Professional Documents
Culture Documents
EP
ENCCONTRO INTTERNACION
NAL
Centro de Inve
estigação em
m
A UN
NICIDADE DO
D CONHEC CIMENTO
Edu
ucação e Pssicologia
ASPEC
S CTOS
S DA
A CEN
NSU
URA
INQUISIITOR
RIALL EX
XERC
CIDAA
SOB
BRE AS CEN
C NTÚR RIAS DE
AMA ATOO LUS
SITAANO
Isillda Rodrigu
ues1
INTRODU
N UÇÃO
No seu livroo Ciencia y censura2 P
Pardo Tomáás aponta aa Medicinaa como umaa das
áreas mais afecctadas pelaa censura iinquisitoriaal durante o Século X
XVI. Nos Índices
deste período u um terço ddos livros ccientíficos ccensuradoss é de Mediicina, num total
de duuas centennas e meia. E
Embora estes dados ssejam relattivos a Espaanha, é bastante
conssensual enttre os histo
oriadores da Inquisiçãão que o meesmo se ap plica à realiidade
portuguesa3.
1
Profeessora Auxiliarr do Departam mento Educação o e Psicologia da Universidad de de Trás‐os‐‐Montes e Alto Douro
(UTAD D). isilda@uta ad.pt
2
Tom
mas, J. P., Ciênciia Y Censura, L La Inquisición EEspanõla y los libros científiccos en los siglo
os XVI y XVII, 1991, p.
193.
3
Beth
hencourt, Franccisco, História das Inquisiçõess: Portugal, Esp panha e Itália, Lisboa: Círculo de Leitores, 1994.
4
Peseet, M. e J.L., El aislamiento cieentífico españo
ol i través de loos Ìndices del iinquisidor Quirroga de 1583 ee 1584,
Anthologica Annua, 16, pp. 25‐ 41,
4 1968; Fron nt, D. The expurgation of medical
m books in sixteenth‐ccentury
Spain.. Bull History off Medicine, 001 1. 75 (2): pp. 290‐296.
RODRIGUES, I. (2007) Aspectos da censura inquisitorial exercida sobre as centúrias de Amato
Lusitano. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento.
Évora: Universidade de Évora.
científicos. São apontados, entre outros, os nomes dos médicos Miguel Serveto
(1511‐1553) e Amato Lusitano (1511‐1568).
Os médicos judeus, também foram bastante afectados. Por um lado, eram
médicos, e esta área encontrava‐se, já por si, sob vigilância apertada. Por outro
lado, eram judeus, ou cristãos novos, e portanto eram também alvos de rejeição, ou
pelo menos de séria desconfiança, por motivos do foro religioso.
A perseguição movida pela Inquisição aos cristãos‐novos, ou a quem com eles
tivesse contacto, criou um clima de suspeição que terá dificultado a discussão de
novas ideias e novos conhecimentos. Esta tensão constante afugentou de Portugal
alguns homens que são, hoje, alguns dos seus motivos de orgulho mais legítimos.
Podemos incluir neste grupo médicos notáveis, como aquele que constitui o
objecto do nosso estudo, Amato Lusitano.
5
Pinto Correia, C.; Sousa Dias, J. P., Assim na Terra como no Céu, Ciência, Religião e Estruturação do Pensamento
Ocidental, Lisboa: Relógio D’ Água, 2003. pp. 305‐307.
______________________________________________________________________
2
RODRIGUES, I. (2007) Aspectos da censura inquisitorial exercida sobre as centúrias de Amato
Lusitano. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento.
Évora: Universidade de Évora.
Este trabalho integra uma investigação mais ampla6 e tem como principal
objectivo apresentar um levantamento da censura inquisitorial exercida sobre a
obra – As Centúrias de Curas Medicinais, do médico português, conhecido por
Amato Lusitano. Foram utilizadas, como material de análise, as Centúrias7,
publicadas pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa,
em 1980, que resultaram das traduções levadas a cabo pelo professor de Latim e
Português, Firmino Crespo, e as edições das Centúrias consultas nas Bibliotecas da
Universidades de Évora e de Coimbra.
A presença de Amato Lusitano no Índices de livros proibidos verifica‐se a partir
de finais do Século XVI. Consultado um levantamento dos Índices apresentado no
livro Ciencia y Censura que acima mencionámos, vemos que o nome de Amato
Lusitano consta, como autor proibido, nos Índices de 1581, 1612, 1632, 1640 e
17078. Amato é novamente objecto de censura no Index auctorum damnatae
memoriae, divulgado, em Lisboa, em 1624. Este Índice inclui vários outros autores,
como Alberto Magno, Arnaldo Villanova, Leonardo Fuchs e André Laguna. Das
várias obras que estavam representadas em diversos tribunais inquisitoriais
portugueses, as Centúrias, de Amato Lusitano, figuram num total de 32
exemplares9.
O catálogo dos livros que se prohibem nestes regnos & Senhorios de Portugal, de
1581, embora interdite vários autores, apenas expurga as obras de Amato
Lusitano, mas deixa‐as circular. Neste índice refere‐se que:
«(o)s Amatos Lusitanos também se hão de entregar no sancto Officio,
para se riscarem nelles certos passos, que podem fazer damno»10.
Nas edições das Centúrias que analisámos nas Bibliotecas das Universidades de
Évora e Coimbra, constatámos que, de facto, alguns excertos do texto tinham sido
riscados. Embora não possamos afirmar, com todo o rigor, que estes cortes se
devam à vistoria pela Inquisição, o seu aspecto, a natureza dos temas riscados e as
datas da publicação apontam para esta possibilidade. As frases censuradas
referem‐se principalmente a afecções do foro da ginecologia, reprodução e
sexualidade. As restantes prendem‐se com questões de natureza religiosa.
6 Integra uma Tese de Doutoramento, cujo título é AMATO LUSITANO E AS PERTURBAÇÕES SEXUAIS – Algumas
contribuições para uma nova perspectiva de análise das Centúrias de Curas Medicinais, apresentada na
Universidade de Trás‐os‐Montes e Alto Douro (UTAD), Vila Real, orientada pela Professora Doutora Clara Pinto
Correia e pelo Professor Doutor José João Bianchi, Professor Associado da UTAD.
7
Centúrias de Curas Medicinais de Amato Lusitano prefácio e tradução de Firmino Crespo e José Lopes Dias,
publicadas pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, em 1980.
8
Ibidem, p. 359.
9
Ibidem
10
Ibidem
______________________________________________________________________
3
RODRIGUES, I. (2007) Aspectos da censura inquisitorial exercida sobre as centúrias de Amato
Lusitano. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento.
Évora: Universidade de Évora.
Analisando, com minúcia, as Centúrias da Biblioteca da Universidade de
Coimbra, publicadas em Burgos, em 1620, constatamos o seguinte:
Na Cura XLVII da II Centúria, de título DE UM INDIVÍDUO QUE, ESTANDO
ATORMENTADO DE DISENTERIA, COMETEU COITO COM MULHER E FICOU SÃO,
os comentários foram totalmente apagados. Eis o que dizem os comentários:
«Disse Hipócrates nas últimas páginas dos livros De Morbis vulgaribus
que a disenteria se cura com a vida lasciva. A frequência dos prostíbulos é,
como ele diz, uma torpe licenciosidade, de que o cínico Diógenes usou
quando esperava a meretriz. Como tivesse chegado tarde junto dele que a
esperava, apresentouselhe vergonhosamente e contra o preceito de
Deus. A mão anteciparase à celebração da cópula. Havia lançado o
sémen ao chão com levar às partes pudendas. Acerca da continência e
constância deste homem leiase Galeno, no seu livro 6º De locis afectis,
capítulo IV. De facto, este como aquele é digno de censura neste
assunto»11.
Além da sua natureza francamente sexual, estes comentários, por muito
que Amato censure tanto Galeno como Diógenes, o Cínico, têm ainda por
cima o peso nada despiciendo de se prenderem com a masturbação.
Considerada à época um pecado mortal, com prescrições de penitência muito
precisas, esta não era certamente uma temática sobre a qual as autoridades
religiosas estivessem dispostas a deixar um médico transcrever livremente
os Clássicos, sobretudo num livro destinado a uma circulação vasta entre
eruditos12.
Ainda na mesma Centúria, encontramos na cura XXXIX, sobre UMA RAPARIGA
QUE PASSOU A VARÃO, partes do texto riscadas, que passamos a citar:
«Chegada à idade em que as mulheres costumam ter pela primeira vez a
menstruação, em vez desta, principiou a aparecerlhe e a desenvolverse
um pénis que até esse tempo estivera interiormente oculto. Desta forma
transitou ao sexo masculino, vestiu fato de homem e foi baptizada, com o
nome de Manuel»13
Trata‐se de uma cura em que, novamente, a temática em causa é a sexualidade ‐
neste caso, a transsexualidade propriamente dita, uma zona de sombra que, na
época, ainda nem sequer tinha terminologia de designação adequada. A ausência
do termo pressupõe a ausência do conceito, e, se a temática, em si, é problemática
para a época, o mais provável é que se torne francamente explosiva, quando diz
respeito a fenómenos que supostamente, não deviam sequer acontecer.
11
II Centúria, Cura XLVII, p. 102.
12
Pinto‐Correia, C., Ovário de Eva, Lisboa: Relógio D’ Água, 1998. pp. 137‐139, 145‐147.
13
II Centúria, Cura XXXIX, p. 85.
______________________________________________________________________
4
RODRIGUES, I. (2007) Aspectos da censura inquisitorial exercida sobre as centúrias de Amato
Lusitano. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento.
Évora: Universidade de Évora.
Um outro exemplo que abrange a questão da sexualidade é o retratado na cura
XVIII, da II Centúria, referente a UM INDIVÍDUO QUE NÃO PODIA PRATICAR O
ACTO SEXUAL. Nesta cura, encontra‐se apagada parte da prescrição terapêutica
indicada por Amato, que passamos a reproduzir:
«Admitimos até como de lei, os peixes, desde que sejam comidos quentes e
bem preparados, se bem que muitos protegidos de escamas ou cobertos de
casca excitam o libido. Mas é preferível passar em silêncio os que estavam
proibidos pela religião (...)»14
Constatámos que foram apagados os nomes dos medicamentos usados para a
excitação sexual, que seriam no mínimo incómodos para os representantes oficiais
de uma religião que defende e impõe, como prática de vida aos seus fiéis, que o
corpo não se destina ao prazer, mas tão somente à procriação, e que deve ser
curado apenas para esses fins.
Na Cura IX da I Centúria relativa a UM HEBREU QUE SOFRIA DE UMA CHAGA
QUE LHE DESTRUÍA O CÉREBRO, encontramos cortado, nos comentários à morte
do paciente, o excerto em que Amato diz:
«É todavia de grande conforto para os amigos o facto de ter vivido
santamente e ter morrido inocentemente, naquele dia em que os judeus
aconselham a pedir a Deus perdão para os seus pecados» 15.
Nesta cura, como também nos comentários das Curas XLII e LXVI, da IV
Centúria, foram censurados comentários de natureza religiosa, o que é uma
reconhecida prática corrente da Inquisição, sempre que o autor se desvie do
catolicismo. Neste caso concreto, para agravar o cenário, estão em causa
exactamente os tópicos que supostamente constituíram a bête noire preferencial
da Inquisição espanhola e portuguesa: hábitos e costumes judaicos.
Um outro caso de censura poderá ter ocorrido na Cura XXXVI, da IV Centúria, de
título DE MOLA NA MATRIZ16. Segundo fontes recentes17, a versão das Centúrias
editadas em Lyon, em 1580, refere, no que supomos ser esta mesma cura, a
gravidez de uma freira. Segundo esta fonte, terá sido expurgada pela Inquisição a
discussão de uma possibilidade de “concepção virginal” sofrida por uma freira, em
que Amato se apoia em Averroes e uma fonte rabínica hebraica (o Alfabeto de Bem
Sira) para admitir que casos semelhantes possam ocorrer naturalmente. Na versão
das Centúrias, traduzidas por Firmino Crespo, que seguimos ao longo de toda a
nossa análise, está presente a menção a Averroes mas não à fonte rabínica, não
encontramos qualquer comentário final mas apenas uma breve menção à cura, e a
gravidez duvidosa em questão é atribuída não a uma “freira” mas a uma “rapariga”,
14
II Centúria, Cura XVIII, p. 44.
15
I Centúria, Cura IX, p. 81.
16
IV Centúria, Cura XXXVI, p. 70.
17
Front, D. The expurgation of medical books in sixteenth‐century Spain, BULLETIN OF THE HISTORY OF
MEDICINE, 75 (2) ,pp. 290‐296, 2001.
______________________________________________________________________
5
RODRIGUES, I. (2007) Aspectos da censura inquisitorial exercida sobre as centúrias de Amato
Lusitano. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento.
Évora: Universidade de Évora.
seguindo‐se apenas um conselho seco do autor para que não se fale muito no caso.
É evidente que, para evitar eventuais escândalos, a Inquisição tenha exigido a
substituição de freira pela rapariga.
Mas, tendo em conta a riqueza do material que Front (2001) nos diz ter sido
expurgado, também é possível que o laconismo da versão de Firmino Crespo se
deva à ocorrência, à época da publicação mencionada nesta fonte (1580) –
hipótese que ganha reforço adicional quando consideramos estarmos perante uma
temática tão explosiva como a da inseminação espiritual. Como podemos ver
seguidamente, a própria secura do tom de recomendação final, para que não se fale
muito do caso, pode não ter vindo originalmente do punho de Amato, mas sim do
censor que processou a versão latina consultada por Firmino Crespo:
DE MOLA NA MATRIZ
«Uma certa rapariga, sentindo‐se mal, dizia que tinha a impressão de qualquer
coisa a mexer dentro do corpo. Por isso algumas mulheres clamavam que ela tinha
uma mola na barriga. Eu não duvidava que tal pudesse acontecer. De facto sabemos
pelo que diz GALENO no livro 14.º De usu partium, que não pode gerar‐se uma
mola ou coisa semelhante sem relações com homem, ao dizer: «Nunca ninguém viu
que uma mulher concebesse mola ou qualquer outra coisa sem homem». Por isso
aconselhei‐as a que, ou ocultassem o caso ou dissessem que era outro género de
mal. AVERROIS, no seu livro Colectório assevera que uma mulher pode engravidar
de sémen veril deixado no banho.»
CONCLUSÕES
Ao analisar a questão da censura que poderá ter sido exercida sobre as
Centúrias verificámos que o nome de Amato Lusitano figura, a partir de finais do
Século XVI, nos Índices da Inquisição. Amato Lusitano consta, como autor proibido,
nos Índices de 1581, 1612, 1632, 1640 e 1707. Amato é novamente objecto de
censura, no Index auctorum damnatae memoriae, divulgado, em Lisboa, em 1624.
Das várias obras que estavam representadas em diversos tribunais inquisitoriais
portugueses, as Centúrias, de Amato Lusitano, figuram como apreendidas e
impedidas de circular, num total de 32 exemplares. Mas já O catálogo dos livros que
se prohibem nestes regnos & Senhorios de Portugal, de 1581, embora proíba
liminarmente vários outros autores, apenas expurga as obras de Amato Lusitano,
mas deixando‐as circular.
______________________________________________________________________
6