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A CRIADA

Como precisava duma criada que me limpasse um pouco a casa, fui um


dia perguntar à camponesa, minha vizinha, se não conhecia uma mulher
honesta e trabalhadeira que me desse conta do recado.
— Uma Criada ! disse ela, isso é coisa que não falta. Há, por
exemplo.... vejamos... há por exemplo...
Se bem que não faltassem criadas, tal como a lavradeira assegurava
peremptoriamente, a excelente mulher procurava, e não encontrava nada.
Matutou, durante cinco minutos, repetindo sempre : « Lá isso é coisa que
não falta », enfim decidiu-se a pedir ajuda ao marido que, no telheiro,
atrelava uma grande carroça, fazendo : « Arre, arreda, brrrr ! » O
lavrador deixou os cavalos, caminhou lentamente na nossa direcção
coçando a nuca com um ar profundo. Disse :
— Homessa ! lá isso é coisa que não falta !
E mergulhou em pesquisas mentais, evidentemente complicadas e muito
desagradáveis, a avaliar pelas diversas e sucessivas caretas que fez,
com um rosto vermelho e grumoso como um caco.
Permanecíamos calados. O quinteiro, incendiado pelo sol, ardia ; dois
pombos perseguindo-se, voavam de um beiral para outro; sob o telheiro,
os cavalos, atacados e picados por moscas e moscardos, resfolegavam,
e, deitado numa cama de esterco húmido, um porco todo rosadinho,
adormecido, grunhia sonhando.
O lavrador tinha cruzado o braços e as suas mãos espalmadas estavam
metidas nos sovacos. Sem se mexer, articulou :
— Ó mulher, vês tu, estou a pensar na Renaude.
— Na Renaude ? exclamou a camponesa. No entanto é verdade, e eu que
não pensava nisso.
E, virando-se para mim, acrescentou animando-se :
— Vem mesmo a calhar ! Ah ! Meu caro Senhor, uma boa rapariga,
corajosa, trabalhadeira, e honesta como não há igual cá na
freguesia... É franca, é rija.
— Pois bem ! Mande-me lá a Renaude.
— Sim senhor, vou mandar-lha.
E depois, como que tomada subitamente de escrúpulos :
— Mas tenho de lhe dizer, continuou ela em tom mais baixo. Na cidade,
há alguns que não querem a Renaude, porque lhe aconteceu uma desgaça.
— Que desgraça ? perguntei.
— Oh ! uma grande desgaça... enfim uma desgraça, concluiu a
lavradeira, num tom claro, como se essa palavra desgaça pudesse só por
si ter um significado conhecido e fatal.
No dia seguinte, muito cedo, uma mulher que acompanhava uma criança
pequena, batia à minha porta.
— Sou eu, a Renaude, disse ela sorrindo e fazendo uma vénia.
Mandaram-me vir para nos pormos de acordo. E aqui estou.
Mostrou-me a criança que se lhe tinha pendurado nas saias e olhava
para mim com olhos medrosos :
— É o meu Parisiense. Diz bom dia ao senhor, Parisiense.
Mas a criança, cada vez mais assustada, tinha-se escondido nos
saiotes da mulher que murmurou com bondade, e como se quisesse
desculpá-lo :
— É muito pequeno, ainda não tem educação, tem medo das pessoas, o
pobre miudo !
Tentei atrair o menino falando-lhe com doçura, e mostrando-lhe uma
mão cheia de cerejas, que acabara de tirar dum cesto.
— É sem dúvida uma criança confiada ao seu cuidado ? Perguntei à
Renaude.
— Não senhor, é o meu rapaz, respondeu a mulher com um orgulho
maternal, que justificavam as bochechas bem coradas e brilhantes do
pequeno.
— Pensei que lhe tinha chamado há pouco: o Parisiense ?
— Claro que lhe chamei o Parisiense, porque nasceu em Paris.
— Então, você é de Paris ?
— Não, senhor, ah não ! Eu sou daqui. Não sabia ?
A fisionomia da Renaude tomou uma expressão de gravidade e de
profunda tristeza. Sentou-se numa cadeira, pesadamente. Dir-se-ia que
uma canseira, de repente, lhe tinha dobrado os membros. Suspirou.
— Olhe, senhor, corro o risco, tenho de
ser honesta consigo e dizer-lhe o que é... aconteceram-me umas
desgraças… umas grandes desgraças… Não sou casada. Sim, sou solteira,
e, no entanto, esta criança é minha. Oh ! Não tenho culpa,
asseguro-lhe, meu senhor! Eis como essas desgraças me aconteceram, é
verdade, tão verdade como ser o senhor um homem bom.
A Renaude tinha sentado a criança nos joelhos, beijou-a avidamente,
e, após lhe ter alisado os cabelinhos loiros, começou assim :
— O meu pai adoecera, uma paralisia, segundo os médicos. A verdade é
que ele nem mexia braços nem pernas, e que estava como morto na cama.
Havia lá em casa três irmãzinhas que não tinham idade para trabalhar,
e o meu irmão, ido para a tropa, não dava mais notícias. Era preciso
alimentar aquela gente toda, e éramos tão pobres, tão pobres. Vivíamos
todos com o que eu ganhava, quer dizer que ia a dias para casa de
senhoras para coser e fazer a barrela, quando podia deixar o meu pai e
a minhas irmãzinhas. Quinze "sous" por dia, para cinco pessoas, não dá
para engordar, pode ter a certeza... De forma que não comíamos todos
os dias, porque em primeiro lugar era preciso que ao pai doente não
faltasse nada. As senhoras para casa onde eu ia interessavam-se no
entanto pela nossa miséria e tratavam de alivia-la o mais possível,
sem isso, creio que teríamos morrido de fome... « Escute, disse-me uma
delas, vou pôr o teu pai num asilo e as tuas irmãs num orfanato;
quanto a ti, pequena, encontrei-te um lugar em Paris, em casa de uma
amiga minha. Queres ir a Paris ? » Custava-me muito deixar o meu pai
doente e as minhas irmãs pequeninas, mas sentia que era preciso, que
todos ficariam melhor, e aceitei o lugar. A trouxa ficou pronta num
instante. Armada com todas as recomendações possíveis, com a morada
da
pensão onde devia ficar, porque o comboio só chegava alta noite a
Paris, parti, cheia de mágoa e os olhos bem vermelhos. Durante todo o
tempo que demorou a viagem, chorei, chorei... Na grande carruagem, mal
iluminada, só havia uma senhora idosa, vestida de preto, que chorava
também, um homem gordo de bata que dormia, com a cabeça deitada num
embrulho atado com um guardanapo, e, por cima dos espaldares dos
bancos, apercebia as caras de soldadinhos, muito pálidos, que sem
dúvida voltavam para o quartel... Pensei no meu irmão, que já nos não
escrevia e que talvez estivesse morto muito longe... Foi-me impossível
dormir... Ah ! Como o tempo me pareceu comprido !... Que seria feito do
meu pai no asilo? E das irmãzinhas, naquele orfanato de que revia os
altos e escuros muros, e tão triste, tão triste ! E depois Paris, da
qual sempre tinha ouvido falar como de uma coisa terrível e que mata
os pobres coitados, Paris aterrorizava-me. Imaginava-a assim como uma
grande campa cheia de fogo e fumo, na qual se entra, e que vos devora.
Tremia ao pensar que ia ser enterrada lá dentro, para sempre talvez, e
estava quase a desmaiar quando o comboio, após ter assobiado durante
muito tempo, parou... Era Paris... Uma cúpula enorme com umas coisas
pretas por baixo, todas misturadas, e depois luzes, muito longe que
não iluminavam e que pareciam estrelas aborrecidas por terem caído do
céu; e depois pessoas, muito pálidas, quase apagadas, que se
apressavam, com grandes embrulhos na mão; e depois ruidos, gritos,
respirações, ralos d'animais invisíveis, contorcendo-se sem dúvida, na
noite.... Para onde ir ?... Perguntei a um senhor que tinha um lindo
boné bordado a prata : « O hôtel de l'Ouest, por favor. » Respondeu-me :
« Na praça, à esquerda. » e voltou-me as costas... Muito encolhidinha,
ia, vinha, batendo contra as pessoas, esbarrando em tudo,
arriscando-me a ser atropelada por carros e cavalos. Como é que me
encontrei numa grande praça ? Não sei. Era Inverno, estava muito frio,
e a neve caía... Meu Deus! será que ia morrer assim ? À minha volta,
uma praça toda branca, com casas muito altas, e luzes por todo o lado
que dançavam, pálidas e tristes... Passavam também carros, carregados
de malas... Pus-me a andar ao longo das casas e tentando ler, nos
lugares iluminados pelos lampiões, o que estava escrito. Fiquei uma
boa hora, meu Senhor, às voltas desta maneira, no frio, na neve, ao
vento, que soprava forte e me gelava os ossos. Enfim, pude ler com
alegria, numa grande fachada, estas palavras: Hôtel de l'Ouest.
A Renaude fez uma pausa, respirou longamente, e depois, suspirando de
novo dolorosamente, continuou.
— Fiquei muito tempo à espera antes de poder encontrar a campainha.
No entanto consegui encontra-la e a porta abriu-se. Ao fundo do
corredor, havia uma espécie de quarto escassamente iluminado por uma
pequena lamparina pousada numa mesa. Um rapagão meio despido
levantou-se duma cama bocejando e esfregando os olhos. — « É com
certeza o senhor daqui, disse eu ! Queria deitar-me, porque estou muito
cansada. » O rapaz olhou-me de soslaio, com um sorriso mau. Tomou uma
chave que estava dependurada sobre uma espécie de quadro, com outras,
por cima de um número, e depois acendeu uma vela. — « Venha », disse-
me
ele. Segui-o, um pouco a tremer. Escadas e mais escadas ! Nunca mais
acabavam. Enfim, parou num patamar, diante duma porta que abriu, e fez-
me passar à frente. Era um quartinho, com uma caminha de ferro e
cadeiras de palha, nas águas furtadas. O rapagão pousou a vela numa
cadeira, fechou a porta, após ter escutado durante alguns segundos, no
patamar... « Tens cara de quem tem frio, eh, cachopa !... mas vou
t'aquecer, já vais ver. » E pôs-se a rir, o rapaz desfraldado, a rir-me na
cara... Ah ! que riso... um riso de cão que mostra as goelas rosnando.
Pensei que devia fazer o mesmo, e também ri, se bem que tivesse então,
pode ter a certeza, vontade de chorar... Aproximou-se de mim. Tomou-me
pela cinta e quis beijar-me. « Oh senhor, oh senhor », gritei debatendo-me.
« Cala-te parva », disse-me ele. Gritei mais alto. « Tu vais-te calar, minha
badalhoca ! » E pôs-me a grossa mão na boca... Senti-me então
levantar brutalmente, levada para a cama... quis resistir, mas o rapagão
esmagava-me a boca e os membros, com todo o peso do corpo : « Ah !
puta ! ah ! puta ! », não parava de repetir.... Depois tive a impressão de
descer, de cair por um buraco a baixo... Quando voltei a mim, o rapaz
tinha partido, a vela ardia tristemente na cadeira, e vi que estava toda
despida, que a cama estava desfeita, e que havia sangue nos lençóis...
Podia ter-me queixado, denunciar o rapaz,
manda-lo prender... Para quê ? Todos ficariam a saber que estava
desonrada... talvez a minha nova patroa me não quisesse mais... Não disse
nada... E foi esse o meu erro... A minha patroa era uma solteirona,
desagradável, avarenta, quezilenta, exigente, e que andava sempre a
rosnar. Tanto fazia que se fizesse conscienciosamente o trabalho, nunca
ficava contente. Sempre atrás de nós, e para mais, vasculhando,
coscuvilhando por todo o lado e, se, por acaso, faltava
um torrão de açúcar ou um alfinete, acusando-nos de roubar e ameaçando
com a polícia... Não fui muito feliz com ela... E não é que ao fim de
algumas semanas, me apercebi que estava grávida !... Ai, senhor ! nem
imagina os terrores, as angústias por que passei, é impossível... grávida,
eu ! e deste rapaz !... Desta maneira a desonra, que havia querido evitar,
ia-se tornar pública !... Fiquei louca, queria matar-me... Dizer aquilo à
minha patroa, que estava grávida, mais valia pegar logo nas minhas coisas
e partir!... Sabia que a velha
jamais me perdoaria... Mas para onde ir ?... Escondi como pude a minha
gravidez. No entanto o momento fatal chegou... Ai, senhor, que coisa
horrível !... A minha patroa entrou no meu quarto justamente no momento
em que as dores me faziam gritar terrivelmente : « Que paródia é esta aqui
? » disse-me... confessei-lhe tudo entre soluços, jurando que não era culpa
minha, suplicando-lhe que me perdoasse... Pensei que a solteirona, ao
ouvir-me, ia morrer de indignação : « Grande bandalha, gritava ela,
desavergonhada, ladra ; fazer poucas vergonhas destas em minha casa, em
minha casa ? Não ! não ! rua. Vai-te ! » Fez-me a trouxa em dois minutos,
foi ela própria buscar uma carruagem que, por sua ordem, me conduziu ao
hospital... Foi lá que tive o Parisiense, meu senhor, este pobre pequeno...
Gosto muito dele mesmo assim... Que quer!... não
é culpa sua, do pequerrucho... Diz, meu amorzinho.
A Renaude olhou tristemente para a criança, e cobriu-lhe a cara de
beijos. Continuou :
— Sim, depois, caro senhor, conheci a miséria! E passei por muitos
empregos ! Um dia em casa de rendeiros, outro em casa de comerciantes,
de taberneiros, por vezes em casa de mulheres da vida — Nossa Senhora!
Não tinha muito para me gabar, não é verdade ? —, enfim, por todo o
lado, fui por todo o lado. Não assentava em nenhum, por exemplo por
que me achavam estúpida, desajeitada, sem saber nada. Tão depressa me
pegavam, logo me largavam ! E o meu filho que tinha posto numa ama, era
preciso no entanto ganhar com que pagar o seu sustento !... Ao fim de
quatro anos desta vida horrorosa, empurrada, despedida dum lugar para
outro, decidi-me a voltar para aqui. Preferia mesmo assim o desprezo
que me esperava na minha terra, que a terrível existência que levava
junto de estranhos. E depois, pensava que indo pelo bom caminho, sendo
trabalhadeira, acabariam por esquecer o meu erro!... o meu erro !...
— E depois ? perguntei.
— Depois, meu senhor, ainda há muita gente boa, boas pessoas santo
Deus, que crêem que sou uma má mulher, uma qualquer... E no entanto,
juro-lhe, senhor, juro-lhe !...
E a Renaude, curvada, alquebrada pela emoção, pôs-se a chorar.

La France, 28 de Julho de 1885

Tradução para português de:


Gabriela, Virginie Defosse, Johanne Lacroix, Lisette Lagoa,
Joan Martinez, et alii.
(estudantes de Licenciatura em português da Universidade Paul-Valéry
Montpellier III, ano académico 2002/2003),
Orientaçao : Tito-Lívio Santos-Mota

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