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O golpe de 2016 no contexto da crise

do capitalismo neoliberal
A ruptura da institucionalidade democrática no Brasil
em 2016 por meio de um golpe de Estado jurídico-
parlamentar ocorreu no contexto da profunda crise do
capitalismo global.
Publicado em 08/06/2016 // 10 comentários

Por Giovanni Alves.

Para que possamos conhecer a natureza essencial do golpe de Estado ocorrido no Brasil em
2016 temos que levar em consideração não apenas a processualidade imediata da conjuntura
política nacional, com os bastidores do jogo de poder entre PT, PMDB e PSDB e as articulações
sinistras entre Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal, Procuradoria Geral da
República, Ministério Público Federal e Polícia Federal no seio do aparelho de Estado, ao lado
da Operação Lava-Jato e a intensa manipulação da opinião pública pela grande imprensa, com
destaque para a TV Globo. Todos os personagens visíveis (e invisíveis) do golpe de 2016 atuam,
muitas vezes sem o saber, no palco histórico constituído pelas forças ocultas dos interesses
econômicos, políticos e geopolíticos profundos que compõem o movimento das contradições
orgânicas do sistema-mundo do capitalismo neoliberal em sua etapa de crise estrutural. Na
verdade, é no plano do sistema-mundo do capital global que se disputam os interesses crucias
da produção e reprodução da ordem burguesa planetária.

O Brasil é apenas uma província do sistema-mundo do capital global predominantemente


financeirizado onde se disputa o reordenamento do sistema-mundo sob o comando do império
neoliberal. Nesse momento, a adoção de uma perspectiva histórica tornou-se imprescindível,
não apenas apreendendo, por exemplo, no plano da historicidade nacional, a miséria da
política no Brasil, caracterizada historicamente pela pulsão golpista; mas também buscando
entender, no plano histórico-mundial, o desenvolvimento da crise do capitalismo global e as
mutações orgânicas do modo de desenvolvimento capitalista predominantemente

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financeirizado nos “trinta anos perversos” (1980-2010). Nesse período de trinta anos da história
mundial, tivemos a débacleda URSS, a ascensão do capitalismo global, a dominância do
neoliberalismo, a construção da União Europeia e, no alvorecer do século XXI, a crise da
hegemonia imperial dos EUA por conta das ameaças ao poder do Dólar e, com a crise
financeira de 2008/2009, as estratégias de recomposição geopolítica imperial no seio da mais
profunda crise de civilização do capital desde 1929. A crise da hegemonia imperial dos EUA
– verdadeira ameaça ao poder do Dólar – ocorreu na primeira década do século XXI com as
fraturas geopolíticas da dominância do império neoliberal na América Latina, no Norte da
África, no Oriente Médio e no Sudeste Asiático, tendo em vista a ascensão da China e da Rússia
como protagonistas do novo imperialismo e a crise de hegemonia financeira devido
o crack financeiro de 2008/2009.

Enfim, no palco da história sinistra do golpe de 2016 no Brasil operam, de modo intenso,
interna e externamente, forças econômicas, político-ideológicas e geopolíticas ocultas – e
algumas delas, nem tão ocultas assim – que coordenam os interesses estratégicos do
Departamento de Estado norte-americano, o polo hegemônico do império neoliberal, com
elementos (partidos, movimentos sociais, think tanks e meios de comunicação de massa) da
oposição neoliberal, reacionária e oligárquica brasileira (a direita fisiológica e ideológica que
ocupou com o afastamento de Dilma, o governo Temer). A matilha de cães da direita
oligárquica – neoliberal e reacionária – expressa sua sede em derrubar – não mais pelo voto,
mas por um golpe de força jurídico-parlamentar – seus adversários políticos internos,
apropriando-se, deste modo, dos recursos de administração da ordem burguesa caduca.

Na verdade, o que ocorre há anos no Brasil, pelo menos desde 2013, com a fratura da frente
política do neodesenvolvimentismo, é uma disputa intraclasse da burguesia, com camadas e
frações de classe disputando não apenas os recursos do Estado brasileiro, mas definindo
projetos de desenvolvimento do capitalismo para o Brasil de acordo com as disputas
geopolíticas que ocorrem no palco histórico do sistema-mundo do capitalismo global.

O que se disputa na virada para a década de 2010 é o modo de resolução das contradições
abertas pela crise financeira de 2008/2009 no plano histórico mundial. Trata-se de uma disputa
no interior da ordem burguesa, tal como ocorreu por exemplo na década de 1930 a partir da
crise de 1929. Esta necessidade de nova reestruturação da ordem do capital global é o que
caracteriza a crise do capitalismo neoliberal. A ruptura da institucionalidade democrática no
Brasil em 2016 por meio de um golpe de Estado jurídico-parlamentar ocorreu no contexto da
profunda crise do capitalismo global. E ao dizermos “crise do capitalismo neoliberal”, é
importante salientar que não nos referimos a um bloqueio terminal da possibilidade de
reprodução da ordem burguesa mundial. Muitas vezes, a ideia de “crise” remete a noção de
estagnação e queda. Mas, pelo contrário, as “crises” do capitalismo histórico possuem uma
função histórica crucial – elas tratam de oportunidades de renovação para que o sistema-
mundo do capital se recomponha num patamar superior, constituindo assim, uma forma social
no interior da qual ele irá desenvolver suas contradições candentes no século XXI. É claro que
a “crise” opera não apenas oportunidades de renovação da dominância hegemônica do capital,
mas expõe também riscos contingentes de rupturas sociais e politicas adversas à dominância
do capital global tendo em vista a luta de classes.

Nas condições históricas da crise estrutural do capital no século XXI, a recomposição da ordem
burguesa no Brasil por meio do golpe de 1961 representa um declive civilizatório inédito na
história do país. No momento, ele possui uma personalidade política, síntese trágica da farsa
burguesa no Brasil: Michel Temer. O sinistro mordomo da Casa Grande senhorial assumiu a
nobre tarefa histórica de promover a reestruturação reacionária e conservadora do capitalismo
brasileiro nas novas condições históricas de dominância do império neoliberal face ao
aprofundamento de suas contradições estruturais.

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Depois da crise financeira de 2008/2009, o capitalismo global entrou num novo patamar de
desenvolvimento que expôs as múltiplas contradições do sistema mundial do capital. Toda
crise é uma síntese concreta de contradições acumuladas no desenvolvimento do modo de
produção e reprodução capitalista. Desde os primórdios do desenvolvimento do capitalismo
global como capitalismo histórico sob dominância do capital financeiro no começo da década
de 1980, a economia mundial apresentou um movimento de volatilidade sistêmica decorrente
da financeirização da riqueza burguesa. Esta deformação do espaço-tempo da produção de
valor produzida pela financeirização da riqueza capitalista decorreu da crise estrutural de
valorização do capital no plano do mercado mundial, crise de produção e formação de mais-
valor no “núcleo orgânico do sistema” (EUA, Europa Ocidental e Japão) por conta da crise de
superprodução crônica desde meados da década de 1970 (discutimos isso na Introdução do
livro A tragédia de Prometeu, publicado pelo Projeto editorial Praxis em 2016).

Como salientamos, a nova dinâmica capitalista constituiu o espaço-tempo do capital global


como dimensão da produção (e reprodução) do capital fictício que, na medida em que se
tornou um sistema político-institucional e cultural da civilização do capital, enraizado no
Estado capitalista no sentido ampliado, constrangeu como sistema-mundo, as unidades
intranacionais e regionais a implementarem políticas neoliberais capazes de propiciarem
materialidade efetiva à superexploração da força de trabalho nos Estados-Nação e à
valorização fictícia do valor no plano dos mercados financeiros globais. É esta nova
territorialidade do capital global predomiantemente financeirizado que corroeu a
materialidade das políticas keynesianas, lastro do Estado de bem-estar social que caracterizou
os anos dourados do capitalismo organizado do pós-guerra. Pelo contrário, o Estado neoliberal
tornou-se hoje o agente político exterior dos interesses alienados da nova estratosfera do capital
abstrato, o capital global predominantemente financeirziado, descomprometido com os
territórios da Nação como materialidade dos acordos de concertação social da era keynesiana.
Portanto, eis, de modo sintético, o quadro histórico-estrutural a partir do qual devemos refletir
sobre a nova reação neoliberal no Brasil no quadro de crise do capitalismo global; reação
neoliberal que se diferencia radicalmente da reação neoliberal no Brasil ocorrida em 1990 e
que se deu num quadro de ascensão do capitalismo global, vitorioso com o Consenso de
Washington.

***

Esta pequena Introdução a título de advertência heurística, tornou-se necessária para expormos
a verdadeira natureza da nova temporalidade histórica no interior da qual estamos inseridos
no plano do capitalismo global da qual somos parte dependente e integrada, pelo menos desde
1990, com a vigência das políticas neoliberais dos governos Collor, Itamar e FHC, artífices do
“Brasil Delivery”. O Brasil é, ao mesmo tempo, elo mais forte do imperialismo neoliberal na
América Latina (o que explica a persistência do Estado neoliberal no Brasil); e, por outro lado,
com os governos neodesenvolvimentistas de Lula e Dilma, tornou-se território estratégico para
a construção do bloco contra-hegemônico ao poder do Dólar. Essa é a contradição visceral da
arquitetura geopolítica do lulismo, que, ao mesmo tempo que implementou uma política
externa contra-hegemônica ao império neoliberal, com o não-alinhamento à política externa
de Washington, articulando-se com forças geopolíticas de combate ao poder do Dólar, ao
mesmo tempo, não optou pela desconstrução do Estado neoliberal herdado da era Collor-FHC.
Pelo contrário, no plano interno, o lulismo representou a ideologia do reformismo fraco que
construiu uma estratégia de conciliação de classe – inclusive com setores fisiológicos da direita
brasileira – visando a governabilidade. Despreparado para o mar revolto da profunda crise do
capitalismo brasileiro na década de 2010, com a luta de classes assumindo o timão da
dinâmica política no País, o lulismo paralisou-se com a implosão da frente política do
neodesenvolvimentismo e a rearticulação política da direita senhorial da Casa Grande. O
social-liberalismo ingênuo, como diz o ditado popular, “cutucou onça com vara curta”.

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1. Elementos da processualidade histórica do capitalismo neoliberal (1980-2015)

Uma leitura da processualidade histórica que explica o golpe de 2016 no Brasil implica
discernirmos vários níveis de análise que compõem num quadro amplo do sistema-mundo do
capital. O Brasil é importante parte compositiva do sistema-mundo do capital sob hegemonia
do império neoliberal. Precisamos discernir o processo histórico da contradição viva do capital
global das últimas décadas, processualidade histórica imersa numa profunda crise estrutural,
impondo, deste modo, a necessidade candente e insana de reordenamentos geopolíticos e
reestruturações capitalistas nas várias instâncias do ser social que compõem a civilização do
capital. Iremos salientar neste pequeno artigo três planos da processualidade contraditória do
capital: (1) a macroestrutura da economia global, (2) a geopolítica do novo imperialismo ou
imperialismo neoliberal e, last but not least, (3) o sociometabolismo da barbárie, mutações
culturais-ideológicas profundas no ser social da ordem burguesa com impactos decisivos na
dinâmica da luta de classes.

Na verdade, o complexo de complexos da processualidade contraditória do capital indicados


acima, alterou a forma de ser do Estado político do capital no sentido ampliado (sociedade
política e sociedade civil), promovendo mudanças radicais no território material da luta
política, sindical e ideológica da classe trabalhadora. Estas mutações sociometabólicas são
comparáveis, por exemplo, àquelas percebidas por Antonio Gramsci no começo da década de
1930 nos seus Cadernos do Cárcere. A “revolução copernicana” que Gramsci operou na
política revolucionária naquela época, adquiriu hoje um significado profundo, tendo em vista
que o capitalismo histórico, pelo menos desde o pós-guerra, com o capitalismo fordista-
keynesiano e hoje, com o capitalismo neoliberal, alterou profundamente a organização da
cultura e dos intelectuais numa dimensão inédita na história do capitalismo moderno,
provocando mutações no metabolismo social da classe do proletariado e da própria dominação
do capital, fazendo com que as reflexões politicas de Marx, Engels e do marxismo clássico,
lastreadas na percepção da sociedade civil (Bürgerliche Gesellschaft) do século XIX e primeira
metade do século XX, tornem-se necessárias, cada vez mais insuficientes. O que denominamos
de sociometabolismo da barbárie significa a degradação da pessoa humana-que-trabalha,
condição existencial capaz de instaurar uma nova materialidade da luta de classe,
principalmente no plano ideológico, requerendo para isso, uma nova organização da cultura
e dos intelectuais orgânicos e portanto, uma nova estratégia política. Na verdade,
a radicalidade das mudança histórias pesa como um fardo para aqueles que buscam operar a
política de emancipação socialista hoje.

No livro Brasil delivery: servidão financeira e estado de emergência econômico (Boitempo,


2008), Leda Paulani observou que o enfrentamento da nova ordem do mundo neoliberal é o
enfrentamento, não de uma razão como ocorria com o liberalismo clássico imbuído do
Iluminismo do século XVIII, mas de uma crença irracional no fetiche do mercado – o que o
circunscreve à lógica mercantil da vida social. Aliás, poderíamos dizer que a constatação de
Paulani acusa a incorreção do título do interessante livro de Pierre Dardot e Christian Laval,
lançado pela Boitempo este ano: A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal.
Talvez o titulo mais adequado fosse mesmo “a nova irrazão do mundo”. Diz Paulani:

“Para enfrentar esse movimento avassalador [do neoliberalismo] seria preciso investir em
políticas que buscassem resultados objetivos, por exemplo, na redução da abissal desigualdade
do país”.

E observa:

“Mas que fizessem isso trazendo consigo uma revolução cultural e de valores que proscrevesse
como indignos e inaceitáveis os valores individualistas e puramente mercantis”.

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Eis a falha política crucial do lulismo: investir na redução da abissal desigualdade social no
Brasil, mas desprezou a luta ideológica contra os valores neoliberais (o que exigiria falar em
“luta de classes”, elemento sem registro no léxico mental do lulismo).

No plano da macroestrutura da economia global, temos o marco histórico decisivo da crise


estrutural do capitalismo predominantemente financeirizado que foi 2008/2009. Todas as
crises financeiras globais anteriores (1987, 1996, 1999-2000), foram apenas sintomas
cumulativos da lógica da financeirização da riqueza capitalista, que explodiu como bolha
financeira, num patamar superior, em 2008/2009 nos EUA. Portanto, a história do capitalismo
global ou capitalismo neoliberal, que se iniciou em 1980 – o marco da eleição de Reagan nos
EUA, “núcleo orgânico” do sistema mundial do capital – teve em 2008/2009, seu ponto de
inflexão histórica com a crise financeira global, que representou a “crise das crises” do
capitalismo das bolhas financeiras (o capitalismo neoliberal) – inclusive os impactos na
produção e no sistema bancário da explosão da bolha financeira em 2008/2009 nos EUA se
desdobrou, como uma onda, pela década de 2010, tal como a crise de 1929 se desdobrou pela
década de 1930. Na verdade, vivemos hoje os desdobramentos da profunda crise financeira
de 2008/2009, que alcança uma larga temporalidade histórica, explodindo nesse interim, no
devir da conjuntura, contradições sociais e impasses políticos de alta envergadura nos países
capitalistas integrados ao sistema-mundo do capital, tal como presenciamos hoje na União
Europeia e América Latina – cada um com suas particularidades concretas.

Com a profunda crise do capitalismo global, o sistema de representação política (a democracia


representativa) tencionou-se ao limite, expondo a natureza oculta do Estado capitalista nas
condições da ordem neoliberal como “Estado de exceção”, segundo a acepção de Giorgio
Agamben, em obra homônima. Vivemos uma crise da democracia representativa nos países
capitalistas mais desenvolvidos. A explosão da bolha financeira em Wall Street em 2008/2009
ocorreu primeiro, no “núcleo orgânico” do império neoliberal (EUA, Japão e União Europeia);
mas não deixou de desdobrar-se para a borda periférica integrada à ordem mundial como a
China que opera hoje uma lenta (e calculada) transição para um novo modelo de
desenvolvimento de capitalismo de Estado, adicionando assim, novos elementos contraditórios
no desdobramento da frágil economia global, principalmente para os países exportadores
de commodities (como o Brasil). Enfim, a década de 2010 efetivamente demarcou a primeira
metade do século XXI com tendências de profunda regressividade civilizatória por conta das
contradições candentes da ordem burguesa senil no plano mundial. O Brasil como província
do capitalismo global não poderia ser excluído do processo de reação neoliberal que
caracteriza o sistema-mundo do capital na metade da década de 2010.

Muitos economistas traçam um paralelo entre a crise de 2008/2009 com a crise de 1929. As
duas crises capitalistas possuem um traço comum: são crises de hegemonia financeira que
promoveram uma inflexão crucial na dinâmica histórica do sistema mundial. A primeira levou
à derrota da fração liberal-rentista e a vitória da fração produtiva do capitalismo num
compromisso social com a classe trabalhadora organizada depois da 2ª Guerra mundial. De
1929 a 1945, derrotou-se o capitalismo liberal, que tinha levado o mundo burguês à crise de
1929, e o capitalismo fascista, que se apresentou como alternativa histórica de direita no
interior da ordem burguesa à miséria do liberalismo clássico. Para o capitalismo do século XX
se reestruturar, construindo o compromisso fordista e o Welfare State propiciado pela luta de
classes no contexto da Guerra Fria, precisou ocorrer uma profunda recessão, derrota politica
da direita liberal, uma Guerra Mundial e a derrota militar da direita fascista, com milhões e
milhões de mortos na Europa e na Ásia.

Por outro lado, a segunda crise de hegemonia financeira em 2008/2009 ocorrida há pouco
mais de cinco anos, não representou a derrota do capitalismo neoliberal predominantemente
financeirizado, tal como ocorreu em 1929; mas, pelo contrário, a crise do subprime levou à
reafirmação da fração rentista-parasitária do capital, fração hegemônica desde o começo da

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década de 1980, por meio de politicas de austeridade neoliberal sendo implantadas na União
Européia e na América Latina. A sobrevivência do sistema institucionalizado do rentismo como
traço orgânico do capital global, exigiu a intervenção pesada dos bancos centrais dos governos
e seus Estados neoliberais visando salvar a nova ordem do mundo. Na verdade, a persistência
(e a força política e cultural) do capital financeiro depois da crise de 2008/2009 demonstrou
efetivamente seu enraizamento político-ideológico e cultural na dinâmica das sociedades
capitalistas, muito superior àquele do liberalismo rentista da década de 1920.

A vitória do rentismo institucionalizado na crise de 2008/2009 aprofundou as contradições


estruturais da ordem burguesa no plano mundial, principalmente no plano do orçamento
público. O estresse da crise financeira, o cenário de superprodução crônica e o debilitamento
orçamentário dos países capitalistas centrais, principalmente aqueles com maior proteção
social como a União Europeia, exigiu a adoção das políticas de austeridade neoliberal. Na
metade da década de 2010, tais políticas de ajuste neoliberal se aplicam hoje na borda
periférica do sistema do capitalismo global, com destaque para a América Latina sob nova
ofensiva neoliberal. Esta é a crise do neoliberalismo – não no sentido de seu debilitamento
como ideologia orgânica da ordem social do capital, mas no sentido da necessidade crucial de
sua afirmação política por meio da implementação de reformas do Estado – no sentido
ampliado – nos países capitalistas integrados à ordem mundial, tendo em vista as profundas
contradições da ordem neoliberal abertas pela via de escape da crise de 2008/2009.

No começo da década de 2010 tivemos a ofensiva neoliberal na União Europeia, território


histórico do mais avançado sistema de proteção social do mundo do trabalho (Welfare State) e
que sofre há décadas (1980-2010), um processo de dilapidação de direitos sociais, trabalhistas
e previdenciários – seja por governos de direita e de esquerda socialdemocrata. Na metade da
década de 2010, temos a nova ofensiva neoliberal na América Latina, principalmente Argentina
e Brasil, onde historicamente na década de 2000 constituíram-se experiências pós-neoliberais
e neodesenvolvimentistas, que rompiam, em maior ou menor proporção, com o modelo
neoliberal da década anterior. Foi a débacle social do modelo neoliberal na América Latina da
década de 1990 que permitiu a ascensão na década de 2000 de experiências progressistas que
hoje são derrotadas nas urnas (como a Argentina) ou por meio de “golpes brancos” (como no
Brasil).

A reação neoliberal a partir da crise de 2008/2009 representou, no caso europeu, a mera


imposição da política hegemônica neoliberal conduzida pelo Reich alemão com Angela
Merkel, visando preservar os interesses da fração rentista do capital enraizada no modelo
orgânico do projeto político (e geopolítico) da União Europeia, criada para garantir o
protagonismo das finanças franco-alemãs na Zona do Euro. No caso latino-americano, a reação
neoliberal da metade da década de 2010 representou, por um lado, a retomada do controle
hegemônico do Departamento de Estado norte-americano sobre sua área de influência
geopolítica historicamente delimitada desde fins do século XIX. Como dizem, a América Latina
é o quintal dos EUA. Com o reposicionamento econômico e geopolítico da China e da Rússia
no mercado global no começo da década de 2000, ocorreu um reordenamento geopolítico dos
blocos de poder do capital no plano mundial. De um lado, Estados Unidos e União Europeia
representando o modelo do capitalismo neoliberal; e, de outro lado, China e Rússia,
representando o capitalismo estatal. Enfim, disputas no interior da ordem burguesa global, que
colocou como tarefa crucial para os EUA, como condottiere do império neoliberal, retomar a
direção da política externa dos países latino-americanos que romperam com a subserviência a
Washington e se alinharam com o polo alternativo ao modelo de capitalismo neoliberal
dominante na década de 1990 na América do Sul. Para os EUA, diante do novo polo de disputa
geopolítica com China e Rússia; e da crise do capitalismo neoliberal, que impulsionou
processos econômicos, políticos e geopolíticos que ameaçam o poder do Dólar, tornou-se
tarefa geopolítica decisiva ocupar territórios de poder e dinheiro. Na verdade, a reação
neoliberal na América do Sul na primeira metade da década de 2010 significou tomar as rédeas

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de governos neodesenvolvimentistas – por eleições ou por golpes de Estado – aproveitando-se,
principalmente, das debilidades orgânicas de experiências progressistas que não conseguiram
nos últimos quinze anos, romper com o Estado neoliberal (o maior exemplo é o Brasil).

Pelo fato do Brasil ser o elo mais forte do imperialismo norte-americano na América do Sul, a
natureza da experiência progressista adotada por Lula e Dilma, experiência
neodesenvolvimentista que ousou articular-se no plano externo geopolítico com adversários
do modelo de capitalismo liberal hegemonizado por Washington – que discutiremos abaixo –
tinha como “calcanhar de Aquiles”, a sua incapacidade de refundar o Estado brasileira de
matriz oligárquica-neoliberal. Incapaz de derrotar pelo voto o projeto neodesenvolvimentista,
como correu na Argentina, Washington apoiou, subrepticiamente, um golpe de Estado de novo
tipo, ensaiado no Paraguai em 2012 – o dito “golpe político-jurídico-midiático”.

***

A discussão acima da processualidade critica da macroestrutura da economia global no século


XXI nos conduziu para além da economia. Mais do que nunca a economia adquiriu um caráter
político e cultural, o que explica a persistência do capitalismo neoliberal, apesar de sua crise
de hegemonia, e o acúmulo das crises financeiras parciais ocorridas desde 1987.

A macroestrutura da geopolítica global é caracterizada pela crise, afirmação e reafirmação da


hegemonia norte-americana num contexto de concorrência global e disputa entre blocos do
capital social total. Foi o que descrevemos acima. Podemos fazer um retrospecto histórico:
primeiro, a retomada hegemônica do Império sob a dominância neoliberal com Ronald
Reagan, a política do Dólar forte e o fim da URSS na década de 1980 e a virada para a década
de 1990. Foram anos de ascensão da ideologia neoliberal no mundo capitalista central
(Reagan-Thatcher). Depois, na década de 1990 e começo da década de 2000, a ameaça da
União Europeia em constituir-se como novo polo hegemônico de acumulação do capital com
sua moeda única, o Euro. Na verdade, com a dissolução da União Soviética, o que temos é a
disputa intrabloco do capital global num cenário de concorrência exacerbada no mercado
mundial. Depois da primeira crise financeira do capitalismo global em 1987, que afundou a
economia do Japão numa crise irrecuperável até hoje, e produziu uma recessão nos EUA na
virada para a década de 1990, o império neoliberal buscou reerguer-se com o governo Bill
Clinton (1993-2001). A débacle do Leste Europeu em 1989 e o fim da URSS em 1991 criam as
condições politicas para a expansão capitalista da primeira metade da década de 1990. O
Consenso de Washington (1989) e o movimento da globalização neoliberal na década de 1990
impulsionam a euforia de investimentos externos na borda periférica do capital.

O ideólogo da globalização Francis Fukuyama proclamou o “fim da história”. Entretanto, o


desenvolvimento do capitalismo global predominantemente financeirizado não seria perene.
A implementação do NAFTA (Tratado Norte-americano de Livre-Comércio) em 1994
encontrou reação no Movimento Zapatista que irrompeu sob a liderança do Comandante
Marcos. Em fins de 1994, a crise financeira do México sinalizou que ocorreria novas
turbulências financeiras e politicas nos próximos anos. A desregulamentação financeira
propiciou em 1997, dez anos depois da crise de 1987, uma nova crise – a crise financeira
asiática de 1997 – que explodiu na Tailândia, e como um rastilho de pólvora derrubou as
bolsas das Filipinas, Indonésia, Malásia, Coréia do Sul e Hong Kong; em 1998 ocorreu na
Rússia; e 1999, atingiu o Brasil. Logo a seguir, em 2000, estourou a bolha financeira da internet,
com a crise na bolsa da Nasdaq nos EUA. Entramos no século XXI com o movimento da
globalização neoliberal explicitando suas fragilidades orgânicas. Com o crescimento da
contestação popular à globalização do capital por meio de manifestações massivas na Europa
e EUA (por exemplo, nessa época, no Brasil tivemos a primeira edição do Fórum Social
Mundial em 2001 cujo lema era “Um outro mundo é possivel”). Foi na América Latina que
ocorreram as primeiras fraturas geopolíticas significativas no seio das áreas de influência do

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império neoliberal. O modelo neoliberal na América Latina demonstrou sua falência social e
política, manifestado pelos série de acontecimentos políticos inéditos de governos de esquerda
vitoriosos no seio da institucionalidade democrática: em 1998, Hugo Chávez é eleito na
Venezuela; Néstor Kirchner e Luis Inácio Lula da Silva em 2003; Evo Morales em 2006 e Rafael
Correa em 2007.

No começo do século XXI, no plano estratégico da concorrência intracapitalista no mercado


mundial, o poder do Dólar encontrou duas ameaças geopolíticas: primeiro, a adoção do Euro
como moeda única da União Europeia; e depois, o crescimento da China como nova potência
da economia mundial. Com a queda do Muro de Berlim e a implosão da URSS, o eixo franco-
alemão sob o comando de Helmut Kohl, artífice da integração alemã (1990), e François
Mitterand, aceleraram o processo politico da União Europeia, visando a implementação da
moeda única (o Euro), ocorrido em 1999. É claro que desde começos da década de 1990, os
EUA buscavam reorganizar sua área de influencia no Oriente Médio e Europa Ocidental por
meio da atuação da OTAN. Por exemplo, o Presidente George W. Bush pai tentou, com a
Guerra do Golfo (1990-1991), tentou derrubar o regime politico de Sadam Hussein, mas não
conseguiu. O Iraque era um país produtor de Petróleo, importante geopoliticamente e
independente dos EUA no xadrez político do Oriente Médio. O Presdiente Bill Clinton marcou
a presença norte-americana na crise dos Balcãs por meio da OTAN (Guerra da Bósnia, de
1992-1995; e Guerra do Kosovo, de 1998-1999), sinalizando o protagonismo geopolítico dos
EUA na resolução de conflitos étnico-politico na região dos Balcãs.

No começo da década de 2000, sob o governo de George W. Bush filho, o 11 de setembro de


2001 tornou-se pretexto magistral para a nova ofensiva imperialista visando derrubar regimes
políticos não-alinhados aos EUA nos eixos-chaves do Oriente Médio e Ásia Central – Iraque e
Afeganistão. As raízes do terrorismo islâmico se originaram no fundamentalismo sunita como
expressão da reação extrema à modernização capitalista imposta pelo Ocidente na figura da
cultura liberal norte-americana. Na verdade, o terrorismo islâmico nasceu das contradições
viscerais do movimento de expansão capitalista e reação cultural à proletarização das
populações árabes nas últimas décadas do século XX. Como o fascismo na década de 1930, o
terrorismo islâmico de expressão sunita nasceu das entranhas do desencantamento do mundo
provocado pelo movimento de expansão da modernidade liberal. Entretanto, o combate ao
terrorismo islâmico pelos EUA tornou-se um ardil para a defesa de seus interesses geopolíticos
na disputa estratégica no xadrez político no Oriente Médio e na Ásia. O pragmatismo da
política externa norte-americana é exemplar – ao mesmo tempo que combate o terrorismo
islâmico, os EUA apoiam a Arábia Saudita, um Estado muçulmano sunita que financia o terror
islâmico, sendo um dos maiores fornecedores de Petróleo para os EUA. A política externa de
Washington no Oriente Médio equilibra-se entre duas alianças geopolíticas estratégicas: o
regime despótico da Arábia Saudita e o regime sionista de Israel, polos antípodas que se
contrapõem hoje à aliança Irã-Russia.

A estratégia política de Washington no começo do século XXI implica em cercar politicamente


a União Europeia, enfraquecendo seu protagonismo monetário e econômico por meio das
politicas de austeridade neoliberal do FMI; e vinculando seu poderio politico-militar à OTAN,
duas tecnocracias globais sob hegemonia do império neoliberal. A defesa do Poder do Dólar
implicou enfraquecer o Euro e, ao mesmo tempo, evitar que a aliança Rússia-China se
configurasse num novo bloco global (o que ocorreu com a criação dos BRICS em 2011). A
crise financeira de 2008/2009 propiciou o movimento de insurreição popular na África do
Norte (Primavera Árabe), criando momento propicio para a rearticulação do poderio
hegemônico no Oriente Médio (boicote a Síria) e na Ásia Menor (crise da Ucrânia).
Aproveitando-se da inquietação social do proletariado árabe pobre, Washington buscou
ocupar posições geopolíticas importantes na construção de um novo eixo hegemônico para
posicionar-se diante do protagonismo da Rússia e China. A derruba do regime líbio de Muamar
Kadafii e a o golpe militar no Egito indicaram o avanço do cerco às posições adversárias no

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Norte da África e Oriente Médio. A Rússia reagiu à altura, bloqueando, com dissuasão militar,
a invasão da Síria pela OTAN; e anexando a Criméia, depois que a Ucrânia caiu nas mãos de
fascistas pró-Ocidente. O xadrez geopolítico tornou-se cada vez mais complexo diante das
contradições orgânicas do Poder do Dólar, fragilizado pela crescente dívida pública norte-
americana. A disputa pelo território geopolítico da América Latina tornou-se decisivo para o
Departamento de Estado norte-americano após a crise de 2008/2009, embora desde 2001, a
CIA tenha atuado para desestabilizar o governo Chávez na Venezuela (as escutas secretas da
NSA, Agência de Segurança Nacional dos EUA, denunciadas pelo WikiLeaks, no governo
Dilma, produziriam materiais que alimentariam a Operação Lava-Jata. Depois do marco
regulatório do Pré-sal em 2010, o alvo-chave tornou-se a Petrobrás, onde a Inteligência norte-
americana descobriu um esquema de corrupção). Portanto, a América Latina na década de
2000 tornou-se, com as novas experiências neodesenvolvimentistas e pós-neoliberais área
problemática para os interesses norte-americano, principalmente quando começou a articular-
se os BRICS em 2011. O projeto “Aliança do Pacífico” visou confrontar o projeto do Cone Sul
ou Mercosul, articulado pelo Brasil e Argentina. A articulação dos BRICs visou criar novos fatos
de ofensiva contra o poder do dólar. Por isso, após a crise financeira de 2008/2009,
Washington aproveitou a inquietação social devido a crise mundial para reconstituir seu bloco
hegemônico, tanto na América latina, Norte da África, Oriente Médio e Ásia Menor. A criação
da “Aliança do Pacífico” em 2012 visava integrar comercialmente América do Sul e Sudeste
Asiático à América do Norte, disputando a influência comercial e política da China no Sudeste
Asiático. A disputa pelo Pacifico é a disputa estratégica do século XXI.

Ao lado da macroeconomia estrutural da economia global e nova geopolítica do imperialismo,


temos desde a década de 1980, um processo histórico-estrutural de mudanças orgânicas no
sistema-mundo do capital, principalmente nos países capitalistas mais desenvolvidos, com o
surgimento do novo sociometabolismo do capital, tanto na instância da produção, com os
novos métodos de organização e gestão toyotista acoplada às novas tecnologias informacionais
e a nova morfologia da classe; quanto na instância da política (deterioração da democracia
representativa capturada pelos interesses das finanças , crise das ideologias políticas de
esquerda socialista e dos partidos operários e trabalhistas socialistas e comunistas) e na
instância da cultura (pós-modernismo no pensamento e estética da mercadoria, consumo e
lazer). O sociometabolismo da barbárie representou uma mutação orgânica da ordem burguesa
global conduzida pelo capital financeiro de profundidade inaudita (o que explica o
enraizamento do novo ethos pós-moderno no modo de vida social intergrado pela sociedade
em rede). Na verdade, mudanças orgânicas na produção, politica e cultura são mutações
radicais do metabolismo social que representam uma verdadeira revolução cultural de largas
proporções, alterando não apenas a morfologia social, mas o sociometabolismo das sociedades
burguesas. Alterou-se o registro cultural (e politico-ideológico) da luta de classes. Temos
mudanças geracionais a partir de 1980 que explicam o novo ethos das novas camadas sociais
da classe trabalhadora imersa na “modernidade líquida” (Bauman), contrastando-se
incisivamente com as gerações anteriores. O precariado que cresce na década de 1990
incorporou um ethos neoliberal, o que explica a dificuldade de organizar-se coletivamente –
corroborado é claro pela nova morfologia social do trabalho e a fragmentação política da classe
por conta da ofensiva ideológica do capital. A nova geração de proletários do século XXI
presencia a nova precariedade salarial, não como experiência de precarização do trabalho, tal
como as velhas gerações, mas como experiência complexa (e contraditória) de proletariedade
pós-moderna, caracterizada, por um lado, pelo anseio e ambição de realização salarial e
profissional; e por outro lado, pela frustração e ansiedade diante do novo quadro de
precariedade contratual e novo modo de exploração da força de trabalho e trabalho vivo
(gestão toyotista acoplada as novas tecnologias informacionais). O traço fundamental da
superexploração da força de trabalho e espoliação do trabalho vivo no século XXI é a nova
pressão laboral, cujo traço dominante é o assédio moral organizacional. Esse espírito do
toyotismo que organiza a nova precariedade salarial, atingiu não apenas a indústria, comércio

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e os serviços, mas também a administração pública, tendo impactos nefastos e candentes na
saúde dos trabalhadores.

Foi a radicalidade do novo metabolismo social do capital na era do capitalismo neoliberal que
fez Dardot e Laval afirmar no livro A nova razão do mundo (Boitempo, 2016) sobre os limites
do marxismo. Disseram eles:

“[…] não podemos nos contentar com as lições de Karl Marx, nem de Rosa Luxemburgo, para
desvelar o segredo dessa estranha faculdade do neoliberalismo de se estender por toda a parte,
apesar de suas crises e das revoltas que suscita em todo o mundo. Por razões teóricas básicas,
a interpretação marxista, por mais atual que seja, revela-se de uma insuficiência gritante nesse
caso. O neoliberalismo emprega técnicas de poder inéditas sobre as condutas e as
subjetividades. Ele não pode ser reduzido à expansão espontânea da esfera mercantil e do
campo de acumulação do capital” [o grifo é nosso].

Dardot e Laval se referem a um certo marxismo politicista e economicista que vigorou n século
XX, e que hoje, torna-se incapaz de apreender as dimensões profundas da dominação
sociometabólica do capital. Ao invés dos limites do marxismo, temos no século XXI a
necessidade de desenvolver as profundas intuições teóricas do marxismo ontológico
representado no pensamento radical do último Lukács e István Mészáros com um fecundo
diálogo com a psicanálise e a psicologia histórico-critica.

2. A década de 2010: a reação do império neoliberal

Depois do crack financeiro nos EUA em 2008/2009, o capitalismo neoliberal entrou numa
profunda crise que persistiu e persiste no decorrer da década de 2010. A recessão nas
economias da União Europeia e do Japão, além do baixo crescimento do PIB norte-americano,
demonstraram a inversão da conjuntura da economia global. Logo os países capitalistas
emergentes seriam atingidos pela profunda desaceleração da economia mundial. Países
capitalistas como Brasil, Argentina e Venezuela, por exemplo, tiveram na década de 2000, um
ciclo de expansão ou choque de capitalismo vinculados ao crescimento da economia chinesa
e ao boom do preço das commodities. Foram os anos dourados do neodesenvolvimentismo e
constituição do movimento de articulação de países capitalistas não-alinhados com o Império
Neoliberal (os BRICs).

Entretanto, ocorreu em 2008/2009 o crash financeiro e, na primeira metade da década de


2010, o movimento da conjuntura da economia global se inverteu, não apenas com a recessão
ou crescimento rastejante no núcleo dinâmico da economia capitalista central (União
Europeia, EUA e Japão), mas com a brusca desaceleração da China e o choque
das commodities, a queda brutal do preço das commodities, principalmente o petróleo,
atingindo os países dependentes da exportação de produtos primários, com destaque para
Rússia e Venezuela, mas também o Brasil. A crise da economia capitalista na borda periférica
do sistema mundial tornou propício o movimento de reação política do Império neoliberal e a
reorganização geopolítica no Norte da África, Oriente Médio e América Latina de acordo com
os interesses de Washington (Primavera Árabe, Líbia, Síria, Ucrânia, Honduras e Paraguai).
Tornou-se intensa a manipulação midiática visando implementar a nova ofensiva política do
Império Neoliberal aproveitando-se, deste modo, da instabilidade da economia capitalista.

Na virada para a década de 2010, a crise das economias latino-americanas lastreadas


nas commodities tornou-se aliada da política reacionária das oligarquias locais de direita
vinculadas aos interesses geopolíticos do Departamento de Estado norte-americano. Foi na
América Latina que tivemos uma importante frente de combate geopolítico levado a cabo pelo
Império Neoliberal. Na medida em que fracassaram as tentativas golpistas de derrubar o regime
chavista na Venezuela na década de 2000, buscou-se implementar na década de 2010 uma

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nova estratégia de derrubada de governos neodesenvolvimentistas ou pós-neoliberais não-
alinhados com Washington. Apostou-se numa estratégia de desestabilização contínua nos
marcos da institucionalidade democrática e com apoio dos Tribunais Constitucionais. A
experiência do “golpe branco” ocorrido no Paraguai em 2012 serviu de laboratórios políticos
para se derrubar governos mantendo-se a aparência de legalidade democrática. Essa estratégia
de subversão hegemônica (o “golpe branco”) seria utilizado no Brasil em 2016. No caso da
Argentina não foi preciso a estratégia do “golpe branco”, pois o desgaste do kircherismo e a
fragmentação das forças progressistas e de esquerda, propiciaram, em 2015, a vitória eleitoral
da Direita. Entretanto, no caso do Brasil, a estratégia da derrubada do governo petista fracassou
pelo voto em 2014. Por isso, de imediato, optou-se pela estratégia do “golpe branco”,
utilizando-se para isso, de um mecanismo complexo de desestabilização contínua explorando-
se o cenário de crise da economia, inflação e noticiário constante de acusação de corrupção
do PT e do governo. Desde 2013, a inquietação social das camadas médias demonstradas nas
jornadas de junho – similar às ocorridas no Norte da África e Ucrânia – tornaram-se caldo de
manipulação dos agentes ideológicos da direita organizada. A insatisfação social possuiu um
lastro verdadeiro – indicava os limites do neodesenvolvimentismo que conseguiu atender as
demandas dos pobres mas não conseguiu atender as demandas das camadas médias
assalariadas (transporte público, saúde e educação pública de qualidade, etc). Entretanto, a
direita organizada aproveitou-se da matéria social manipulada para dar inicio a uma nova
escalada da ofensiva reacionária no Brasil. Primeiro, apostou-se no desgaste do governo Dilma
para as eleições de 2014. Antes das eleições, as jornadas de julho de 2013 foram manipuladas
midiaticamente pela pauta da Direita, dando um componente massivo à desestabilização do
governo Dilma, predominantemente das camadas médias organizadas em movimentos sociais
de direita financiados pelo partido da oposição com ampla cobertura da mídia hegemônica.
Entretanto, como dizemos, a inesperada derrota da direita nas eleições presidenciais de 2014
demonstrou que se precisava utilizar nova estratégia de derrubada do governo
neodesenvolvimentista. Como não conseguiram derrota-la pelo voto popular, colocou-se a
necessidade de derruba-la pelo “golpe branco”. Era preciso articular a operação Lava-Jato,
PGR, PF, Congresso Nacional adicionando-se a isso, a forças de ofensiva da direita
acantonadas no STF e Mídia hegemônica. Na verdade, do Mensalão à Operação Lava-Jato
incrementou-se o poder de fogo da direita neoliberal.

É claro que 2014, o ano da Copa do Mundo, seria o ano da virada reacionária no Brasil. A
derrota para a Alemanha por 7×1 tornou-se a metáfora da tragédia farsesca no Brasil. Dilma
ganhou no voto popular. Entretanto, o mesmo voto popular que a elegeu com 54 milhões de
voto, elegeu uma das mais conservadoras bancadas parlamentares da história da República
brasileira. As forças de direita oligárquica, financiadas pelas forças ocultas da oligarquia
financeira-industrial, apostaram na construção do elo fundamental para o golpe branco: a
maioria política no Congresso Nacional, tendo como articular-mor um parlamento corrupto e
habilidoso – Eduardo Cunha, do PMDB. O controle do Congresso Nacional, o deslocamento
politico do PMDB, implodindo a base governista, a Operação Lava-Jato, compuseram a cena
para o andamento do impeachment sem fundamento jurídico – a conivência do Judiciário
neutralizou a contestação jurídica (o espírito historicamente conservador da Corte
Constitucional, o ethos de “classe média” e os interesses econômico da corporação
sedimentaram o apoio à estratégia do golpe branco).

Portanto, seja pelo voto (Argentina) ou pelo golpe branco (Paraguai, Honduras e Brasil), tivemos
na década de 2010 a derrubada de experiências pós-neoliberais como recuperação de posições
perdidas no xadrez geopolítico no começo da década de 2000. Como vimos, presenciamos
um movimento geopolítico que se compõe com o cenário de reordenação geopolítica do
Império neoliberal pós-crise financeira de 2008/2009. O que está em jogo é a preservação do
poder do Dólar. A América Latina é área estratégica dos EUA. Num cenário de fragilizado do
poder do Dólar, construir os BRICs e adotar políticas anti-americanas constituiu uma flagrante
ousadia para os governos neodesenvolvimentistas e governos pós-neoliberais. Além disso, o

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enfrentamento com a nova geopolítica imperial na virada para a década de 2010 deu-se com
uma base hegemônica social frágil dos governos progressistas não-alinhados à Washington,
principalmente no caso do Brasil. A ilusão da concertação social do lulismo impediu o núcleo
tático da política petista de ver o que ocorria no mundo global após 2008/2009: no plano
externo, a disputa geopolítica pelo modo de desenvolvimento do capitalismo global e, no plano
interno, o acirramento das contradições não-antagônicas entre frações burguesas em disputa
pelo fundo público.

Deste modo, a recuperação das posições hegemônicas de Washington na América Latina


significou o movimento de adoção, retomada e aprofundamento da reação neoliberal
verificado na década de 1990 no Brasil. Enquanto em 1990, com os governos Collor, Itamar e
FHC tivemos uma ofensiva neoliberal num sistema do capital predominantemente
financeirizado em ascensão, hoje temos uma reação neoliberal num sistema em decadência
incapaz de comprometer-se com a modernização, mesmo que conservadora (o que pode ter
implicações no plano da institucionalidade política, na medida em que, não podendo
sustentar-se pelo voto, a democracia tal como nós a conhecemos, pode ser abolida). O balanço
de dez anos de lulismo mostrou que o Brasil aceitou a lógica do novo sociometabolismo do
capital. Em dez anos de neodesenvolvimentismo, adequou-se à nova dinâmica do capitalismo
global, não construindo forças sociais, politicas e ideológicas capazes de fazer o enfrentamento
necessário à inércia oligárquica contida no Estado neoliberal no interior da qual o governo
brasileiro operava. Os limites do neodesenvlvimentismo eram cruciais – não apenas na
construção politica de governo de coalização que não era portador do Poder, embora se
utilizasse de parte dele, acomodando-se na jogo da institucionalidade politica oligárquica
herdada pelos governos burgueses anteriores. Os governos neodesenvolvimnetistas foram
ousados na política externa, mas cometeram erros crassos na politica industrial, mantendo, por
exemplo, o cambio apreciado e prejudicando a indústria brasileira, ficando, deste modo, a
economia brasileira dependente das commodities. No cenário de desaceleração da economia
por conta da crise global, provocando queda da arrecadação fiscal, a implementação e
ampliação de Programas de Assistência Social sem uma verdadeira Reforma Tributária, a
adoção da politica da taxa de juros altos para combater uma inflação de oferta e a manutenção
do pagamento e serviços da divida pública, contribuíram para acirrar o conflito distributivo
que assumiu a dimensão da luta de classes e a implosão do lulismo como estratégia de
governabilidade.

A fratura da frente política do neodesenvolvimentismo, iniciada em 2013, deu origem a uma


nova composição política no Congresso Nacional que inviabilizou o governo eleito em 2014,
reaglutinando o bloco de poder burguês, fraturado pelo lulismo desde 2002 (PMDB-PSDB). A
retomada hegemônica do bloco de poder oligárquico sob a direção do capital financeiro em
2016 com o governo Temer, não deixa de ser problemática, tendo em vista a aliança frágil da
direita fisiológica e mafiosa com a direita neoliberal e ideológica. Apesar do “golpe branco”
no Brasil ter sido urdida com habilidade sinistra, visando desestabilizar um governo inepto e
fraco, o governo Temer é um verdadeiro Frankenstein político. Um ponto crucial é saber se o
governo reacionário de Temer conseguirá sobreviver tendo em vista os indícios de “golpe
dentro do golpe”. E outro desafio é saber se a direita brasileira conseguirá reaglutinar como
classe-apoio, o subproletariado visando as eleições de 2018.

O governo Temer como governo ilegítimo adquiriu em 2016 o caráter de governo de


transição com uma missão suprema: reestruturar o capitalismo brasileiro de acordo com a
agenda neoliberal dando-lhe novo fôlego na América Latina para o Projeto hegemônico dos
EUA. Estamos no plano da especulação política – talvez, o governo Temer, como o governo
Collor, seja incapaz politicamente de fazer as novas reformas neoliberais que Washington
considera relevantes (o que coloca, mais uma vez, a perspectiva do golpe dentro do golpe). Na
verdade, enquanto no plano externo, a disputa geopolítica se coloca pela preservação do poder
do Dólar e a hegemonia do modelo neoliberal de desenvolvimento capitalista, no plano

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interno, a disputa crucial no capitalismo brasileiro é a luta pelo orçamento público e, ao
mesmo tempo, o aprofundamento do Estado neoliberal no Brasil que nos últimos 15 anos de
governos neodesenvolvimentistas permaneceu intacto.

A disputa pelo fundo público tornou-se crucial tendo em vista a crise do capitalismo neoliberal
desde 2008/2009. No Brasil, temos uma ruptura histórica similar não a 1964, mas a 1930.
Assistimos a um novo ciclo político que rompe com aquele criado pela Constituição-Cidadã
de 1988, síntese do acumulação de lutas sociais na década de 1980, que se exauriu; e da
transição negociada à democracia (com os Militares), que precisava ser enquadrada nos termos
oligárquicos. Permanecemos no interior da persistência da ordem simbólica da ditadura civil-
militar instaurado em 1964 que elevou num patamar superior o caráter oligárquico do Estado
brasileiro ao mesmo tempo que o modernizou. Tal como o PT, a parte social da Constituição
de 1988 foi uma pedra no caminho da transição conservadora para um capitalismo oligárquico.
Mesmo com a degradação política do PT, a modernização conservadora do lulismo possuía
um sinal exótico: o combate à desigualdade social e programas sociais que exigiam mais da
capacidade fiscal do Estado. Com a crise de 2008/2009, o esgotamento da capacidade fiscal
do Estado brasileiro devido à queda do crescimento do PIB no contexto de crise do capitalismo
neoliberal na década de 2010, as renúncias fiscais e a estrutura tributário enrijecida pelos
interesses oligárquicas, a hegemonia rentista e o garrote da dívida pública, elevaram as
contradições de reprodução oligárquico no seio do Estado neoliberal a um patamar superior.
No Brasil, tal como na União Europeia, o modelo social apregoado pela socialdemocracia
como exemplo da concertação social entre capital e trabalho, tornou-se politicamente inviável
tendo em vista a explicitação da crise do neoliberalismo e a dominância orçamentária pelo
interesses do capital financeiro.

Num país como o Brasil, um dos pais capitalistas mais desiguais e socialmente injustos do
mundo, a adoção do receituários neoliberal hegemônico na União Europeia, contestado por
economistas do FMI como indutor de desigualdades sociais, não é apenas um ato supremo de
dominância da classe burguesa senhorial brasileira de cariz colonial-escravista hoje
predominantemente rentista-parasitária, mas um crime de lesa humanidade contra o mundo
do trabalho e a população pobre do País. Mantendo-se as regras do jogo democrático, a
dominância rentista não deve se sustentar politicamente. Por isso, o que se pode vislumbrar na
ultima metade da década de 2010, após o golpe branco de 2016, é uma nova operação
ideológica – tão complexa quanto o golpe branco – para que o Estado democrático de direito
no Brasil seja substituído por um Estado de exceção seletivo e perpétuo, capaz de manter na
aparência os ritos democráticos e adotar procedimentos de exceção contra a insurgência social.
A blindagem do Estado brasileiro contra governos de esquerda – a “mexicanizacao” do Brasil
– deve contar com a reforma do sistema político e a manutenção do Poder Judiciário
oligárquico, ao mesmo tempo que se reforça o controle policial-militar da insurgência social e
os aparelhos de manipulação midiática. A missão histórica é extinguir politicamente o PT como
trincheira das lutas populares (o que o próprio PT já fez por si próprio); e abolir a parte social
da Constituição de 1988. Deste modo renasceu no Brasil, a velha ditadura civil-militar sob
nova roupagem do Estado democrático de exceção seletiva no alvorecer do século XXI.

***

PARA APROFUNDAR A REFLEXÃO, 5 DICAS DE LEITURA DA BOITEMPO:

A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, por Christian Laval e Pierre
Dardot
Brasil delivery: servidão financeira e estado de emergência econômico, por Leda Paulani
A crise do neoliberalismo, por Dominique Lévy e Gérard Duménil
A crise estrutural do capital, por István Mészáros
O império do capital, de Ellen Wood

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***

Trabalho e subjetividade (Boitempo, 2011), de Giovanni Alves, já está à venda também em


formato eletrônico (ebook) nas lojas da Gato Sabido e Livraria Cultura. O autor conta com um
artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, à venda em ebook
por apenas R$5 na Gato Sabido, Livraria da Travessa, dentre outras. Giovanni Alves conta
também com o artigo “Trabalhadores precários: o exemplo emblemático de Portugal”, escrito
com Dora Fonseca, publicado no Dossiê “Nova era da precarização do trabalho?” da
revista Margem Esquerda 18, já à venda em ebook na Gato Sabido.

***

Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e


professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em
pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica e outros
núcleos de pesquisa reunidos em seu site giovannialves.org. É autor de vários livros e artigos
sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho:
reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e
subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial,
2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

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