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2 Maiacovski /- at? “ ANTOLOGIA POETICA Estudo biografico e tradugdo de Emilio C. Guerra EDITORA MAX LIMONAD LTDA. Rua Quintino Bocaitva, 191 — 4.9 Sao Paulo — Brasil Série Literatura — 3 Titulo: Antologia Po¢tica Autor: Maiacovski Tradugdo: E. Carrera Guerra Capa: Walkyria Suleiman R edi¢ao: (Editora Leitura S.A.) 1963 2.* edigdo: (Editora Leitura S.A.) s/d ~" pela Editora Max Limonad Ltda.) 1981 42 edit @ pela Editora Max Limonad Ltda.) 1984 igao: (3.* pela Editora Max Limonad Ltda.) 1984 6." edicdo: (4.* pela Editora Max Limonad Ltda.) 1987 Copirraite da tradugao: Isadora Coutinho Guerra Copirraite da presente edicao: EDITORA MAX LIMONAD LTDA. Rua Quintino Bocaitiva, 191, 4.° andar CEP 01004 — S80 Paulo — SP — Brasil Tel.: (O11) 35-7393 ne _ These + + See Prefécio Aos jovens poetas do Brasil Comegamos a escrever e a publicar este estudo sobre Maia- covski nas paginas da extinta revista Temdrio (n.™ 2 a 5; 1951- 1952). O trabalho — que foi ultimado, mas ficou em sua maior parte inédito — dividia-se em duas partes, acentuando-se, na primeira, de preferéncia a vida do poeta dentro de seu tempo e lugar e, na segunda, a obra, focalizando-a em seus diversos aspectos e em suas repercussdes universais. E essa primeira parte do ensaio, refundido e resumido, que ora ceproduzimos aqui. Todavia, o leitor interessado também encontrar4 aqui as indicagdes fundamentais sobre a obra do poeta, de vez que a vida e a obra de Maiacovski esto de tal modo entrelagadas que nao se pode escrever sobre uma sem mencionar a outra. : Por outro lado, se vida e obra se interpenetram, com igual vigor inserem-se ambas nos grandes acontecimentos da que testemunharam. Maiacovski é o poeta da Grande Revo- lugéo Russa de Outubro de 1917, 0 poeta do socialismo nas- cente, donde a necessidade de, tratando-se de sua vida, esbocar © quadro histérico em que atuou. Pela mesma raziio, fomos levados a descrever o panorama da literatura soviética anterior a 1930, pois fora de seu ambito especffico nfo se compreende- tia a atividade do poeta participante, Neste ensaio, a intengio de informar predomina sobre a de interpretar. Daf a abundancia de citacdes e as referéncias da bibliografia. A exposicio segue, tanto quanto possfvel, a ordem crono-_ Desejamos apresentar Maiacovski as pessoas que, jf 0 co- nhecendo de nome, nao tiveram por tal.ou qual motivo oportu- nidade de conhecé-lo mais de perto ¢, sobretudo, a indmera gente que, nunca tendo ouvido falar dele, terd uma revelacio feliz no vulto do grandioso poeta. . De fato, muito pouco foi escrito sobre Maiacovski, em nossa lingua. Mério de Andrade foi provavelmente o primeiro a mencioné-lo de passagem, com simpatia, — e como futurista apenas — no seu A Escrava Que Nao é Isaura, escrito em 1924. Outros se tém limitado a simples referéncia nominal. Tudo que pudemos coligir em nossa lingua, com cardter de estudo ou: 3 de informagao especial, foi a conferéncia (1946) de Carlos Burlamaqui Kopke, inserta entre os ensaios de Fronteiras Es- tranhas, Sua Unica fonte, porém, no que tange ao poeta, parece ser a Antologia de Maiacovski da escritora argentina Lila Guer- rero, que tem sido, alids, a maior e melhor artifice da gloria de Maiacovski na América Latina. Também para nés, foi o livro de Lila Guerrero (1943) o veiculo da “‘descoberta” admiravel, logo registrada, com entu- siasmo, no artigo “Maiacovski, mensagem aos incrédulos”, ent&o publicado na revista estudantil Renovacdo. S6 muito recentemente 6 que Maiacovski péde aparecer em fivro pela primeira vez,.em nossa lingua, com os quatro poemas traduzidos e enfeixados no luxuoso volume da colegio Maldoror (Philobiblion, Editora Civilizagdo Brasileira, 1956). Ao que sabemos, a isto se reduz, até agora, a bibliografia de Maiacovski entre nds *. 7 Por isso —- e para n&o fugir 4 presun¢g%o de todos os prefacios — acreditamos que este trabalho venha, realmente, preencher uma lacuna ¢ corresponder ao que em outros paises cultos se tem feito pela divulgagao do grande poeta russo. Os poemas que compdem a Antologia sfio quase todos rigorosamente inéditos em portugués ¢ alguns 0 sio em espa- nhol. Para traduzi-los, confrontamos versées francesas, espa- nholas e inglesas e, em questées de somenos, consultamos algumas vezes o texto russo. Nio obstante, em certos casos, tivemos que optar antes por uma adaptagio do que por uma tradugdo propriamente dita. Com a publicago desie livro, esperamos servir sincera- mente A Poesia, aos leitores e poetas brasileiros, bem como A grande obra comum, pacifica, de aproximagio cultural e de amizade entre os povos, Rio, 30 de novembro de 1956. E. CARRERA GUERRA * Cabe aqui citar: Poemas, apresentagio, resumo biogréfico e notas de Boris Schnaiderman, tradug’o de Augusto e Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman, Edi- gées Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1967. A Fottica de Maiakévski, Boris Schnaiderman, Editora Perspectiva, Sio Paulo, 1971. Poética, como fazer versos, Maiak6vsky, Global Editora Distribuidora Ltda., 1.4 ed, 1978, 2.2 ed. 1979, 3.4 ed. 1981. (N. E.) 4 A VIDA DE MAIACOVSEI x I — ANTES DE OUTUBRO INFANCIA B JUVENTUDE. MAIACOVSKI E BURLIOK. O GRU- PO FUTURISTA. ELSA TRIOLET TAMBEM DESCOBRE MAIA- COVSKI. O FUTURISMO RUSSO E MARINETTI. GORKI E MAIACOVSKI. LILA BRIK. Vladimir Vladimirovitch Maiacovski nasceu a 7 de julho de 1893, na aldeia georgiana de Bagdadi, que hoje tem o seu nome, A 19 de julho, pelo novo calendério. O préprio Maia- covski informa: Nascido a7 de julho de 1894 ou 1893. A opiniéio de minha mae nao coincide com os documentos de meu pai. Antes, com certeza, nao nasci. Era filho do guarda florestal Vladimir Maiacovski e sua mulher Alexandra Alexdndrovna, tendo duas irmas 0 mais velhas que ele, Ludmila e Olga. A infancia de Maiacovski se passa naquela regio do C4u- caso, em contato libérrimo com a natureza, impregnando-se da grandiosa paisagem de montanhas, florestas e rios, Morava numa casa de madeira, cuja situagio descreveu mais tarde numa autobiografia de estilo telegrafico e humoristico: Em cima vivia a familia e em baixo havia uma pequena fdbrica de vinhos. Uma vez por ano traziam carros de uva. Eu comia, Eles bebiam. Tudo isso acontecia préximo @ fortaleza de Bagdadi. A fortaleza fica enquadrada em suas quatro muralhas. Nos dngulos, os canhées. Nas muralhas, as ameias; detrds da muratha, o fosso. Detrdés do fosso, os bos- ques. E também chacais. E por cima dos bosques, as mon- tanhas. Em versos assim fixaria essa quadra de sua vida: Quando garoto @ gente, preocupada, trabalhava @ eu escapava Para as margens do rio Rion e vagava sem fazer nada. Aborrecia-se minha mae: “Garoto danado!” Meu pai me ameacava com o cinturGo. Mas eu com trés rublos falsos jogava com os soldados sob os muros. Sem o peso da camisa sem o peso das botas torrava-me ao sol de Kutais até sentir pontadas no coragiio. Aprendeu a ler quase sozinho: Eu aprendi o alfabeto nos letreiros folheando pdginas de estanho e ferro. Suas primeiras leituras sio 0 D. Quixote, livros de Jilio Verne e os cl4ssicos da poesia russa, principalmente o Eugénio Onéguin de Pichkin, que o pai Ihe ensina para que recite nos dias em que hé visitas, Ingressa na escola secundéria da cidade de Kutafs e j& a esse tempo manifesta-se muito bem dotado para as artes plasticas, desenhando com facilidade, a ponto de entusiasmar um professor local que lhe dé aulas gratuitas. Mas o imperialismo czarista empenhara-se na guerra con- tra o Japao e, no ano de 1905, em seus tenros onze anos, Maiacovski, favorecido pela estatura precocemente desenvolvida, ia travar os primeiros contatos com a revoluciio, em seu “ensaio geral”, Dé-se a célebre greve dos operirios de Baku. Todo o C4ucaso se agita. O odiado general Alikanov, repzesentante © executor da politica opressora do trono, é justicade pelo povo Para mim — conta Maiacovski —. a revolugdo (de 1905) comecou assim: meu companheiro era cozinheiro de um padre. Chamava-se Isidoro. Ao ter noticia da morte do general Ali- kanov, Isidoro, de alegria, subiu descalgo sobre o teto do forno. Fervilhavam os cfrculos de estudos marxistas e Maiacovski logo aderiu a um deles. Comegou, desde entHo, a considerar-se social-democrata. . Apanhei — diz ele — os trabucos de meu pai e os levei ao comité do Partido. Lé muito. Sua irma Olga, vinda de Moscou, traz e Ihe dé para ler boletins revolucionérios, ilegais. 6 Em segredo me deu uns papéis grandes. Agradaram-me. Muito arriscado, Acendia-se-Ihe a imaginagiio de heroismo juvenil, Em sua casa se discutiam os acontecimentos, lia-se em voz alta a Cangao do Albatroz, poema de Gorki, Referindo-se a esse periodo, diria: Nao sei como se juntaram em minha cabeca os versos € a revolucao. A derrota da revolucZo de 1905 € seguida de uma onda de terror policial. O menino Maiacovski, participe de muitos comicios, é atingido pela violéncia. Durante o pdnico, quando dissolviam uma manifestacéo, atiraram-me ao chio e caiu-me na cabeca um tambor enorme. Assustei-me. Quando. explodiu, pensei que eu mesmo tivesse arrebentado, A morte inesperada do pai muda o destino da familia Maiacovski, obrigando-a a trasladar-se para Moscou. O tumulto que imediatamente se segue é assim resumido por Elsa Triolet: O pai esté morto. A familia se muda para Moscou. £ a miséria negra. 1906-1907, Maiacovski esté no liceu. Aos treze, quatorze anos se apaixona pela filosofia, por Hegel. Pela histéria natural. Mas, sobretudo, pelo marxismo. Em 1908, aos quinze anos, adere ao partido socialista russo {bolchevi- que). E preso, pela primeira vez, acusado de escrever procla- mages, depois solto. Um ano de trabalho militante. Preso uma segunda vez, como implicado na evasio das mulheres do cércere de Novinski, em Moscou. Condenagéo. Durante os onze meses de pristo {tem 15-16 anos), se pée a devorar lite- ratura. Lé os contempordneos e os cldssicos: Byron, Shakes- peare, Tolstdi. Da viagem de mudanga, restara, aos quatro componentes da familia, trés rublos. A mae sublocava quartos, Ludmila e Olga dedicavam-se ao artesanato da pintura de fcones e con- géneres, no que Maiacovski ajudava. Entre os sub-inquilinos, quase todos estudantes ligados ao movimento revolucionério, Maiacovski assiste ao primeiro_suicidio e a primeira condenagio amorte, Apesar do esforgo conjunto, os meios de subsisténcia sio prec4rios e a familia passa fome. Milita sob o pseudénimo de Constantino e sua tarefa 6 a de propaganda entre padeiros, sapateiros ¢ tipégrafos. A 29 7 de marco de 1908, foi descoberta a tipografia ilegal de seu bairro e o poeta, que para 14 se dirigia, foi preso, tendo em seu poder uma caderneta com enderecos. “Comi a caderneta com capa e tudo” — relataria depois. Por tratar-se de um menor, a detenco dura pouco, mas repete-se no ano seguinte. Até que, na terceira vez, transitando de cdrcere em c4rcere, 0 jovem Constantino vai conhecer a famosa prisio de Butirki, apelidada pelo povo de “empresa de pompas finebres”, ocupan- do a cela n.° 103. Por isso escreveu: Eu, no entanto, aprendi a amar no cdrcere me enamorei da janelinha da cela 103 da “oficina de pompas finebres” Si por um raiozinho de sol amarelo dancando em minha parede teria dado todo um mundo. Saido da prisio num dia de inverno de 1910, paira ainda, sobre aquele jovem de 16 anos, uma condenagiio de trés anos de degredo, que sé nao é cumprida gracas a influéncia de amigos e companheiros. Entretanto, Maiacovski nao conhece- tia majs descanso. Quer completar os estudos, quer preparar-se para a grande tarefa poética a que se sente chamado. Mas, ou porque nao tivesse encontrado ainda a expresso para seus sonhos ou por- que outra escola nfo o aceitasse em face de seus antecedentes politicos, matricula-se na Escola de Belas-Artes, dirigida pelo principe Lvov que, cedo, o aconselharia a deixar “a critica e a agitagaio”. O caderno de poemas escrito entre as grades fora apreendido 4 safda do autor que, aliés, ndo deu maior impor- tancia a perda, Com o experimento, verificara a impossibilidade de expri- mir sua vida, suas emogées, seus ideais, usando a forma sim- bolista dos corifeus entao em voga: Bélmont, Britissov e Biéli. Estes nfo tinham ido além de uma reforma da linguagem, opondo-se a poesia oficial dos académicos e, naquele momento, por sua vez se oficializavam como decadentes; numa época conturbada, continuavam “a atirar alegremente ananases ao 8 céu”, De que poderia ver melhor do que eles, Maiacovski nao tinha dividas. Mas sentia faltarem-Ihe conhecimentos, expe- riéncia, que pensava adquirir numa universidade. Prosseguir na militancia estrita seria, aquela altura, passar forcosamente & clandestinidade completa, o que lhe obstaria os planos. ...Que posso opor as estéticas antiquadas que me ro- deiam? Por acaso a revolugdo nao exigiréd de mim que passe Por urna escola séria? Fui visitar um camarada, Medvédev, que era ent@o para mim um camarada do Partido. “Quero fazer uma arte socialista”. Meu amigo se pés a rir as gargalha- das: “Tens os olhos maiores que a barriga’. Interrompi o trabalho de militante e me pus a estudar. Fez-se aluno do pintor Iucovski e depois de Keling. Além de daminhas, pintava jarrinhos de prata. No fim de um ano percebi que me ocupava de labores domésticos, Fui para o estidio de Keling. E um realista. Bom desenhista. Melhor mestre. Firme. Varidvel. Exige maestria. Nao su- portava o bonito. Passei um ano fazendo cabecas. Continuava insatisfeito. N&o fora precisamente para fazer “cabegas” que interrompera a militancia. Sua grande ambigio era fazer arte socialista. E tal sera o problema que vai resolver ao longo de sua vida, num esforgo consciente ¢ continuo. Na Escola de Belas-Artes, Maiacovski conhece David Burliik, homem culto, mais velho que ele, rude de aspecto, feio mesmo, com sua cara quadrada de boxer, um olho cego e desafiadores lorgnons. Burliik seria o “mestre’, 0 desco- bridor de Maiacovski, aquele que, ao ouvir pela primeira vez um de seus poemas, nao refrearia o préprio entusiasmo, nao Ihe regatearia o qualificativo imediato de genial. Maiacovski nunca deixou de manifestar reconhecimento e ternura por esse amigo, “o espléndido Burlitk”. Ao escutar epiteto tao grandioso quaéo imerecido, alegrei- me tanto que me entreguei por completo a fazer versos. Aquela noite, inesperadamente, fiz-me poeta — recorda Maiacovski em sua pequena autobiografia. Mas o entusiasmo de Burlidk era sélido e, no dia seguinte, j4 apresentava o poeta a um grupo de amigos, dizendo: — E meu atigo, o genial poeta Maiacovski. Este o adverte, puxando-lhe a manga do paleté. Burlidk nao se dé por achado. Quando ficam sés, diz-lhe por fim Burlidk: — Agora escreva, sen@o me deixard numa situagéo muito ridicula. 9 Essa bela amizade, na qual Burliik aparece como o “des- cobridor de todo um continente”, muito contribuiria para o irrompimento, em 1912, do futurismo russo. Ao lado de Burliék e Maiacovski figuram no movimento futurista russo Khiébnikov, Kruchénik e Kaménski, sendo os quatro primeiros signatérios do manifesto “Bofetada no gosto ptiblico”, langada em dezembro de 1912, Khiébnikov é um poeta de “genialidade silenciosa”, en- curvado, timido, com “ar de grande p4ssaro doente”. Errante como um vagabundo, viaja sem cessar, levando como tnica ba- gagem um saco com meia diizia de livros e cadernos de notas, em que recolhe os resultados de suas experiéncias de renovador da linguagem poética e do léxico, sem se preocupar em deixar obra escrita e acabada. Kruchénik, temperamento sombrio, tem de comum com o grupo o anti-estetismo. Kaménski, “muito louro, olhos de um azul de capitéo de navio, boca movedica de mentiroso”, aviador de profissio, possuidor de grande experiéncia literdria, é poeta de “‘extraordinério talento”, que desperdiga no improviso ima- ginoso das conversas, e compGe versos de “aterrissagem inespe- rada e acrobacia formal”, Burliik, o anirtiador do grupo, atrai a ira dos mestres, Maiacovski bate a tecla socialista e o resultado imediato é a agitac¢ao na Escola de Belas-Artes, terminando com a expulsio dos alunos iconoclastas, em 1914. Mas nao sé Burliik. Elsa Triolet também descobriria Maiacovski, j4 futurista, em plena fase da blusa amarela e assim nos relata a sua descoberta: Eu estava na escola. Maiacovski, ainda nas Belas-Artes, rachava de fome e fazia parte dum grupo que se chamou mais tarde “futurista”. . Encontrei-o em casa de uns amigos. Parecera-me gigan- tesco, incompreensivel, insolente. Eu tinha quinze anos e tive muito medo. Foi pouco tempo depois que ele apareceu em minha casa, Tanto quanto me lembro, acabara de vender seu primeiro grande poema: A Revolta dos Objetos, do qual nao encontro rastro em parte alguma, talvez porque tenha mudado o titulo. O fato & que tinha algum dinheiro e imediatamente se havia “equipado”: fizera com que sua mae (pobre mulher!) lhe confeccionasse uma blusa amarelo-liméo que lhe caia no meio dos quadris e que usava sem cinto e com uma grande 10 gravata preta. Uma cartola e um elegante sobretudo comple- tavam o equipamento. As visitas se amiudavam. Maiacovski, naquelas vestes destinadas ao escAndalo, cortejava a adolescente Elsa. Esta, porém, tinha que vencer as naturais resisténcias da familia ante t&o extravagante personagem. A mae de Elsa chorava as es- condidas, preocupada. E, por fim, os encontros tiveram que realizar-se longe da casa, nos arredores da cidade. Deu-se entdo a descoberta: Foi numa noite daquele veriio, no campo, perto de Moscou, que pela primeira vez “auvi” os versos que Maiacovski para si mesmo recitava. lamos andando, lado a lado, no escuro, na ampla aléia n@o iluminada que era aquela rua campestre, entre duas filas de casas atrds de suas cercas... Maiacovski absorto, vago, disse bruscamente em voz alta versos que ndo citarei porque nenhuma tradugdo pode transmitir o que tinham de pateticamente perturbador (...) Parei petri- ficada; acabava de perceber que Maiacovski escrevia versos e que esses versos eu os amava apaixonadamente... — Ahl!, diz Maiacovski, num triunfo desdenhoso, isso te agrada? E até tarde da noite, diante da cerca de uma casa qualquer, Maiacovski recitou-me seus versos... Estava louca de emo- ¢ao, com a descoberta de algo que tivera tanto tempo a meu lado e que ignorava téo totalmente... E queria mais e mais... Os anos da experiéncia futurista Proporcionaram a Maia- covski contatos com poetas mais velhos ¢ mais aparelhados. tecnicamente, as primeiras tournées literarias e o contato com Ppiblico nas agitadas tertilias dos cafés. Depois, no torvelinho produzido pela guerra, numa retaguarda convulsionada, ao avi- zinhar-se a revolugéo — “a misica que estronda no ar rasgado pelo vento”, no dizer de A. Blok — Maiacovski comecaria a desdobrar toda sua envergadura de poeta combatente. O estouro futurista de 1912 era, no terreno da arte e da literatura, ainda um movimento burgués, eivado de contradi- Ges, o que se traduzia em muitos dos seus aspectos, tais como a revolta indiscriminada contra 0 passado, a reduciio do pro- gresso 4 técnica mec4nica, seu formalismo, experimentalismo, Dizia o manifesto: Aos leitores do nosso Primeiro Novo Assombro. Somente nds somos o rosto de nosso tempo. O clarim do Tempo nos i impele 4 arte literdria. O passado é estreito. A Academia e Pichkin sio tio incompreenstveis qugnto os hierdglifos. Jo- guemos Piichkin, Dostoiévski, etc., ete. fora do barco contem- poraneo. O que niéo esquece seu primeiro amor néo poderd sentir o iltimo... Lavai vossas maos da morrinha pegajosa de livros escritos por numerosos Leonidas Andréiev. A todos esses Kuprin, Blok, Sologub, Remissov, Averchenko, Tchérni, Kusmin, Binin, etc., etc., faz-lhes falta uma casa de repouso a beira de um rio. Esse é também o prémio que o destino dé aos alfaiates. Do alto dos arranha-céus conclamamos & sua destrui- ¢Go. Exigimos o respeito aos direitos do poeta... E acertavam em mais de um ponto, Justo era o reptidio ao espirito decadenté dos simbolistas, bem como a funcionali- dade que reclamavam para a arte. Maiacovski, porém, nao se contentava com uma simples “revolta do espirito”. Conforme o assinalou Kaménski, num poema em que o retratou, Maiaco- vski buscava um sentido para aquela revolta, sentido que, para ele, s6 podia ser socialista. Tal busca no the permitia anquilosar-se nas posigdes falsas ou envelhecidas. J4 em £914, escrevia: No ano passado thes fazia falta minha blusa amarela (pre- cisamente aos senhores e niio a mim)... Se pretendia rasgar o “desbotado fraque de Pichkin” era porque a policia, que vivia no encalco daqueles insolentes de- clamadores de café, Ihes proibia terminantemente atacarem a0 czar e a Piichkin, evidentemente depois de reduzir este tiltimo & sensaboria académica. Quanto aos simbolistas, almefstas e demais poetas que se honravam com a denominagéo de decadentes, tinham rompido com a tradicéo humanista e revoluciondria da literatura russa do século anterior e se atolavam no misticismo, no desespero, no culto da morte. Maiacovski denunciava: Bélmont é uma fdbrica de perfumes; Sologub, um coveiro; Andréiev, um pai de suicidios. A tempestade revoluciondria que, cada vez mais nitida- mente, se anunciava, é que havia de permitir a Maiacovski e a outros de seu grupo encontrarem 0 verdadeiro rumo. Mesmo alguns simbolistas, como Blok, Briissov e Biéli, haveriam de engrandecer-se pelo que compreenderam e expressaram do gran- de momento histérico. 12 O futurismo russo diferencia-se fundamentalmente do ita- liano, de Marinetti. O russo precedeu o italiano de, pelo me- nos, quatro meses e evoluiram em linhas diametralmente opos- tas. Enquanto o grupo futurista russo, em sua maioria, com Maiacovski a frente, seguia ou procurava seguir 0 caminho so- cialista, Marinetti, j4 em 1913, passava abertamente ao fascismo. Enquanto aquele se alimentava cada vez mais no manancial do humanismo socialista, Marinetti, do hino ao modernismo meci- nico, passava 4 exaltagao do chauvinismo nacionalista, a pro- paganda da guerra imperialista como “tnica higiene do mundo”. Alias, os dois contrarios se repeliram violentamente ao se de- frontarem, por ocasiao da visita de Marinetti A Russia, em 1914. Marinetti, que fora com intengdes proselitistas, nado teve remé- dio sendo reconhecer que eram muito diferentes as duas corren- tes. Houvera apenas uma coincidéncia de nomes. Outras se- melhangas superficiais néo passavam de produtos comuns 4 Europa da pré-guerra. Desde menino, Maiacovski conhecia Gorki através da Cangao do Albatroz que recitava de cor. Mas, quando se en- contraram pela primeira vez, Maiacovski tinha 19 anos e Gorki 41. A entrevista, ensejada por Kaménski, foi na Finlandia, em Mustaniaki, perto de Petrogrado. O poeta, a esse tempo, j4 compusera algumas partes do seu célebre poema A Nuvem de Calgas ¢ o lé para Gorki. Este emocionou-se até as ldgrimas ¢ ofertou ao poeta um exemplar do livro Minha Infancia, com a seguinte dedicat6ria: “Sem palavras. Do fundo d’alma a Via- dimir Maiacovski. Gorki”, A simpatia de Gorki por Maiacovski nao teve apenas um caréter pessoal. Estendeu-se ao grupo futurista, em cuja ju- ventude enérgica, apaixonada, aureolada de rebeldias, possuida de furia iconoclasta, se ha de ter remirado, com prazer, o ja entiéo maduro romancista. Aqueles jovens, nos dias cadticos da guerra, atacavam a decadente e bem comportada literatura dominante e, por falta de melhor lugar, transformavam os cafés em circulos literatios de polémicas e recitativos. Num desses cafés, “O Cao Vagabundo”, Maiacovski reci- tou um violento poema contra os gozadores e especuladores da guerra. Dizia: A vés outros que viveis de orgia em orgia 13 que tendes banheiros e retretes quentes. A vos outros que nao tendes vergonha de receber a Cruz de S. Jorge, sabei vés outros, medtocres, que sé pensais em como fartar-vos melhor, talvez neste instante com uma bomba tenham arrancado a perna de vosso amigo Petrov, Oh! se ele, levado ao matadouro, visse de repente vossos rostos pintados de ldbios lascivos entoando a Severianin! A vés outros que amais mulheres e pratos n@o entregaremos a vida a vosso capricho. © impacto ferino dessas verdades perturbou a digestio dos convivas, Houve rebuligo no “O Cao Vagabundo”. No dia seguinte, a imprensa desancava os jovens fututistas, pedindo que se amordagasse Maiacovski. Era grande audécia opor-se abertamente & guerra imperialista, quando clérigos de renome, como Andréiev, Kuprin, Merejovski, Bélmont e Hippius for- mavam no coro do patriotismo guerreiro. Gorki, no entanto, j4 famoso e respeitado, teve a esplén- dida coragem de, na semana seguinte ao escAndalo, comparecer ao mesmo café, de brago dado com Maiacovski e de, ali, subindo ao mesmo estrado de onde o poeta fora expulso sob vaias, fazer a defesa dos jovens, nestes termos: Os futurista sGo violinos, bons violinos. Falta apenas-que a vida cante neles com todas as suas melodias. Tém talento. Cantarao bem. Antes, a gente ria-se dos simbolistas e os insultava, agora os consagra. Devemos tratar com mais atengéio e mais amor Qs pessoas. Respeitar mais o trabalho humano. A criagao literéria também € trabalho. Os futuristas tem uma vantagem indiscutivel: sio jovens. A vida pertence & juventude e nao as cabegas cobertas de cas. Outra das vantagens e virtudes dos futuristas é que néo compartilham conosco de algumas teorias de negacao da vida. Nés ndo somos ativos, n@o sabemos amar a vida. E até temos uma teoria de “negacdo do mundo”. Os futuristas, ao contrd- 14 rio, admitem a vida por inteiro, com os automéveis e os aero- planes. Se nao vos agrada a vida, fazei outra, mas o mundo hd que admiti-los tal como o recebem os futuristas. . Eles talvez tenham coisas demais, desnecessdrias, gritam, insultam. Mas que hao de fazer se os agarram pelo pescogo? Tém que defender-se. E, assim, o admirdvel Gorki até a si mesmo sacrificava, alids, injustamente, em holocausto a juventude. Aproveitou-se a imprensa ultramontana da oportunidade, que havia muito buscava, para atacar o romancista, Era-lhe sobretudo insuportavel a tese da criagdo liter4ria como trabalho digno de respeito. Além disso os adversdrios do socialismo farejavam, na amizade nascente entre Gorki e Maiacovski, um sério perigo para suas cidadelas, As etiticas respondeu Gorki num artigo “Sobre o Futuris- mo” publicado ent&o na Revista das Revistas: O futurismo russo nao existe como tal. Existem simples- mente Igor Severianin, Maiacovski, Burlitk, Kaménski e outros. Entre eles hd indiscutivelmente gente talentosa, que serao no futuro grandes escritores. Por ora sao jovens, nao sabem mui- to, nao viram muito, mas, sem divida, comegaréo a trabalhar e @ estudar. Muitos os atacam com insultos e isto é sem dévida um erro enorme. Ndo hé por que insultd-los. H4 que tratd- los com calor, pois mesmo nos insultos dos futuristas hé algo bom. Séo jovens, querem alguma coisa de novo e valioso. O meérito deles consiste em algo mais: em seu empenho de levar a arte a rua, ao povo, as massas e o fazem. E verdade que, as vezes, deformando a realidade. Mas isso se lhes pode perdoar. Séo jovens. E todos eles — ndo sei ainda porque se chamam futuristas — faro o seu, o pequeno e talvez o grande! Tém perspectivas, evidentemente. E preciso o grito, a loucura, qualquer coisa menos este siléncio mortal, este siléncio de gelo. E dificil dizer por ora que forma tomario, mas creio que ser@o vozes novas, jovens. Nds as esperamos, queremo-las. A prépria vida os criou. Nessas condigées. N@o sao abortos. Nasceram a tempo. Eu os vi, hd pouco, pela primeira vez pessoalmente. Vi- vos, verdadeiros. E sabeis? Os futuristas nao so tao terriveis como os pinta a critica e como eles aparentam ser. 13 Tomai, por exemplo, Maiacovski. E jovem. Tem apenas 20 anos. E indomdvel. Tem, sem divida, talento. Deve trabalhar e escreverd versos bons e verdadeiros. Li seu livro de versos. Impressionou-me. Est escrito com palavras ver- dadeiras. Por mais ridiculos ou estridentes que se mostrem nossos futuristas, hd que abrir para eles amplamente o caminho, pois estas vozes jovens chamam a vida, @ nova vida, Nossa juventude sobreviveu a um periodo excepcional. A principio, tivemos uma epidemia de suicidios, que trancou mui- tas vidas jovens e talentosas; depois veio o problema sexual e deformou, arruinou, matou para sempre muitas centenas de mi- lhares de almas. E agora a juventude, creio, quero crer, esté destinada a remogar o mundo, a renovar a atmosfera carregada e enfermica da vida. Deve ela sanear as almas que nao estéo sds de todo ¢ entio, cheia de forca, algar-se-d por cima do caos. Ai est4 Gorki em toda sua grandeza, compreendendo e aplaudindo Maiacovski, desde o inicio. Depois levou-o coma colaborador para a revista Léropis. O poeta se aconselhava com ele. Encontram-se com freqiiéncia na casa dos Brik. Em 1916, Gorki consegue uma edigaéo de 2 000 exemplares para os poemas enfeixados em Simples como um mugido, o que era um grande auxilio para quem, anteriormente, nfo conseguira tirar mais de 300 exemplares de A Nuvem de Calgas. No futuro, Gorki haveria de seguir com igual interesse, mesmo 4 dist4ncid, a trajetéria ascendente do poeta. Anos mais tarde, Nicolas Assiév, ao visitar o romancista, na Itélia, conversaria com ele demoradamente sobre Maiacovski, enquanto que este, num poema, convidava Gorki a retornar 4 URSS. Maiacovski desempenharia na poesia fungao andloga a de Gorki na prosa de ficgao, como pioneiro e inovador revolucio- nario. No periodo de 1914 a 1916, registram-se decisivos acon- tecimentos na vida de Maiacovski. Desde a expulsao da Escola _de Belas-Artes, entrega-se as andancas e turbuléncias da prega- gio futurista, sem um vintém no bolso, faminto, sem teto, dor- mindo muitas vezes na rua. Sobrevinda a guerra, é mobilizado, pouco depois de ter conhecido Lila Brik e por ela, irremediavel- mente, se apaixonar. Se ao front consegue furtar-se, passando gragas 4 interferéncia de amigos, entre os quais Gorki, a traba- Ihar na oficina de um engenheiro; se 4 guerra d4 combate, escre- vendo toda uma série de poemas, tais como: A Tarde grita sem 16 pernas nem bracos, © fechai os olhos dos jornais, 0 como cho- ravam os olhos dourados das fogueiras! e, principalmente, o longo poema Guerra e Paz; se contra a fome inventara o enge- nhoso “sistema dos sete dias”, assim: ...procuro seis conhecidos com quem almocar. Aos do- mingos comia com os lucovski. As segundas-feiras com os Efréimov, etc. As quintas, quase n@o comia. Para um futu- rista de quase dois metros de altura, nao era coisa facil. ..; Contra a paixio de Lila Brik nada pode o poeta, outra coisa nao lhe restou sendo render-se. O acontecimento tem a “data radiante” de julho-de 1915. A Flauta Vertebrada, Guerra e Paz, obras-primas daquele ano, lhe sao dedicadas e, dai por diante, praticamente tudo que o poeta escreveria. Tomaste arrancaste-me o coracgéio e simplesmente foste com ele jogar como uma menina com sua bola. E eu de juibilo esqueci o jugo. Louco de alegria saltava como em casamento de indio tao leve tao bem me sentia. Lila era casada com o editor Oto Brik, quem primeiro com- prou as produgées do poeta, a 50 copeques por linha. Era for- mosa, corpo diminuto, fragil e sensual, olhos escuros e profun- dos. Mulher de personalidade miltipla e cambiante, de grande intuiggo e versatilidade artistica, capaz de escrever, pintar, mo- delar, dangar e representar. Era “triste, alegre, feminina, ca- prichosa, vazia, inconsciente,. inteligente, trabalhadora quando trabalhava, enamorada sempre. Mas era pequeno-burguesa; queria s6 mimos, comodidades. E 0 poeta nao tinha senao seu génio” (Chklévski). Disso tinha consciéncia o apaixonado poeta: Sei. Todos pagam pela mulher. Nao importa 17 Se por ora em vez do luxo de um vestido parisiense visto-te apenas com a fumaca de meu cigarro. Elsa Triolet traga o seguinte retrato da irma: ...@ cabega ruiva jogada para trds, mostrava todos os dentes espléndidos, sdlidos, na boca grande, pintada, os olhos castanhos muito redondos, iluminados, num rosto com esse ex- cesso de expresso quase indecente de intensidade, que faz com que, jovem ou velha, com sua tez miraculosa, ou toda enrugada, os transeuntes sempre se voltem @ sua passagem. E um instantaneo de julho de 1918, flagrante do momento em que se despediam, no cais de Leningrado, Elsa e a mae exilando-se voluntariamente, fugindo da guerra e da peste, Lila ficando. Naquele entao, Lila e Maiacovski moravam juntos nos arredores da cidade assolada pela célera. Juntos ainda haviam de passar outros perfodos, tal como, em Sokolniki, subirbio de Moscou, por volta de 1925, numa datcha da qual Elsa Triolet nos conta: Na peca principal havia um bilhar. Nao sei como esse bilhar fora parar ali, nao fora feito Para aquela sala de dimen- sdo ordindria e onde jd havia um piano de cauda, um grande diva, etc. No veréo comia-se no terrago e havia o Jardim. Os Jogadores podiam rodar em torno do bilhar sem grande incd- modo. Mas, no inverne, ¢ no domingo, quando chegava uma verdadeira multidio de amigos, néo sobrava estritamente espa- go entre a sopeira e o jogador dobrado em dois, sobretudo quando esse jogador era Maiacovski!... Todos os bichos ti- nham um lugar de henra na casa de Lili e Maiacovski. Entretanto, a “casa de Lili e Maiacovski” no se consoli- daria, Fatores diversos o impediriam: a vida durissima daque- les tempos, a guerra, a peste, ou a NEP, a falta de dinheiro, as viagens ou as batalhas politicas, mas, sobretudo, o tempera- mento de ambos, o do poeta, especialmente, que sabia em cons- ciéncia nao ser “um homem cémodo”. Quande este corpanzil se punha a uivar as donas . disparando pelo pé, pelo barre ou pela neve, “18 como um foguete fugiam de mim, — Para nés, algo um tanto menor, algo assim como um tango... A desmedida sensibilidade de Maiacovski —- tio bem espe- Ihada nas hipérboles que lhe recheiam os versos — 0 estado de tenséo criadora em que permanentemente vivia, fazendo-o ta- citurno, sombrio, excessivamente concentrado, a alternancia de profundas depresses com alegrias ruidosas, produziam nao poucas dificuldades ao seu convivio social. Por contraste, a forca que singularizava esse temperamento ingreme e¢ arreben- tado, manifestava-se numa fome de amor de igual intensidade, Com o ardor que punha em tudo, buscava ser feliz e desejava que todos o fossem. Em meio as tremendas Iutas que travava, nao abria mao do ideal de um amor novo, de concepgio mais elevada, entre o homem e a mulher. E entfo, ao lado da poe- sia politica, de combate duro, ou mesmo dentro dela, confes- sava-se, desabafava, sonhava ou penitenciava-se, em poemas de amor. Mas, na vida quotidiana, ainda praticava a “‘desgracada infidelidade”: NGo temas que em meu pescogo de touro tenham subido mulheres tmidas de ventre suarento. E que, através da vida, arrasto milhares de enormes e puros amores e milhares de milhares de amorzinhos pequeninos e sujos. NéGo temas que de novo na desgracada infidelidade me aproxime de mil caras bonitas amantes de Maiacovski. Em 1923, escrevia o poema A Propdsito Disto, que 6, a0 mesmo tempo, 0 seu mais dilacerante grito de amor e um hino de esperanca num futuro mais feliz, no qual se imagina ressus- citado para reaver o seu quinh4o de afeto. Nao vivi até o fim o meu bocado terrestre. Sobre a terra nao vivi o meu bocado de amor. 19 Apesar do fracasso das tentativas de vida comum, Lila continuaria a ser, até o fim, a bem amada, a amiga, a confi- dente, a musa do poeta. ~ E verdade que houve também Polénskaia, — por sinal que também com outro casada — mas parece que em segundo lugar na hierarquia do coragéo do poeta. Lila Brik era seu melhor ancoradouro, seu verdadeiro porto-seguro. Com um 86 gesto, ela apaziguava qualquer de suas tempestades, Il — MAIACOVSKI E A REVOLUCAO A RUSSIA DE 1917. A REVOLUCAO DE FEVEREIRO. A RE- VOLUCAO DE OUTUBRO, A “SUA” REVOLUCAO. A REVOLU- CAO VISTA PELO POETA MAIACOVSKI NO PERIODO DA GUERRA CIVIL. A ROSTA. OUTROS TRABALHOS E OUTRAS LUTAS. A guerra em que a Rissia czarista amargava sérias derro- tas, agucava extremamente os sofrimentos do povo que, pobre, faminto e exausto, queria terra, pao e paz. O operariado cres- cera quanti‘ativa e qualitativamente e, com a experiéncia de 1905, se punha em movimento para a conquista do poder poli- tico, sob a diregio de seu proprio partido. As greves se suce- diam. Os partidos politicos formigavam. De novo formavam- -se os sovietes (conselhos} de operdrios, soldados e camponeses. E a 26 de fevereiro de 1917, irrompe a revolugiio, que depds o czar Nicolau H, formando-se um governo provisério sob a chefia de Kerénski, Maiacovski j4 pressentira a tempestade. Na profecia poé- tica, feita em 1915, erra por muito pouco, quanto A data. De fato, em A Nuvem de Calcas escrevera: Vejo ali onde ninguém vé 14 onde a vista se perde, Vejo marchar por cima do cume do tempo — @ frente das hordas famintas — o ano 16 coroado com os espinhos da revolugéo, Como chefe de um grupo de automobilistas, Maiacovski participa da revolugdo de fevereiro e conduz um regimento até a Duma (Parlamento). Esta nas ruas, nos comicios, no centro dos acontecimentos. 20 Conta-se que, por essa época, num meeting, uma mulher se pds a gritar: — “Lénin é um espido! Nés o sabemos. Ha provas irre- futdveis!...” De repente, alguém a interrompe, com um vozeir’ — “A senhora roubou minha carteira! Devolva-me!...” Era Maiacovski. — “Como se atreve o sr. a dizer semelhante absurdo?” Ao que Maiacovski respondeu: — “E como se atreve a sra. a dizer que Lénin é um espido? E um absurdo ainda maior!” Anedotas como essa ilusttam o comportamento do poeta naqueles dias tumultuosos. Muito moco ainda, pouco menos que desconhecido, sem eira nem Deira, agitado, combatido, engolfa-se nos acontecimentos, cheio de esperanca, porque para ele “inevitavelmente deverao chegar os bolcheviques”. Os “provisérios” nao cumpriam as promessas. O povo no teve o que deles esperava: pao, terra e paz. Kerénski é derrubado a 7 de novembro de 1917 (25 de outubro pelo ca~ lendario antigo). Sobem ao poder os bolcheviques. Lénin esté em Smolni. Aceitar ou no? Para mim jamais se formulou essa questéo, para outros futuristas russos tampouco. Era a minha Revo- lugéo. Fui para Smolni. Trabalhei no que me cabia. A 30 de novembro o novo governo convoca os artistas, para que formem um Comité. A reunifo € presidida por Ana- télio Lunatcharski. Maiacovski é entio o primeiro a declarar, conforme constou da ata: ‘Devemog saudar 0 novo governo e entrar em estreito con- tato com ele, Maiacovski nao vacilou. Reconheceu logo a “sua” revo- lugdio. Continuava fiel ao adolescente camarada Constantino que fora. Tendo vivido intensamente aqueles dias, Maiacovski pode, mais de uma vez, traduzi-los em imagens poéticas, quentes, cheias do dinamismo da hora: Quando eu, resumindo o passado, remexo nos dias de ontem . procurando o mais vivo, 21 recordo sempre o vinte e cinco de outubro, o primeiro dia. Viu a Petrogrado revolucionéria, descrita mais tarde no poema a Lénin, e 0 cerco, o assalto e a tomada do Paldcio de Inverno, titimo refigio do derrotado governo provisério, tal como est4 no Muito Bem! (Poema a Outubro): Sopravam, como sempre, os ventos de outubro, como sopram durante o capitalismo. Sob a ponte 0 rio Neva. Pelo Neva os de Kronstad... Com a fala dos fuzis comega logo a tremer o Paldcio de Inverno. Sem olhar as estrelas nossos guardas cercam o Paldcio de Inverno subindo pelas ruas do bairro dos quartéis. Colunas de operdrios € marinheiros e muitos andrajosos chegaram fazendo brilhar os fuzis como se juntassem as maos na garganta no pescoco perfumado do Palacio de Inverno. Passaram! Por alfombras, dintéis rosados. Cada escadaria, cada recanto tomavam-no Passando por cima dos junkers. Enchiam os aposentos como se entrasse neles a ftria das dguas. Calaram-sé as metralhadoras. Empalideciam as estrelas do céu fazendo o turno da guarda, Sopravam como sempre os ventos de Outubro — Os trilhos serpeavam na ponte agucanda seus silvos — jé no socialismo. A tomada do poder fora fulminante, mas, durante trés lon- gos anos, a jovem repiblica enfrentou a calamidade da inter- vengao estrangeira e da guerra civil. Kolchak no leste, Iudé- nich nas proximidades de Petrogrado, Denikin no sul, a Polé- nia no oeste e, finalmente, Wrangel na Criméia, todos sucessiva ou conjuntamente, num ataque duplo, triplo e mesmo quadru- plo, langaram suas forgas contra ela e, afinal, foram derrotados. A derrota de Wrangel, a 16 de novembro de 1920, punha fim a intervengSo estrangeira ¢ a guerra civil na URSS. E facil compreender, como o fez Maiacovski entéo, que: “A URSS nao estava para ocupar-se de arte”. Mas o poeta “precisamente o desejava”. “A mim me teriam mandado pescar em Astrakan” — per- cebeu o poeta. E “pescar em Astrakan” equivaleria ao nosso “plantar batatas”, coisa com que nao poderia concordar quem, como ele, j4 “queimara as pontes de retirada”. Dai por que foi dedicar-se a um trabalho de artista voluntariamente mobilizado, integrando-se na equipe da agéncia de propaganda Rosta (no- me formado pelas iniciais da agéncia), No Museu da Revolugio encontram-se hoje mais de trés mil cartazes pintados por Maiacovski e cerca de mil legendas poéticas de sua autoria, escritas para o front. Os cartazes eram impressos em vagGes militares, levando ao pé as legendas, para 23 serem logo afixados nos pontos em que sua necessidade mais se fizesse sentir. Dessa época (1918) so os dois poemas Ordem aos Exér- citos da Arte, n.° 1 e 2, agressivos e mobilizadores,. pregados -como cartazes nos muros das cidades: Camaradas, as barricadas! Eu digo: Barricadas da alma e do coragéo! Eu digo: S6 é comunista. verdadeiro aquele que queima as pontes de retirada (Ordem n.° 1) Eu — genial ounio — o que abandonou as frivolidades para trabaihar na Rosta. (Ordem n.° 2) Podia dizé-lo. © trabalho era estafante, feito quase do nada, num ritmo de febre e de batalha. As tintas eram de m4 qualidade, havia falta ou escassez de materiais. Dias inteiros eram consumidos nas oficinas da Rosta. Ali mesmo dormia, no chao, fazendo de travesseiro uma acha de lenha, como expediente para nao dormir demais. Suportava ainda o inver- no, sem calefagéo, a fome produzida pelos agambarcadores, a peste, toda uma seqiiéncia de dificuldades e sofrimentos causa- dos pelo desmantelo da guerra. Sua poesia, de resto, registra- tia tudo: Escolherei um dia tirado dum montdo de dias Puxado pelos anos-barqueiros dias sem fartura dias famintos. algo senti disso tém a culpa os olhos-céu 24 Seus grandes olhos castanhos somem na inchacdo da fome. * -.O médico disse: Para: que seus olhos vejam «a-calor faz falta, fazem falta legumes. ‘E.aquela vez . ‘fui em visita a minha amada ‘segurando duas cenouras por suas verdes plumas. Nas lutas, nas dificuldades daquela quadra terrivel, retem- perava-se ‘também, com justificado orgulho, o seu patriotismo: Eu a@ esta terra amo! Talvez se possa esquectr ‘o lugar em que se cria @ panga € papo, thas @ terra junto com‘o qual sofreste fome a essa é impossivel esquecé-la jamais! Tenho visto ‘weares onde crescem os figos as laranjas e os péssegos. E cresciam sem esforco junto a thinha boca. Mas-era outra coisa! A terra que conquistaste e semi morto custodiaste 25 despertando cada dia com o sibilar das balas e deitando-te com o fuzil ao lado com essa terra juntards tua vida e por ela irds ao trabalho a festa e a morte. Partindo ainda daquela dolorosa experiéncia é que viria a aconselhar aos pdsteros, no ultimo poema que recitou em ptblico: Herdeiros, arrolhai vossos diciondrios, Para que... nao saiam detritos de palavras tais como “prostituigdo”’, “tuberculose”, “bloqueio”. Para vés, herdeiros dgeis e robustos, o poeta limpou os escarros tisicos com a lingua aspera dos cartates. (A Plena Voz) Mas no s6 na Rosta Maiacovski trabalhou entfio, Escre- ve também uma crénica da revolugiio, obras de teatro, poemas de félego, como o 150 Milhdes, e comecga a colaborar em alguns dos grandes jornais, como o Izvestia. Nada conquista porém sem uma luta encarnicgada. A prdtica constante de seus Tecitais vai Ihe granjeando um publico cada vez maior, a estima de camadas mais amplas do povo e da juventude. Por outro lado, seus inimigos, entrincheirados nas revistas, nos jornais ou em postos administrativos, néo lhe dao tréguas. Nao consegue levar & cena suas pecas. Recusam-lhe freqiientemente a cola- boragéo jornalistica. Acusam-no, criticam-no, intrigam-no, 26 azedam-lhe a vida o mais que podem. Maiacovski reage com todas as suas forgas, defende-se, como era seu jeito, atacando. Ill ~- O ALVORECER DA LITERATURA SOVIETICA OS PRIMEIROS MOMENTOS. A LITERATURA E A GUERRA CIVIL. O QUE FOI A NEP. A maioria da intelectualidade burguesa recebeu com extre- ma hostilidade a ascensdo dos bolcheviques ao poder. A luta de classes levada ao auge refletia-se com igual intensidade no campo das letras e das artes. Uns, perdidas as esperancas de que fosse efémera a vitéria bolchevique, passaram 4 emigragao e militaram no anti-sovietismo sistematico. Foi o caso de mui- tos simbolistas ¢ misticos, amigos de Merejovski e de Z. Hippius. Outros constituiram o que se chamou paradoxalmente a “emi- gragdo interna”, composta daqueles que ficaram, mas nao se adaptaram, indo por vezes até 4 conspiracéo contra o novo regime, como aconteceu a Gumiléy. Outros, enfim, suplanta- dos de uma forma ou de outra pelos acontecimentos, acabaram por silenciar. Todavia, entre os que aceitaram ou seguiram de bom grado a Revolugio contavam-se nomes de prestigio e valor, tais como Gorki, Alexis Tolst6i, Ehrenburg, Veressdiev, Prichvin, Tser- guéiev-Tsenski, Serafimévitch, além de alguns simbolistas como Briissov, Blok, Biéli e os futuristas, Jean Perus traga o seguinte quadro dos primeiros momen- tos da literatura soviética: O mundo literdrio oferecia um quadro anérquico. Podem- se distinguir ent&o quatro tendéncias principais. De inicio, evi- ‘dentemente, Gorki e o grupo realista da antiga Saber, que se reagrupara durante a guerra em torno da revista Os anais: Ve- ressdiev, Serafimévitch — velha guarda da social-democracia de tradigao urbana e operardria. Ao lado deles, alguns sobre- viventes do populismo, tao durante combatido vinte anos antes por Lénin, continuam uma literatura feita de pitoresco ristico e artesanal. Ndo tardam a fundar um pequeno grupo que se intitula A Forja, no qual se juntam Liachko, Bibik, etc., que tiveram em seu tempo um sucesso popular. Estéo estreitamen- te ligados ao grupo numeroso e influente dos neo-marxistas-em~ piro-monistas, empiro-criticistas, etc. — os mesmos contra quem 27 Lénin dirigia, no pertodo entre as duas revolucées, todo o es- forgo da luta ideoldégica, em particular no célebre tratado Mate- rialismo e Empiro-criticismo; tém por chefe de proa a Bogdd- nov, e o Comissdrio do Povo para a Instrugao Piblica, Luna- tcharski, 6 um deles. Enfim, da efervescéncia poética, dos tlti- mos anos, 36 subsiste a ala esquerda, o futurismo, que vai du- rante-algum tempo encher quase sozinho a cena literdria, mas que logo também se dividird: o “grupo dos sete”, tendo & cabeca Maiacovski, o critico O. Brik e o pintor Punin, que se alia aber- tamente e ruidosamente ao bolchevismo, do qual se quer fazer o intérprete, enquanto uma outra fracao, atrds do poeta Essénin, se volta para as pesquisas formais, cria o “imaginismo” e se afasta da Revolugio. . Todos esses grupos — continua Perus — quase nao reu- niam senio elementos diversos da pequena burguesia ou de frag6es populares ideologicamente aparentadas; longe de ofere- cer uma imagem completa da sociedade no dia seguinte & revo- luga@o, nem, por ainda mais forte razGo, da relagéo de forgas no seio dessa sociedade, a literatura era em seu conjunto estra- nha ao proletariado +. Compreende-se: a classe operaria nunca tivera antes condi- gdes para formar seus préprios artistas e escritores, e, ao tomar © poder, tinha em mios apenas as premissas necessdrias para tanto. Alifs, dois dos principais temas, toro dos quais se travariam, a seguir, intensas batalhas seriam: a questao da lite- ratura proletétia e a da assimilagao da heranga classica pelo proletariado. As condig6es da guerra civil nao podiam favorecer 4 pro- dugao literdria e artistica imediata. Mas os primeiros escrito- res proletérios haviam de formar-se, inicialmente, na escola da guerra civil, como correspondentes operarios e camponeses; o8 extraordindrios acontecimentos, a intensidade dramética da vida naqueles anos, haveriam de despertar para a literatura milhares de criaturas desejosas de expressar a rica experiéncia pessoal adquirida. Dai, o ter sido a guerra civil a fonte de uma abun- dante literatura — poesia, contos, narrativas, romances — de cardter em grande parte autobiografico, na qual se, por um lado, fal:ava 0 acabamento formal, o dominio técnico, por outro, apareciam novos temas, novos personagens, tratados com um 1. Introduction @ la Littérature Soviétique, pigs. 17-18. 28 novo espirito. Temas de luta e de construgdo revolucionérias, a derrocada e a morte do herdéi burgués, pouco. a pouco subs- titufdo pelo homem novo, que se. vai realizando & medida que ele préprio edifica a nova sociedade; a atualidade dos assuntos pondo em cada obra problemas do Estado e da ordem socialis- tas; @ representacdo do drama e do movimento. de massas de mithdes de homens, corporificando um herdi coletivo e andni- mo; 0 problema da configuragao do herdi positivo e o das rela- gées do individuo com a massa; 0 otimismo dominante, revolu- ciondrio e construtivo, apesar das dificuldades por que atraves- sava 0 povo, tudo isso procede dos tempos da guerra civil e vai ter expressio na jovem literatura soviética, a partir da NEP. Expressdo desigual — é verdade — em que despontam obras marcantes como Assim foi temperado o ago. de N. Ostré- vski, Tchapdev de Furmanov, A Derrota de Fadéiev ou os poe- mas Lénin e 150 Milhdes de Maiacovski, mas que apresenta também numerosos exemplos daquilo que foi a “doenca infantil da literatura soviética”. De fato, a literatura soviética teve que travac uma longa e dolorosa luta para apossar-se de seus temas e caracteristicas originais. Teve que vencer preconceitos, falsos problemas, re- solver as novas questées suscitadas pela nova realidade, nota- damente no que se refere as relagdes do individuo com a massa, as condigdes da arte e da produgao artistica na nova sociedade, a caracterizagéo do herdi positivo, etc. A NEP (1921-1928) foi o periodo do irrompimento da jovem literatura soviética, no qual o debate critico, artistico e hterério atingiu uma amplitude « um auge nunca antes vistos, em nenhuma parte do mundo. A jovem reptblica socialista vencera a guerra civil 4 custa de sacriffcios inauditos. Conseguira a vitéria, mas estava exausta, exaurida, arruinada. A terra devastada, os campos sem cultivar e sem semear, os rebanhos reduzidos a restos; as fabricas paralisadas por falta de combustiveis e de matérias- primas; o sistema ferrovidrio arrasado, com material rodante imprestavel, pontes destrufdas, trilhos dinamitados. A produ- c&o industrial descia 4 metade do nivel de 1914. Para enfrentar essa terrivel situacdo, foi que Lénin conce- beu a NEP, isto é, a nova politica econémica. O sistema do comunismo de guerra tornara-se obsoleto. Fora um expediente tempordrio, imposto pelas circunstancias e, 29 ao mesmo tempo, uma tentativa de capturar de assalto a for- taleza do capitalismo, nas cidades e nos campos. Houve um avango excessivo da vanguarda, que esteve em risco de ficar isolada da base. A NEP era uma retirada temporaria e volun- tdria, o abandono provisério da tatica de assalto pela de cerco, de modo a permitir a acumulagdo de forcas para o desfecho ulterior de novo assalto. Ysso, traduzido em linguagem politica e econdémica, signi- ficou o restabelecimento do livre comércio, livre disposigéo, por parte dos camponeses, de seus estoques, depois de pagos os impostos, permissdo para abertura de pequenas empresas par- ticulares nas cidades. Objetivava-se com isso estimular a restauragao da agricul- tura e do comércio, fazer reviver a industria, melhorar o abas- tecimento das cidades e criar uma nova base econémica para a alianca operério-camponesa. Redundava, € certo, numa reanimagdo do capitalismo, mas estava prevista e néo havia que temer, pois o Poder Soviético mantinha as posigGes-chave da economia nacional: a grande indéstria, o transporte, os bancos, a terra e o comércio interior e exterior. Com a NEP comeca a batalha politica e econédmica da reconstrucio da URSS, em transico para o periodo dos planos quinquenais, que edificariam o socialismo. ‘Veremos, @ seguir, como se apresentava, dentro deste qua- dro histérico, a cena literaria. IV — A CENA LITERARIA SOVIETICA MAIACOVSKI E OS GRUPOS ARTISTICO-LITERARIOS. GORKI E O GRUPO DA REVISTA SABER, O PERIODO DA LITERATU- RA _DE CAFE. ESSENIN. © IMAGINISMO. OUTROS GRUPE- LHOS. O CONSTRUTIVISMO. SELVINSKI. 4 CASA DA IMPREN- SA, OS IRMAOS SERAPIAO, OS COMPANHEIROS DE VIAGEM. QO PROLETKULT. OS FORJADORES. OUTUBRO. A REVISTA LEF. A CRIACAO DA UNIAO DOS ESCRITORES SOVIETICOS. E preciso considerar o conjunto das circunstancias histé- Ticas, que presidiram o nascimento da literatura soviética, para compreender a vida ¢ a obra de Vladimir Maiacovski. O ar da Riissia estava lavado pela tempestade de duas revolucdes, 30 Por acaso nao esté mais puro nosso ar duas vezes despejado pela tempestade de duas revolucdes? perguntava o poeta numa carta-poema enderecada a Gorki. Mais que isso, o ambiente estava eletrizado pela irrupeio popu- lar, pela primeira vez com voz de mando, na cena histérica. A 4nsia de novidade, a sede de cultura, a vontade de transformar o mundo transbordavam. As bocas se abriam. Todos tinham opinigo a respeito de tudo. As tertilias, os circulos, as revis- tas, todos os tipos e modos de associagdes artistico-literdrias proliferavam como cogumelos da chuva revolucionéria, E se degladiavam. Os debates, as polémicas, as discussdes péblicas tornaram-se habituais. A discussio era acalorada, exaustiva, cheia de gritos ¢ apéstrofes. A critica era acerada, direta, con- tundente. A regra era nfo poupar o adversério. A luta de classes, cuja forma extrema fora a guerra civil, manifestava-se nao menos violenta, nfo menos implacdvel sob o disfarce ideo- légico, através de uma infinidade de teses, proposigées, mani- festos e escolas contradizendo-se, entredevorando-se como podiam. . Maiacovski participou, enquanto teve alento, dessa tinha literéria.. Como teérico de arte, no que aliés nunca se arvorou, teria errado mais de uma vez. Um erro politico era mais raro de se obter dele. Na pratica, acertou quase sempre, escre- vendo os “‘cem tomos de seus livros partidérios”, guiado, quan- do mais nao fosse, por um seguro instinto revolucionario. Assim como Gorki, Maiacovski foi um dos alvos mais fe- Tidos no combate. literario. Era grande. Sobressaia, nao sé pela estatura, dentre a multidao dos querelantes, cujos grupos principais passaremos agora em revista. De todos os grupos literdrios — escreve Jean Perys --- @ mais préximo do pensamento de Lénin era evidentemenie o de Saber, reunido em torno de Gorki. Suas hesitagées politicas — © préprio Gorki, cedendo a preconceitos intelectuais, temeu ver ox elite da social-democracia operdria afogada no transborda- menito elementar do campesinato e sé recusou, em certo mo- mento, a seguir Lénin nessa etapa decisiva da revolucdo russa — no impediram a mais confiante, a mais total colaboragéo dos dois homens no plano cultural: ambos tinham a mesma 31 alta concepcdo da fungao do escritor e-a mesma fé nas:fontes populares *, Assim foi que Gorki, sem. possuir nenbum: cargo. oficial, desempenhou. néo- obstante o papel de um “verdadeira alfo co- missdrio das letras”. De longa data j4 vinha Gorki se dedi- cando 4 tarefa de conselheiro-e animador da literatura,de van- guarda. De 1906 a 1915, exilado em Capri, recebe ¢.responde a centenas de cartas de jovens escritores. Lé.¢ anota. pais de 400 manuscritos, publicanda, em 1914, uma primeira, antologia de escritores proletérios. Sobrevinda a revolugdo, egsa ativi- dade preceptora de Gorki.nio faz mais que prosseguir, agora multiplicada. Ajuda a, todos os empreendimentos: de cultura popular, funda. casas editoras: “A Literatura Mundial”,"“A Vida do Mundo”; cria revistas: 4 Cléncia e os Operdriés, A Casa dq Arte; participa do “Teatro dé Comédia Populary't do. “Gran- de Teatro Dramatico”; promoye con¢ursos literérids, lecigna nas universidades populares; Preocupa-se ‘com a situagao ‘material dos, escritores ¢ se torna presidente da.“Comissia pelo -melhora~ mento das. condigdes de vida dos intelectuais”. Estabelecendo contatos, esbogando novas formas de orga- nizagao ¢ de compreensag.do trabalho intelectual,: Gorki, desdo- _ bravasse numa atividade, generosa ¢ fecunda. Descobriu e re- velou assim muitos escrjtores proletérios, dos quais alguns, como Petréy-Skitalets,, nao, pefduram,, mas outros, como Ghidkov, Vsévolod Ivanpy,.Leénoy, Fédin, se confirmaram, conquistando um justo repome.. Atrayésde Gorki, assinalava-se concretamente a impertan- cia atribuida,, pelo, poder. soviético ap. papel dos escritores. Embora,sem: tuts ofisiais, sob a forma, de ajuda livre ¢ métua entre as.e novos, Gorki representaya plenamente a politica do pader soviético, ngs condigdes embriondrias da one so- cialista. Até pouco depois do -término da guerra civil, subs chamada literatura de:café, a que j4 nos referimos. rmi- ween © caos. produzido. pela guerra, os Guslncamentes so- ais préprios da revolugao, os efeitos. terriveis da prolopgada ‘guerra ciyil. A caréticia aguda de papel (1919-1920) tarnou rara a impresso de livros, ensejando a predominancia dj\ lite- ratura manuscrita e oral. Nido sé poemas,. mas também,prosa 2. Ob. cit, p&g. 28. 32 cientifica e de fico era lida pelos cafés da rua Tverskaia. Havia o café da Associacao Pan Russa de Poetas, o café de “Os For- jadores”, “O Estaébulo de Pégasso” e “O Dominé”. J4 vimos que os futuristas tinham passado pelo tablado dos cafés. O préprio Gorki nao desdenhara comparecer a um deles, quando lhe pareceu necessdrio. Maiacovski, fazendo ouvir sua voz potente, agredira aquela boémia gozadora e,-nos tempos duros, nao ficara ali bebericando ou babujando versos. Fora trabalhar na Rosta. Pelos cafés de Moscou, ao lado de habilidosos charlataes, como Marienhéf e Scherschenévich, e de inimeras outras me- diocridades que nem deixaram nome, perdia-se ent&o o talento poético de Sergio Alexandrovitch Essénin (1895-1925). No “O Dominé”, Essénin chegou a ler alguns dos poemas em que tenta sinceramente acertar 0 passo ao ritmo da nova sociedade que vé nascer, tais como O Companheiro, Inonia, O Responso. Mas © que o arrasta é 0 circulo decadente de 4 Moscou dos Cabarés. Enquanto se consome nos desregramentos boémios, encharcando-se de vinho, alimentando-se de escandalos, Essé- nin, © poeta-mujique, vé, com nostalgia incurdvel, desaparecer a paisagem rural da velha Rissia a que com os olhos da infancia se apegara, da qual era o melhor cantor, j4 sem forgas para de- la se libertar. O seu drama, nada exemplar, era contudo autén- tico, sincero, Enquanto Essénin arde, os outros “esquentam as mos na sua chama”. A seu redor, @ custa sua, quase 4 sua revelia, nasce, desenvolve-se e, em breve prazo, morre o movi- mento imaginista. Vadin Scherschenévich era o “te6rico”. Anatélio Marie~ nhéf simulava ser 0 poeta imaginista, inovador, tomando em- prestada a Maiacovski sua originalidade. Alexandre Kusikov era outro pretenso poeta do imaginismo. Seguia-os uma chus- ma de anénimos e basbaques. Pretendiam opor-se aos futu- ristas, substituf-los, mas na realidade os repetiam numa edigfo piorada. O futurismo arrebentou — dizia o manifesto assinado por Essénin: Ivnev, Marienhéf, Scherschenévich, D. Erdman e G. Takulov — Gritemos todos juntos: Abaixo o futurismo de hoje e de amanhé! O academismo dos dogmas futuristas tapa os ouvidos de todo jovem, como algodaéo. O futurismo empana a vida. 33 Uma série contraditéria de nonadas “teéricas” compunha © pobre arsenal do imaginismo, com o fito de assombrar os tolos ¢ rapidamente alcancar a gléria efémera dos cabarés onde nascera, Afirmava que, enquanto o futurismo s6 se preocupava com © conteido, “sé pensava no contetido”, eles, imaginistas, eram os “verdadeiros artffices” que “pulem a imagem”, que “limpam a forma do p6 do conteido”. Para eles, “a tinica lei da arte, o tnico e incomparavel método é a revelacao da vida através das imagens e da ritmica das mesmas”. No manifesto chega- vam a dizer: Todo contetido na obra artistica é t@o estipido e carece tanto de sentido como pregar recortes de jornal num quadro. Mas fosse alguém acusd-los de desprezarem 0 contetido! Retrucavam que nao, que apenas queriam expressar o conted- do sem preocupar-se com ele. O conteGdo apareceria por si mesmo, A férmula era: Expressa o que quiseres, mas com a ritmica atual das imagens. A contradigéo nio embaracgava a um Marienhéf quando concedia que “nao pode haver uma forma bela sem um con- tetido belo”. A “imagem” era a base de toda a criagio poé- tica. Tudo mais viria por acréscimo. Para o imaginista — escrevia Scherschenévich num tra- balho cujo titulo bastante significativo era “2X 2 = 5° —a@ imagem é um fim em si. Para os simbolistas a imagem (ou o simbolo) seria um procedimento mental, para os futuristas um meio de intensificar a visualidade da impressio. © imaginismo seria o tiltimo ponto do desenvolvimento da poesia. Esta a tese central a que se reduzia o exasperado formalismo imaginista. Havia, porém, outras piruetas de sucesso nesse malabaris- mo estético. Afirmavam: “a unidade na obra poética nao é a estrofe sendo o verso, porque este é completo pela forma e pelo contetido”; e mais que “a uniao das diferentes imagens em poesia néo é um trabalho organico, senaéo mecfnico”, donde decorria que “a poesia néo é um organismo, sendo um grupo de imagens”. Nesse caminho, Scherschenévich chegava coe- rentemente a conclusio de que os seus préprios versos, bem como os de Marienhéf e os de N. Erdman, poderiam ‘‘ser lidos igualmente da direita para esquerda e da esquerda para direita, 34 da mesma maneira que um quadro de Iékulov ou de B. Erdman pode ser dependurado de cabega para baixo”, Na insurréigéo contra a gramética, contra a sintaxe, pre- tendiam também ultrapassar os futuristas e proclamavam: A palavra de pernas para o ar é a situagdo mais natural da palavra, da qual deve surgir a nova imagem. 34 que “o verbo é o diretor principal da orquestra grama- tical”, guerra ao verbo! Guerra também a preposicio que cerceia a imagem da palavra “dando uma forma gramatical defi- nida”. Conservariam s6 o substantivo, o adjetivo e o participio, porque a destruic¢io da gramatica devia conduzir a vitéria da imagem sobre o sentido e 4 emancipacio da palavra do con- teado. Chegavam, assim, a preferir formas nio sintéticas “bom dias” ou “bons dia”, “meu amigo leram”, etc. Nenhuma seriedade, ridiculo puro, como se vé. Nao obstante, no perfodo da literatura de café, enquanto os futuristas predominavam em Petersburgo, Moscou era o te- duto dos imaginistas. A ala esquerda daqueles, com Maiacovs- ki a frente, tomaria o rumo da revolugao. Dos imaginistas nada ficou. Em 1922, Essénin, & sombra de quem viviam, embarca na aventura de seu casamento com Isadora Duncan e sai em viagem pelo estrangeiro. O imaginismo dissolve-se nas dissipa- gées da vida noturna, nas libagdes alcodlicas, no vazio ideolé- gico, na vulgaridade mais chata. © que no faltava mesmo eram grupos e grupelhos, como se houvesse o nitido propésito de demonstrar que a cada cabega correspondia uma sentenga. Basta mencionar: os biocosmistas, os formolibretistas, os fuistas, os emocionalistas, os expressio- nistas, os luministas. Nao nos deteremos a examinar o papel desempenhado pelas revistas de vanguarda como A semente Vermelha e A Palavra Artistica, nem muito menos a histéria dos é6rgéos ou movimentos de direita, tais como Os Novos Es- calées e O Russo de nossos Dias. Perder-nos-iamos, sem pro- veito, no emaranhado de uma trama histérica que ndo nos cabe destringar. Diga-se, todavia, que ninguém ficou de fora. Até © académico Abraio Efros, assustado com a dilapidagdo siste- mética a que vinham sendo submetidos os classicos, saiu em campo, de manifesto em punho, clamando por claridade, har- monia ¢ simplicidade, em nome dos neo-classicos. Os construtivistas pretendiam também tomar posigio po- sitiva em relacdo a arte clissica. Sua teoria é a da construgéo 35 da coisa artistica, afirmativa e utilitariamente. Nao se negaria © construtivismo a incorporar todos os processos, todas as con- quistas da ciéncia e da técnica antiga ou moderna, para conse- guir seu objetivo supremo, a perfeigao. Em lugar de teses ge- rais, apresentava um esquema pratico para organizagdo do ma- terial artistico: ...@ concentracdo maxima do necessdrio na unidade, quer dizer: brevidade, concisio, no pouco muito, no pronto tudo. Com isso, propunha-se também a salvar a arte, a poesia, do naufragio, a enriquecer os processos poéticos com a busca intransigente da perfeicio formal. Entretanto, o construtivis- mo deu apenas um poeta de valor, Ilia Selvinski (n. em 1899), atuante, rigoroso na forma, conciso, seco. Atacando os construtivistas, dizia Maiacovski, em feverei- ro de 1930, numa conferéncia na Associacéo de Escritores Pro- letérios, em Moscou: Eles esqueceram que, ao lado da revolucdo, existe uma classe que conduz essa revolugdo. Eles se servem de uma es- fera de imagens jd utilizadas, repetem o erro dos futuristas: a admiracao pura e simples da técnica eles a retomam no dominio da poesia. Isso nao é admissivel na poesia proletéria, isso nao passa de uma tentativa de frisar uns cabelinhos na cabeca quase careca da velha poesia. Nem todos os intelectuais e artistas se tinham deixado ar- rastar pela literatura de café. Os mais integrados na revolucio, os mais possuidos de espirito de responsabilidade procuraram outras formas de organizagao. Reuniram-se nos serdes da Sec- ¢ao Literéria do Comissariado de Instrugdo Publica e, princi- palmente, na Casa da Imprensa, a partir de 1920 até 1923. A Casa da Imprensa dispunha de um salio com capacidade para trezentas pessoas e ali, artistas, intelectuais, dirigentes revolu- ciondrios passaram a reunir-se quase diariamente para discutir os mais palpitantes problemas do momento cultural. Os temas eram: a velha e a nova literatura, literatura proletdria e lite- ratura burguesa, os problemas centrais da literatura do ponto de vista marxista, a literatura e a psicandlise, o novo teatro, a nova mnisica, os intelectuais e o comunismo, o estilo da revo- lugdo e o da arte burguesa, o proletariado e a criagdo artistica, a nova tematica e as novas palavras, etc. Ali se levantaram em toda sua magnitude as perguntas que andavam em todas as bocas e em torno das quais devia 36 girar mais de uma década da critica artistica ¢ literdria soviética. As principais eram: qual a atitude da revolucio frente a litera- tura claéssica? Devia a nova época, tendo sido deposta a ordem burguesa, renunciar 4 arte burguesa? Até que limites podia chegar a negacdo da velha arte? Haveria apenas rendncia ao velho material, 4 maneira de focalizar as coisas ou repelirtia a revolugio os antigos processos de criagao, os antigos principios? * Repele ou aceita a revolugio as velhas férmulas?_ Em que me~- dida as aceita? Em que medida as repele? Toma-as como ponto de partida de seu desenvolvimento ou, rechagando-as por principio, comega a construir uma arte inteiramente nova? Foram vistos na Casa da Imprensa, como conferencistas ou debatedores: Lunatcharski, Bukhdrin, Briéssov, Maiacovski, Pletnev, Veressdiev, O. Brik e muitos outros. Em matéria de teatro e assuntos cldssicos, intervieram: Meyerhdld, Sakanovski, Tafrov, Nemirévich-Danchenko, Grossman, Vera Figner e outros mais. Ali Bridssov leu, pela primeira vez, o O Ditador e Ale- xandre Blok, pela tltima vez, disse seus versos em Moscou. Ali Lunatch4rski deu a conhecer obras suas, 0 D. Quixote, O Chanceler ¢ o Serraiheiro e 0 poema Concerto. Maiacovski declamou o seu /50 Milhées, Essénin recitou Pugdchov e tam- bém Pasternak, mais de uma vez, ali se fez ouvir. Muito concorridas, os 4nimos tensos, as sessdes da Casa da Imprensa eram sempre ruidosas e apaixonadas. Apesar da ajuda econémica que recebia do Comissariado de Instrucdo Publica, a situago era tio dificil que a Casa da Imprensa esteve, repetidamente, a pique de fechar as portas. Subsistiu, no entanto, porque correspondia a uma profunda ne- cessidade cultural da época, tendo fungiio de relevo na batalha ideolégica. Dedicados principalmente a prosa de ficgao, diversos escri- tores fundaram em 1921, ano de fome, a irmandade literdria Irmaos Serapiéio, patrono este que foram buscar no eremita, personagem de uma novela de Hoffmann. Os chefes eram Za- midtin ¢ Chklovski. O grupo, nada homogéneo, inclufa nomes como os de Vsévolod Ivanov, K. Fédin, N. Tikhonov, que mais tarde granjearam justa fama, ao lado de escritores de menor porte como Zéschenko. Diferiam nao sé em niveis de valor, como em rumos politicos. Zamidtin passaria 4 emigragdo. Iv4nov, Fédin e Tikhonov, com maior ou. menor dificuldade, 37 com tais ou quais desvios, acabariam por ajustar-se aos novos caminhos. Zéschenko nao conseguiria renovar a sua atitude caricatural e depreciativa do tempo da NEP. A irmandade era, enfim, um saco de gatos momentfneamente reunidos sob a pla- taforma despistadora do apoliticismo e da neutralidade. Dizia o serapioniano Lev Luntz, em 1922: Reunimo-nos num momento de forte tensdo revoluciondria e politica. “Aquele que nao estdé conosco esté contra nds” — diziam-nos da direita e da esquerda. Com quem estais vs, Irmaos Serapiéo? Com os comunistas ou contra os comunis- tas? Pela Revolucgdo ou contra a Revolugéo? Com quem estamos nés? Né6s estamos com o anacoreta Serapido... Durante muito tempo, muito dolorosamente a literatura russa foi regida pela opiniéo piiblica... Nés néo queremos sa- ber de utilitarismo. Nao escrevemos para a propaganda. A arte é uma realidade como a prépria vida e, como a vida, é sem finalidade, sem significagao, existe porque ndo pode deixar de existir *, Diziam mais: A obra hé de ser orgdnica, real, viver sua prépria vida, Uma obra pode refletir a época, mas pode também néo re- fleti-la. Preconizavam, pois, a indiferenga as idéias, a arte pela arte, a arte sem finalidade e sem significagio. | Faziam profissio de {6 de apoliticismo, o que era sua maneira trivial, pequeno-bur- guesa, de opor-se 4 ordem dominante. Na prética, porém, foi impossivel sustentar a irmandade fingidamente apolitica. Foi dissolvida pelas contradig6es que encerrava, vencida pelo curso dos acontecimentos. A obra de Ivanov, Fédin e Tikhonov refletia a época, tomava Pposigio po- litica e seus autores se classificavam na tendéncia geral deno- minada-dos “companheiros de viagem” (popiichki). Os escritores de tradic¢ao burguesa, tivessem a origem que tivessem, fosse qual fosse a escola a que se filiassem, eram cha- mados de “companheiros de viagem”, desde que aceitassem a lideranga politica do proletariado e se dispusessem a segut-la. Nao se julgava, modestamente, outra coisa o préprio Gorki. Pelo sentido da tradi¢do literéria, pela qualidade da técnica que . 1» < Apud A. Zhdénoy, Sobre as Revistas Estrela e Leningrado, 46. 38 possufam, os “companheiros de viagem” compunham “o mais tico e o mais sélido elemento da literatura soviética e, histo- ticamente, constituiram o elo, a ponte entre a velha e a nova literatura, a linha de continuidade, da tradigo literéria demo- crtico-revolucionéria ao socialismo”. Dentre eles surgiam no- vos valores, como Fédin e Leénov. Para eles voltava-se com especial solicitude, abrigando fundadas esperangas em seu pro- gresso politico, a linha cultural do Partido... Mas nao deixaram os “companheiros de viagem” de apresentar diferenciagdes. Nem todos seguiram em linha reta. Nem todos foram até o fim da jornada. O “inventor” do Proletkult foi Bogdinov, o mesmo idea- lista com quem Lénin tergara armas no Materialismo e Empiro- Criticismo, Organizado antes da revoluciio de outubro, o Pro- Jetkult propunha-se a fazer oposicdo a cultura burguesa. Agora, estando o proletaraido j4 no poder, imaginava metafisicamente trés vias paralelas de acesso ao simbolismo: a econémica, a politica e a cultural. Pretendia que ao Proletkult pertencia a via cultural, com inteira independéncia das demais. Daf advo- gar para si uma autonomia tanto em relacao ao Partido, quanto em relagdéo ao Governo, considerando-se como um Estado dentro do Estado, opondo o seu trabalho ao do Comissariado da Instrugéo. Com isso, através de uma rede de clubes e escolas artfstico-literérias, recrutando professores e epigonos entre simbolistas, futuristas e decadentes, o que fazia o Proletkult era difundir, sob uma fraseologia revolucionéria, uma cultura formal, alheia 4 Iuta, hostil as instituigdes e as tradigdes demo- craticas. Por absurdo que parega, Bogdénov ensinava que, no regime socialista, a individualidade se dissolve na consciéncia coletiva e que, por conseqiiéncia, nele a arte esté destinada a desaparecer, No outubro de 1920, Lénin tomou providéncias contra o Proletkult, esbocando uma primeira resolugio sobre a cultura proletéria ¢, sob sua inspiragéo, em dezembro do mesmo ano, o Partido criticava e denunciava publicamente tal movimento. A fraqueza ideolégica do Proletkult nao podia lev4-lo lon- ge. A interdependéncia real, pratica, da economia, da polftica e da cultura, havia de maté-lo. Das usinas, das fazendas, das universidades comegou a surgir uma elite de trabalhadores. Da massa dos correspondentes operdrios (rabkor), camponeses (selkor) e dos estudantes operdrios (rabfak) comegava a nascer 39 uma literatura proletdria auténtica, embora ainda balbuciante. E por volta de 1923 desaparecia 0 movimento do Proletkult. Os nomes mais destacados do grupo Os Forjadores eram M. Guerdssimov, F. Gladkov, N, Liachko, I. Filipchenko, N. Volkov, V. Kirilov e V. Alexandrévski. Alguns deles j4 tinham estreado antes de 1917. Reunindo escritores de origem prole- taria, entendeu o grupo de disputar a hegemonia na literatura soviética. Wangloriavam-se: A associagéo de escritores operdrios Os Forjadores é a tinica que adota inteiramente o programa da vanguarda revolu- ciondria da classe operdria e do partido comunista. O érgio de Os Forjadores era a Revista Operdria. Para eles, a literatura era “instrumento de organizagado da sociedade comunista”; os artistas pré-revolucionérios nao tinham capaci- dade “para dar forma ao material oferecido 4 obra criadora, pela revolucio”. A juventude operdria, — diziam — que tem sede de saber e espera dvida por lancar-se & criagdo artistica, se acha perple- xa. Néo existe nenkum Bielinski. Sobre o deserto da arte reinam as sombras, Por isso, levantavam eles “a insignia rubra da plataforma- declaracdo da arte proletéria”. E definiam: Aarte proletdria é o prisma em que se concentra o rosto da classe, o espelho em que se miram as massas operdrias, Ou mais enfaticamente: A arte proleidria é uma arte que abraca as trés dimensées da superticie do material de criagéo na forma clara, precisa e sintética, prépria da classe, e faz passar através dela a linha das aspiracdes rumo aos objetivos finais do proletariado. Por sua proésria natureza, esta arte é a arte da grande tela, do grande estilo, a arte monumental. . Pretendiam, como se vé, resolver 4 forga de dogmatismo e€ esquematismo os problemas estéticos. Com empafia e agres- sividade, queriam impor suas “solugdes”, através das quais se filtrava o descontentamento. nutrido quanto a polftica literaria do Estado, que nao s6 nao Ihes outorgava a desejada hegemo- nia, como estimulava uma arte por eles condenada. Como rivais, Os Forjadores tiveram o grupo Outubro, que, em determinado momento, reuniu gamas diversas da pequena burguesia hostil ao leninismo: sobreviventes do Proletkult, par- tidarios da “revolucdo permanente”, rabkors agrupados no mo- 40 vimento Primavera Operdria e até comunistas do grupo A Jo- vem Guarda. Tiveram como érgio a revista A Sentinela, que se destacou pela violéncia de seus ataques criticos, contribuin- do para criar no mundo das letras um ambiente sombrio, irres- pirével. Eram pontifices de Outubro Lebedey-Polianski e Ple- tnev, amigos de Bogdanov, os teéricos esquerdistas Lelévitch, Gorbachév e Averbach. A eles logo se aliaram futuristas for- malistas da revista LEF (abreviagio de Lévi Front, Frente de Esquerda). Era “um ajuntamento heteréclito de todos os sec- tarismos, por célculo, por despeito, por desorientagio, ou por incultura, contra as concepgées tradicionais da arte, de suas exigéncias e de seu cardter especifico”. Aproveitando-se de manifestagdes direitistas como a dos Irmaos Serapiio, os de Outubro abriram fogo pesado, indis- criminado contra todos os “companheiros de viagem”. A Os Forjadores, seus rivais, acusavam de grupo antiproletério em decomposigio, nocivo ao regime. O grupo de O Trdnsito, no qual formavam escritores camponeses como L. Zavadévski, I. Kas&tkin e outros, escritores operérios como Ana Karavdieva, I, Katdiev e pequenos-burgueses como E. Bagritski, sustentou polémica com A Sentinela, opondo-se a todas as suas teses. Vorénski estava na liga, ajudando a semear a confusao. Atras da violéncia das polémicas de A Sentinela estava a manobra politica. Em nome da “hegemonia cultural do prole- tariado” exigiam o monopélio da literatura, queriam obter, em beneficio préprio, a ditadura das letras, queriam interditar as obras dos ‘“companheiros de viagem”, bem como todas as que nao fossem, a seu juizo, suficientemente proletérias. Maiacovski foi diretor da revista LEF, aparecida na pri- mavera de 1923, reagrupando elementos futuristas, entre os quais N. Asséiev, S. Tretiakév e O. Brik. Nela se repetiram muitos dos antigos erros “teGricos” da tendéncia, notadamente no que diz respeito A avaliagao dos classicos. Maiacovski, via de regra, nao acompanhava as desenfrea- das tentativas de teorizagdo a que, de acordo com a moda, se entregaram alguns de seus companheiros de redacao, como O. Brik, Tretiakév, Chukhék e A. Lavinsk. Nessas questées man- teve sempre uma certa sobriedade e suas opinides se distribuiam, de preferéncia, ao longo dos poemas. Mesmo para polemizar preferia a forma poética. Seus versos estio salpicados de no- mes de amigos e de inimigos, de contemporaneos e antepassa- 41 dos, sobre os quais se manifestava com ternura ou satcasmo, sempre com franqueza. Porque sua vida vazava-se inteira na Poesia, encontramos a cada passo, em seus poemas, referéncias aos grupos literdrios de sua época. Assim, por exemplo, sobre © Proletkuli, na Ordem n.° 2 aos Exércitos da Arte: A vds outros que trocastes a melena pelo penteado liso, © sapato de verniz pelas alpercatas, proletcultos remendées do desbotado fraque de Pichkin. Sobre a gente de A Sentinela (Na Postu, em traduco lite- tal: No Posto): Muitos aproveitam 0 barulho dos do Posto Para se colocarem melhor, — Nés somos os tnicos, dizem n6és somos os proletdrios. .. E eu, @ vosso juizo, que sou? Um vendido? Eu, na realidade, sou um mestre, irmdos. Nao gosto dessa filosofia aborrecida. {Mensagem aos Poetas Proletérios) No poema A Sergio Essénin, ainda referindo-se aquela aborrecida filosofia: 42 Quer dizer, Se contasses com o apoio de alguns dos do Posto terias outra orientagdo Escreverias cada dia cem ‘estrofes largas e fatigantes como as desse Doronin. A meu jutzo, realizando-se semelhante pesadelo, da mesma maneira tu te enforcarias. £ melhor morrer de vodka do que de tédio. Sobre a LEF, no poema Conversando com Alexandre Ser- guéievich Pichkin: A pena rombuda do anquilosado Ptichkin se levanta: — Com que entéio a LEF lhe apareceu um Pitchkin? Que imbecill Ainda sobre a LEF, no poema Carta do escritor V. V. Maiacovski ao escritor A, M. Gorki: A acomodacao, adulagéo, lisonja ou atividades de um rublo o prato alguns chamam de “realismo sto”. Nos também somos realistas mas nao com o focinho metido na gamela. Nés estamos com a vida nova que vem por mais que se elogie a esses sucedéneos, carregamos as costas os anos € arrastamos a historia da literatura, Somente nds @ nossos amigos ndo acgriciamos os olhos nem os ouvidos. Nés somos a LEF sem histeria. Com planos construimos o mundo de amanha. Amigos, 43 poetas da classe operdria, talvez nao tenhamos muitos conhecimentos, mas somos de instinto seguro orientadas nos compassos da orquestra de palavra e sons, rumo aos séculos futuros. Neste trecho, como em outros muitos da obra de Maiaco- yski, repontam alguns dos pecados de que eram acusados os futuristas: a arrogancia, o espirito de grupo, a autopropaganda. Era a marca da escola, digamos. Mas nesse mesmo trecho, estdo as virtudes opostas aqueles defeitos, marca do honesto e consciente “companheiro de viagem” que, na verdadé, era Maia- covski. A arrogancia, a autopropaganda, propria da estirpe whitmaniana, nfo excluem a modéstia de confessar ignorancia; © espirito de grupo de bom grado se transforma no desejo de servir ao povo. Nao bastasse isso e sobrariam a Maiacovski outras razes: o talento, a maestria poética, a seguranca nas estocadas, a graga lirica, a tensao dramatica de um poeta que nao brincava com seu oficio, senfio que nele jogava toda a sua vida, tudo aquilo que o fazia figura de primeiro plano, célebre, amado e odiado como nenhum outro. Ademais, a histéria subseqiiente haveria de demonstrar que, nele, o instinto era real- mente seguro, certeiros e justos muitos daqueles dardos contra os “sucedaneos” e mais que, pelo menos quanto a ele e no que toca 4 poesia, nfo foi tao desmesurada assim aquela ambi- cdo de levar as costas a literatura Sendo o expoente da LEF, Maiacovski recebeu toda a carga dos ataques que a revista suscitou. LEntretanto, nao foi dos que embarcaram no manobrismo esquerdizante do grupo Outubro e da V.A.P.P. (Associagdo Pan-Russa dos Escritores Proletérios). Maiacovski fundaria mais tarde a Nova LEF. Em meio 4 cena literéria téo confusa, o Partido interveio duas vezes. A primeira, em 1925, através de resolugdéo do XTII® Congresso, que reafirmava as teses leninistas sobre o Proletkult, assinalava a fraqueza momentanea da literatura pro- letéria e estimulava a producdo dos “companheiros de viagem”, assinalando sua capital importancia. A segunda, de 1932, co- mo deciséo do Comité Central “Sobre a reforma das organiza- gGes literdrias e artisticas”, constatava o amadurecimento da nova literatura e apontava os perigos politicos do desvairado 44 entrechoque dos grupos, preconizando a unidade dos escritores. Daf nasceu a Unido dos Escritores Soviéticos, tornada possivel gracas também a uma série de fatores objetivos: o éxito do pri- meiro plano quinquenal, o sucesso da coletivizacao das terras, o melhoramento das condigdes materiais de vida, o enriqueci- mento cultural do povo, a generalizagaéo do ensino primério e secundério, a extensféo da rede de bibliotecas e clubes, 0 de- senvolvimento da imprensa, etc., tudo isso criando para os es- critores um novo piblico de milhGes de pessoas. Vv — MAIACOVSKI NO TRABALHO E NA LUTA, VIAGENS A MOSCOU DE 1925. A MORADIA DO POETA. PROFECIAS. CHEGA A FAMA. COMO E EM QUE TRABALHAVA MAIACO- VSKI. O RAPSODO. VIAGENS AO ESTRANGEIRO. PEDINDO CHA EM INGLES. IMPRESSOES DA AMERICA: MEXICO E ES- TADOS UNIDOS. MAIACOVSKI E O BRASIL. DE VOLTA A CASA, Maiacovski conhecera a Moscou pré-revoluciondria e a da guerra civil. A Moscou da NEP, na qual se desdobraria a fla-... mula do poeta, era uma cidade convalescente. Assim a des- creve Elsa Triolet: Era entao a Moscou da NEP, ainda muito dolorida, apés os duros anos que vinha de viver. Aqueles que tém hoje (a autora escreve em 1939) vinte anos, talvez nem sequer se lem- brem dessa época, para eles jé é natural possuir uma Moscou brunida, asfaltada, borbulhante de dnibus e automdveis novos em folha, jé olham para os fiacres como séo olhados em Paris, obedecem as regras do trdfego, aos guardas muito alinhados, com suas luvas .brancas, comem doces, compram flores... Em 1925, Moscou apenas comegava a comer os seus do- ces, chegava até isso, sorria... Mas as casas, as pequenas casas de Moscou, pintadas a cal e coloridas como imagens provencais, amarelas e rosadas, estavam descascadas, fendidas, escoravam- se mutuamente para nao cair, os vidros quebrados, os tetos en- ferrujados. O calcamento das ruas esburacado, os fiacres com o forro dos bancos em farrapo, os rarissimos automéveis con- sertados a barbante, a lataria amassada, sem traco de verniz... Os bondes superlotados se balangavam perigosamente... 45 Moscou repleta, superpovoada, arrebentava por todos os lados 4, Nessa Moscou viveu Maiacovski. Nao chegaria a conhe- cer a outra remodelada pelos planos quinquenais. Nessa Mos- cou Maiacovski teve um quarto que era, ao mesmo tempo, escritério, sede da LEF, lugar de trabalhar, de dormir, de rece- ber gente. esse quarto, morreria. Outra residéncia sua, além da datcha suburbana de Sokolniki, foi um diminuto apartamento em Moscou, que hoje faz parte do “Museu Maiacovski”. Mas estes dois foram, para ele, lugares de ser feliz com Lila. Aquele quarto era seu enderego certo: Galeria Lubianski, perto da praca Lubianskaia. Ficava no centro movimentado da cidade, no terceiro andar dum enorme edificio de apartamentos enfu- magado e pesadio. © aposento de Maiacovski, constituido de uma sé peca, ficava perto da escada, num recanto sombrio, tendo uma tnica janela que dava para o patio. Os papéis das paredes escuros, a escrivaninha perpendicular 4 janela, uma cama estreita, reves- tida duma tela negra encerada, escorregadia. Ambiente agra- davel, quente, severo, sempre cheirando um pouco a especiaria. No frio da tela encerada, que trespassava a coberta, o poeta teria apanhado os reumatismos que o atormentavam, Embora viesse a reclamar mais tarde contra a exigtiidade do espago que lhe cabia para trabalhar, o poeta nio dava maior import&ncia ao luxo ou ao conforto. A mim nem um vintém sequer os versos jamais me deram jamais ganhei mobilia do ebanista. E, salvo duma camisa sempre fresca, sinceramente de nada preciso eu. (“A Plena Voz”, 1930) Em prosa e em verso, Maiacovski previu que seu nome se inscreveria nas ruas onde morou. Sobre a Galeria Lubianski profetizou humoristicamente: 4. In Maiacovski, pags. 77-78. 46 Sempre pensei que se acabaria por chamar a Galeria Lu- bianski — onde se encontra a redagéo da Nova Lef e onde moro — Galeria Matacovski. No entanto, ninguém o diria. Outro dia, recebi uma carta, um convite de uma associagéo artistica qualquer, com este lamentdvel enderego: Redagao da Nova Less (Less quer dizer floresta). Para Vladimir Vladimirovitch Lubianski. Estd justo, uma galeria é mais comprida que um escritor, sobretudo de linhas curtas. (“Caderno de Bolso”, 1927) Idéntica profecia em verso — Transeunte! Esta € a rua Jukovski? Como uma crianca diante dum esqueleto ele fixa em mim os olhos arregalados, querendo me evitar: “Esta rua é a rua Maiacovski hd milhares de anos, Foi aqui, @ porta da bem-amada, que ele se matou’’. Quem? a Eu? Eu me matei? Em 1925, a fama de Maiacovski j4 era um fato consumado, O poeta era reconhecido nas ruas pelos transeuntes, pelos co- cheiros dos fiacres. Sussurravam seu nome, apontavam-no: “B Maiacovski!” Pediam-lhe autégrafos, tinha admiradores, discipulos e até aduladores. Colaborava num grande nimero de jornais e revistas. Crescia o seu prestigio entre a juventude © 0 povo soviéticos. Ele mesmo registraria sua popularidade, contando: O daqueiro de Odessa, depois de descarregar do barco @ bagagem de alguém, me deu bom dia sem nenhuma troca de nomes e em lugar de um “Como vai?” ataca; “Diz-lhe ao Gossisdat (Editora do Estado) para editar o teu “Lénin” a um preco acessivel”. 47 Um soldado vermelho duma patrulha de rua em Tiflis por si mesmo se certifica de minha pessoa poética. (“As Capitais recém-nascidas”, 1927) A notoriedade de Maiacovski era resultado de muitos e muitos anos de trabalho apaixonado, 4rduo e gigantesco, levan- do de roldao os inimigos que continuamente lhe interceptavam o caminho. Trabalhava ..inintérruptamente. Quando, certa vez, alguém Ihe perguntou quantas horas por dia trabalhava, respondeu, entre orgulhoso e irénico: “Vinte e quatro horas!” E 0 exagero, proprio da sdtira, ndo estava, em seu caso, muito longe da verdade. $6 havia que subtrair daquela demasia as horas de sono, que eram poucas. Mas isto nfo quer dizer que © poeta se aboletasse numa mesa, de caneta em punho, o tempo todo entre quatro paredes. Tinha habitos de trabalho persona- lissimos. Constantemente, tinha um poema em elaboracao na cabeca, Taciturno, permanentemente tenso, vivia remoendo versos, andando, viajando ou em repouso, onde e como quer que estivesse. Meméria extraordindria, compunha mentalmen- te longos poemas, pondo no papel somente a tltima forma. Lembrava-se, porém, nao s6 das diferentes variantes de cada verso, ocorridas durante a elaboragaéo poética, como do lugar, circunstancias e razGes da maioria delas. Desse dom é suma- mente ilustrativo o seu folheto “Como fazer versos”, escrito em 1926. Sabia de cor todos os seus poemas, sendo livros, e era capaz de recitar Puchkin inteiro. Por vezes, interrompia o sono para tomar notas de alguma solug&o poética repentinamente en- contrada, Acumulava em cadernos essas notas, a que chamava suas “reservas poéticas”, para delas langar m&o na primeira oportunidade. Considerava-se um escritor, um poeta profissio- nal, officio téo necessario e util como o que mais o fosse, e, por isso, cuidava de nao desperdicar nenhum dos seus “achados” ou “descobertas”. Dizia que, sem tais “reservas”, ndo poderia atender aos encargos da produciio didria. Aconselhava ou de- safiava os outros a que fizessem o mesmo. Todas essas reservas tenho-as na cabeca e as mais dificeis anoto-as num caderno. Como serao empregadas nao sei, sé sei que tudo serd utilizado. A preparacdo dessas reservas me toma todo o tempo, De- dico-Ihes de 10 a 18 horas por dia e estou sempre a pique de 48 murmurar alguma coisa. E esta concentragéo que explica a famosa distragdo dos poetas. O trabalho sobre essas reservas se passa em mim com uma tal tensGo que, em noventa por cento dos casos, lembro-me o lugar em que, nestes quinze anos de trabalho, certas rimas, aliterag6es, imagens, etc., receberam a forma definitiva. . . £ unicamente a existéncia dessas “reservas” cuidadosa- mente verificadas que me dé a possibilidade de terminar o tra- balho no tempo requerido, pois a norma de minha producao, atualmente, é de 8 a 10 linhas por dia. Assim aparelhado, desdobrava-se em atividades. Homem de pouca conversa, detestava a maledicéncia, nunca a praticava. N&o admitia perto de si o cochicho das comadres. Trabalhava ininterruptamente. Publica diariamente poemas ¢ artigos em jornais e revistas, escreve livros de poesia, de viagens e memé- rias, sem desdenhar de servir A propaganda do Estado. Basta ver a seqiiéncia: “A Flauta Vertebrada” (1915), “A Nuvem de Calcas” (1916), “O Homem” (1917), “Guerra e Paz” (1918), “150 Milhdes” (1920), “Amo” (1922), “A propé- sito disto” (1923), “Lénin” (1925), “Muito Bem!” (1927), “A Plena Voz” (1930), longos poemas liricos ¢ épicos, cada qual formando, por si s6, um livro. No teatro: “Eu” (1913), “O Mistério Bufo” (1921), “O Percevejo” (1928), “O Banho” (1929). Para circo: “Moscou arde”, pantomima aquatica. Além de sete argumentos escritos para cinema, bem como o desempenho de primeiro ator em diversos filmes, entre os quais o “Martin Eden”, da novela de Jack London ¢ “A professorinba dos operdrios” tirado dos contos de “O Coragio” de Edmundo @Amicis; nao contando mais de mil paginas de poesias para crianga, uma infinidade de legendas propagandisticas, a confec- gdo de cartazes e cendrios, desenhos, etc. Um dinamo de alta freqiiéncia giratéria. Aliviavam-lhe a tensdo criadora: em primeiro lugar e acima de tudo, o amor, a amizade de Lila; depois os jogos, sobretudo © bilhar e, por fim, as viagens ao estrangeiro. Desde os primeiros tempos do futurismo, Maiacovski res- taurou o antigo hdbito de rapsodos e menestréis, levando a poesia de cidade em cidade. Recitais, conferéncias e debates. Ia sozinho ou acompanhado de outros poetas e escritores. Pre- sidia sempre os trabalhos. Ninguém como ele para recitar, 49 estimular as discussées, dirigi-las, ou para achatar, com uma resposta fulminante, a qualquer provocador. A platéia fazia perguntas orais ou escritas em bilhetes que jogava sobre o palco. Maiacovski colecionou 20 000 desses bilhetes, 4 base dos quais pretendia escrever um livro, “A Resposta Universal”, afirmando saber 0 que pensava a massa de leitores. Nas viagens e atividades de rapsodo, seu ritmo era, como em tudo, vertiginoso: Viajo como um louco.... Recitei em:Voranezh, Rostov e Taganrog. A seguir de novo em Rostov-e Novocherskass.. . E recitar nao & facil. Recito todos os dias, Por exemplo, sdbado recitei em Novocherskass desde as oito e meia da noite até as doze e quarenia e cinco... Eas oito da manhé se- guinte, na Universidade, As dez e meia li versos no quartel de um destacamento de cavalaria do Exército Vermelho.. A uma e meia regressei a Rostov e recitei na Associagdo de Escritores Proletérios. Ter- minei as quatro e cingiienta minutos, e as cinco e trinta recitei no. clube da fdbrica Lénin. .. (De uma carta a Lila Brik, de 29-12-1926) Outro itinerério: . A 25 falei em Karkhov, junta. com S. Kirsdénov.. A 27 ¢.28 em Lugansk (Vorochilovgrado) ¢.a 29.em:Stalino, A 31 falo de novo em. Karkhov. Na Criméia estarai a 4.de agosto @, participarei de uma sesso em Sinferopel A 5 falarei em Sebastopol e a 8 em Aluch. A 12 em Guzzuf ea 16 em Alupca. :A 17 ¢€ 18 em Ialta, A 19 recit@rei em Eupatorio e a 20 de.navo em Sinferopol. A 22 em Livadio, num sanatério onde repousam 350 camponeses. A 23 estarei em Jaraks, e a 24 em Simeis. A: 25, 30 e 31 de novo em lalta. A 3 de setembro. no Cducaso, em Piatigorsk. . (De uma carta a Lila Brik, de 24-7-1927) Assim chegou a percorrer 52 cidade soviéticas. E, por acaso isso era tudo nas 24 horas difrias do poeta? Lila Guerrero lembra. com raz%o que, além disso, ainda havia que conversar com os amigos depois das sessdes, comer, ler os jornais, visitar um jornalista que falseara a noticia, dis- cutir com ele e encher de anotagGes o insepardvel caderno de “reservas” e¢ escrever a Lila e dormir, 50 V. Katanian, seu amigo, escreveu “Os anais de Maiaco- vski”, livro em que recompde cronologicamente, més a més, dia a dia, a assombrosa atividade do bardo. Valha como sim- ples amostra esta parcela do ano de 1927: Janeiro, Aparicéo do primeiro nimero da revista Nova Lef, sob a directo de Maiacovski, com um lieder de Maiaco- vski e 0 poema “Carta do escritor V. V. Maiacovski ao escritor Alexei M. Gorki”. Janeiro. No Izvestia, poema de Maiacovski, Nosso Ano Novo e A estabilizacio dos costumes. Segunda metade de janeiro. Tournée de’ conferéncias a Nijni-Novgorod, Kazan, Penza, Samara, Saratov {15 conjerén- cias). Durante a viagem sao escritos os poemas “Através das cidades da Unido”. “Os fabricantes de otimistas”’. Fevereiro. No segundo ntimero da revista Nova Lef, poe- ma de Maiacovski “A Nossa Juventude”, 13 de fevereiro. Maiacovski fala na Academia comunista durante uma sessio noturna com debates sobre o tema “Esse- nianismo e tendéncias mérbidas entre os jovens”. Segunda metade de fevereiro. Tournée de conferéncias em Tula, Kursk, Karkhov, Kiev (10 conferéncias). Margo. No jornal O Trabalho, por ocasido da jornada internacional da mulher, um poema de Maiacovski: “A guisa de ode’. No Izvestia, no Pravda de Leningrado ¢ no Jornal Oper4rio aparecem poemas de Maiacovski, “Discurso inspirado sobre 0 modo de acumular e de guardar dinheiro” e “Metei pelos olhos, enfiai pelas orelhas estas palavras de ordem e estes refraos’, escritos para o langamento de um empréstimo estatal. E assim por diante, dia a dia, uma quinzena apés outra, més a més. Possufdo de permanente febre criadora, Maiaco- vski ultrapassava as medidas comuns, agigantava-se. Era a “fabrica soviética de elaborar felicidade”, isto é, poesia. De 1922 a 1929, Maiacovski visitou vdrias cidades do mundo: Riga, Koenisberg, Varsévia, Praga, Berlim, Noderney, Niza, Paris, Havre, Vera Cruz, Havana, México, Loredo, Fila- délfia, Nova York, Detroit e Chicago. As viagens eram uma necessidade de sua inquietagdo, que buscava nfo tanto o repou- so sendo novos motivos de trabalho. Nd&o conseguiu comple- tar a volta ao mundo, como desejava. Teve pela frente barrei- ras diplomdticas. Nem todas as embaixadas lhe concediam 51

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