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“O falar não é a única forma de linguagem” 

João dos Santos1(1957) 

 
Rastos e marcas de quem fala por “outras palavras” 
- in Revista "Corda Bamba - Tightrope", nº 1, Cascais,

- Domingos Morais, Dez. 2008.

 
Precisamos,  de  vez  em  quando,  de  recordar  o  que  devia  ser  óbvio.  Todos 
sabemos  que  nem  só  de  palavras  vive  a  comunicação  entre  humanos  mas 
procedemos como se apenas fosse válido e pertinente o que podemos organizar 
em textos, orais ou de preferência reduzidos a escrita.  
Somos  assim  levados  a  valorar  quase  exclusivamente  o  que  somos  capazes  de 
dizer falando ou escrevendo, num processo que por vezes parece irreversível na 
construção  de  uma  outra  humanidade,  em  que  os  sentidos  se  especializam  na 
tradução  textual  do  que  aprendemos  pela  luz,  o  som,  o  movimento,  o  tacto,  os 
sabores e odores, a própria memoria dos afectos que nos vai construindo. 
Outras  formas  de  sentir  e  comunicar  além  da  verbal  e  textual,    insinuam‐se, 
felizmente, a todo o momento, na vida de relação e na expressão pessoal de cada 
ser  que  precisa  de  agir  e  fazer  para  ser  capaz  de  pensar,  como  Wallon2  (1942) 
nos ajudou a compreender. 
Mas  pensamos  como?  Prevendo,  antecipando,  representando,  fazendo, 
transformando,  comunicando.  Com  tudo  o  que  podemos  e  temos  à  mão, 
mobilizando  o  que  sabemos  e  inventando  o  que  não  temos.  E  este 
pensamento/acção foi o que nos salvou (até ver) de desaparecermos da face do 
planeta. 
Se  nada  nos  tivesse  empurrado  para  fora  do  Paraíso,  quer  na  versão  bíblica  ou 
mais provavelmente pelas alterações de clima que nos deixaram há cerca de 16 
milhões de anos (aos símios nossos antepassados) sem as acolhedoras florestas e 
a  abundância  de  alimentos,  não  teríamos  tido  (os  primatas  sobreviventes)  a 
possibilidade  de  nos  construirmos  enquanto  espécie.  Encontrámos  na  nossa 
fragilidade os impulsos de sobrevivência que podem explicar a singularidade de 
respostas que tanta dificuldade temos ainda hoje em aceitar. 
Aos artistas, em magnânima cedência, é concedida a possibilidade de usarem ou 
mesmo inventarem novos usos e significados para as linguagens. Dos cientistas, 
espera‐se  a  solução  dos  males  que  nos  afligem,  a  previsão  e  antecipação  do 
futuro,  a  procura  da  felicidade.  E  nesta  dicotomia  reside  talvez  a  nossa 
                                                        
1 in “Fundamentos psicológicos da Educação pela Arte”, in Educação Estética e 

Ensino Escolar, Lisboa, Ed. Europa‐América, 1966 
2 WALLON, H. De l’ acte à la pensée. Paris, Ed. Flamarion, 1942. 
dificuldade  em  compreender  que  uns  e  outros  se  complementam  nos 
instrumentos e meios que usam.  
Parece‐nos  poder  afirmar  que  se  há  espécie  que  sabe  o  que  é  viver  na  “corda 
bamba”,  é  este  bendito  sapiens  sapiens  que  encontra,  nas  fraquezas,  força  para 
engendrar  soluções,  experimentar  instrumentos,  cooperar  q.b.,  quando  a 
necessidade a isso obriga. 
Uma  das  mais  recentes  adaptações  (na  escala  de  milhares  de  anos  que  nos 
separa da última glaciação) foi termos sido capazes de integrar nas comunidades 
quem  era  diferente,  com  uma  genial  premonição  de  que  não  sendo  suficiente  a 
selecção natural e a mutação genética para resolver as sucessivas desgraças que 
nos iam atingindo, não vinha mal ao Mundo se alguns eram muito altos e outros 
muito baixos, se alguns eram surdos e outros cegos, se algumas marcas, doenças 
ou deformações apareciam inexplicavelmente sem que delas houvesse memoria 
no grupo atingido.  

Mas não devemos ficar por aqui na enumeração de diferenças e no que seria um 
dos  aspectos  que  se  revelaria  essencial  na  construção  de  comunidades 
complexas. Longe ficava a deriva dos recolectores, cuja única especialidade deve 
ter sido aprenderem a safar‐se dos predadores, que viam melhor, corriam mais, 
eram  mais  fortes  e  tinham  os  melhores  territórios.    O  gesto  preciso  e 
instrumentado  permitiu  mudar  a  vida  e  criar  algum  conforto,  a  par  com  um 
crescente sentimento de que era possível prever ou evitar males futuros. 

As marcas que fazemos e por vezes deixamos, nos objectos, na terra e nas pedras 
ou  nos  novos  suportes  (papel,  tela,  ficheiro  de  imagem)  são  para  algumas 
pessoas a única forma de expressão e comunicação em que se sentem bem e nos 
conseguem  fazer  entrar  no  seu  universo  pessoal.  Por  vezes  é  pelo  gesto 
transfigurado  em  movimento  e  dança  (ou  música)  que  essa  corrente  se 
estabelece.  
E para cada um de nós o desafio da vida é, na sua singularidade, encontrar as vias 
e  meios  ou  suportes  em  que  se  sente  capaz  de  encontrar  equilíbrio,  resolver 
conflitos,  buscar  soluções  para  o  que  lhe  importa,  estabelecer  pontes  com  os 
outros e ser capaz de ser aceite e sentir‐se útil. 
 

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