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A Invasão dos Gerúndios Assassinos

David Cohen

Um artigo que vai estar falando mal dessa mania


de estar inserindo verbos só para enrolar os outros.

O novo horror da Língua Portuguesa é a invasão dos gerúndios assassinos.


Você já deve ter passado por isso. Alguém ao telefone lhe pede para “estar
esperando” porque “vai estar lhe passando” a informação que você deseja quando
o chefe “estiver tendo” condições de “estar lhe informando” qualquer coisa.

Pior do que ter passado por isso: você já deve ter-se surpreendido falando
assim.
Não é a primeira vez que se investe contra essa nova forma de expressão.
Gramáticos, por exemplo, são puristas por excelência e detestam qualquer desvio
da norma culta da língua. Em geral, eles “vão estar detestando” a invasão dos
gerúndios.

Já os lingüistas, por natureza muito mais liberais, só prestam atenção à


adequação da comunicação. Ou seja: “O recado que você queria dar foi
passado?” Então, Ótimo. Não, não está ótimo, não. Porque o modo como se
passa um recado diz muito sobre a pessoa que o passa.

De onde vêm esses malditos gerúndios? Uma das hipóteses mais fortes é
que eles são uma adaptação brasileira da forma ing, do inglês. Americanos são
craques em usar e abusar do ing. Se for isso, é uma adaptação equivocada,
porque a forma ing não é o equivalente do nosso gerúndio. Ela pode ser gerúndio,
mas também particípio e até infinitivo. (Por exemplo: a expressão “I’ll be sitting
there” não equivale a “Eu vou estar sentando ali”, e sim a “Eu vou estar sentado
ali”. Thanks for coming, não é “Obrigado por estar vindo”, mas “Obrigado por vir”)
É por ter estrutura gramatical diferente que o inglês recorre tanto ao ing.

Posto esse argumento, precisamos imediatamente desqualificá-lo: mesmo


se estiver correto, ele não tem a menor importância. Quando uma língua se
apropria de uma forma de expressão de outra, que se dane o que ela quer dizer
na outra língua – a forma de expressão passou a ter novo dono, e o novo dono
pode fazer o que quiser com ela.

Então, vivam os gerúndios! Na-na-ni-na-não. Há uma razão mais forte para


rejeitá-los. E a razão é rejeitar os motivos psicológicos que levam à “gerundização”
da língua.

Minha hipótese é a seguinte: o abuso do gerúndio ocorre em situações mais


ou menos específicas. Geralmente, quando alguém está tentando nos enrolar.
Quando uma pessoa diz “eu vou estar te passando a informação amanhã”, o que
exatamente ela quer dizer? Que vai levar o dia de amanhã inteiro passando e
repassando a informação? Que vai passar a informação e vai me acompanhar o
tempo todo para ter a certeza de que eu não a perderei?

Verbos denotam ações. Quanto mais perto do sujeito da frase está o verbo,
mais a mensagem denota uma ação desse sujeito. Pode reparar em situações que
requerem objetividade, não há lugar para o abuso de gerúndios. Você imagina
uma assistente dizendo ao cirurgião, na mesa de operação. “eu vou estar lhe
passando a tesoura”? O gerúndio, que normalmente se interpreta como uma ação
que continua, vem sendo usado para alongar a frase, separando o sujeito do
verbo principal.

O português do Brasil já é pródigo em maravilhosas expressões que


quebram a rispidez da ação. É uma característica cultural insistir na relação em
vez de frisar a objetividade do ato. Geralmente, isso é feito com a transformação
do verbo em substantivo. Por isso, se você vai a uma festa, mas sem muita
convicção, você não vai passar, e sim “vai dar uma passada” por lá. Talvez até
“dar uma passadinha”. Do mesmo modo, você pode dar uma olhada, em vez de
olhar, dar um tempo, em vez de mandar a namorada ou o namorado às favas etc.

No caso dos gerúndios, cuidado com eles: você vai estar passando a
impressão de enrolador.

(Extraído da revista Você S/A, edição de set/2000)

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