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Ea) Nao existe expresso sem contetido Donald Soucy* Em 1984, a Universidade de Sao Paulo sediou o 1 Simpésio Internacional sobre o Ensino da Arte e sua Historia e, desde entio, um grupo informal de historiadores que pesquisam o ensino da arte: conseguiu se encontrar uma vez por ano: em 1985, na Pennsylvania State University, nos Estados Unidos; em 1986, novamente aqui em, Sao Paulo; em 1987, em Halifax, Canad; em 198%, cm Boumernouth, Inglaterra; em 1989, outra vez aqui em Sao Paulo: ¢ em outubro de 1989 de novo na Pennsylvania State University. Esta claro que voces, aqui no Brasil, através do trabalho de pessoas como Anna Mae Bar. bosa, sto lideres internacionais no assunto, Aqueles de nos que esta seguindo sua lideranga estio descobrindo que, através de um melhor entendimento do nosso passado, tambem compreendere mos melhor nosso presente © nosso futuro. Esta € @ finalidade de minha conferéncia: mostrar como n6s, professores, poclemos usar a hist6ria para aprimorar nosso trabalho. Para tanto, usarei exemplos relacionados & auto-expressio, registros historicos da arte, de cultura € de enero. Peco descul as fa neexoucn0 comeoinen a rei do lugar que conhego melhor, a América do Norte, © especial: mente o Canada. Mas espero que meus comentarios a respeito do Canad sejam apropriados para vocés. Parece benéfico conhecer os tipos de problemas que compartilhamos em ambos os paises, Quais sto as condigoes que geram esses problemas? No que cles se ass melham? No que eles diferem? Quais as solucdes que funcionaria num pais @ nao no outro? Em resumo, 6 que pode © Brasil e © Canada aprenderem mutuamente, a respeito do ensino da arte? Eu ainda na sei as respostas para estas perguntas, mas penso que compartilhando com vocés o que eu sei sobre o Canad nds podemos comegar a encontri-las juntos, ¢ eu acho que a historia pode nos ajudar. Desde © inicio da décacla de 1980, muitos professores de arte na América do Norte comecaram a se interessar pelo passado, Tale vex a causa deste interesse seja a mucanga no ensino da arte c, antes de mudar © que fazemos agora, queremos saber porque aceitarmos esta mudanga. Tomemos, por exemplo, a idéia de que “arte € auto- ‘expressao". Muitos de nds acreditamos que a arte sempre foi visti essencialmente como a expresso do eu-profundo, Contudo, esta idéia € relativamente nova. Foster Wyzant, em seu livro Arte ent #scolas Americanas no Século Dezenove (1983), discute quanto tem Po antes dos ultimos 100 anos ou mais, a expresso em arte signi cava a expresso do objeto da arte; significava @ expressao da paisa gem que estava sendo pintada ou da figura que estava sendo esculpi da, Foi apenas no século pasado, segundo Wygant, que a idéia cla expresso passou a significar a expresso do artista individual, No ensino da arte, muitas pessoas passaram a acreditar que a auto-expressiio abrange todo o universo da arte, especialmente para a8 ciangas mals novas. Muitos professores parecem acreditar que eles devem deixar as criancas se expressarem ¢ dessa forma seu compromisso de ensino jf esti realizado, © que cles esquecem & que toda expresso tem contetido, mesmo que ela pareca referir-se primeiramente a propria arte, Para se expressar, voce deve expres sar alguma coisa, As idéias a respeito do ensino da arte com 0 objetivo da auto- expressao pura podem ser reconstituldas historicamente. Muitas de- las partiram de interpretagoes erroneas das teorias do ensino da arte de pessoas como Frinz Cizek © Viktor Lowenfeld. Cizek di veut suas idgias sobre a arte feita por crlancas quando lecionava em. Viena durante o fim do século XIX ¢ inicio do século XX. Lowenfeld, que tambem viveu em Viena, mudou-se para os Estados Unidos ¢ la, depois da Segunda Guerra Mundial, popularizou suas idéias. A en tuo chamada auto-expressio ert certimente um aspecto importante dos ensinamentos de Cizek e de Lowenfeld, mas também © contet- do cra enfatizado. Em 1925, Thomas Mungo notou que muito dos trabathos das criangas das classes de Gizek refletiam © conteticlo © © estilo de imagens populares em Viena naquela época. Quanto a Idéla ingénua de que os tabalhos nao eam nada além de autor lexpressao, Munro disse: ‘0 ideal de manter a imaginacao de uma crianga no estado de pureza ¢ liberdade absoluta €, de inicio, impossivel. A mera tentat- Va de tal propésito € uma evidéncia da falsa psicologia que tem influenciado muitos textos sobre o ensino da are: a antiga crenga de que algum ‘cu’ dentro da crianga esta emergindo em busca de ex aca e que todas as foreas externas tendem a repr milo © domina-lo” (Munro, 1929: 134). Munro argumentou que o conteddo da expressio sempre influenciado por forcas externas, Se os professores ignoram estas Forgas entao cles nao ajudam seus alunos a discriminar entre mas ¢ boas influéncias, entre a expressio pobre € a arte verdadeira FE também um erro dizer que © contetido nao era importante hos ensinamentos de Lowenfeld. Lowenfeld acreditava que “seria crmdo pensar que auto-expressao significa a expressao dos pensa- mentos € idéias em termos gerais de conteido” (1957: 19). Mas el tambem acreditava que nao haveria expressao sem conteddo. "O. assunto © 0 conteddo estao necessariamente relacionados”, disse ele, ¢ a natureza deste contetido ea a chave pam a expresso: *Separar o conteddo de sua representacio significaria privar um corpo de sua alma ¢ vice-versa, Num trabalho criativo, 0 assunto, € 6 modo pelo qual ele € representado formam um todo insepari- vel" (p. 30, © contesido no tipo de arte infantil que Cizek © Lowenfeld defendiam também continha mensagens sutis das quals os proprios serDUCAGo contanoaines * teGricos talvez nao tivessem conhecimento. Pademos ter mais infor- maodes sobre estas mensagens através de recente pesquisa historica Um historlador que escreveu varios trabalhos a respeito das idéias de Gizek ¢ Lowenfeld ¢ Peter Smith (veja, por exemplo, Smith, 1982, 1983, 1985a, 1985}, 1987, 1989), Os artigos de Smith, cetamente, deveriam ser lidos por aqueles que t@m uma opiniio sobre a auto expresso no ensino da arte, porque conhecer as crengas de Cizek © Lowenfeld & também conhecermos a nés mesmos, Kerry Freedman € outro historiador que estuda idéias sobre a auto-expressio no ensino da arte (veja, por exemplo, Freedman, 1986, 1987, 1988, 1989). Baseando-se na observacao de Wyant «le que 6 sentido da expresso artistica mudou, Freedman escreve: "Pe Jos anos de 1920 a qualidade das experiéncias da crianga na sua atividade em arte, muito mais do que a qualidade do resultado de seus trabalhos, tornou-se um importante foco do curricula”. Mais tarde, por volta do final da Segunda Guerra Mundial, a auto-expres- so na educacao artistica era vista como encarregada de, pelo me- nos, dois objetivos. Um deles era encorajar uma “personalidade de- mocratica” nos indivicuos, e © outro era um objetivo terapeutico com © proposito de promover uma savide criativa, mental © emocio- nal (989: 30-31). Havia, entretanto, contradigoes, Por definicao, a auto-expres sto deveria refletir 0 individual ¢ o pessoal. Ainda assim, afirmava- se que a expresso saudivel era exemplificaca por formas especifi- as © prédeterminads. A auto-expressio no ensino da arte era in- centivada como 0 cultive de caricteristicas asaciais em criancas, quando, na verdade, ela realmente serviu para ocultar 0 conteude ‘ocial da expressao: “Ter © foco apenas no individuo roubou as atengdes dos pro- Dlemas das instituicdes culturais © dt politica social. A-qualidade do. individualismo como liberdade era um mito baseado em certos ideais de classe, etnia e genero, mas era considerada como uma realiclade universal. No mito, o individuo fot feito responsavel por si proprio © capaz de ter controle sobre a sua propria vida, porém, a responsabi- dade estava fora de um contexto social © negava o poder através dda manutencao institucional do controle sobre as atituctes do indivi. duo © crencas s (989; 31-32. Freedman diz haver um contevdo politico especifico nos mitos: dla auto-expressio, © que acreditavamos ser uma personalidade natural” era, na verdade, definida por interesses nacionais: gerais (p. 31). Assim, 0 que chamamos de auto-expressiio natural nao é de modo algum natural, € mais uma idéia construida pela sociedade, Além disso, 0 que hoje dizemos ser “natural” para as criancas € diferente do que acreditavamos ser natural no passado, ¢ € diferente do que acreditaremos ser natural no futuro, Em resumo, nossas idéias acerca do que € natural, como as nossas idéias a respeito da expres- sao artistica, mudam com © tempo. Segundo 6 que Edward Lucie-Smith (1989) disse em seu dis curso de abertura neste Simpésio, nossas idéias a respelto da histo- fia também mudam com © tempo. © passado, em si, nao muda, mas nossas concepgdes sobre ele sim. Os fatos do pasado nao so em si Snaturalmente” importantes ou nao. Para ser mais preciso, © contet- do em ambas, historia geral e historia da arte, € determinado pelos julgamentos de valores do historiador. Em 1931, © historiador brita- nico Herbert Butterfield criticou © modo pelo qual estes julgamentos de valor sto feitos, com muita freqiéncia, tendo-se por base os pa- drdes atuais. O que era importante no pasado, pressupoem alguns historiadores, enim as situages que levaram aquilo que acreditamos ser importante hoje. Essa atitude, segundo Butterfield, faz com que os historiadores nao vejam o pasado em suas reais condigoes J na época de Butterfield, e sobretudo por volta da década de 1960, 4 pesquisa histérica mudou na America do Norte, com os historiadores comecando a escrever © que eles chamavam de "h ria social". De discusses sobre rainhas, reis, politicos, leis e guerras, © conteudo da hist6ria derivou para uma andlise das classes traba~ Thadoras, mulheres ¢ minorias. Muitos historiadores de arte assimila~ ram lentamente esta tendéncia, mas suas idéias nao estavam com- pletamente imunes 4 mudanga, como pode ser observado através da Progressiva variedade que ocorre hoje em dia em algumas tenden cias da historia da arte. Porém, as historias sociais nao apenas discutem novos conted- dos, como 0 contetido rekicionado as mulheres, mas também novas Interpretagdes © novos modos de avaliar © novo contetide. Em ou- seeoucagio continous « tras palavras, na medica em que © papel da mulher na historia seja constatavel, nao se deve determinar sua importinela historica so- mente através ce padres anteriormente criados — padres que estao caleados Aum conjunto de preconceitos culturais, racials, de Glasses socials © géneros, © que sto inadequados pari explicar 0 hove conteddo, Ae conteirio, 0 que um historiador de arte feminista pode fazer € encarar a are da mulher do passado no contexto em, que as mulheres produziram ess: Ie contexto nao correspondesse Picasso. Interpretar a arte produzida por mulheres unicamente den= tro dos contextos que nao aqueles no qual esta arte fot produzicl como muitos historladores de arte modernistas fazem, pode ser ad quado para eritica de arte, mas pode frequentemente levar a ui dlescrigso historica da histiria da arte F claro, como diz Lucie-Smith, que uma mulher nao pintou a Capela Sistina. E claro que uma mulher nao criou a arte modema do mesmo modo que © fez Picasso (Lucie-Smith, 1989). Mas os padroes que criam lendas sobre Michelangelo e Picasso sto padroes social mente construidos por historiadores de arte com ponto de vista par ticular. Esses padrocs sto especialmente gericlos part o po de arte que certos homens produziram num contexto especifice ¢ que ape nas poucas mulheres o fizeram, Portanto, usar esses padroes pant investigar historicamente os tipos de arte produzidos por mulheres Ce, claro, tipos de ane produzidos por homens) que foram produzi das em Contextos muitos diferentes nao nos contam a histéria dess arte © seus artistas. Eles nos permitem perpetuar a idéia de que apenas algumas mulheres, tais como Rosa Bonheur, jamais fizeram ane de qualidade, eles nos fomecem desculpas para excluirmos muitas mulheres artistas do conteddo da nossa historia da depreciar © trabalho que elas realizaram, Esta € a versa da historia da arte que temos ensinado por muito tempo as criangas. Fu examinel cinco dos prineipais livros < Critica de arte que eram usados nas escolas canadenses na década de 1930 (Grayson, 1929, 1932; Lismer, 1930; Hammell, 1931; MeLennan, 1931). Dos 109 artistas comentados nestes cinco livros 105 cram homens brincos de culturas europeias ou norte-americ pas. Além deles, havia um gravurista japonés pouco considerido & te, ou para

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