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Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder

Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008

Eu não sou de Vênus: uma análise do sexismo em livros de auto-ajuda

Patricia Nardelli P. Santana (Universidade de Brasília)


Feminismo; Ciência; Auto-ajuda
ST 47 - Convenções sociais, marcadores de diferença e biotecnologias: entre permanências,
transformações e debates ético-políticos

Para este trabalho foram analisados três livros de auto ajuda, a saber, “Homem cobra, mulher
polvo”, de Içami Tiba.; “Homens são de marte, mulheres são de vênus”, de John Gray e “Por que os
homens fazem sexo e as mulheres fazem amor?”, de Allan e Barbara Pease.
A relação entre livros de auto-ajuda, manuais, gênero e relacionamentos não é nova. Susan
Faludi, no seu livro, Backlash, (1991:2001)¹ dedica algumas páginas à psicologia popular e seus efeitos
durante os anos 80 nos Estados Unidos. Em sua breve exposição, a autora nos mostra, entre outras
coisas, que a preocupação desses autores com suas publicações não é a mudança, mas sim a promoção
de uma aceitação, por parte das mulheres, do padrão de feminilidade que lhes é socialmente imposto. E
o que podemos falar das atitudes que fazem de uma mulher, uma mulher? Uma breve olhada nos livros
escolhidos para esse trabalho pode nos ajudar a perceber que a mulher é aqui vista como a cuidadora
por excelência, com a capacidade de administrar as relações que se constroem entre ela, o homem, os
filhos, a empregada doméstica e o lar, no sentido de ambiente. A idéia de que as mulheres comandam
pela passividade não é nova, é algo que vem sendo colocado pelos manuais de relacionamento há muito
tempo, a idéia de que ‘bater de frente’ com o homem e portar-se de forma a exigir mudanças não levará
a lugar nenhum, pelo contrário, a mulher deve calar para exercer sua influência
O que esses livros apresentam é uma suposta positividade da diferença, que se manifesta na
possibilidade da complementaridade. Não é difícil notar aí um discurso que incentiva acima de tudo a
relação monogâmica e heterossexual e propõe uma cristalização dos papeis de gênero, uma vez que a
felicidade conjugal só pode ser encontrada quando mulheres e homens aceitam as diferenças existentes
entre seus sexos/gêneros. O problema da cristalização da diferença, é o problema do sexismo:

O sexismo corresponde à presença de comportamento ou atitudes de discriminação ou


de tratamento diferenciado, indigno ou de menosprezo a uma determinada condição
de gênero, ou ainda a determinada identidade sexual, que no geral, se refere mais
drasticamente, em relação à mulher. Há duas assunções diferentes sobre as quais pode
assentar-se a categoria de sexismo: a) considerar que um sexo é valorizado de forma
superior em relação ao outro sexo; b) considerar que a mulher e o homem são
profundamente diferentes (para além das diferenças biológicas, mas nas dimensões
culturais), e que essas diferenças devem se refletir em aspectos sociais como a

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linguagem e o Direito, nas instituições, como o acesso a certos postos/cargos de poder
e comando; nas manifestações culturais e religiosas, etc [...]” (Bandeira, 2006. Grifos
da autora)²

O sexismo é a característica por excelência dos manuais de relacionamento heteroafetivo. “Por


que os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor?” é o livro onde a diferença é mais diretamente
atribuída a características fisiológicas e a um possível passado histórico da humanidade, diferentemente
dos outros dois livros, que assumem essa postura sem deixá-la explícita, preferindo não falar sobre as
causas das diferenças. Interessante notar que os autores colocam que: “a partir do final dos 80 houve
uma explosão de pesquisas sobre as diferenças entre homens e mulheres e sobre o modo como seus
cérebros funcionam” (PEASE, 2000:12)3
Período identificado por Faludi (1991:2001)1 como de backlash, a saber: “A verdade é que os
anos 80 presenciaram um poderoso contra-ataque aos direitos da mulher, levando a um retrocesso, a
uma tentativa de reduzir um punhado de pequenas e sofridas vitórias que o movimento feminista a
custo conseguiu. [...] O backlash é ao mesmo tempo requintado e banal, decepcionantemente
‘progressista e orgulhosamente retrógrado. Ostenta as ‘novas’ descobertas da ‘pesquisa científica’[...]”
(FALUDI, 1991, p. 17)1
É dessa forma que considero, neste trabalho, que os manuais de auto-ajuda desse tipo podem ser
nocivos, no sentido de que estão advogando em favor de uma perspectiva sexista. A afirmação que se
encontra por trás do discurso da falta de referenciais para que homens e mulheres compreendam a
diferença, é o discurso do backlash, de que houve a destruição da unidade familiar do casamento
harmônico, destruição essa que se dá no momento em que mulheres começam a conquistar espaço no
mercado de trabalho. Tal afirmação encontra-se permeada pelo que denominei discurso da média: o
discurso sobre um tipo médio de homem e de mulher nos relacionamentos afetivos reforça a idéia de
uma natureza genérica de homens e mulheres e de sua congruência com a adequação destes tipos com a
modernidade. Refere-se ao mesmo tempo a uma natureza dada biológica e psicológica pensada como
permanente, enquanto situa e permite a identificação com homens e mulheres modernos, em todas as
classes sociais e em nos mais distintos contextos nacionais.
Talvez a chave para a compreensão de porque os manuais são propostos enquanto tão
abrangentes possa ser encontrada justamente na noção de patriarcado, que aponta similitudes na relação
social entre os gêneros tais como construídas culturalmente. Mas a noção de patriarcado deve ser agora
entendida não mais no sentido abrangente weberiano, mas no sentido de um patriarcado moderno e

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contemporâneo, permeado pela contradição entre a institucionalização da idéia de igualdade de gênero
e um contrato diferencial de partcipação diferenciada nos espaços privado e público.
Giddens em A transformação da intimidade (1992:1993)4, aponta as transformações na maneira
como os relacionamentos foram e são encarados por ambos os gêneros, de modo que as garotas
antigamente tinham como atitude definidora de sua reputação a capacidade de resistir aos avanços
sexuais masculinos, e posteriormente, passa a haver o reconhecimento da finitude dos compromissos,
bem como o desejo (e a possibilidade de concretizá-lo) do envolvimento sexual. Por outro lado, os
garotos não tiveram sua percepção tão radicalmente alterada, de modo que antes dependiam da
realização de conquistas sexuais para manter sua reputação, e posteriormente não aceitam bem a
igualdade entre os gêneros dentro de uma relação.
O ponto principal aqui, é que as mudanças na intimidade foram muito mais sentidas pelas
mulheres do que pelos homens. Acontece que os homens, enquanto tendo tido seu desenvolvimento na
esfera pública, foram excluídos da transformação da intimidade. Ao passo que as mulheres
desenvolveram-se no terreno da intimidade. É aí que reside, na minha opinião, a importância social dos
manuais de relacionamento, na tentativa de reestruturar os papéis para afastar os problemas conjugais
que os homens vêm enfrentando por medo da intimidade e as mulheres por resistência de seus parceiros
a sua inserção na esfera pública. Quero com isso, atentar para o fato de que considero que os manuais
de auto-ajuda oferecem uma solução para o problema do medo da intimidade, outras abordagens, como
a de Giddens, por exemplo, sugerem soluções muito distintas. Retomando a fala de Susan Faludi
(1991:2001)¹ a respeito de como o backlash é, simultaneamente, inovador e retrógrado, pode-se
compreender que os manuais, na modernidade, são uma forma de pensamento néo-conservador, que em
nome da modernidade propõem receitas e ideais arcaicos que cristalizam os estereótipos de gênero.
Esses livros evocam um passado ideal onde homens e mulheres conviviam harmoniosamente,
isso se dá através da evocação da horda primordial, o famoso tempo das cavernas, onde homens eram
caçadores e mulheres ficavam com o grupo, de modo que não havia confusão entre as funções. Dessa
forma gerou-se a especialização dos organismos de homens e mulheres de modo que esses passam a ser
biologicamente diferentes. O pontapé inicial para a diferença de comportamento é aqui o nascimento,
de modo que os hormônios e o cérebro já determinam grande parte do modo de agir de homens e
mulheres desde antes do nascimento. A ciência em cujas afirmações dos livros são embasadas é
majoritariamente oriunda da psicologia evolucionista, embora faça uso de conhecimentos advindos da
genética behaviorista e da neuroendocrinologia.

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É de suma importância atentar para que evolução é essa sobre a qual se fala na psicologia
evolucionista e em suas divulgações midiáticas. Os artigos científicos freqüentemente se referem às
novas descobertas científicas que mostram como homens e mulheres enfrentaram problemas evolutivos
diferentes, em especial com relação ao fato de serem as mulheres a gestar e parir, entre elas os
‘hunther/gathering studies’. Eles são primordialmente citados dessa forma, sem que seja necessário
falar mais nada sobre eles, somente que seu avanço comprova que homens e mulheres enfrentaram
problemas evolutivos diferentes. Problemas evolutivos tais como a idéia de que as mulheres investem
mais tempo e energia na reprodução do que os homens, de modo que precisariam ser seletivas (leia-se
buscar o melhor provedor); ao passo que os homens adotariam a estratégia de manter relações com
muitas mulheres, uma vez que assim, a chance de conseguir repassar os genes, seria maior. Isso
explicaria o fato, para eles, das mulheres procurarem homens bem sucedidos, (ricos, poderosos,
conseqüentemente mais velhos), uma vez que é isso o que garante a um homem, no mundo atual, o
status de um bom provedor; e dos homens buscarem mulheres mais jovens e belas, uma vez que estes
seriam indícios de fertilidade (embora não se saiba, cientificamente, qual a relação que lábios carnudos
e cabelos volumosos têm com a fertilidade). Tais problemas evolutivos diferentes foram responsáveis
até mesmo pelo tipo de visão que homens e mulheres possuem e que são, obviamente diferentes.
Embora se encontre, nos artigos científicos da psicologia evolucionista, a idéia de que homens e
mulheres diferem somente em algumas poucas coisas, a real impressão é de um tipo de evolução
paralela ocorrendo na espécie, focada nas diferenças de sexo/gênero, mas especialmente, na capacidade
de gestação. Cabe atentar aqui para as possibilidades que estas ciências representam para a legitimação
de determinados comportamentos sociais, como por exemplo, o sucesso da indústria pornográfica entre
homens.
A metáfora aqui é a do cérebro-máquina que é visto enquanto configurado para determinadas
habilidades que influem no jeito de ser de homens e mulheres. Ocorre então que a dose de testosterona
recebida pela criança no período de gestação determinará a ‘identidade de gênero’ do cérebro do
indivíduo, quanto mais testosterona, mais masculina a configuração cerebral, quanto menos, mais ela se
atém à matriz inicial, a do cérebro feminino. Dessa forma é explicada a homossexualidade, um cérebro
masculino em um corpo feminino ou um cérebro feminino em um corpo masculino. Dessa forma, o
gênero passa a ser colado à condição biológica. A idéia de uma matriz de sexo/gênero que
posteriormente se torna diferenciada encontra eco no trabalho de Thomas Laqueur em “Inventando o
Sexo - Corpo e Gênero dos Gregos a Freud” (1992:2001)5, que mostra como a matriz que direcionava

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os olhares sobre os corpos era a do sexo único, e o sexo único, era o sexo masculino. Não se tratava de
alguma ilusão que fazia com que as pessoas pensassem que os sexos eram os mesmos, mas sim de uma
idéia de que o sexo feminino nada mais seria do que o sexo masculino invertido. Há um deslocamento,
então, do sexo único focado nos órgãos sexuais, para o sexo único do cérebro, condicionado pelos
hormônios, onde a testosterona, hormônio tido como masculino, representa o papel mais importante.
A psicologia evolucionista tem como objetivo produzir um conhecimento das faculdades
mentais humanas a partir de causas corporais hereditárias (LUCAS HENRIQUE DE PAULA, 2005,
p.6)6. Dessa forma, a seleção natural agiria no sentido de selecionar material genético responsável por
determinar o comportamento do indivíduo, incluindo medos, paixões, sexualidade, preferências, etc. A
psicologia evolucionista pode ser enxergada enquanto representante de uma linha de pensamento que
surge com a obra de Darwin, “A origem das espécies”, em conjunto com a teoria mendeliana, que foi
denominada por alguns de neo-darwinismo, e se propunha a explicar a evolução humana unicamente
por meio da seleção natural e das mutações genéticas. Daí surge a idéia da Sociobiologia, que se
caracteriza por buscar uma aproximação dos comportamentos dos seres humanos com os dos demais
animais, de forma que fosse possível produzir predições acerca do comportamento humano. A
psicologia evolucionista, portanto, busca a unificação das disciplinas acerca do comportamento
humano, porém, sem superar a dicotomia natureza/cultura, mas propondo o domínio absoluto de um
suposto “Reino da Natureza” sobre o suposto “Reino da Cultura”.
Proponho então, a partir de um questionamento do próprio fazer da ciência exata, de
laboratório, e da análise dos artigos científicos, uma contextualização desse saber científico em um
contexto científico mais amplo, a saber, o da biopolítica, que, como nos diz Foucault (1976:2002)7, é
um poder que se diferencia pela visão da humanidade enquanto espécie humana. Essa é uma discussão
que se encontra ligada à idéia de poder soberano: se o poder soberano era o de deixar viver e fazer
morrer, com a biopolítica a partir do século 19, esse poder passou a ser conjugado com o poder de fazer
viver e deixar morrer. Se a idéia da biopolítica é a regulação estatal da vida da espécie humana,
regulação e controle do ‘como’ da vida, torna-se impossível, para mim, não atentar para as semelhanças
entre o discurso da espécie e o discurso trazido pela psicologia evolucionista. A idéia de enxergar
homens e mulheres como natural e evolutivamente diferentes, a meu ver, encontra-se conjugada à idéia
de considerar o macho e a fêmea dentro da espécie, em especial devido ao fator básico da diferença ser
a possibilidade da gestação. A medicina e as ciências biológicas assumem aqui um papel

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importantíssimo, uma vez que são os saberes incumbidos de dizer como deve ser a vida, no sentido
normatizador.
Esse poder se exerce dentro daquilo que Bauman (1999)8 chama de “Estado jardineiro”, a
metáfora é elucidativa. Sendo as pessoas, plantas, o jardineiro precisa se utilizar de ferramentas para se
livrar das ervas daninhas, seja eliminando-as, seja isolando-as para que morram. A metáfora do jardim
se une a metáfora médica, pela qual os indivíduos socialmente indesejados são vistos enquanto tumores
malignos num corpo, devendo ser eliminados, uma vez que não podem ser recuperados. Esses
cientistas da jardinagem e da engenharia social. É notável que as mulheres tenham sido comumente
identificadas com aquilo que deve ser extirpado e/ou controlado dentro da proposta de uma engenharia
social: a natureza, as paixões, a subjetividade. As mulheres, especialmente na modernidade iluminista,
foram colocadas como o elemento comprometedor do plano da racionalidade.Temos, com a psicologia
evolucionista, a genética, a neurociência e a endocrinologia, uma série de saberes instituídos, em
grande parte, responsáveis por normatizar o comportamento de homens e mulheres, ou de machos e
fêmeas, a partir de seus supostos destinos biológicos.
É preciso, portanto, pensar também no papel que a divulgação desses saberes científicos possui
e como podemos pensa-los, através da análise narrativa e do contexto histórico em que se encontram
inseridos

Referências Bibliográficas
FALUDI, S: Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres. Rio de Janeiro:
Rocco. 2001
BANDEIRA, Lourdes. Em material entregue em sala de aula: Relações sociais de gênero: o desafio de
combater o sexismo e a homofobia.
PEASE, Allan e Bárbara. Porque os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor?: uma visão
científica (e bem humorada) de nossas diferenças. Rio de Janeiro: Sextante. 2000
GIDDENS, A: A transformação da intimidade. S, Paulo, UNESP, 1993
LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo (Capítulo III: Nova Ciência, Uma só Carne) Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 2001.

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PAULA, Lucas Henrique de. Um olhar Antropológico sobre a Produção da Natureza Humana na
Psicologia Evolucionista. Monografia de conclusão de curso da Universidade de Brasília,
Departamento de Antropologia, 2005.
FOUCAULT, Michel. Aula de 17 de março de 1976. In: Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins
Fontes. 2002
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Ed: Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 1999.

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