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João dos Santos1(1957)
Rastos e marcas de quem fala por “outras palavras”
- in Revista "Corda Bamba - Tightrope", nº 1, Cascais,
Precisamos, de vez em quando, de recordar o que devia ser óbvio. Todos
sabemos que nem só de palavras vive a comunicação entre humanos mas
procedemos como se apenas fosse válido e pertinente o que podemos organizar
em textos, orais ou de preferência reduzidos a escrita.
Somos assim levados a valorar quase exclusivamente o que somos capazes de
dizer falando ou escrevendo, num processo que por vezes parece irreversível na
construção de uma outra humanidade, em que os sentidos se especializam na
tradução textual do que aprendemos pela luz, o som, o movimento, o tacto, os
sabores e odores, a própria memoria dos afectos que nos vai construindo.
Outras formas de sentir e comunicar além da verbal e textual, insinuam‐se,
felizmente, a todo o momento, na vida de relação e na expressão pessoal de cada
ser que precisa de agir e fazer para ser capaz de pensar, como Wallon2 (1942)
nos ajudou a compreender.
Mas pensamos como? Prevendo, antecipando, representando, fazendo,
transformando, comunicando. Com tudo o que podemos e temos à mão,
mobilizando o que sabemos e inventando o que não temos. E este
pensamento/acção foi o que nos salvou (até ver) de desaparecermos da face do
planeta.
Se nada nos tivesse empurrado para fora do Paraíso, quer na versão bíblica ou
mais provavelmente pelas alterações de clima que nos deixaram há cerca de 16
milhões de anos (aos símios nossos antepassados) sem as acolhedoras florestas e
a abundância de alimentos, não teríamos tido (os primatas sobreviventes) a
possibilidade de nos construirmos enquanto espécie. Encontrámos na nossa
fragilidade os impulsos de sobrevivência que podem explicar a singularidade de
respostas que tanta dificuldade temos ainda hoje em aceitar.
Aos artistas, em magnânima cedência, é concedida a possibilidade de usarem ou
mesmo inventarem novos usos e significados para as linguagens. Dos cientistas,
espera‐se a solução dos males que nos afligem, a previsão e antecipação do
futuro, a procura da felicidade. E nesta dicotomia reside talvez a nossa
1 in “Fundamentos psicológicos da Educação pela Arte”, in Educação Estética e
Ensino Escolar, Lisboa, Ed. Europa‐América, 1966
2 WALLON, H. De l’ acte à la pensée. Paris, Ed. Flamarion, 1942.
dificuldade em compreender que uns e outros se complementam nos
instrumentos e meios que usam.
Parece‐nos poder afirmar que se há espécie que sabe o que é viver na “corda
bamba”, é este bendito sapiens sapiens que encontra, nas fraquezas, força para
engendrar soluções, experimentar instrumentos, cooperar q.b., quando a
necessidade a isso obriga.
Uma das mais recentes adaptações (na escala de milhares de anos que nos
separa da última glaciação) foi termos sido capazes de integrar nas comunidades
quem era diferente, com uma genial premonição de que não sendo suficiente a
selecção natural e a mutação genética para resolver as sucessivas desgraças que
nos iam atingindo, não vinha mal ao Mundo se alguns eram muito altos e outros
muito baixos, se alguns eram surdos e outros cegos, se algumas marcas, doenças
ou deformações apareciam inexplicavelmente sem que delas houvesse memoria
no grupo atingido.
Mas não devemos ficar por aqui na enumeração de diferenças e no que seria um
dos aspectos que se revelaria essencial na construção de comunidades
complexas. Longe ficava a deriva dos recolectores, cuja única especialidade deve
ter sido aprenderem a safar‐se dos predadores, que viam melhor, corriam mais,
eram mais fortes e tinham os melhores territórios. O gesto preciso e
instrumentado permitiu mudar a vida e criar algum conforto, a par com um
crescente sentimento de que era possível prever ou evitar males futuros.
As marcas que fazemos e por vezes deixamos, nos objectos, na terra e nas pedras
ou nos novos suportes (papel, tela, ficheiro de imagem) são para algumas
pessoas a única forma de expressão e comunicação em que se sentem bem e nos
conseguem fazer entrar no seu universo pessoal. Por vezes é pelo gesto
transfigurado em movimento e dança (ou música) que essa corrente se
estabelece.
E para cada um de nós o desafio da vida é, na sua singularidade, encontrar as vias
e meios ou suportes em que se sente capaz de encontrar equilíbrio, resolver
conflitos, buscar soluções para o que lhe importa, estabelecer pontes com os
outros e ser capaz de ser aceite e sentir‐se útil.