e
vilas construídos através do Banco Nacional da Habitação (BNH) e de algumas empresas
privadas ao longo das últimas décadas do século passado.
A ampliação do sistema viário urbano ocorre com o prolongamento da pro-
jeção do corredor Centro-Anil, ligando os bairros mais afastados – Liberdade,
Monte Castelo, Fátima, João Paulo, Caratatiua, Jordoa e Sacavém, situados na
periferia – à área central. A consolidação destes bairros determina o deslocamento
das atividades comerciais ao longo do eixo viário principal pelas avenidas Getúlio
Vargas e João Pessoa. Outro fator de ocupação direcionada está relacionado ao
aparecimento dos primeiros conjuntos habitacionais, implantados pelo sistema
de financiamento das Cooperativas Habitacionais (Cohab), especificamente nos
anos de 1967 e 1969, denominados Rio Anil I e II, respectivamente. (Lopes,
2008, p. 35).

Segue, nesse curso, uma série de disputas pela permanência das ocupações “irregula-
res” e de uso do espaço urbano para moradia. Consoante enfatiza Carlos (2008, p. 136),
“logo o que está em jogo é o processo de apropriação do espaço para determinado uso,
representado na propriedade privada da terra, como expressão da segregação econômica,
social e jurídica”.
Nesse contexto, a cidade de São Luís vai se aproximando do limite espacial com o
município de São José de Ribamar, não por um planejamento consolidado de expansão
urbana, mas sim por um constante deslocamento da classe operária e população de baixíssima
renda para áreas distantes dos principais equipamentos urbanos.
De 1971 a 1999, foram construídos 55 conjuntos habitacionais, entre os
quais o Angelim, Vinhais, Maiobão, Cidade Operária, São Raimundo, Jardim
América I e II, e os conjuntos Ipase, Cohama, Cohajap, Cohatrac, Cohapan
e Cohab Anil I, II, III e IV, configurando uma mancha urbana descontínua.
(Lopes, 2008, p. 35).

São alguns desses conjuntos que, no final da década de 1990 e início do século XXI,
237 // Sociedade e memória dos territórios

emergem nas problemáticas da conurbação da Ilha do Maranhão, pois os limites físicos


entre os municípios da ilha desaparecem, nascendo, dessa maneira, vários outros entra-
ves na formação dessa nova configuração urbana (ver crescimento da mancha urbana na
figura 2).

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Figura 5 – expansão da mancha urbana na ilha do Maranhão
Fonte: Instituto Maranhense de Estudos Socioeconômicos e Cartográfico–IMESC.

Nesse período, alguns entraves vivenciados foram: a) a bitributação dos moradores


nos bairros e conjuntos habitacionais que se encontravam nos limites municipais da ilha;
b) a falta de saneamento básico e infraestrutura como acesso à hospitais, creches, escolas
e áreas de lazer; c) baixa mobilidade viária entre os centros comerciais e os bairros. Essas
situações tornaram a vida da população residente destas áreas limítrofes uma “batalha” por
uma estrutura urbana básica dentro de um espaço urbano fragmentado.
No último estudo do Instituto Maranhense de Estudos Socioeconômicos e Cartográfico
– IMESC, a área ocupada na Ilha cresceu 655% em 20 anos, isto é, entre 1988 e 2008.
Além disso, o município de Paço do Lumiar destacou-se pelo maior crescimento em
238 // Sociedade e memória dos territórios

comparação às demais cidades da ilha, com um aumento de 380% na ocupação do solo.

A Ilha do Maranhão possui aproximadamente 900km² e em 1988 existia


um pouco mais de 600km² com vegetação, aproximadamente 250km² de área
ocupada e solo exposto e 50km² de águas superficiais. Após 20 anos de intensos

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processos de urbanização (2008), resultado do crescimento dos grandes projetos
econômicos, expansão imobiliária, aumento das ocupações desordenadas, explo-
ração mineral e vegetal entre outros usos, existia o equivalente a 500km² de área
com vegetação e quase 350km² de área ocupada e solo exposto, demonstrando
uma perda de vegetação de 25%, aproximadamente. Analisando o aumento de
área ocupada e solo exposto da Ilha, São Luís foi o município com menor por-
centagem dessa área (55%), tendo em vista que boa parte do seu território já
havia sido ocupada ao longo dos seus quase 400 anos de existência. Essa deman-
da populacional estendeu-se para os outros municípios provocando crescimento
desordenado. Como exemplo, pode ser citado o Paço do Lumiar que em 20 anos
obteve o crescimento de área de ocupação e solo exposto equivalente a 380%,
seguido por São José de Ribamar 160% e Raposa com crescimento de 60%.
(IMESC, 2011, p. 32).

Esse crescimento é impulsionado pelo preço do solo nos municípios vizinhos a São
Luís que se transformam em cidades dormitórios e sofrem com o rápido crescimento
urbano/populacional que se torna desproporcional à oferta de serviços públicos. O cres-
cimento populacional permeia as áreas limítrofes entre os municípios, gerando pequenas
centralidades (zonas comerciais) que se formaram ao longo das avenidas da cidade de São
Luís e nos corredores de acesso aos municípios vizinhos com interligação entre as avenidas
e as rodovias estaduais (MA 201, MA 202 e MA 204) como, por exemplo, as avenidas
Guajajaras e Holandeses.
Ao longo dessas rodovias estaduais, formaram-se núcleos habitacionais decorrentes de
assentamentos populares que já não encontram “espaços” em São Luís e são acompanhados
por recentes políticas de habitação, como o Programa Minha Casa Minha Vida-PMCMV,
o qual começou a ser implantado pelo Governo Federal, em 2009.

As contradições socioespaciais da Ilha do Maranhão

O espaço urbano, na sua essência desigual, conserva a acumulação e privilegia áreas


239 // Sociedade e memória dos territórios

destinadas à reprodução do capital ou de seus detentores. Entretanto, quando há a ma-


ximização dessa lógica, excluindo-se, de fato e de direito, todos aqueles que não pos-
suem condições de se inserirem dentro do processo de financeirização do solo urbano
como consumidores, temos cidades que sobrevivem das lutas pelo acesso a uma estrutura
mínima, colocando, de um lado, uma cidade regulada, planejada e dita moderna e, do
outro, a cidade marginalizada, fruto de uma modernização forçada, que, por conseguinte,

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desdobra-se na “cidade frankenstein1”, que cresce vertiginosamente, contraditoriamente
desordenada e especializada, mutilada.
Com a tentativa de modernizar a capital maranhense, novas áreas foram reservadas ao
processo de expansão vertical da cidade, principalmente as áreas que margeiam a Baía de São
Marcos, propícia ao novo modelo de urbanização modernista de imóveis verticais, fechados e
seguindo o padrão das capitais e cidades litorâneas, isto é, de “frente para o mar”, enquanto,
nos municípios vizinhos, os lotes ficaram como reserva para a especulação imobiliária.
Em um processo de urbanização descontínuo e excludente, a vista para o mar pode ser
disputada por várias classes sociais, decorrente também dos processos históricos de forma-
ção espacial das cidades. Por sua vez, a população desprovida de poder aquisitivo constrói,
com seu capital disponível, as chamadas palafitas, mocambos, casebres germinados etc.
(aglomerados subnormais), disputando espaço com condomínios de luxo e partilhando
da mesma “paisagem”.
240 // Sociedade e memória dos territórios

Figura 6 – Vista do bairro Ilhinha (São Francisco) e ao fundo o bairro da Ponta d’areia e condomínios verticais
Fonte: CUNHA (2018).

1
Termo utilizado neste trabalho em alusão à obra “Frankenstein ou o moderno Prometeu” de Mary Shelley
(1818), para designar a cidade que convive com a simultaneidade do crescimento urbano desordenado e da
modernização urbana impositiva, configurando-se num lugar de antagonismos, de realidades socioespaciais,
culturais e econômicas multifacetadas, como um corpo formado por partes alheias, próteses.

Iberografias43-vfinal14Junho.indb 240 17/06/2022 18:06:05


Esse cenário é encontrado por todos os municípios da ilha, como é o caso de bairros
vizinhos, como Barramar e Vila Conceição, em São Luís, Araçagy e Parque Araçagy, em
São José de Ribamar, Condomínio Aphaville e Dhamas e o bairro Pirâmide, nos limites
entre os municípios de Paço do Lumiar e Raposa, dentre outros. Segundo Santos (2021
p. 210-211), a cidade de São Luís, no seu processo de crescimento urbano, teve como
característica o privilégio do ordenamento territorial nas áreas de ocupação das classes
médias e descaso nas ocupações populares, modelo este que foi inserido em todos os
municípios da ilha.
As ocupações irregulares de áreas urbanas por loteadores clandestinos e movimen-
tos populares foram constituindo assim outra cidade, ignorada pelo planejamento
e pelos serviços públicos. Vilas, parques e palafitas se expandiram pelas periferias e
constituíram a “cidade ilegal”, enquanto conjuntos de classe média se dispersavam
por especuladores, no que seria a “cidade moderna”.

As cidades da ilha começam, neste momento, a serem demarcadas por áreas de inte-
resse de ocupação, demonstrado, sobretudo, no discurso de Região Metropolitana, para o
qual o limite não faz sentido entre as cidades, observando-se a ideia de habitar uma região
que, em tese, seria integrada nas relações econômicas e sociais.
Essa conjuntura pode ser verificada pela migração de empreendimentos imobiliários
em áreas de reserva que viram grandes bairros nos arrabaldes de São Luís como, por
exemplo, os bairros do Araçagy, Parque Vitória, Altos do Turu e Nova Terra em São José
de Ribamar, no limite municipal com São Luís e Maiobão, Vila São José, Paranã em Paço
do Lumiar.
Entretanto, áreas destes municípios acolhem verdadeiros bairros fechados em
condomínios, notabilizando o interesse pelo capital financeirizado, como exemplo, é
latente nos empreendimentos Aphaville e Dhamas, em Paço do Lumiar. De perfil ver-
tical, são observados, em São Luís, os condomínios de médio e alto padrão, como o
Jardins, Ilha Parque Residence, Pleno Residencial, dentre outros que se caracterizam
como condomínios clube.
Dessa forma, a produção do espaço urbano nos municípios da ilha do Maranhão,
atualmente, está diretamente ligada aos agentes imobiliários que se caracterizam pelo seu
241 // Sociedade e memória dos territórios

poder econômico e político ao moldar o espaço urbano para atender uma demanda restrita
da população. Somando-se a isso, é visível que a ausência de um plano de gestão integrado
dos municípios da Ilha do Maranhão corrobora para o desenvolvimento urbano deficiente
e fragmentado dos municípios, tornando inviável o planejamento integrado entre as
cidades vizinhas.

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Considerações Finais

A vida nos grandes aglomerados urbanos, em países periféricos, está sendo caracterizada
por um processo de homogeneização espacial, do ponto de vista das ocupações fechadas de
condomínios com suas “áreas privativas de lazer” e, do outro lado dessa realidade, encon-
tramos o reflexo desse processo, isto é, exclusão populacional em grande escala, direcionada
para áreas carentes de infraestrutura ou condições de vida.
Por outro lado, a rápida mudança do perfil macroeconômico do país, alinhando-se
cada vez mais às tendencias internacionais, reflete-se nas mudanças urbanas e territoriais
típicas da contemporânea fase de desenvolvimento do capitalismo, convergindo em uma
lógica geral de produção social do espaço que será determinada pelas novas formas de
acumulação financeirizada. As relações entre financeirização e mercantilização do solo
urbano geram impactos urbanos e territoriais que se inter-relacionam ou interferem no
processo de democratização de lotes urbanos.
À medida que o crescimento físico e estrutural da capital maranhense se sobrepõe sobre
as demais cidades circunvizinhas, esta passa a promover uma hierarquia espacial e econô-
mica sem uma efetivação clara do desenvolvimento socioespacial que possa minimizar os
impactos de tal conjuntura. Mesmo com a institucionalização da Região Metropolitana,
dispositivos de ordenamento e diretrizes urbanas em conjunto com os demais municípios
não foram encontrados.
Sendo assim, a rápida expansão demográfica em São Luís e municípios vizinhos, a
partir da década de 1970, não conseguiu ser concomitante ao planejamento urbano de
ocupação da ilha, gerando um tecido urbano denso, desordenado, de antagonismos evi-
dentes, com multiterritorialidades, várias “próteses urbanas”, configurando-se em grupo
de cidades de recortes espaciais divergentes.

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242 // Sociedade e memória dos territórios

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Os movimentos sociais urbanos em
Campina Grande-PB: confrontos e
resistências na cidade face à pandemia1

Davidson Matheus Félix Pereira2

Introdução

Nas últimas três décadas, a Geografia brasileira vem tentando desenvolver uma análise
cientificamente mais autônoma dos movimentos sociais urbanos. Essas evidência e emer-
gência do tema tomou contornos diferentes a partir dos eventos históricos recentes, com o
processo de redemocratização, neoliberalização, e de aprofundamento das crises econômicas
e políticas. Nesse contexto, a política do território tem sido redefinida em função dos
interesses das classes dominantes. A pandemia do novo corona vírus foi um evento que
contribuiu para agravar todas as contradições socioespaciais que já estruturavam o espaço
geográfico brasileiro e, consequentemente, o espaço urbano.
Contudo, essas mesmas contradições impeliram de forma dialética a necessidade
de uma maior organização e a emergência de um movimento solidário entre as classes
oprimidas, dominadas e exploradas, tanto nos campos, nas florestas, como em nosso
caso, nas cidades. Disso podemos observar o desenvolvimento de várias espacialidades
envoltas na solidariedade e entendimento de projetos coletivos, face ao avanço da perda
de direitos e da perda de espaço. O presente estudo pretende, a partir de uma breve
análise sobre as teorias acerca dos movimentos sociais na Geografia, pôr em evidencia
245 // Sociedade e memória dos territórios

1
Esse estudo é resultante de pesquisas que venho desenvolvendo sobre os movimentos sociais urbanos em
Campina Grande desde o ano de 2018. Além disso, também me utilizo para uma parte das análises acerca da
comunidade Luiz Gomes, existentes na pesquisa que realizei com outros companheiros, vide Pereira; Attem
& Sousa (2021). Uma outra versão desse trabalho foi apresentada em 2022 no XIX Encontro Nacional da
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional e será publicado nos
anais do evento.
2
Doutorando em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP.
davidsonacrata@outlook.com

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os processos de luta pelo espaço que tem envolvido o espaço urbano do município de
Campina Grande-PB3.

Materiais e procedimentos de pesquisa

A pesquisa teve um caráter qualitativo, valendo-se tanto de uma revisão bibliográfica


e análise documental. Quanto de dados empíricos obtidos em campo, dessa maneira,
nos servimos de uma pesquisa exploratória descritiva combinada (Marconi; Lakatos, 2003,
p. 188), com o intuito de caracterizar e analisar de maneira crítica o recorte espacial estudado.
O nosso recorte de estudo está localizado na cidade de Campina Grande no Estado da
Paraíba, a cerca de 120 km da capital, João Pessoa. É considerada, segundo o estudo das Regiões
de Influência das Cidades-REGIC do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE
(2020), Capital Regional C. Campina Grande é um importante polo tecnológico do interior
da região do Nordeste. Contendo também um comércio bastante polarizador na região, uma
diferenciada rede de saúde e de ensino superior. Ao mesmo tempo é uma cidade, assim como a
maior parte das cidades brasileiras, marcada por fortes contradições socioespaciais.
Assim, buscamos analisar a organização interna de cada movimento socioespacial que
ocorreu na cidade durante a pandemia. Buscando caracterizar as condições estruturais que
influíram nas demandas de cada movimento, bem como suas estratégias e táticas de ação.
Por fim, analisamos de que modo cada movimento modificou o espaço urbano da cidade,
ou as relações socioespaciais.

O debate sobre os movimentos sociais urbanos nas ciências sociais e


na geografia

Os movimentos sociais urbanos vem sendo objeto de várias análises nas diversas ciên-
cias sociais e humanas. Na década de 1970-1980 a forte presença de movimentos ligados
às demandas urbanas era de modo geral analisado pelas teorias neomarxistas que colocavam
em evidência as contradições urbanas no mesmo nível de análise das questões ditas primá-
rias, ou “estruturais”. Nesse mesmo arcabouço teórico, privilegiou-se também a dinâmica
246 // Sociedade e memória dos territórios

do cotidiano no urbano. E como metodologia, se observou a predominância de pesquisas


empíricas, de cunho participantes, ou militantes. (Gohn, 2018, p.9)

3
Campina Grande, é um município do interior paraibano, o mesmo município possui uma população esti-
mada em 409.731 habitantes (IBGE, 2020), localizada no Brejo do estado da Paraíba, estado esse situado
na região Nordeste do Brasil.

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A maior parte dos estudos estavam voltados à sociologia urbana, entre outras disciplinas
correlatas. Apenas a partir dos anos 1983, a Geografia passará a tratar dessa problemática.
Podemos citar como trabalhos pioneiros acerca dos Movimentos sociais urbanos: Júlia Adão
Bernardes (1983) Satie Mizubuti (1986), José Borzacchiello Silva (1992), Arlete Moysés
Rodrigues (1988) e Marcelo José Lopes de Souza (1988), segundo Pedon, (2013, p. 81).
Nesses, podemos observar a contribuição da ciência geográfica para as análises da
dimensão espacial dos movimentos sociais urbanos. Um ponto chave trazido por esses
debates diz respeito a ideia de que: é no espaço e pelo espaço que se dá a experiência e a
construção da identidade coletiva, ou consciência de classe. Permitem também constatar
que a dimensão da luta de classes se dá enquanto disputa pela produção, usos e planejamento
do espaço (Pedon, 2013, p. 80-117).
Após esse período, mudanças significativas na sociedade brasileira serão constadas.
Entre os anos 1988 e 2003, nota-se um deslocamento dos movimento sociais ligados
a sociedade civil organizada para a participação política dos atores coletivos em canais
institucionais e no espaço político (Gohn, 2018, p.13-14). Nesse período, as teorias marxis-
tas perdem importância no debate acadêmico sobre os movimentos sociais, ao passo que
inicia-se um amplo debate sobre uma possível crise dos movimentos populares urbanos
(Gohn, 2018, p.14). Na esteira da institucionalização das ações coletivas, observa-se o
crescimento das ONGs e sua legitimação por parte do Estado (Gohn, 2018, p.15). O que
contribuiu entre outras coisas no arrefecimento das tensões sociais e, por conseguinte, do
papel de alguns movimentos sociais.
Na Geografia os estudos voltaram-se cada vez mais para a dimensão dos movimentos
agrários de luta pela terra (Martin, 1997); (Pedon, 2013); (Fernandes, 2012), bem como
dos movimentos dos povos indígenas. “Atingidos por barragens”, etc. Por sua vez, os estu-
dos voltados para os movimentos sociais urbanos, passam a privilegiar em maior parte as
questões ligadas aos movimentos culturais, ocupação de espaços públicos, ou a dimensão
do direito a cidade.
Por conseguinte, a partir dos anos 2010 o ativismo ganha centralidade na luta política,
a indignação com relação a luta institucional renova o pensamento no seio dos movimen-
tos sociais. A crise econômica engrossa o descontentamento e a impossibilidade do Estado
capitalista em resolver as contradições. O autonomismo desempenha um papel central na
247 // Sociedade e memória dos territórios

organização dos diferentes movimentos sociais, ao passo em que esses movimentos passam
a reintroduzir as pautas e ideias das antigas utopias libertárias, socialistas e anarquistas.
Desse modo, é disseminada uma crítica ao Estado capitalista e a organização hierár-
quica da sociedade, por meio do Estado e do mercado. Essa crítica também se apresenta
na organização interna desses movimentos, que se opõem decisivamente a ligação partidá-
ria. Nesse contexto, observa-se a ascendência de grupos “movimentalistas”, ligados à pautas

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conservadoras e neoliberais, que da mesma forma que os atores coletivos de cunho autono-
mista, também passam a utilizar amplamente as táticas de protestos e manifestações nas ruas,
bem como, a organização em redes sociais. Contudo, esses últimos miram em geral, ocupar
cargos de poder e disseminar ideias de contraponto aos direitos civis (Gohn, 2018).
A partir desses argumentos, faço uma intervenção, que acredito ser necessária. Me
inclino a pensar que, apesar de o debate ter permitido a inserção de novas tendências
socialistas mais radicais, a forma como se deram as lutas não permitiu uma organização
multiescalar e em rede, desde a cidade ao campo, desde o lugar ao nacional e global, Nem
mesmo observou-se uma articulação entre movimentos que lutavam por demandas mais
ou menos comuns. Apesar do tom mais radicalizado, penso que a prática não pôde
acompanhar as novas demandas e proposições organizacionais.
Obviamente, essa questão é muito mais complexa do que a apresentada nesse argu-
mento, contudo, posso mencionar algumas hipóteses que explicariam as razões pelas quais
essa articulação dos movimentos sociais não pôde se dar: a) A dinâmica institucional, a
exemplo da pressão e cooptação institucional (seja de algumas ONGs, instituições religiosas,
seja do Estado, ou mesmo das empresas) e exacerbação da truculência policial do encarcera-
mento: b) Contradições internas aos movimentos, como disputa entre tendências partida-
ristas em contraponto à tendências apartidárias e tendências mais ou menos radicalizadas
em contraponto a tendências mais ou menos reformistas; Todos esses elementos associados
a c) A ausência de um projeto de classe que englobasse todas as frações de trabalhadores,
associada a emergência de articulação com as diversas dominações e opressões que estrutu-
ram o Brasil, impediram uma radicalização mais pujante, mesmo em meio a um contexto
de maior abertura para propostas políticas anticapitalistas e anti-estatistas; d) a configuração
socioespacial e econômica do Brasil, que historicamente segrega os espaços (centro-periferia)
em todas as escalas (campo-cidade, urbana, regional, nacional) e inviabiliza a produção
do espaço público e político, além da própria emergência do neoliberalismo em todas as
esferas, desde o trabalho, aos direitos e a cotidianidade; e) Ascensão da ultradireita fascista
neoliberal, dado que esses grupos autoritários também contribuíram para um ambiente de
confusão entre os diferentes movimentos, de culpabilização e de discordâncias com relação
as táticas e estratégias de resistência e confrontação. Contribuindo para encobrir o fato de
que a ascensão da ultra-direita era o próprio resultado da luta de classes, um produto do
248 // Sociedade e memória dos territórios

capital e não dos movimentos.


Portanto, essas transformações no núcleo político e ideológico, bem como a crescente
assunção do modo de regulação neoliberal tem redefinido vários processos socioespaciais
nas cidades brasileiras. Tem-se observado, sem esforço algum, a perda de direitos da classe
trabalhadora, o aumento do desemprego e da acumulação de capital, em contraposição à
diminuição da seguridade social. Correspondendo ao aprofundamento das desigualdades

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socioespaciais nas cidades brasileiras e os conflitos decorrentes dessas. Processos esses que
se acentuaram de forma desmedida com a crise sanitária e seus desdobramentos políticos
e econômicos. Pontuamos que as ciências sociais em geral ainda não possuem uma leitura
precisa dos efeitos concretos dessa nova dinâmica, ainda menos dos efeitos da espacialidade
dos novos processos sociais que decorrem dessa.
Isso nos coloca a questão: Se considerarmos a premissa de que onde há poder há
resistência, ou seja, que a luta de classes sempre está presente, com o aumento dessas desi-
gualdades socioespaciais há uma tendência de contraposição à ordem vigente que vem se
pondo. As tendências históricas nos levam a pensar numa possível emergência dos movi-
mentos sociais urbanos no quadro sociopolítico nacional. Entretanto, e aqui não pretendemos
resolver essa questão, não está claro que teorias e abordagens parecem mais adequadas para
apreender esse fenômeno que vem se desenhando nas cidades brasileiras.
Daí a necessidade de nos voltarmos em primeiro lugar para o concreto, para os trabalhado-
res, as cidades e os campos, as casas e as florestas, as fábricas e as ruas onde estes trabalham,
enfim, para os lócus de reprodução desses. Incorrendo em alguns riscos, podemos afirmar
que os estudos empíricos tenderão a aumentar na Geografia, bem como ocorreram de
forma pertinente nos anos 1980. Nesse caso, talvez as teorias devam ser outras, ou melhor,
as teorias devam estar melhor alinhadas aos novos acontecimentos e, de forma dialética,
devem buscar compreender o fenômeno socioespacial em sua totalidade.

As teorias geográficas sobre os movimentos sociais urbanos

Os movimentos sociais são fenômenos socioespaciais resultantes de lutas sociais que se


dão na vida cotidiana da sociedade de classes. Esses variam no tempo e no espaço, depen-
dendo do contexto histórico, espacial e cultural o qual estão envoltos (Castilho, 2002, p.34).
Nesse sentido, os movimentos sociais de caráter urbano, possuem uma especificidade
escalar e histórica. De modo geral, suas demandas estão ligadas diretamente às carências e a
estrutura sociopolítica das cidades capitalista. Essa que via de regra se pauta no desenvolvi-
mento desigual, ou seja, centralização de capital e concentração da riqueza em poucos espaços
e mãos e da pobreza em toda a constelação espacial e por quase toda a população brasileira.
249 // Sociedade e memória dos territórios

Se por um lado o capital busca se territorializar nas cidades, por sua vez os movimen-
tos sociais urbanos, emergem enquanto uma contraposição direta ou indireta, consciente
ou inconsciente dessa territorialização, dado que a territorialização do capital implica no
aprofundamento da divisão social do trabalho e na garantia da divisão em classes possuidoras
e despossuídas dos meios de produção. Isso inclui, o acesso à terra, vias, infraestruturas
e todos os meios de consumo coletivo (Lencione, 2007). O Estado é nesse contexto, um

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agente mediador da estrutura, é ele quem dá as condições que definem esses processos socioes-
paciais, seja a partir da regulação das relações sociais, seja através legitimação e garantia da
propriedade privada (Oliveira, 1982).
Portanto, ao falarmos em controle da propriedade por meio do capital, paralelo a
regulação dessa relação social por meio do Estado, estamos afirmando por conseguinte
que a política da cidade e o acesso ao seu espaço, é determinado via de regra, no sistema
capitalista, pelas classes dominantes. Portanto, como afirma Neil Smith, a libertação política
na cidade depende do e exige o acesso ao espaço (Smith, 2000, p.137).
Considerando as contradições estruturantes da cidade capitalista (e brasileira), os
movimentos sociais urbanos podem adquirir uma qualidade de movimentos socioespaciais,
quando partem da escala urbana para adquirirem direitos que não se dão nessa escala
(como os movimentos de liberação do aborto, de acesso ao ensino superior, etc). Por sua
vez, na medida em que as classes dominadas reivindicam o acesso ao espaço urbano, aos apa-
relhos, infraestruturas, funções sociais, que estão situadas na cidade podemos considerá-los
como movimentos socioterritoriais. Socioterritoriais, pois, na medida em que se requere seja
por meio de uma ocupação de terreno, ou casa, seja por uma luta por creche, ou escolas
nos bairros, esses movimentos engendram uma relação de poder na cidade, e ao mesmo
tempo garantem sua existência e reprodução no espaço urbano.
Portanto, o movimento socioterritorial, se define enquanto uma organização capaz
de introduzir novas formas de apropriação e uso do território, com o objetivo de instituir
uma nova territorialidade (Pedon, 2013, p.186). No que tange ao urbano, onde as condi-
ções de inserção dos trabalhadores nas relações sociais, são assimétricas e em vários níveis
excludentes, um direito conquistado por grupos subalternizados, explorados, ou dominados
é em suma, correspondente a uma nova forma de viver, a uma nova territorialidade.
Nesse sentido, um movimento social urbano pode adquirir um caráter socioterritorial
na medida em que se estabelece um determinado uso do espaço para um determinado fim
coletivo, como uma ocupação. A organização do espaço e a realização de determinadas
práticas espaciais, desemborcam em uma territorialização, mesmo nesses espaços localiza-
dos, agindo enquanto uma condição para que os trabalhadores e trabalhadoras observem
as carências em comum e na apropriação coletiva de um determinado espaço, uma solução,
ou paliativo para essas mesmas carências.
250 // Sociedade e memória dos territórios

Em outros termos, “o espaço torna-se trunfo ao tornar-se território”, na medida em


que ao se criar uma territorialidade, é estabelecido um conjunto de valores, ideias e vontades
ligados intimamente a esse espaço, influindo na criação e recriação das experiências de luta
e resistência e, portanto, das relações sociais (Pedon, 2013, p.187).
Sob o mesmo ponto de vista, os movimentos socioterritoriais tendem a aparecer
em momentos de exacerbação dos conflitos sociais, especialmente em períodos de crises

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cíclicas do capital. Assim, no contexto em que o Estado busca conter os conflitos entre o
capital e o trabalho, encontra um contraponto histórico na ação direta. Essa é utilizada
enquanto ferramenta política na construção de novos espaços e territórios de resistência
e transformação da realidade e define-se enquanto uma forma específica de ação política
na qual os sujeitos sociais envolvidos na busca de um objetivo buscam-nos a partir de suas
próprias condições, sem uma intervenção de outros, sejam instituições, órgãos, empresas
e etc. (Sparrow, 2009 p.11). Essa também carrega em si um conteúdo contestatório da
ordem vigente, em função de seu caráter autônomo, transformador e anti-institucional (na
medida que contrapõe determinada instituição de poder coercitiva).
A forma de organização dos movimentos sociais pode variar, desde uma organização
institucional, até a autogestão que pode ser entendida enquanto uma organização coletiva
de sujeitos com princípios e objetivos em comum, articulada de forma livre, sem exploração,
nem mediação estatal, ou do capital (Silveira,2012).
Desse modo, a ação direta enquanto uma forma de ação política e econômica e a auto-
gestão enquanto forma de organização, são dimensões específicas das práticas espaciais dos
movimentos sociais. É possível que um movimento social urbano se organize a partir da
autogestão sem realizar uma ação direta, embora, em geral a autogestão leve ao aumento
(ao menos relativo) do controle das classes hegemonizadas sobre suas próprias condições
de reprodução, sem mediação do capital e do Estado.
Contudo, o que torna a ação direta uma prática ainda mais radical, é o fato de que ela
necessariamente possui o efeito imediato sobre o tecido das relações de poder, tendo como
finalidade o exercício do poder das classes dominadas e grupos hegemonizados e o controle
sobre a vida desses. (Sparrow, 2009).
Assim, buscamos analisar a organização interna de cada movimento socioespacial que
ocorreu na cidade durante a pandemia. Buscando caracterizar as condições estruturais que in-
fluíram nas demandas de cada movimento, bem como suas estratégias e táticas de ação. Por fim,
analisamos de que modo cada movimento modificou o espaço e suas relações socioespaciais.

Os movimentos sociais urbanos em Campina Grande: ação direta


como estratégia de luta pela vida e pelo espaço
251 // Sociedade e memória dos territórios

O Movimento Ajuda Mútua e a ocupação da Feira Sudoeste

A feira sudoeste tem seu início no mês de agosto de 2017 por iniciativa da ONG -
Movimento Ajuda Mútua (MAM), após aprovada em junho do mesmo ano a sua regula-
mentação, no projeto de lei de Nº 393/2017 da câmara municipal. Esse projeto previu a

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concessão do uso da área pública para fins de comercialização de produtos próprios de feira
livre. E instituiu a fiscalização por parte da SESUMA4. (Pereira, 2018).
Esse espaço é construído em um novo conjunto habitacional, chamado Acácio
Figueiredo, localizado na zona sul, na periferia da cidade. Esse conjunto habitacional,
caracteriza-se por abrigar uma grande parcela de trabalhadores pauperizados.
Poder-se-ia indagar se de fato presenciamos um processo de territorialização. A respos-
ta parte em primeiro lugar da colocação de nossa concepção de território e para isso nos
emprestamos do termo “campo de força” (Souza, 2017, p.40), o território é em primeira
análise um receptáculo das relações de poder que delimitam um determinado espaço,
assim como seus usos. E, portanto, a auto instituição e delimitação de seu uso, confere aos
seus detentores poder em detrimento de outros usos e outras delimitações. Nesse contexto
a Feira Sudoeste é o resultado da produção do espaço em função de facultações e exigências
territorializantes.
A luta pela territorialização nesse âmbito continuou em outras roupagens, pois houve
investidas de políticos da situação e aliados para tomarem a feira, não no aspecto material
desse território, de delimitarem os usos, mas sim de transformarem o imaginário, ou me-
lhor dizendo, o significado, em vez de uma feira fruto de uma luta coletiva, seria uma feira
resultante da “boa vontade dos políticos”.
Muitos embates se deram durante o período em que a Feira recebia um grande fluxo de
trabalhadores, consumidores e visitantes. Até o final de 2017 haviam cerca de 210 bancas
na feira, que vendiam diversos produtos. Contudo, esse quadro vai mudar, bem como o
interesse dos políticos para com o espaço, com a introdução dos transportes por aplicativos
na cidade em 2017, e a estruturação do espaço circundante, há uma desestruturação da
feira, que passa a ter cerca de 30 feirantes trabalhando em 2018 (Pereira, 2018).
Esse desinteresse dos poder político partidário, vai se transformar rapidamente em
um interesse por desapropriar os feirantes, muito provavelmente por se aproveitarem dos
poucos feirantes e da relativa e mesmo aparente desorganização dos trabalhadores que
restaram nesse espaço. Não obstante, em maio de 2020, com o início da pandemia, houve
um processo de retirada dos feirantes por parte da prefeitura do município. No processo
de remoção, uma criança foi atingida por um dos veículos dirigido por um trabalhador
que realizava a ação5. Com a revolta dos feirantes, da comunidade local e de certos setores
252 // Sociedade e memória dos territórios

da mídia da cidade, a Prefeitura foi obrigada a reorientar ação.


A pressão por parte dos feirantes aumentou cada vez mais, uma vez que novos processos
de ocupação se deram por parte de novos trabalhadores e feirantes no local, desempregados
4
Secretaria de Serviços Urbanos e de Meio Ambiente.
5
Segundo relatos de mídias independentes e do presidente da ONG MAM, Francisco de Assis Cordeiro da
Silva, 21/05/2020.

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pelos efeitos econômicos da pandemia. Cedendo à essas exigências, a Prefeitura dá início
a um projeto de infra estruturação, com banheiros (antes inexistentes), sede da feira, etc.,
expandindo consideravelmente o número de comerciantes no local.
É necessário enfatizar que a Feira Sudoeste parte de um processo de territorialização de
um espaço que em desuso, passa a se tornar público no momento que se dá uso pelos feiran-
tes. A organização foi um fator preponderante para a territorialização desses feirantes, visto
que sem o regimento da feira, não haveria a concessão do terreno por parte da prefeitura.
Sendo assim, apesar da criação da Feira Sudoeste ter se iniciado em 2017, é em 2020 que
há uma tentativa de remoção, ou seja, um novo movimento social nasce da pressão por parte
das classes dirigentes e por parte da própria crise econômica e sanitária. Assim, dados todos
os elementos apresentados, estou convencido que a criação da Feira foi eminentemente uma
prática de ação direta, realizada pelos próprios moradores do Acácio Figueiredo.
Podemos observar que a autogestão no início da estruturação da feira e a resistência
contínua de um núcleo organizado dos feirantes, foi imprescindível para obter um resulta-
do político satisfatório para os feirantes e comunidade local. Contudo, com a formalização
via município, a organização do espaço da feira passou a ser subsumida pela organização
do poder público municipal, em parte descaracterizando a feira, embora resultando em
ganhos para esses trabalhadores. Ganhos esses que dizem respeito ao direito e condições de
reprodução de suas existências.
Com relação a espacialidade, a prática espacial principal decorrente desse processo
socioespacial se deu em função da ocupação de um terreno público. Esse, por sua vez,
deu início a um processo de diferenciação socioespacial na periferia a partir da inserção de
outras relações socioeconômicas. Redefinindo os fluxos e os fixos, ou seja, a espacialidade
do bairro. O que demonstra a força do movimento social urbano enquanto um agente
histórico redefinidor da reprodução das relações sociais na cidade.

O movimento social de luta pela moradia: a ocupação pró-moradia


Luiz Gomes6

Segundo o discurso dominante, a cidade é produzida apenas pelo Estado e os agentes capi-
253 // Sociedade e memória dos territórios

talistas, sendo assim, os outros agentes, “não tipicamente capitalistas, como os que produzem
a cidade com autoconstrução, mutirão, favelas, ocupações coletivas, parecem ser apenas os
causadores dos problemas” (Rodrigues, 2007, p. 75). Nessa ótica distorcida e ideológica, a
segregação é entendida como uma consequência dos próprios grupos excluídos do circuito

6
Parte dos argumentos contidos nesse item foram publicados em nosso trabalho anterior: Pereira et al (2021)

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do capital e não da forma política e jurídica do Estado capitalista, que impõe uma lógica de
monopólio por parte das classes dominantes dos meios coletivos de (re)produção.
Em uma ótica materialista, entendemos que a possibilidade reprodução da classe traba-
lhadora (reprodução da existência material) no capitalismo, é determinada pelo seu poder
de compra. Nesse sentido, é o Estado que determina o quanto o trabalhador médio necessita
para sua sobrevivência, a partir da definição do salário mínimo (Rodrigues, 2007).
Nesse contexto, o preço e a renda do solo urbano, são determinados pelas forças do mer-
cado imobiliário, tornando inviável para uma grande parte das classes populares a compra da
casa, ou pagamento do aluguel. Evidencia-se dessa maneira, uma contradição entre o poder
de compra, determinado arbitrariamente ao trabalhador – pelo Estado e pelas forças do
mercado − e a possibilidade concreta de compra e de realização de suas necessidades.
Destarte, os grupos dominados e subalternizados − aqueles não atendidos pelo Estado
e principalmente aqueles excluídos das relações de trabalho capitalistas −, são compelidos a
buscarem as condições de reprodução da existência material com “suas próprias mãos”, atra-
vés da produção de favelas, da autoconstrução em loteamentos não-regulados pelo Estado,
ocupações coletivas e etc. Esses grupos sociais oprimidos e despossuídos, estabelecem a produção
de seus próprios valores de uso, mesmo que de forma precarizada. Dessa forma, a produção
autônoma da moradia por parte desses grupos, representa “na ótica do capitalismo e do
Estado capitalista”, a ilegalidade urbanística e jurídica (Rodrigues, 2007, p. 76-7).
Contextualizando essas determinações para o tempo presente, na pandemia, a questão
da moradia foi colocada no centro das necessidades de uma parcela enorme da população
trabalhadora brasileira. Com a crise econômica e a impossibilidade de muitos trabalhadores
e trabalhadoras pagarem seus aluguéis, a realidade se impôs7. O aumento da favelização
no Brasil, têm sido cada vez mais eminente. Esse fenômeno vem ocorrendo em Campina
Grande, com uma nova ocupação no bairro do Cruzeiro, a Ocupação Pró-Moradia Luiz
Gomes. Essa ocupação foi iniciada no mês de maio de 2020, onde alguns moradores,
advindos de bairros próximos, e de outras comunidades, se organizaram para decidirem onde
iriam ocupar, nesse caso, um terreno da PMCG (Prefeitura Municipal de Campina Grande).
A partir da ocupação inicial, com cerca de 15 à 30 moradores, se deu subsequentemente
um processo de ocupação espontânea, onde outras 150 famílias também se associaram a inicia-
tiva (totalizando 180 moradias). No entanto, apenas uma parte dos moradores passou a residir
254 // Sociedade e memória dos territórios

de forma permanente no local, no mês de outubro de 2020, apenas 24 famílias ocupavam de


maneira constante. Atualmente, o local da ocupação se dá em terras públicas. A infraestrutura
do local é nula (Figura 4), não há água, nem luz, muito menos rede de esgoto.

7
LABCIDADE. Remoções aumentam durante a pandemia na Grande São Paulo, São Paulo. 23 de julho de
2020. http://www.labcidade.fau.usp.br/remocoes-aumentam-durante-a-pandemia-despejozero/ Acessado
em: 06/10/2021.

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Alguns banheiros improvisados foram feitos pelos próprios moradores, no entanto, nem
todos as moradores possuem acesso fácil aos banheiros. Muitos deles, são obrigados a fazerem
suas necessidades fisiológicas em sacolas ou baldes, que são despejados no canal ao lado. Os
mesmos relatam a presença constante de insetos nas moradias e a ocorrência de doenças
entre as crianças e recém-nascidos, como pneumonia e hanseníase. Esse é um dos fatores
para muitas das famílias terem abandonado a ocupação, ou não terem condições para ocuparem
de maneira contínua. As famílias restantes, permanecem por não terem alternativa alguma
e/ou, por acreditarem no potencial de transformação social do movimento.

Foto 1 – ocupação pró-moradia Luiz Gomes


Fonte: (Pereira et al, 2021)

As ocupações, são, portanto, processos socioespaciais definidos pelos grupos não


hegemônicos, despossuídos. Esses, por não possuírem capital, se encontram excluídos do
mercado da moradia, ou seja, precisam, com suas próprias mãos criarem um valor de uso
imprescindível para a reprodução de suas vidas, a sua casa. No entanto, quando analisamos
255 // Sociedade e memória dos territórios

essa produção autônoma da moradia em sua forma social real, isto é, dentro dos marcos
da não-propriedade, consideramos não apenas legítimo, mas também, uma norma mais
ou menos aceita socialmente nos marcos da produção do espaço urbano brasileiro. Como
bem analisa Francisco de Oliveira, o território brasileiro se constituiu fora dos limites da
propriedade privada da terra e, consequentemente, a urbanização brasileira se deu também
como uma exceção à regra liberal (Oliveira, 2013, p. 11).

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Pudemos identificar que na ocupação a prática de ação direta se deu de maneira mais
evidente se comparada aos outros 2 movimentos sociais que estudamos, principalmente
pelo planejamento prévio e organização autônoma desse pequeno grupo de sem-tetos. Essa
organização foi determinante para a consolidação do processo de ocupação, mas também
na construção de algumas infraestruturas precárias, mas que foram imprescindíveis para a
manutenção da mesma. Dos três ativismos urbanos encontrados durante a pandemia, esse
foi o que representou uma resposta mais urgente as implicações da pandemia. Dado que o
teto é o bem mais importante para a reprodução do trabalhador na cidade.
Podemos dizer que a coletivização se deu por um lado, na medida em que os moradores
tiveram acesso a posse da terra, por outro, os mesmos não obtiveram a propriedade da terra.
Além do mais, apesar de terem abrigo, não tiveram acesso a moradia (em seu aspecto amplo).

O movimento de luta contra a fome: a ocupação da cozinha


comunitária no Bairro Jeremias

Esse movimento social de bairro, forma-se a partir de uma articulação entre várias
entidades políticas, universitárias, partidárias etc.8 A pauta inicial se deu com o pedido de
reabertura das cozinhas comunitárias, que foram fechadas em 2013 na gestão do então
prefeito Romero Rodrigues (PSDB). No total eram 9 cozinhas comunitárias e 2 restaurantes
populares (Aires, 2021).
As entidades da sociedade civil organizada, propuseram aos moradores do bairro
Jeremias, na zona norte de Campina Grande, a reabertura da cozinha comunitária existente
nesse espaço, fechada no ano de 2013 (Aires, 2021). No primeiro semestre do ano de 2021
a cozinha comunitária foi ocupada pelo movimento. Passando a fornecer um jantar por
dia. Além de uma refeição diária entre segunda e sábado. No domingo, as famílias recebiam
um kit para cozinhar em casa (Alves, 2021).
A partir disso, criou-se um comitê contra a fome, contando com 20 cozinheiras da
comunidade do Jeremias (Alves, 2021). O custeio se deu por meio das várias entidades
que compunham o comitê contra fome, mas sobretudo a partir da ANDES-SN (Sindicato
Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior). Com a maior parte dos
256 // Sociedade e memória dos territórios

alimentos sendo comprados e fornecidos por assentamentos do MST (Movimento dos


Trabalhadores Rurais Sem-terra), da agricultura familiar e comunidades quilombolas
(Aires, 2021). Essa articulação entre várias entidades com outros movimentos, demonstra

8
As entidades que participam do Comitê são: Adufcg, Aduepb, Sintef-pb, Sintab, MST, MAB, CEBI,
Levante Popular da Juventude, Correnteza, MLB, ANDES, CSP, PJR, DCE/ UFCG e os mandatos de Jô
Oliveira (PCdoB), Anderson Pila (PODE) (Alves, 2021).

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a forma com a qual é possível a coordenação conjunta para um determinado fim entre
movimentos de diferentes escalas geográficas e bandeiras diferentes.
Malgrado a criação de uma relativa solidariedade orgânica, criada entre as diferentes
entidades e a comunidade, a ocupação foi alvo da reação de apoiadores do atual prefeito
Bruno Cunha Lima (PSDB), que retiraram todas as faixas colocadas pelo movimento no
local (Aires, 2021). Demonstrando como a luta de classes se dá em todas as escalas e em
todos os espaços sociais e políticos.
Desse modo, podemos dizer que a ocupação foi uma prática de ação direta, embora,
o planejamento não tenha se dado a partir de uma organização dos próprios sujeitos. Mas
sim, de uma articulação com os mesmos a partir de outros movimentos. Do ponto de vista
da organização, essa se deu a partir de uma relativa autogestão e ocupação do espaço, com
o apoio de vários movimentos e uma relativa coordenação das ações de outras entidades.
Esse movimento respondeu a necessidade candente da subsistência dos trabalhadores
e trabalhadoras do bairro. Contudo, não partiu diretamente dos próprios trabalhadores,
mas sim, buscou responder a anseios latentes. A prática espacial principal se deu através da
ocupação de um equipamento público, redefinindo os fluxos do bairro, com a diminuição
da necessidade de trajeto ao centro, o que proporcionou um novo valor de uso coletivo a
um espaço ocioso.
Como resultado teve-se uma sociabilização e criação de uma nova territorialidade no
bairro, na medida que o uso do espaço e da infraestrutura passou a ser utilizado pelos mora-
dores, por outro lado, essa configuração ainda é bastante dependente de agentes externos e
ainda reivindica a intervenção do estado, o que ainda não aconteceu.

Conclusões

Apesar desses movimentos estarem pautados em reivindicações de certo modo pontuais,


do ponto de vista das repercussões na estrutura de opressão e exploração do Estado e Mercado.
Também demonstram a capacidade de mobilização de frações de classe dominadas na cidade,
apontando para uma redefinição do horizonte de luta. Ao mesmo tempo, em alguma medida
também pressionam o Estado capitalista, ou mesmo contestam alguns princípios fundantes
257 // Sociedade e memória dos territórios

do papel dessa estrutura de organização e controle da sociedade de classes, de forma cons-


ciente ou inconsciente. Ao mesmo tempo, esses movimentos sociais urbanos localizados, se
integram a demandas mais gerais por trabalho (renda), moradia, e alimentação, que estão na
ordem da agenda das classes populares atualmente, principalmente após a pandemia.
Também podemos dizer que os movimentos sociais urbanos em Campina Grande,
apesar de sua escala localizada, vem contribuindo para uma reorientação da geografia

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urbana da cidade, dado o fato de redefinirem a política do espaço, reorganizando o espaço
a partir de uma lógica que subverte a total subordinação dos trabalhadores periféricos e
sem-teto. Também demonstra que as demandas são bastante variadas, não se restringindo
apenas a dimensão da moradia, mas também da alimentação e do trabalho, sobretudo
nesse período de exacerbação das carências. Carências essas produzidas por uma questão
marcadamente classista.
Sabemos que a cidade de Campina Grande, assim como várias cidades no Brasil, possuem
terrenos e moradias ociosos, do mesmo modo, sabemos que as condições materiais permi-
tiriam uma rápida redistribuição de renda, malgrado a acumulação de capital e a política
estatal existente não funcionassem como estruturas de exacerbação das desigualdades. Do
mesmo modo, as condições materiais existentes na sociedade brasileira, permitiriam o
aumento nos postos de trabalho, não fosse a concentração de capitais, que se tornou ainda
mais pujante durante a pandemia.
No entanto, todas essas contradições devem ser colocadas à evidência do momento
histórico, a partir de suas particularidades. Todos esses movimentos sociais urbanos demons-
tram também a ineficácia do Estado capitalista em prover as condições de reprodução da
vida cotidiana das classes trabalhadoras mais pauperizadas. Em primeiro lugar, as ocupações
de moradia demonstram uma precarização tanto da moradia para os trabalhadores, quanto
uma precarização no sentido dos mesmos terem que, durante uma pandemia, ocuparem e
construírem abrigos precários, correndo todos os riscos impostos pela pandemia. Quando
uma política de impedimento do desalojamento, ou uma política de aluguel social poderia
ter sido colocada em voga.
Em segundo lugar, os trabalhadores feirantes, não deveriam nem ter sido removidos
para re-apropriação do terreno pela Prefeitura, nem mesmo deveriam precisar trabalhar em
meio a pandemia, caso tivesse havido uma política assistencial adequada durante a pan-
demia. Em terceiro lugar, os ocupantes da cozinha comunitária, não precisariam correr os
mesmos riscos já mencionados, caso o poder local não tivesse desarticulado toda a política
de assistência oferecida pelas cozinhas comunitárias. Desse modo, todas as lutas se fizeram
necessárias, mesmo em meio ao risco, por uma imposição da própria geografia econômica
e política dos recursos, tanto na escala do poder local, quanto federal.
Em síntese, acredito que esse estudo, pode ter vindo a contribuir para refletirmos sobre
258 // Sociedade e memória dos territórios

a necessidade de recolocarmos as análises da Geografia dos movimentos sociais frente aos


novos acontecimentos históricos. Apesar da impossibilidade de uma maior teorização,
observamos que essas lutas sociais tem passado por transformações precisas, que requerem
uma melhor delimitação e tratamento teórico. Esse, deve se dar a partir de um aparato
conceitual e de uma postura política e de método, voltada para a análise da totalidade
socioespacial e com as necessidades da classe trabalhadora brasileira.

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Resumo – A pandemia do Novo Corona Vírus evidenciou e agravou as contradições e desi-
gualdades no espaço urbano brasileiro. Com o aumento do desemprego, a renda de uma grande
parte dos trabalhadores foi gravemente comprometida, entre outros fatores, pela ingerência da
crise econômica e sanitária por parte do Estado brasileiro. Todos esses fatores, contribuíram para
o aumento dos despejos, do desemprego e da fome. Esse fenômeno fica ainda mais evidente nos
centros urbanos, espaços onde a concentração da pobreza e desigualdade socioespacial é estrutural
e estruturante. É nesse contexto, que buscamos analisar as formas de resistência que se dão no es-
paço urbano. O recorte espacial de nossa análise, diz respeito à cidade do município de Campina
Grande- PB, localizada no interior do Nordeste Brasileiro. A presente pesquisa buscou analisar três
movimentos sociais urbanos, com demandas diferentes, que vem ocorrendo em frações do espaço
da cidade. O primeiro, tem relação com o movimento de luta por moradia e vem ocorrendo a
partir de um processo de ocupação de terrenos ociosos no bairro Cruzeiro. O segundo analisado,
foi o de (re)construção de uma feira livre no bairro Acácio Figueiredo. Por fim, o terceiro objeto de
análise, foi o movimento de ocupação e reabertura de uma cozinha comunitária, no bairro Jeremias.
O objetivo de nossa pesquisa, foi definir a gênese e o desenvolvimento de cada um dos movimentos,
buscamos entender as diferenças e pontos comuns entre esses processos. Do mesmo modo, nos
debruçamos na relação que cada um destes possui com a realidade espacial da cidade e com a crise
econômica e sanitária. Desse modo, refletimos sobre a dimensão das lutas pelo direito à moradia, à
alimentação de qualidade e ao trabalho e sua relação com o direito à cidade.
Palavras-Chave: Pandemia; Movimentos Sociais Urbanos; Campina Grande-PB; Brasil;
Ação Direta.

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O direito à moradia e as políticas públicas
de moradia no Brasil

Arlete Moysés Rodrigues1

Introdução

A moradia é uma mercadoria do modo de produção capitalista, comprada, vendida


e/ou alugada e, em geral, paga em dinheiro. É uma necessidade fundamental para viver,
pois ninguém vive sem ocupar espaço e é nela que se dá o convívio familiar, o descanso,
a alimentação, a higiene etc. É o lugar da reprodução da vida. Como pagar por essa mer-
cadoria, uma necessidade básica? Para a maioria, que compreende os trabalhadores em
geral, o pagamento dessa mercadoria é realizado por meio do que se recebe com os salários
já que, no capitalismo, os meios de produção (capital/dinheiro, matérias-primas, força
motriz, terra) estão em mãos dos capitalistas, separados dos trabalhadores que só têm sua
força de trabalho para sobreviver. Os trabalhadores, ao venderem sua força de trabalho,
recebem salários em dinheiro, cujo valor deveria poder suprir os requisitos básicos da sua
reprodução, entre os quais a moradia.
No Brasil, desde o início da década de 1930, a moradia consta como um dos itens que
devem ser considerados nos cálculos do Salário-Mínimo para permitir a reprodução da
força de trabalho. Quando os salários são insuficientes para arcar com os custos de morar,
é preciso instituir políticas públicas de moradia.
O direito à moradia consta da Agenda Habitat II de 1996. Além disso, no Brasil, está
expresso como direito social no artigo 6º. da Constituição de 1988, juntamente com ou-
261 // Sociedade e memória dos territórios

tros direitos sociais, embora não haja menção de como tais direitos podem ser atendidos.
Comparando com a Constituição Portuguesa, averiguamos que seu artigo 65o explicita o
significado do direito à moradia: “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma

1
Prof.ª Dr.ª UNICAMP e UFPB
moysesarlete@gmail.com

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habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a
intimidade pessoal e a privacidade familiar”. O mesmo documento apresenta, ainda, as
incumbências do Estado para assegurar o direito à habitação (Portugal, 2005).
Com