Quem é essa tagarela?
By Cris Bicudo and Larissa Caldin
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Quem é essa tagarela? - Cris Bicudo
Quem é essa
tagarela
?
DEDICO ESTE LIVRO AOS MEUS PAIS, AUGUSTO E ELIZABETH.
SEM ELES, EU NÃO SERIA O QUE SOU HOJE!
Às minhas irmãs, Celina e Marcia que me acompanham, sempre me incentivando, ajudando e apoiando ao longo do meu caminho. A meu irmão Pedro Augusto e meus sobrinhos, Luiza, Natália, Rodrigo e Mateus que, com sua alegria, amor e carinho, são um constante ensinamento para mim.
À minha querida fonoaudióloga, minha segunda mãe, Anna Maria.
Aos meus queridos padrinhos, Tio Luiz e Tia Carmen, sempre presentes em minha vida.
Aos médicos que cuidaram da minha saúde auditiva, Dr. Orozimbo e Dr. Clemente.
In memoriam, à minha querida e amada vovó Celina, que sempre me incentivou a escrever e a ler. Jamais se esquecendo do meu livro
, sempre me perguntava: E o seu livro?
Agradeço a toda minha família, tios e primos, que participam da minha vida. E aos meus amigos que fazem parte da minha história.
Sumário
Prefácio
Introdução
Mais algumas palavras
Cotidiano
Minha Família
Nossa casa
A constatação
Médicos, médicos e... mais médicos!
Um bom início
Ei, tem alguém aí?
O diário de minha mãe
Doces memórias em família
Rafael
A aventura de estudar em Carrossel
Eu, uma garotinha bilíngue
Mais aventuras em Carrossel
Tentativas de me integrar
Popularidade em alta
Um breve parêntese
Clima de paquera
Descobertas
Pedido de desculpa
Mudanças
Superando desafios e dificuldades
Análise sobre o valor da amizade
Parcerias
Férias inesquecíveis
O despertar de uma paixão
Viagem com vovó Celina
Vivendo minhas histórias
Seleção natural
Algumas dificuldades
Adaptações
Princípios vivenciados e refletidos por mim
Leitura labial
Minhas companheiras
Um dos maiores mistérios da Medicina
Hafandy
Tempo em família
Um grande ano
Curitiba
A superação do Hafandy
Minha luta por um lugar ao Sol
Novos tempos
Um ano cheio de desafios!
Um aniversário marcante
E o tempo foi passando...
Pai! Tenho novidade!
Os primeiros seis meses
Natal Especial
O ano decisivo
Casos, histórias, experiências
Como se diferenciar no trabalho com leitura labial...
O retorno
O susto
China
Alguns fatos interessantes e divertidos da viagem
Cinco dias sozinha na Cidade Luz!
Conclusão
Prefácio
Você encontrará aqui uma leitura fácil e agradável, em um ângulo diferente da história: como a deficiência auditiva é vista de dentro para fora. A limitação que médicos, parentes e amigos notam é apenas parte do que o portador sente. Às dificuldades inerentes à própria condição é acrescentado o fator emocional que acaba deformando, ora para pior ora para melhor, os acontecimentos da vida.
Quando Cris abriu os olhos para a vida encontrou o silêncio em um mundo sonoro de intensa comunicação. Cris é portadora de uma perda auditiva profunda em que apenas sons muito intensos e principalmente de tonalidade grave podem ser ouvidos. Assim, foram feitos numerosos testes com resultados complementares e, aos poucos, a família foi entrevendo um futuro trabalhoso e diferente para ela. Finalmente, concluiu-se que, indubitavelmente, um problema existia.
Quando o problema foi detectado, apresentaram-se inúmeras perguntas. O que fazer?
. O tipo de perda auditiva de Cris é o que aproveita a sensibilidade de células ciliadas maculares e de cocleares remanescentes permitindo ouvir sons de alta intensidade, porém com baixa discriminação. Mas como seria possível tratar e estabelecer uma educação especial para que ela pudesse viver e se desenvolver no mundo de ouvintes, que muitas vezes é cruel com quem apresenta alguma deficiência?
.
Depois de muitas consultas, Cris caiu nas mãos da fonoaudióloga Anna Maria Vasconcellos, uma apaixonada pela habilitação de deficientes auditivos. O objetivo de seu trabalho é que seus pacientes possam viver em um mundo de comunicação sonora. Então, o trio – Cris, Anna e a família – foi construindo uma nova Cristina capaz de enfrentar o mundo com alegria e desenvolvimento intelectual normal e ainda conseguir, com seu exemplo, ajudar outras crianças portadoras dessa deficiência.
Do ponto de vista médico, quando Cris já havia desenvolvido uma comunicação oral, foram se aperfeiçoando os implantes cocleares que, atualmente, são implantados até em bebês. Hoje pesquisadores já conseguem resultados admiráveis em relação à regeneração das células sensoriais auditivas e ao aperfeiçoamento dos implantes cocleares.
Portanto, um livro como este é um estímulo aos deficientes auditivos, às suas famílias, aos profissionais envolvidos em reabilitação e aos pesquisadores que procuram novas soluções.
Ao final, o leitor fica com a sensação de respeito e admiração pela autora. Aquele tipo de consideração que se tem pelas pessoas que ganham um concurso, obtém um título ou ganham uma grande competição.
– Clemente Isnard Ribeiro de Almeida
Otorrinolaringologista, CRM/SP 12089.
Doutor em Medicina pela FMUSP, Professor Titular e
Emérito pela FMJ, Ex-orientador da Pós-graduação da FMSCM-SP.
Muito se tem escrito no mundo da audiologia educacional sobre a reabilitação auditiva na infância. Felizmente a bibliografia e o nível de informação aumentaram muito a partir dos anos 60, no Brasil e no mundo de maneira geral. Entretanto, naquela época a bibliografia existente era em língua inglesa, francesa, espanhola e outros idiomas.
Em nosso meio, as publicações na área começaram a surgir a partir do final da década de 60, início de 70, em português. Nos cursos de fonoaudiologia, não era possível levar casos para serem discutidos, pois a experiência com os mesmos era restrita. A situação foi mudando, e o diagnóstico precoce passou a ser uma realidade e a reabilitação também.
Hoje passadas aproximadamente quatro décadas, vivemos outro momento e os próprios pacientes portadores de perdas auditivas dão depoimentos muito importantes de vida e de aprendizado aos profissionais.
No caso desta publicação, onde a minha tarefa é escrever o prefácio, existe um misto de orgulho, de emoção, de afeto e muito carinho pela Cristina.
Posso dizer que hoje, passados quase quarenta anos, nosso vínculo não é mais de terapeuta e paciente.
Nesta obra, há uma experiência na própria pele de alguém que um dia, aos dois anos de idade, passou por um diagnóstico precoce de surdez e enfrentou todas as etapas da estimulação. Uma família, seus pais e irmãs, além de uma avó maravilhosa que infelizmente se foi, se dedicaram com afeto e sabedoria para o melhor desenvolvimento possível desta pessoa que um dia foi criança.
O importante para o leitor é poder aprender com a experiência da autora, a conquista de um espaço na sociedade, de alguém com uma vivência rica.
Creio que todos vão aprender na leitura deste livro precioso, que apesar da privação auditiva, o futuro não necessariamente fica prejudicado. Aprendi e aprendo a cada dia o quanto os desafios podem engrandecer, enriquecer, alegrar, trazer dúvidas, ultrapassar barreiras e atingir metas.
Como mencionei lá atrás meu sentimento hoje é de amiga, é maternal, é fraterno e profundo. Gostaria que cada leitor percorrendo o caminho desta jovem, compreenda onde ela chegou e possa usufruir dessa trajetória rica e complexa.
A autora enfatiza que as outras pessoas que a conhecem ficam surpresas ao tomar conhecimento do grau de perda auditiva que ela tem. Mas o que mais ressalta é outro fato, as outras qualidades que ela possui.
Creio que este é o momento para que ela se posicione como ser humano, como uma profissional de jornalismo e como escritora. Além disso, dotada de uma curiosidade pela vida no surpreendente desempenho linguístico, que ultrapassa qualquer barreira de comunicação. Com muita facilidade de cativar outras pessoas em distintas posições com sua simpatia. Jamais deveria ser vista como uma pessoa portadora de deficiência, traço que já foi ultrapassado.
É uma pessoa que se superou por seu esforço e mérito próprio.
– Anna Maria Amaral Roslyng-Jensen
Fonoaudióloga Clínica – CRFª nº 4549-SP; bacharel em Fonoaudiologia pela PUC (1972); Especialista em Audiologia – Universidade Federal de São Paulo (1992) e Conselho Federal de Fonoaudiologia (2005); mestre em Distúrbios da Comunicação Humana: Campo Fonoaudiológico / Escola Paulista de Medicina – Universidade Federal de São Paulo (1995) UNIFESP. Fellow - American Academy of Audiology e atuação em reabilitação auditiva e distúrbios específicos de linguagem em crianças.
Introdução
Olá, muito prazer! Meu nome é Cristina, mas pode me chamar de Cris, se preferir. Sou deficiente auditiva desde o nascimento e oralizada. Dessa maneira, me comunico facilmente e gosto muito de compartilhar o que vejo, penso e sinto. Contudo, uma coisa que não faço é sair por aí anunciando que uso aparelhos auditivos. Não que eu tenha vergonha
, afinal, isso é algo que faz parte da vida. Mas se eu anunciasse tão logo chegasse a um lugar seria tão absurdo quanto alguém acenar com uma bandeira que usa lentes de contato, ou uma prótese na perna, ou porta um marca-passo, ou ainda qualquer coisa semelhante.
Sinceramente, acredito que há o momento certo para tudo e depende da pessoa, da situação, do tempo de convivência, dos valores que me apresentam, para poder me abrir. Em resumo, considero muito mais importante o outro me conhecer e ver como realmente sou, antes de contar sobre a minha audição.
No entanto, aqui neste espaço, neste livro, quero abordar de forma divertida e inusitada a questão da deficiência auditiva e, por que não dizer, desmentir e lançar um novo olhar sobre o estereótipo de limitação que cerca os deficientes, nas mais diversas situações. Para tal, uso uma abordagem vivencial ao relatar várias circunstâncias em que será possível perceber minha peculiar maneira de ser e de encarar desafios iguais aos que todos somos confrontados diariamente.
Desde já explico que este não é um livro de autoajuda. Entendo que cada pessoa tem sua opinião, personalidade e forma de agir. Mas, sinceramente, desejo que a leitura dele sirva como reflexão sobre os mais diversos acontecimentos da vida; fatos que ocorrem tanto a deficientes quanto a não deficientes.
A ideia de escrevê-lo nasceu há muitos anos...
Lembro que era aniversário de uma amiga querida, Carla, eu sempre gostei de festas, de estar com pessoas e queria muito comemorar com a minha amiga. No mesmo final de semana, acontecia na cidade um Simpósio. Minha mãe conversara comigo e me dissera que gostaria que eu fosse. Eu não tinha a mínima ideia do que era um simpósio
e a bem da verdade não queria perder a festa de jeito nenhum! Porém, no meio da festa, a campainha tocou e quem apareceu à porta foi a Mariana, a filha da minha fonoaudióloga. O objetivo? Levar-me a tal reunião. Acabei indo, pois não havia como dizer não.
Chegando ao auditório fiquei impressionada com o tamanho e a diversidade do público. Estavam presentes pais de crianças deficientes auditivas, médicos, fonoaudiólogos de várias cidades e até alguns estrangeiros e também estudantes do curso de Fonoaudiologia. Mariana me chamou para sentar logo na primeira fileira. À frente havia um palco, sobre ele uma mesa comprida e várias pessoas compondo, inclusive minha mãe e a Anna Maria, minha fonoaudióloga. Na sequência escutei alguém me chamando. Não entendi muito bem o que era para fazer.
– Cris, é para você ir se sentar entre a sua mãe e a minha – me explicou Mariana. – Querem conhecer você!
Na hora, fiquei meio tímida... Mas fui. Sentei-me na cadeira e, em seguida, me passaram um microfone. Silêncio total na sala! E aí? O que eu tinha de fazer?
Finalmente, Anna Maria deu início, me apresentando ao público.
Então, contei um pouco da minha infância que foi marcada por um grande aprendizado com muitas brincadeiras e criatividades da minha mãe e de toda minha família, que me estimulava com diferentes sons, para que eu pudesse discriminá-los e associá-los à origem do barulho. E, além disso, eu era uma criança interessada em aprender e conhecer o mundo, sempre querendo saber tudo o que acontecia à minha volta. Falei também sobre minha atuação na escola, onde eu tinha muitos amigos e era ótima aluna, isto porque gostava de estudar e me esforçava sempre para aprender e tirar notas boas para passar de ano. Comentei ainda que ajudava os colegas que tinham dificuldades em matérias como Português e História, e todos acharam graça no fato de eu ter de ensinar aos outros essas matérias, em especial Gramática; matéria esta que dominava muito bem.
Minha mãe, ao meu lado, contou também da experiência dela como mãe, ao perceber que eu não ouvia. Falou dos médicos e de como se empenhou em me ensinar e deu o melhor de si para que eu me comunicasse perfeitamente. À mesa estavam também especialistas americanos e dinamarqueses. Um deles, o Dr. Robert, me perguntou em inglês:
– How can you be so beautiful? (Como você pode ser tão bonita?)
Brincando, respondi timidamente, também em inglês, ao microfone:
– I don’t know. Thank you! (Eu não sei. Obrigada!)
Pais e estudantes de fonoaudiologia adoraram saber que eu falava inglês também.
Quando a apresentação acabou, ninguém quis ir embora. Muitos pais vieram conversar comigo e com minha mãe; os estudantes queriam saber como eu aprendera a falar. E um deles me sugeriu:
– Por que não escreve um livro sobre você? Acredito que todo mundo vai querer ler!
Pronto... A semente estava lançada.
Admito que naquele momento, sendo uma adolescente, a sugestão foi apenas uma ideia. Mas com o tempo, com a maturidade, percebendo a necessidade de muitas pessoas e querendo contribuir, escrevi este livro contando um pouco da minha história.
É provável que hoje, haja pessoas, das novas gerações, que falem bem ou até mesmo melhor do que eu. Porém, a deficiência auditiva ainda esbarra em uma série de preconceitos ou na falta de conhecimento, o que, em geral, traz desânimo e mina a esperança. E, infelizmente, quando a desesperança se apossa das pessoas, pouco há para se fazer.
É por esta razão que peço aos pais para que se informem a respeito de todas as opções existentes para a reabilitação de sua criança deficiente. Cabe a vocês decidirem o que é melhor para ela.
Mas, acredito, sinceramente, que TUDO É POSSÍVEL, independente de qual seja o problema, a deficiência ou a dificuldade de cada ser humano. Eu mesma superei várias adversidades ao longo da minha vida, e terei o prazer em compartilhá-las com você.
Por isso, desejo, acima de tudo, que este seja um livro agradável, leve, divertido e esclarecedor para todos.
– Cris Bicudo
Mais algumas palavras
Pertenço, como muitos, a uma geração anterior ao advento da fantástica tecnologia que temos hoje à nossa disposição. Sou do tempo em que não havia Internet, esse portal mágico que possibilita o acesso a milhões de sites, dos mais confiáveis aos totalmente sem credibilidade, dependendo apenas da vontade do usuário ir até os limites de sua capacidade de exploração.
Nasci em 1975, época em que a tecnologia engatinhava. Naquele tempo não existia, por exemplo, o celular, no qual falamos sobre qualquer coisa e que ninguém mais consegue se imaginar sem, com suas muitas facilidades de comunicação, como os torpedos e os aplicativos de conversa instantânea. Em função de tudo isso, e muito mais, reconheço o importante papel de meus pais em minha formação, pois sem esses recursos e nenhum conhecimento, saíram em busca de informações sobre o meu problema. Eles jamais desistiram, embora algumas adversidades que surgiram no caminho tenham lhes dado essa vontade. Meus pais foram apoiados; até o fim de todas as possibilidades; por meus tios, tias, amigos, primos e todos aqueles que fizeram e fazem parte da minha vida, para que eu pudesse me tornar quem sou hoje.
Sou a caçula em uma família de três, portanto, quando nasci, meus pais já tinham minhas duas irmãs mais velhas. Não foi fácil nos sustentar e educar, além de terem de arcar com todas as despesas que surgiram como, a compra de meus aparelhos, moldes, baterias, sessões contínuas de fonoaudiologia, médicos e tudo o mais. Embora meus pais tenham se privado de muitas coisas em meu benefício, recebi a mesma educação que minhas irmãs, com a diferença de que recebia mais estímulo e maior número de repetições nas explicações e exercícios.
Agradeço imensamente a minha família por tudo que sou.
Contudo, tenho plena consciência de que devo o sucesso dessa empreitada ao trabalho que minha família realizou em conjunto com a minha fonoaudióloga, Anna Maria. Sou muito grata a ela pelo tratamento inovador e diferenciado a que me submeteu, em uma época na qual as primeiras turmas de Fonoaudiologia ainda estavam se formando.
Assim, incentivados pelo médico e pela fonoaudióloga, foi iniciado imediatamente um treinamento intenso, com especial participação de meus pais, minhas irmãs e toda a família, pois eles procuravam tirar o máximo proveito do restinho de audição que eu possuía. Essas pessoas, em conjunto, me ajudaram a discriminar os sons e a origem deles; de onde esses sons vinham. Mas o mais importante de tudo foi o fato de eu ter aprendido a falar, articulando com nitidez e clareza cada palavra. Mais incomum ainda foi ter aprendido a conversar em um tom constante de voz, mesmo quando estou sem aparelhos, pois com o tempo o processo todo se tornou bastante natural, incorporando-se à minha maneira de me expressar.
Só tenho a agradecer a todos que me ajudaram neste processo.
Nunca se pode concordar em rastejar, quando se sente ímpeto de voar.
– Hellen Keller, (1880 – 1968) escritora, conferencista e ativista social americana cega e surda. Através de sua vida o método Braile passou a ser mais difundido.
Cotidiano
Cinco horas da tarde de uma sexta-feira de bastante movimento. Eu estava dentro de um supermercado. Terminei minhas compras e percebi que todos os caixas tinham filas quilométricas. Contudo, há pouco mais de dois metros, o caixa para pessoas com deficiências, gestantes e idosos contava com apenas um cliente, que terminava de pagar suas compras. Sem hesitar, rapidamente me dirigi para lá. O atendente me abordou com educação:
– Desculpe-me, moça, mas este caixa é reservado a deficientes físicos e gestantes. Por favor, pode se dirigir a outro caixa?
Com olhar divertido, perguntei:
– Um deficiente visual pode usar essa fila?
O rapaz acenou um sim com a cabeça, o que me fez completar:
– Neste caso, eu também posso, pois sou deficiente auditiva.
O caixa me encarou com reserva e estranhamento:
– Você é mesmo deficiente auditiva? Não parece...
Para provar que não estava aplicando nenhum golpe só para me aproveitar da rapidez e da facilidade do seu caixa, mostrei-lhe meu diminuto aparelho de audição, afastando os cabelos por trás da orelha, é lá que ele se encontra acoplado de maneira discreta. E expliquei:
– É com esses aparelhos que consigo ouvir.
Interessado e com espanto, ele perguntou:
– Quer dizer que sem os aparelhos você não escuta nada?
– Isso mesmo!
– Puxa, e você ouve super bem! Nem dá para perceber. Que incrível! Mas você interage normalmente! E ainda... fala!
A resposta dele não foi incomum e nem despropositada. Estou acostumada a ser alvo de reações semelhantes, aonde quer que eu vá. Acredito que eu faça parte de uma diminuta, quase insignificante parcela da população com deficiência auditiva profunda, que foi diagnosticada muito cedo; o que me possibilitou levar uma vida normal, com uma comunicação verbal com as outras pessoas, que se processa em níveis iguais.
Ao contrário de alguns deficientes auditivos que só conseguem fazer leitura labial – habilidade que também detenho, que foi adquirida naturalmente e já me tirou de muitos apuros, além de ter me ajudado em várias situações que relatarei mais adiante –, eu ESCUTO de fato e FALO, articulando bem todas as palavras.
Mas é interessante como isso causa estranhamento às pessoas e muitas delas, que deveriam estar acostumadas a lidar com deficientes, não o sabem fazê-lo. Lembro-me de quando comecei a batalhar por um emprego e fui ao Ministério do Trabalho deixar o meu currículo. Eu estava na fila de informações, enquanto observava o homem que tirava as dúvidas das pessoas que estavam à minha frente. Ao chegar a minha vez, perguntei:
– Boa tarde, queria saber; onde fica a seção de atendimento aos deficientes? – Ao perceber que ele me olhava com ar estranho, tentando adivinhar qual seria a minha deficiência, acrescentei rapidamente:
– Sou deficiente auditiva!
Imediatamente, o homem fechou a boca e começou a fazer gestos, apontando para o balcão, no qual havia uma lista com vários documentos exigidos.
– Não tenho comigo a audiometria e nem o comprovante de endereço – continuei, após a leitura dos itens. – São necessários mesmo?
Ele fez sinal de positivo
com a mão. Eu simplesmente não estava entendendo por que o homem não falava nada. Comecei a imaginar que ele se tornara um mímico! Em resposta, fiz sinal de positivo
com as minhas mãos. Em seguida, ele fez com a mão umas voltinhas no ar, indicando que era para eu retornar outro dia. Mantendo a calma, esclareci em tom firme:
– Obrigada pelas informações e pelas mímicas, foram muito úteis. Voltarei outro dia com todos os documentos necessários.
Na hora de ir embora, fiz sinal de positivo
com a mão, novamente. O melhor de tudo foi que, ao me afastar, a próxima pessoa da fila, que estava logo atrás de mim, ouviu toda a conversa e perguntou para o homem da informação, em tom de brincadeira:
– Eu vou ter de fazer mímica, também?
Isso é parte do meu cotidiano; encontrar pessoas que se surpreendem, que me apoiam e outras que não sabem como lidar com minha deficiência. Mas ainda assim, posso dizer que tenho conquistado meu espaço, me comunicado, passado o meu recado e porque não dizer; TAGARELADO. Mas tudo isso é uma longa história, que quero contar... do início!
Minha Família
Papel fundamental em minha vida
Agradeço todos os dias a Deus pela família maravilhosa e especial que eu tenho! Jamais teria conseguido me tornar o que sou hoje sem meus pais e minhas irmãs!
Tanto a família do meu pai quanto a da minha mãe é numerosa. Adoro ver as fotos! Os meus avós também tiveram parte muito importante na minha vida. Embora não tenha conhecido o meu avô materno, que faleceu antes de eu nascer, cresci ouvindo histórias de seus feitos e da construção da estância turística Águas de São Pedro. Se essa cidade, no interior do estado de São Paulo, existe, é por causa da visão deste grande homem, meu avô. Ele começou do nada e tornou-se um grande empreendedor. Era um homem muito esforçado e extremamente inteligente.
Casou-se aos 42 anos com minha avó Celina, que tinha 19 anos. Ela era do Rio de Janeiro. Devido a uma crise de alergia, o médico indicou Águas de São Pedro para que se recuperasse com as águas termais. Daí a conhecer meu avô e ser pedida em casamento no mesmo dia, foi um passo!
Minha mãe foi educada em um ambiente familiar bem conservador, em que meu avô valorizava muito a importância da educação, do respeito e a manutenção de bons valores morais. Ela é a filha mais velha e única mulher dos cinco filhos que meus avós tiveram. Não sei muito como foi sua infância, mas mamãe transmitiu para mim e minhas irmãs todos os ensinamentos básicos de etiqueta, tais como: saber se comportar direito à mesa, pegar os talheres, colocar guardanapos no colo, aguardar todos terminarem de comer antes de levantar e outras coisas. Jamais permitiu palavrões e coitado de quem o dissesse: era castigo na certa! Meu avô dizia que com dinheiro se compra qualquer coisa, mas educação, não. Ou a pessoa tem ou não! Meu avô afirmava categoricamente que dinheiro, ganha-se ou perde-se, mas a educação ninguém pode tirar de nós.
Já minha avó paterna casou-se aos 16 anos e meu avô era dez anos mais velho do que ela. Juntos tiveram seis filhos, todos homens. Meu pai e seus irmãos tinham grande respeito pelo meu avô, inclusive pediam a bênção todas as vezes que o encontravam.
Considerando a época em que meus avós viviam, as mulheres eram apenas donas de casa
; suas preocupações eram cuidar da casa, do marido e dos filhos. O sistema era patriarcal.
Em minha família, predomina o tipo moreno, de cabelos castanho-escuros, tanto do lado paterno quanto materno, com exceção de minhas duas avós. A mãe do meu pai era descendente de alemães, portanto, loira de olhos azuis. Já a minha avó materna é loira de olhos verdes. É engraçado pensar que venho de uma família com tamanha hegemonia masculina. Recordo-me de um dia, na aula de Ciências da 5ª série¹, estudando os cromossomos masculinos e femininos, com suas características para cabelos castanhos ou loiros, e fazendo a árvore genealógica da família, constatei que não tenho nenhuma tia
, somente as tias tortas
ou postiças
que entraram para a nossa família pela união com meus tios, claro. Percebi também que todos os filhos de meus avôs são morenos; não há nenhum loiro com os olhos claros! Minha constatação chamou a minha atenção e a de meus colegas da classe também.
Mas sobre minha família devo dizer que minha mãe é uma mulher muito bonita, morena, de altura mediana, dona de um sorriso lindo com dentes perfeitos. Digo isso porque ela nunca usou aparelho ortodôntico. Mamãe sempre gostou de dançar, além de ser uma pessoa alegre, divertida, que teve uma infância privilegiada. Na adolescência, conviveu com muitas amigas e primas e desfrutou de férias incríveis e passeios. Foi tia Stela, uma de suas primas, que à época namorava um dos irmãos mais velhos de meu pai; tio Carlos; quem apresentou meu pai a ela. Ambos formavam um casal jovem e bonito. Após um ano e meio de namoro se casaram. Meu pai tinha 24 anos de idade e minha mãe, 20.
Pelo registro das fotografias, imagino que o noivado dos meus pais tenha sido lindo! Aconteceu em Águas de São Pedro, na casa do meu avô, em volta de uma mesa comprida, toda enfeitada de flores, com as duas famílias reunidas!
E o casamento, então... Minha mãe estava linda! Com um vestido branco