Professional Documents
Culture Documents
De acordo com a Organização Mundial da década atual. Parcela considerável desta redu-
Saúde (OMS), nas últimas duas décadas, ocorreu ção foi decorrente da diminuição do número de
globalmente expressiva redução na mortalidade óbitos por diarreia e desidratação. Para exem-
por diarreias infecciosas em crianças com ida- plificar, em 1980, a diarreia ocupava o segun-
de inferior a cinco anos1,2. Para exemplificar, em do lugar como causa de mortalidade infantil e
1982 ocorreram 5 milhões de mortes por doença representava 24,3% dos óbitos, enquanto, em
diarreica, em 1991 foram 3,5 milhões, em 2001 2005, passou para a quarta posição e foi respon-
morreram 2,5 milhões e, finalmente, em 2011 sável por 4,1% dos óbitos4. Considera-se que
ocorreram 1,5 milhões de mortes no ano3. Deve este grande avanço na saúde pública brasilei-
ser destacado, no entanto, que algumas doenças ra foi decorrente das melhorias das condições
que poderiam ser prevenidas continuam sendo gerais de vida da população e da disseminação
responsáveis por mortes de lactentes e pré-esco- entre profissionais da área da saúde e da pró-
lares. Cerca de 30% desses óbitos antes dos cinco pria comunidade dos princípios fundamentais
anos ocorrem devido à pneumonia e diarreia1,2. do tratamento da diarreia aguda e desidratação,
No Brasil, observou-se redução importante ou seja, terapia de reidratação e cuidados com
na mortalidade infantil que passou de 70 óbitos a alimentação. Ao que tudo indica, a incidência
por mil nascidos vivos na década de 1970 para de diarreia aguda também apresentou redução
cerca de 15 óbitos por mil nascidos vivos na nesse período.
1
Diarreia aguda: diagnóstico e tratamento
Definições
A diarreia pode ser definida pela ocorrência 3. Diarreia persistente: quando a diarreia
de três ou mais evacuações amolecidas ou líqui- aguda se estende por 14 dias ou mais. Pode pro-
das nas últimas 24 horas. A diminuição da con- vocar desnutrição e desidratação. Pacientes que
sistência habitual das fezes é um dos parâmetros evoluem para diarreia persistente constituem
mais considerados. Na diarreia aguda ocorre de- um grupo com alto risco de complicações e ele-
sequilíbrio entre a absorção e a secreção de líqui- vada letalidade2,6.
dos e eletrólitos e é um quadro autolimitado4. Assim, doença diarreica aguda pode ser en-
tendida como um episódio diarreico com as se-
De acordo com a OMS, a doença diarreica guintes características: início abrupto, etiologia
pode ser classificada em três categorias2,7: presumivelmente infecciosa, potencialmente
autolimitado, com duração inferior a 14 dias,
1. Diarreia aguda aquosa: diarreia que aumento no volume e/ou na frequência de eva-
pode durar até 14 dias e determina perda de cuações com consequente aumento das perdas
grande volume de fluidos e pode causar desi- de água e eletrólitos17. Apesar da definição de
dratação. Pode ser causada por bactérias e ví- diarreia aguda considerar o limite máximo de
rus, na maioria dos casos. A desnutrição even- duração de 14 dias, a maioria dos casos resolve-
tualmente pode ocorrer se a alimentação não -se em até 7 dias.
é fornecida de forma adequada e se episódios A doença diarreica na maior parte das ve-
sucessivos acontecem. zes representa uma infecção do tubo digesti-
2. Diarreia aguda com sangue (disenteria): é vo por vírus, bactérias ou protozoários e tem
caracterizada pela presença de sangue nas fezes. evolução autolimitada, mas pode ter conse-
Representa lesão na mucosa intestinal. Pode asso- quências graves como desidratação, desnutri-
ciar-se com infecção sistêmica e outras complica- ção energético-proteica e óbito. Nem sempre
ções, incluindo desidratação. Bactérias do gênero é possível identificar o agente causador do
Shigella são as principais causadoras de disenteria. episódio diarreico.
2
Departamento Científico de Gastroenterologia • Sociedade Brasileira de Pediatria
Causas
Os seguintes agentes infecciosos são os que Eventualmente outras causas podem iniciar
causam a maior parte dos quadros da diarreia aguda: o quadro como diarreia tais como: alergia ao
leite de vaca, deficiência de lactase, apendicite
Vírus - rotavírus, coronavírus, adenovírus, ca- aguda, uso de laxantes e antibióticos, intoxica-
licivírus (em especial o norovírus) e astrovírus. ção por metais pesados. A invaginação intesti-
Bactérias - E. coli enteropatogênica clássica, E. nal tem que ser considerada no diagnóstico di-
coli enterotoxigenica, E. coli enterohemorrágica, ferencial da disenteria aguda, principalmente,
E. coli enteroinvasiva, E. coli enteroagregativa18, no lactente.
Aeromonas, Pleisiomonas, Salmonella, Shigella, A investigação da etiologia da diarreia aguda
Campylobacter jejuni, Vibrio cholerae, Yersinia não é obrigatória em todos os casos. Deve ser rea-
Parasitos - Entamoeba histolytica, Giardia lizada nos casos graves e nos pacientes hospitali-
lamblia, Cryptosporidium, Isosopora zados. Deve ser lembrado que os laboratórios, em
Fungos – Candida albicans geral, não dispõem de recursos para diagnosticar
todas as bactérias e vírus causadores de diarreia
Pacientes imunocomprometidos ou em an- aguda. Novos métodos diagnósticos utilizando a
tibioticoterapia prolongada, podem ter diarreia técnica de PCR multiplex estão em desenvolvi-
causada por: Klebsiella, Pseudomonas, Aereobac- mento e têm potencial para proporcionar, no fu-
ter, C. difficile, Cryptosporidium, Isosopora, VIH, e turo, o diagnóstico etiológico com maior rapidez
outros agentes. e abrangência.
De acordo com a OMS, a anamnese da criança Ao exame físico é importante avaliar o esta-
com doença diarreica deve contemplar os seguin- do de hidratação, o estado nutricional, o estado
tes dados: duração da diarreia, número diário de de alerta (ativo, irritável, letárgico), a capacidade
evacuações, presença de sangue nas fezes, núme- de beber e a diurese. O percentual de perda de
ro de episódios de vômitos, presença de febre ou peso é considerado o melhor indicador da desi-
outra manifestação clínica, práticas alimentares dratação. Mesmo quando o peso anterior recente
prévias e vigentes, outros casos de diarreia em não é disponível, é fundamental que seja mensu-
casa ou na escola. Deve ser avaliado, também, a rado o peso exato na avaliação inicial do pacien-
oferta e o consumo de líquidos, além do uso de te. A avaliação nutricional é muito importante na
medicamentos e o histórico de imunizações6. É abordagem da criança com doença diarreica. O
importante, também, obter informação sobre a peso é fundamental no acompanhamento tan-
diurese e peso recente, se conhecido. to em regime de internação hospitalar como no
A história e o exame físico são indispensá- ambulatório. Considera-se que perda de peso
veis para uma conduta adequada. Não se deve de até 5% represente a desidratação leve; entre
esquecer que alguns pacientes têm maior risco 5% e 10% a desidratação é moderada; e perda
de complicações, tais como: idade inferior a dois de mais de 10% traduz desidratação grave. Essa
meses; doença de base grave como o diabete classificação proporciona uma estimativa do vo-
melito, a insuficiência renal ou hepática e outras lume necessário para correção do déficit corpo-
doenças crônicas; presença de vômitos persis- ral de fluído em consequência da doença diarrei-
tentes; perdas diarreicas volumosas e frequen- ca: perda de 5%, ou seja, 50 mL/Kg; de 5 a 10%,
tes (mais de oito episódios diários) e a percep- ou seja, 50 a 100 mL/Kg e mais do que 10%, ou
ção dos pais de que há sinais de desidratação. seja, mais de 100 mL/Kg7.
3
Diarreia aguda: diagnóstico e tratamento
Outro ponto fundamental na avaliação da hi- lágrimas ou não, se o paciente tem sede, o nível
dratação da criança com doença diarreica é vin- de consciência, presença do sinal da prega cutâ-
cular os achados do exame clínico à conduta a nea, e como se encontra o pulso e o enchimento
ser adotada. Assim, apesar de existirem outras capilar. Outros achados podem ser importantes
estratégias para avaliar o estado de hidratação, quando presentes, traduzindo a gravidade do
a proposta da OMS, também adotada pelo MS quadro, tais como nível de alerta, fontanela bai-
deve continuar sendo utilizada (Quadro 1)5-7,9. A xa, saliva espessa, padrão respiratório alterado,
avaliação do estado de hidratação do paciente ritmo cardíaco acelerado, pulso débil, aumento
com diarreia deve ser criteriosa e inclui o exa- do tempo de enchimento capilar, extremidades
me do estado geral do paciente, dos olhos, se há frias, perda de peso, turgência da pele e sede.
Observar A B C
Sede Bebe normalmente Sedento, bebe rápido e Bebe mal ou não é capaz
avidamente de beber*
Examinar
1 – Para avaliar o enchimento capilar, a mão da criança deve ser mantida fechada e comprimida por
15 segundos. Abrir a mão da criança e observar o tempo no qual a coloração da palma da mão volta
ao normal. A avaliação da perfusão periférica é muito importante, principalmente em desnutridos
nos quais a avaliação dos outros sinais de desidratação é muito difícil.
4
Departamento Científico de Gastroenterologia • Sociedade Brasileira de Pediatria
Tratamento
Após ser estabelecido o diagnóstico, confor- com alimentos que não agravem a diarreia. Deve-
me as definições apresentadas acima, e realizado -se dar mais líquidos do que o paciente ingere
exame físico completo com definição do estado normalmente. Além do soro de hidratação oral,
de hidratação, deve ser seguido o esquema clás- são considerados líquidos adequados: sopa de
sico de tratamento, distribuído em três categorias frango com hortaliças e verduras, água de coco,
segundo a presença ou não de desidratação2,6,7,9. água. São inadequados: refrigerantes, líquidos
Se o paciente está com diarreia e está hidratado açucarados, chás, sucos comercializados, café.
deverá ser tratado com o Plano A. Se está com Ainda no Plano A, deve-se iniciar a suplemen-
diarreia e tem algum grau de desidratação, deve tação de zinco e manter a alimentação habitual.
ser tratado com o Plano B. Se tem diarreia e está Os sinais de alarme devem ser enfatizados nesta
com desidratação grave, deve ser tratado com o fase, para serem identificados prontamente na
Plano C. É fundamental para o tratamento ade- evolução se ocorrerem (aumento da frequência
quado a reavaliação pediátrica contínua. das dejeções líquidas, vômitos frequentes, san-
1. Plano A: tratamento no domicílio. É obriga- gue nas fezes, recusa para ingestão de líquidos,
tório aumentar a oferta de líquidos, incluindo o febre, diminuição da atividade, presença de si-
soro de reidratação oral (reposição para prevenir nais de desidratação, piora do estado geral). O
a desidratação) e a manutenção da alimentação Quadro 2 especifica as condutas do Plano A6,9.
PLANO A
Explique ao paciente ou acompanhante para fazer no domicílio:
1) Oferecer ou ingerir mais líquido que o habitual 2) Manter a alimentação habitual para prevenir a
para prevenir a desidratação: desnutrição:
• O paciente deve tomar líquidos caseiros (água de • Continuar o aleitamento materno.
arroz, soro caseiro, chá, suco e sopas) ou solução • Manter a alimentação habitual para as crianças e
de reidratação oral (SRO) após cada evacuação os adultos.
diarreica. 3) Se o paciente não melhorar em dois dias ou se
• Não utilizar refrigerantes e não adoçar o chá ou apresentar qualquer um dos sinais abaixo levá-lo
suco. imediatamente ao serviço de saúde:
SINAIS DE PERIGO
• Piora na diarreia • Recusa de alimentos
• Vômitos repetidos • Sangue nas fezes
• Muita sede • Diminuição da diurese
5
Diarreia aguda: diagnóstico e tratamento
Quadro 3. Plano B – Para evitar a desidratação por via oral na unidade de saúde
PLANO B
1) Administrar solução de reidratação oral (SRO): lize o PLANO A.
• A quantidade de solução ingerida dependerá da • Se continuar desidratado, indicar a sonda naso-
sede do paciente. gástrica (gastróclise).
• A SRO deverá ser administrada continuamente, • Se o paciente evoluir para desidratação grave, se-
até que desapareçam os sinais de desidratação. guir o PLANO C.
• Apenas como orientação inicial, o paciente deve- 3) Durante a permanência do paciente ou acom-
rá receber de 50 a 100mL/kg para ser administra- panhante no serviço de saúde, orientar a:
do no período de 4-6 horas. • Reconhecer os sinais de desidratação.
2) Durante a reidratação reavaliar o paciente • Preparar e administrar a Solução de Reidratação Oral.
seguindo os sinais indicados no quadro 1 (ava- • Praticar medidas de higiene pessoal e domici-
liação do estado de hidratação) liar (lavagem adequada das mãos, tratamento da
• Se desaparecerem os sinais de desidratação, uti- água e higienização dos alimentos).
3. Plano C: corrigir a desidratação grave com vel infusão venosa, considerar infusão intraóssea.
terapia de reidratação por via parenteral (repara- Podem ser utilizados os seguintes critérios
ção ou expansão). Em geral, o paciente deve ser para internação hospitalar11: choque hipovolêmi-
mantido no serviço de saúde, em hidratação pa- co, desidratação grave (perda de peso maior ou
renteral de manutenção, até que tenha condições igual a 10%), manifestações neurológicas (por
de se alimentar e receber líquidos por via oral na exemplo, letargia e convulsões), vômitos biliosos
quantidade adequada. As indicações para reidra- ou de difícil controle, falha na terapia de reidrata-
tação venosa são: desidratação grave, contraindi- ção oral, suspeita de doença cirúrgica associada
cação de hidratação oral (íleo paralítico, abdômen ou falta de condições satisfatórias para tratamen-
agudo, alteração do estado de consciência ou to domiciliar ou acompanhamento ambulatorial.
convulsões), choque hipovolêmico. O Quadro 4 apresenta o plano C conforme a
Idealmente deve-se conseguir a punção de recomendação do MS9.
veia calibrosa. Quando necessário, sobretudo em No Quadro 5 são apresentadas opções para
casos de choque hipovolêmico, podem ser neces- terapia de reidratação parenteral segundo as di-
sários dois acessos venosos. Caso não seja possí- ferentes recomendações2,7,9.
6
Departamento Científico de Gastroenterologia • Sociedade Brasileira de Pediatria
PLANO C
O PLANO C CONTEMPLA DUAS FASES PARA TODAS AS FAIXAS ETÁRIAS: A FASE RÁPIDA E A FASE DE
MANUTENÇÃO E REPOSIÇÃO
FASE RÁPIDA (EXPANSÃO) – MENORES DE 5 ANOS
SOLUÇÃO VOLUME TEMPO DE ADMINISTRAÇÃO
Iniciar com 20mL/kg de peso.
Repetir essa quantidade até
que a criança esteja hidratada,
reavaliando os sinais clínicos
Soro Fisiológico a 0,9% após cada fase de expansão 30 minutos
administrada.
Para recém-nascidos e cardi-
opatas graves começar com
10mL/kg de peso.
OS PACIENTES QUE ESTIVEREM SENDO REIDRATADOS POR VIA ENDOVENOSA DEVEM PERMANECER NA
UNIDADE DE SAÚDE ATÉ QUE ESTEJAM HIDRATADOS E CONSEGUINDO MANTER A HIDRATAÇÃO POR VIA ORAL.
7
Diarreia aguda: diagnóstico e tratamento
8
Departamento Científico de Gastroenterologia • Sociedade Brasileira de Pediatria
Os pacientes hospitalizados com diarreia que não respondem adequadamente à dieta sem
persistente devem receber, de acordo com a lactose, deve ser considerada a possibilidade do
OMS, 110 calorias/kg/dia7. São critérios funda- desenvolvimento de intolerância às proteínas do
mentais para avaliar a evolução clínica: a redu- leite de vaca. Nessa situação, deve ser prescrita
ção das perdas diarreicas e a recuperação nutri- dieta isenta das proteínas do leite de vaca, ou
cional ou retomada do ganho de peso esperado seja, pode-se empregar fórmula hipoalergênica
para a idade. para sua substituição, no caso dos lactentes, (por
Ainda, de acordo com a OMS deve-se cuidar exemplo, fórmula com proteína extensamente
para que o paciente com diarreia persistente hidrolisada ou fórmula de aminoácidos, depen-
receba diariamente as quantidades de micro- dendo da gravidade do paciente; nas crianças
nutrientes: 50ug de folato, 10mg de zinco, maiores em algumas situações tenta-se a pro-
400µg de vitamina A, 1mg de cobre e 80mg de teína de soja ou a dieta isenta de leite e deri-
magnésio7. vados). Deve ser destacado que estas mudanças
Apesar das diretrizes não abordarem esse dietéticas não são necessárias em pacientes com
tema, para os pacientes com diarreia persistente diarreia aguda.
A TRO é considerada uma das modalidades concentrações de sódio e glicose7. Esta nova so-
terapêuticas que mais salvou vidas a partir do lução recebeu a denominação de soro oral com
século XX1,2. O princípio fisiológico da eficácia baixa osmolaridade. O Brasil não estabeleceu,
vincula-se ao fato de que a via de transporte ati- de acordo com a OMS, política para a difusão
vo, acoplada de sódio-glicose-água pelo enteró- do uso da solução com baixa osmolaridade no
cito está preservada na diarreia aguda, indepen- país2. Este aspecto não é abordado no cartaz re-
dentemente da etiologia. Vale lembrar que são centemente divulgado pelo MS9. Por outro lado,
outras vias que explicam o aumento da secreção a ESPGHAN (Sociedade Europeia de Gastroen-
e diminuição da absorção de água e eletrólitos terologia, Hepatologia e Nutrição em Pediatria)
na diarreia aguda. tradicionalmente preconiza o emprego de solu-
A desidratação pode ocorrer tanto na diarreia ção de reidratação oral com menor concentração
aguda como na diarreia persistente. de sódio10,11,19. O Quadro 6 mostra a composição
A partir das décadas de 1970/1980, optou-se do soro oral tradicional, do soro oral com osmo-
no Brasil, pelo emprego da solução recomenda- laridade reduzida e a solução preconizada pela
da pela OMS com 90 mmol de sódio por litro6. A ESPGHAN19. No Brasil são comercializadas solu-
partir de 2002, com a justificativa de reduzir as ções com composição variável na concentração
perdas diarreicas, a OMS modificou a composi- de sódio e glicose, algumas alinhadas com as re-
ção dos sais de reidratação oral com redução das comendações da OMS e outras com a ESPGHAN.
9
Diarreia aguda: diagnóstico e tratamento
Por sua vez, o soro caseiro não contém citrato menos de 12 meses deve receber 50 mL da solu-
(para gerar bicarbonato) e potássio. A glicose é ção para cada evacuação e os maiores de 1 ano,
substituída por sacarose (dissacarídeo constitu- 100 mL após cada evacuação. Na prática, deve
ído por glicose e frutose). Assim, o soro caseiro ser oferecida a quantidade de líquidos que a
é uma mistura de sal de cozinha, açúcar e água. criança aceitar (Plano A, Quadro 2). O tratamento
Existem problemas na composição final das so- deve ser realizado no domicílio. A família deve
luções preparadas no domicílio. Os problemas ser orientada para retornar ao serviço de saúde
são menos frequentes quando se utiliza a colher caso apareçam manifestações clínicas compatí-
medida com dupla-concha, específica para o pre- veis com desidratação5-7.
paro do soro caseiro20. Para a reversão da desidratação com o em-
A utilização dos soros de reidratação oral prego da TRO, deve ser utilizada a solução de
pode ser feita com dois objetivos: a) Reposição reidratação oral com 75 a 90 mmol de sódio por
de perdas para prevenir a desidratação no pa- litro. Exceto para os lactentes em aleitamento
ciente com diarreia (Plano A) e b) Reversão da materno, o soro deve ser oferecido sem outros
desidratação, ou fase de reparação, para o pa- alimentos. O volume de 50 a 100 mL/kg de peso,
ciente com desidratação por diarreia (Plano B). dependendo da gravidade, deve ser administra-
Na prevenção da desidratação, deve-se op- do em 4 a 6 horas. O paciente deve ser pesado
tar por soros com menor concentração de sódio. antes de iniciar a TRO e, depois, a cada 2 horas
Caso sejam utilizados os sais de reidratação oral (Plano B)5-7.
distribuídos pela rede pública de saúde do Bra- Se o paciente apresentar reversão da desi-
sil, com 90 mmol de sódio por litro, o paciente dratação, caracterizada pelo desaparecimento
deve receber fluídos que não contenham sódio, dos sinais clínicos e ocorrência de diurese abun-
para evitar a ocorrência de ingestão excessiva dante, o paciente deverá ser realimentado e vol-
de sódio. Nesta situação, devem ser oferecidos tar ao Plano A.
outros tipos de líquidos, inclusive água. Não de- Caso não seja obtida melhora clínica no pa-
vem ser administrados refrigerantes ou sucos de ciente desidratado com a TRO, ou nos caso gra-
frutas que apresentem elevada osmolaridade. ves de desidratação, deve ser iniciada a terapia
Tradicionalmente, afirma-se que o lactente com de reidratação parenteral.
Indicada para pacientes com desidratação de reidratação de manutenção por via parente-
grave (ver Quadros 4 e 5) ou que não apresentam ral. O volume diário do soro de manutenção pode
reversão da desidratação após 2 horas de TRO. ser calculado pela regra de Holiday & Segar21:
Existem várias opções para este procedimen- - peso corporal de até 10 kg: 100 mL/kg;
to. No Quadro 5 são apresentadas algumas alter- - peso corporal entre 10 e 20 kg: 1000 mL +
nativas para a fase de reparação ou expansão. 50mL por quilo acima dos 10 kg;
No passado, no Brasil, era recomendada so- - peso corporal superior a 20 kg: 1500 mL + 20mL
lução de soro fisiológico e soro glicosado 5%, por quilo que ultrapassar os 20 quilos.
em partes iguais6. Esta modalidade terapêutica
prevaleceu no Brasil, principalmente, entre as Em quadros muito graves pode ser neces-
décadas de 1970 e 1990. Nos dias atuais as so- sário adicionar volume adicional de soro para
luções mais empregadas são soro fisiológico ou repor as perdas diarreicas. Deve ser lembrado
Ringer lactato. que para parcela dos pacientes este objetivo
Após a correção da desidratação pela via pa- pode ser atingido com os fluídos dos alimen-
renteral, os pacientes devem ser realimentados. tos e a solução de reidratação oral. A solução
Nesta fase, em geral, são mantidos com terapia de reposição para a via parenteral utilizada no
10
Departamento Científico de Gastroenterologia • Sociedade Brasileira de Pediatria
Brasil é o soro fisiológico 0,9% e soro glicosa- responderam a TRO, quando não for possível o
do 5% em partes iguais que contém 77 mmol/L início imediato de terapia de hidratação paren-
de sódio)6,9. O volume depende da gravidade teral, deve ser administrado soro de reidratação
da diarreia (20 a 50 mL/kg por dia). O paciente oral por sonda nasogástrica (20 mL/kg/hora por 4
deve ser pesado com frequência para evitar a a 6 horas). Se o abdome ficar distendido, deve ser
administração excessiva de soro. reduzida a velocidade de administração do soro
Nos casos de desidratação grave e os que não de reidratação através da sonda nasogástrica7.
Zinco
Vitamina A
D eve ser administrada a populações com e mortalidade por diarreia e tem sido admi-
risco de deficiência desta vitamina. O uso da nistrada nas zonas mais carentes do norte e
vitamina A reduz o risco de hospitalização nordeste.
Antibióticos
Na grande maioria das vezes os antibióticos quando o paciente apresenta febre e comprome-
não são empregados no tratamento da diarreia timento do estado geral. Se possível, deve ser co-
aguda, pois os episódios são autolimitados e letada amostra de fezes para realização de copro-
grande parte se deve a agentes virais. O uso de cultura e antibiograma. Inicialmente, mesmo que
antibióticos na diarreia aguda está restrito aos não comprovada laboratorialmente, prevalece a
pacientes que apresentam diarreia com sangue hipótese de infecção por Shigella. Outros agentes
nas fezes (disenteria), na cólera, na infecção agu- que podem necessitar antibióticos quando cau-
da comprovada por Giardia lamblia ou Entamoeba sam casos graves: E.coli enteroinvasiva, Yersinia,
hystolitica, em imunossuprimidos, nos pacientes V. chorelae, C. difficille, Salmonela não tifoide.
com anemia falciforme, nos portadores de próte- De acordo com o MS9 e a OMS1,2,7 devem ser
se e nas crianças com sinais de disseminação bac- prescritos, nos quadros disentéricos, os seguin-
teriana extraintestinal. Nos casos de disenteria, a tes antibióticos, considerando a possibilidade de
antibioticoterapia está indicada, especialmente infecção por Shigella:
11
Diarreia aguda: diagnóstico e tratamento
Antieméticos
Probióticos
12
Departamento Científico de Gastroenterologia • Sociedade Brasileira de Pediatria
- Saccharomyces boulardii- 250-750mg/dia (ha- h; máximo 9 doses de 1010 CFU por 4 a 5 dias
bitualmente 5-7 dias) De acordo as diretrizes mencionadas11,16,25,
- Lactobacillus GG - ≥ 1010 CFU/dia (habitualmen- existem outros probióticos em investigação, mas
te 5-7 dias) no presente, apenas estas cepas têm evidências
- L reuteri - 108 a 4 x 108 (habitualmente 5-7 dias) suficientes para merecer recomendação como co-
- L acidophhilus LB –min 5 doses de 1010 CFU >48 adjuvante no tratamento da diarreia aguda.
Racecadotrila
A racecadotrila é um inibidor da encefalinase, tanálise, seu papel na redução das perdas diarreicas
enzima responsável pela degradação das encefali- e na duração da diarreia aguda. Trata-se de medica-
nas produzidas pelo sistema nervoso entérico. As mento com eficácia e segurança, que não interfere
encefalinas com ação mais duradoura, em função da na motilidade intestinal. A dose recomendada é de
menor atividade da encefalinase, reduzem a secre- 1,5mg/kg de peso corporal, três vezes ao dia. É con-
ção intestinal de água e eletrólitos que se encontra traindicado para menores de 3 meses. Esta substân-
aumentada nos quadros de diarreia aguda. A ES- cia é encontrada em sachês (pó) com 10mg e 30mg
PGHAN11 e a diretriz Ibero-Latinoamericana16 consi- ou comprimidos com 100mg. Em adultos não deve
deram que a racecadotrila pode ser utilizada como ser utilizada dose superior a 400mg por dia. O tra-
coadjuvante no tratamento da diarreia aguda, uma tamento com a racecadotrila deve ser interrompido
vez que, foi demonstrado, em ensaios clínicos e me- assim que cesse a diarreia11,16.
Considerações finais
Os princípios fundamentais para o tratamen- da nas áreas onde corre esta hipovitaminose.
to da diarreia aguda são a terapia de reidratação e Determinados probióticos e a racecadotrila
a manutenção de alimentação que atenda as ne- podem ser usados como coadjuvantes. A lopera-
cessidades nutricionais do paciente. mida continua sendo totalmente contraindicada
Deve ser destacado que apenas o uso do soro em pediatria.
de reidratação oral ou parenteral não proporcio- O médico deve dar recomendações claras à fa-
na nutrição adequada. Por esse motivo, a alimen- mília sobre o tratamento, a alimentação, as medi-
tação deve ser mantida com alimentos de quali- das de higiene e o saneamento, aproveitando esta
dade nas quantidades necessárias. Não deve ser oportunidade para educar, além de explicar quais
usado leite ou fórmulas lácteas diluídas. Deve-se as possíveis complicações e sinais de alarme e
evitar sucos e refrigerantes com alta osmolari- como proceder nesta situação.
dade. Fórmula láctea sem lactose pode ser útil Para finalizar, devem ser destacados os prin-
no tratamento de lactentes hospitalizados com cípios que a OMS incentiva para erradicação de
diarreia aguda. mortes por diarreia aguda até 20301: Focalizar
Antibióticos são recomendados para pacien- na terapêutica da diarreia aguda as seguintes
tes com disenteria, considerando a possibilida- condutas: terapia de reidratação, manutenção
de de Shigella. Atenção especial deve ser dada da alimentação e terapia com zinco. Na preven-
ao primeiro trimestre de vida, para crianças com ção, devem ser destacados: imunização contra
desnutrição energético-proteica, imunossuprimi- infecções por rotavirus e sarampo, ênfase no
dos ou com diarreia persistente e quanto à pos- aleitamento natural prolongado e a suplementa-
sibilidade de infecções sistêmicas, que requerem ção de vitamina A, bem como a disponibilidade
o emprego de antibióticos apropriados. A suple- e condições de armazenamento de água de boa
mentação com zinco vem sendo preconizada para qualidade, higiene pessoal (lavagem das mãos),
diminuir a duração do episódio diarreico e evitar adequado preparo de alimentos e maior cober-
recorrências e a vitamina A deve ser recomenda- tura de saneamento básico.
13
Diarreia aguda: diagnóstico e tratamento
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Ending preventable child deaths from pneumonia and 14. Polanco-Allué I, Salazar-Lindo E, Gutiérrez-Castrellón
diarrhoea by 2005. World Health Organization. Geneva, P, Grupo IberoLatinoamericano sobre el Manejo de
2013. la Diarrea Aguda (GILA). Guía práctica clínica ibero-
latinoamericana sobre el manejo de la gastroenteritis
2. Diarrhoea. Why children are still dying and what can be
aguda en menores de 5 años: diagnóstico y criterios
done? UNICEF/WHO, 2009.
de atención médica I. An Pediatr (Barc). 2014;80(Supl
3. Boschi-Pinto C, Velebit L, Shibuya K. Estimating child 1):5-8.
mortality due to diarrhoea in developing countries. Bull
15. Gutiérrez-Castrellón P, Salazar-Lindo E, Polanco-Allué
World Health Organ. 2008;86:710-7.
I, Grupo IberoLatinoamericano sobre el Manejo de
4. Morais MB, Tahan S, Mello CS. Diarreia aguda: Probióticos la Diarrea Aguda (GILA). Guía práctica clínica ibero-
e outros coadjuvantes na terapêutica. Atualidades em latinoamericana sobre el manejo de la gastroenteritis
clínica cirúrgica intergastro e trauma 2012. 3 ed. São aguda en menores de 5 años: esquemas de hidratación
Paulo: Atheneu, 2013. p. 539-549. y alimentación. An Pediatr (Barc). 2014;80(Supl 1):9-14.
5. Organización Mundial de La Salud – Tratamiento y 16. Salazar-Lindo E, Polanco-Allué I, Gutiérrez-Castrellón
prevención de la diarrea aguda. Ginebra: OMS; 1989. P, Grupo IberoLatinoamericano sobre el Manejo de la
Diarrea Aguda (GILA). Guía de práctica clínica ibero-
6. Ministério da Saúde. Assistência e controle das doenças
latinoamericana sobre el manejo de la gastroenteritis
diarreicas. Ministério da Saúde, Brasília, 1993, 44p.
aguda en menores de 5 años: tratamiento farmacológico
7. World Health Organization. The Treatment of Diarrhoea E. An Pediatr (Barc). 2014;80(Supl 1):15-22.
– A Manual for Physicians and Other Senior Health
17. Brandt KG, Castro Antunes MM, Silva GA. Acute diarrhea:
Workers (WHO/CAH/03.7). Geneva: World Health
evidence-based management. J Pediatr (Rio J).
Organization, 2005. 44p.
2015;91:S36-43.
8. Fernandes EG, Leshem E, Patel M, Flannery B, Pellini
18. Gomes TA, Elias WP, Scaletsky IC, Guth BE, Rodrigues JF,
AC, Veras MA, et al. Hospital-based surveillance of
Piazza RM, et al. Diarrheagenic Escherichia coli. Braz J
intussusception among infants. J Pediatr (Rio J).
Microbiol. 2016;47 Suppl 1:3-30.
2016;92:181–7.
19. Tormo R, Polanco I, Salazar-Lindo E, Goulet O. Acute
9. Ministério da Saúde do Brasil. Manejo do paciente
infectious diarrhoea in children: new insights in
com diarreia. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/cartazes/
antisecretory treatment with racecadotril.Acta Paediatr.
manejo_paciente_diarreia_cartaz.pdf
2008;97:1008-15.
10. Guarino A, Albano F, Ashkenazi S, Gendrel D, Hoekstra
20. Sena, LV, Maranhão HS, Morais, MB. Avaliação do
JH, Shamir Ret al. European Society for Pediatric
conhecimento de mães sobre terapia de reidratação
Gastroenterology, Hepatology and Nutrition/European
oral e concentração de sódio em soluções sal-açúcar de
Society for Pediatric Infectious Diseases evidence-based
preparo domiciliar. J Ped (Rio J) 2001;77:481-6.
guidelines for the management of acute gastroenteritis
in children in Europe. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 21. Holliday MA, Segar WE. The maintenance need for water
2008;46(Suppl. 2):S81-122. in parenteral flui therapy. Pediatrics 1957;19:823-32.
11. Guarino A, Ashkenazi S, Gendrel D, Lo Vecchio A, Shamir 22. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em
R, Szajewska H, et al. European Society for Pediatric Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica.
Gastroenterology, Hepatology, and Nutrition/European Doenças infecciosas e parasitárias: guia de bolso. 8ª ed.
Society for Pediatric Infectious Diseases evidence- rev. Brasília: Ministério da Saúde; 2010. 444p. Série B.
based. guidelines for the management of acute Textos Básicos de Saúde.
gastroenteritis in children in Europe: update 2014.J
23. Carrari MHC, Taha S, Morais MB. Antibioticoterapia na
PediatrGastroenterol Nutr. 2014 Jul;59(1):132-52.
diarreia aguda por Shigella: qual a melhor opção?J Ped
12. Gutiérrez Castrellón P, Polanco Allué I, Salazar Lindo (Rio J) 2012;88:366-7.
E. Manejo de la gastroenteritis aguda en menores de
24. Hill C, Guarner F, Reid G, Gibson GR, Merenstein DJ,
5 años: un enfoque basado en la evidencia. Guía de
Pot B, et al. The International Scientific Association
práctica clínica Ibero-Latinoamericana. An Pediatr (Barc).
for Probiotics and Prebiotics. Nat Rev Gastroenterol
2010;72:1-19.
Hepatol.2014;11:506-14.
13. Gutiérrez-Castrellón P, Salazar-Lindo E, Polanco-Allué
25. Szajewska H, Guarino A, Hojsak I, Indrio F, Kolacek S,
I, Grupo Ibero-Latinoamericano sobre el manjeo de
Shamir R, et al. Use of Probiotics for Management of
la diarrea aguda (GILA). Guía de práctica clínica ibero-
Acute Gastroenteritis: A Position Paper by the ESPGHAN
latinoamericana sobre el manejo de la gastroenteritis
Working Group for Probiotics and Prebiotics. J Pediatr
aguda en menores de 5 años: enfoque, alcances y
Gastroenterol Nut 2014; 58:531-9.
diseño. An Pediatr (Barc). 2014;80(Supl 1):1-4.
14
Diretoria
Triênio 2016/2018
15