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Vida divertida ou vida interessante?

Contardo Calligaris

12/12/2002
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1212200221.htm

Uma reportagem do "New York Times" (3 de dezembro) descrevia uma nova moda
nos colégios americanos, graças à qual o ensino de ciência está se tornando
curiosamente popular.
Nos EUA, os requisitos mínimos para o diploma secundário são bastante livres. Há
tempos, para quem não gosta de estudar química, física ou biologia, existem
matérias alternativas, como a "ciência da terra" ou a ecologia. Agora é a vez da
"ciência forense", idealizadíssima pelos seriados televisivos, pelo cinema e pelos
romances policiais. Assim, em vez de estudar leis e fórmulas, os alunos aprendem
como determinar a hora da morte considerando o estado de um cadáver (aulas
práticas no necrotério). Familiarizam-se com o microscópio examinando pêlos de
possíveis estupradores encontrados no corpo da vítima. Entendem o que são o
esperma ou o sangue investigando uma hipotética cena do crime.
Nas escolas em que os cursos são oferecidos, os jovens são entusiastas. Por que
bancar o estraga-prazeres?
O fato é que a reportagem me deixou um mal-estar. Fiquei com a impressão de que
a química, a física e a biologia estivessem desistindo de ter qualquer apelo próprio.
As formas estabelecidas da diversão (sobretudo a televisão e o cinema) decidiriam
como e o que podemos aprender. Filosofia, história e inglês (português, no nosso
caso) seriam vítimas do mesmo processo.
Lembrei-me de conversas recentes com um jovem estudante universitário que (com
grande angústia dele e dos pais) quer largar os estudos ao menos temporariamente.
Ele queixava-se de que todos os cursos seriam chatos. "Como assim, chatos?",
perguntei. "Não são divertidos", respondeu. Estranhei: quem disse que um curso
deve divertir?
Existem ao menos duas antíteses de chato: interessante ou divertido. E elas não se
equivalem. O divertido nos afasta e nos distrai. O interessante nos envolve e nos
engaja. Enquanto os alunos olham para um passarinho que os diverte, posso lhes
enfiar uma colherada de ciência na boca. Mas preferiria interessá-los na própria
ciência.
Cuidado: não defendo o valor do trabalho duro. Aliás, suspeito que o ideal do "homo
faber" seja uma versão laica do moto monacal "reza e labora". E, se não tiver para
quem rezar, contente-se em laborar. Deve ter sido promovido, no começo do
capitalismo, pelo dono de uma tecelagem inglesa que queria justificar a "nobreza"
da semana de 80 horas e do trabalho infantil.
Mas fui adolescente nos anos 60, a década do triunfo da intimidade e da idéia de que
a verdade que importa é sempre subjetiva. Consequência: para mim (como para
muitos de minha geração), o mundo é sempre interessante com a condição de que a
gente se engaje nele. É alienado quem, vítima de poderes escusos ou de fraquezas
morais, foge desse engajamento.
A partir dos anos 90, encontro adolescentes para quem o mundo parece tolerável
apenas se puderem distrair-se dele. E os vizinhos são frequentáveis à condição de
não se comprometer com eles. O que era alienação nos anos 60 tornou-se escolha de
vida nos 90.
O próprio uso das drogas mudou. Nos anos 60, a maconha e os alucinógenos eram
concebidos como auxílios para descer "mais fundo" no autoconhecimento ou numa
pretensa comunhão mística com o mundo. Imaginávamos que drogar-se fosse uma
viagem iniciática, interior ou para a Índia. O ecstasy dos anos 90, ao contrário,
promete um paroxismo de distração. Serve para clube e música tecno: não fale nada
e sacuda-se forte.
Ora, criticar os jovens é quase sempre uma hipocrisia. Pois, em regra, o que eles
"aprontam" é apenas a realização de um desejo dos pais. Melhor, eles realizam o que
conseguem entender ou imaginar das aspirações inconscientes dos adultos.
Portanto, se a escolha da distração é deles, o desejo de distração deve ser um po uco
nosso. Posso achar surpreendente que meu jovem interlocutor exija cursos
divertidos. Mas devo reconhecer que ele vive num mundo em que há pedagogos que
acham certo vestir-se de Sherlock Holmes para ensinar química. Em suma, foram os
adultos que, do ideal da vida interessada e engajada, passaram para o ideal da vida
divertida. Os jovens perceberam.
Na sala de espera de meu dentista, folheio a "Caras". Entendo que muitos gostem de
contemplar os ricos e famosos em suas mansões e festas. Os cínicos dizem qu e é
saudável: a inveja estimularia a mobilidade social. Não vou discutir agora. Mas
constato e lamento que, inelutavelmente, os retratados sejam deformados por um
sorriso idiota. A imagem da felicidade proposta se confunde com um ricto que não é
justificado pelas circunstâncias, mas vale como uma declaração: olhem para nós,
estamos alhures, esquecidos do mundo e de nós mesmos, nos divertindo.
Em 1938, Huizinga publicou "Homo Ludens", o homem que joga, para mostrar que
o jogar é uma dimensão essencial da atividade humana. Estranha premonição, ele
previa que, no futuro, uma cultura da puerilidade impediria adultos e crianças de
continuar jogando do único jeito interessante, ou seja, com seriedade.

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