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Por qual motivo determinadas famílias se tornam coletoras de lixo? O que engendra
essa forma de buscar adquirir os meios de sobrevivência? Isto ocorre devido ao fato de que
em nossa sociedade, desde a Revolução Industrial, criou-se uma separação entre trabalhadores
e meios de produção. Sem meios de produção, ou seja, sem ter como produzir os seus meios
de sobrevivência, não resta outra saída a não ser vender sua força de trabalho em troca de um
salário. Porém, o mercado de trabalho não absorve toda a força de trabalho disponível. Desta
forma surge ao lado do proletariado (força de trabalho efetivamente empregada e submetida
ao salariato), o lumpemproletariado (força de trabalho potencial, sub-utilizada ou não-
utilizada)1.
1
A definição de lumpemproletariado não é consensual. O conceito surgiu com Marx e ganhou diversas significações
posteriores. Tal conceito vem sendo retomado na França, principalmente a partir do final da década de 80 (cf. MOREAU DE
BELLAING, Louis. La Misère Blanche. Paris, L’ Harmattan, 1988). Aqui o significado deste conceito é equivalente ao de
exército industrial de reserva, tal como este último termo foi definido por Marx (cf. MARX, Karl. O Capital. Vol. 2, 3a
edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988; cf. também discussão sobre este termo apresentada por NUN, José.
Superpopulação Relativa, Exército Industrial de Reserva e Massa Marginal. In: PEREIRA, Luiz (org.). Populações
Marginais. São Paulo, Duas Cidades, 1978).
2
Cf. WALLERSTEIN, Imannuel. O Capitalismo Histórico. São Paulo, Brasiliense, 1984.
mercadorias e a única forma (dentro dos padrões convencionais, ou seja, excetuando-se o caso
do roubo) de adquiri-las é através da compra efetivada por intermédio do dinheiro. Esta é uma
lógica bem diferente da existente nas sociedades pré-capitalistas, principalmente as de caráter
rural. Nestas sociedades, a unidade doméstica era simultaneamente unidade de produção e
unidade de consumo, ou seja, se fundamentava na produção de valores de uso, na auto-
subsistência.
3
Mas é necessário dizer que isto não ocorreu de forma imediata, pois foi um produto da paulatina constituição do
capitalismo (cf. MOTTA, Fernando P. O Que é Burocracia. São Paulo, Brasiliense, 1985).
4
Cf. MARX, Karl. O Capital. Vol. 1, 3a edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988.
2
consumo em si mesmo5 e menos ainda se dedicaram ao que denominamos unidade de
consumo6. Se a lógica da unidade de produção capitalista é D-M-D, resta saber qual é a lógica
da unidade de consumo.
5
Um dos raros autores que se dedicou ao problema específico do consumo foi o economista norte-americano Thorstein
Veblen (Cf. VEBLEN, Thorstein. A Teoria da Classe Ociosa. Col. Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1980) e tal
tema vem recebendo atenção dos que se dedicam à questão da sociedade de consumo.
6
Uma das raras exceções encontra-se em textos orientados por uma preocupação feminista sobre o trabalho feminino nas
famílias proletárias (cf. HARRISON, John; SECCOMBE, Wally; GARDINER, Jean. El Ama de Casa Bajo el Capitalismo.
Barcelona, Anagrama, 1975).
3
consistem principalmente em processamento de meios de consumo e de criação de condições
para a realização do consumo e para liberar membros para a busca da renda monetária. Esta
divisão social do trabalho ocorre principalmente entre homens e mulheres, sendo que
geralmente, mas nem sempre, os homens se dedicam a busca de renda monetária e as
mulheres cuidam da unidade doméstica, que inclui atividades como limpeza, preparação de
comida etc. Em muitos casos as mulheres fazem estas atividades e ajudam na busca da renda
monetária e em casos mais raros os homens colaboram em tais atividades consideradas
“domésticas”7.
Resta saber quais são os membros da família que são os responsáveis pela aquisição da
renda monetária. Isto depende do período histórico e do contexto cultural mas podemos dizer
que nas famílias proletárias com níveis salariais mais altos cabe ao indivíduo adulto do sexo
masculino a tarefa de adquirir renda monetária. As mudanças históricas e culturais podem
alterar este quadro. Durante a Revolução Industrial, por exemplo, mulheres e crianças foram
jogadas no trabalho assalariado enquanto muitos homens eram vítimas do desemprego, tal
como ocorre hoje, no caso das crianças, em muitos países do chamado “terceiro mundo” e que
volta a ocorrer nos países da Europa Ocidental.
Nas famílias proletárias com níveis salariais baixos a situação é diferente. A renda
monetária proporcionada pelo trabalhador adulto pode ser e geralmente é insuficiente
para manter a unidade doméstica com suas necessidades de consumo. Isto pode provocar
tanto a desagregação desta unidade doméstica como a viabilização de alternativas para
aumentar a renda familiar, tal como o uso do trabalho precoce e/ou do trabalho feminino.
7
Aliás, é este um dos motivos da desvalorização das atividades domésticas e, por conseguinte, das atividades femininas
desempenhadas em tal lugar: a unidade doméstica passou a ser o locus do consumo e por conseguinte do que é
“improdutivo”, ao contrário, por exemplo, da unidade doméstica no modo de produção escravista, que era o oikos e no
modo de produção feudal, o feudo, onde não se limitava apenas ao consumo mas também à produção de bens.
4
Portanto, a renda monetária insuficiente adquirida pelo trabalhador assalariado adulto cria a
necessidade de uso do trabalho precoce e/ou feminino.
De que forma se pode aumentar a renda e/ou os recursos adicionais? Há duas formas
principais para se conseguir isto: sobrecarregando os membros ativos da família, quando isto
é possível, ou incorporando mais membros nas atividades que geram renda ou recursos
adicionais. Esta sobrecarga de atividades sobre os membros ativos geralmente ocorre quando
as crianças ainda estão demasiadamente pequenas para trabalharem e a incorporação de mais
membros geralmente ocorre quando tais crianças já possuem condições de executarem tais
atividades. Tendo em vista que geralmente a renda familiar das famílias lumpemproletárias
8
OFFE, Claus. Problemas Estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984.
5
mal consegue satisfazer a necessidade do que o antropólogo Eric Wolf chamou de “mínimo
calórico”10, então vê-se que, para estas famílias, o uso do trabalho precoce é indispensável.
Neste sentido, podemos dizer que o aumento do tamanho da família — no caso de
crescimento vegetativo — provoca um aumento de despesas que, à curto prazo, gera uma
intensificação do trabalho dos membros ativos e, à longo prazo, a utilização do trabalho
precoce.
9
“As pessoas que querem sobreviver contam todas as rendas que podem receber, não importa a fonte, e as calculam em
termos das despesas reais que precisam fazer” (WALLERSTEIN, Imannuel. Ob. cit., p. 19).
10
“Esse mínimo pode ser definido com bastante rigor, em termos fisiológicos, como o consumo diário de calorias
alimentares exigido para compensar o desgaste de energia que o homem despende em seu rendimento diário de trabalho.
Esse montante pode ser avaliado, aproximadamente, entre 2.000 a 3.000 calorias por pessoa em cada dia de trabalho. Não
será errado afirmar que este mínimo ainda não se alcançou na maior parte do mundo. Cerca da metade da população
mundial tem, em média, uma ração per capta diária de menos de 2.250 calorias. Essa faixa inclui a Indonésia (com 1.750
calorias), a China (com 1.800 calorias) e a Índia (com 1.800 calorias). Dois décimos da população mundial incluem-se na
categoria que recebe, em média, uma ração de 2.250 a 2.750 calorias per capita; esse grupo inclui a Europa Mediterrânea e
os países balcânicos. Somente três décimos da população mundial os Estados Unidos, os domínios britânicos, a Europa
Ocidental e a União Soviética conseguem ficar acima de 2.750 calorias” (WOLF, Eric. Sociedades Camponesas. 2a
edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1976, p. 17).
11
Sobre exclusão social, consulte-se: NASCIMENTO, Elimar. A Exclusão Social no Brasil: Algumas Hipóteses de Trabalho e
Quatro Sugestões Práticas. In: Cadernos CEAS. No 152, Jul/Ago. de 1994; JUNCÁ, Denise. Ilhas de Exclusão: O Cotidiano
dos Catadores de Lixo de Campos. Ano XVII, no 52, 1996.
12
Tal crítica também foi endereçada à chamada “teoria da marginalidade” (em suas diversas versões), que também teria uma
visão dualista da sociedade (cf. BERLINCK, Manoel. Marginalidade Social e Relações de Classe em São Paulo. Petrópolis,
6
girar em como “incluir” os “excluídos”). Em terceiro lugar, não trabalha de forma suficiente a
razão de ser da chamada exclusão social, demonstrando, na maioria das abordagens sobre este
tema, que é um processo sem agentes e sem contradição, sendo produto não se sabe do que,
ou, em outras palavras, a idéia de exclusão social assume um caráter descritivo e não
explicativo.
Vozes, 1975). Consideramos que tais críticas se aplicam também à concepção de exclusão social, tendo em vista suas
características semelhantes.
13
BURSZTYN, Marcel & ARAÚJO, Carlos Henrique. Da Utopia à Exclusão: Vivendo nas Ruas em Brasília. Rio de
Janeiro/Brasília, Garamond/Codeplan, 1997, p. 39.
7
O comércio do lixo entre os catadores de lixo e as empresas de reciclagem geralmente
passa pela mediação dos “atravessadores”: “boa parte das compras não é feita diretamente
pelas empresas. Também nesse setor a terceirização chegou, de forma que há intermediários
entre os catadores e a indústria: são os ‘atravessadores’ do papel”14. A existência de
atravessadores pode ser explicada por dois motivos principais. Em primeiro lugar, o fato de
que existe dificuldade de locomoção dos catadores de lixo para entregar o material nas
empresas compradoras15. Em segundo lugar, porque é mais vantajoso para as empresas
utilizar o trabalho dos catadores de lixo já que os catadores selecionam o material
(separando os vários tipos de papel, que possuem preços diferentes, e outros materiais, tais
como vidros, latas etc.) do que recolherem diretamente o lixo e os atravessadores ocupam
um papel importante neste caso, pois ao mesmo tempo que provocam um aumento do preço
também diminuem as despesas das empresas com transporte e funcionários, o que não altera
muita coisa para elas.
Qual é a origem dos catadores de lixo? Tal como é comum para uma grande parte do
lumpemproletariado, a principal forma de produção de coletores de lixo é a migração, ou seja,
o deslocamento da força de trabalho de um lugar para outro, seja do campo para a cidade ou
de uma localidade urbana (cidade, região ou país) para outra. Segundo Peliano, “se o
capitalismo, de um lado, ao separar o trabalho de suas condições de realização (pois as tornam
propriedades de alguns), gera historicamente os contínuos e específicos deslocamentos
populacionais em busca de recomposição de novas condições de trabalho, de outro lado, ao
separar trabalho necessário e o trabalho excedente (pois vital à perpetuação do capital), gera
progressivamente trabalhadores excedentes ao processo imediato de produção e, em
conseqüência, produz igualmente novos migrantes. Nessa perspectiva, é insuspeito afirmar
14
BURSZTYN, Marcel & ARAÚJO, Carlos Henrique. Ob. cit., p. 38.
15
“Por não dispor das condições mínimas para buscarem opções de venda desse material no mercado, em função dos limites
de locomoção, a troca é estabelecida no próprio local de trabalho, via ‘atravessadores’. Estes encostam seus veículos e
8
que, sob o capitalismo, ou a partir da evolução das formações econômicas no caminho
capitalista, ocorrem o aumento e a intensidade dos deslocamentos populacionais no espaço
econômico das sociedades, seja de forma absoluta (campo-cidade), seja de forma relativa
(cidade-cidade ou cidade-campo). Assim, as migrações, enquanto deslocamentos naturais de
população, se tornam deslocamentos determinados (provocados) de população, na medida em
que se intensificam e aceleram no capitalismo quando, então, passam a ser produtos
necessários à forma capitalista de produção”16.
aguardam o que cada um tem a oferecer, impondo um processo de seleção, separando o que é ou não aproveitável e
determinando o valor a ser pago” (JUNCÁ, Denise. Ob. cit., p. 110).
16
PELIANO, José Carlos. Acumulação de Trabalho e Mobilidade do Capital. Brasília, UNB, 1990, p. 124.
17
Exemplos deste tipo de migração se encontra em: MOREAU DE BELLAING, Louis. Ob. cit.
9
motivos pessoais ligados a casamentos, separações, doenças ou desejo de ficar perto da
família18”.
Podemos dizer que a razão da migração se deve a diversos fatores mas todos derivados
do desemprego (lumpemproletarização) e de condições precárias de vida e, por conseguinte,
da expectativa de conseguir melhores condições de vida e/ou emprego. Porém, depósitos de
lixo e grandes quantidades de restos consumidos pela população existem em diversas cidades,
principalmente nas grandes, onde se destacam as capitais, e em menor grau, nas cidades
médias. Por qual motivo, então, se escolhe determinada cidade? Que motivo há para escolher
Campos/RJ, Goiânia/GO, São Paulo/SP, Brasília/DF e não qualquer outra cidade? Em outras
palavras, resta saber por qual motivo se escolhe determinado local para ir. A escolha pode ser
motivada por informações, conhecimento prévio do local, proximidade entre moradia de
origem e o local escolhido, existência de parentes residindo no local escolhido etc.
A “opção” que é, na verdade, uma falta de opção por ser catador de lixo decorre
de condições sociais específicas. Muitos indivíduos passam por diversas atividades antes de
se tornar catador de lixo enquanto que outros já chegam à cidade e adotam imediatamente esta
atividade, como é o caso daqueles que possuem parentes trabalhando com o lixo. Aliás,
existem resistências a este tipo de atividade, que é rejeitada por muitos. Mas a falta de
alternativa e a existência de condições de sobrevivência através do trabalho com o lixo
proporciona tal decisão. Para haver esta decisão é preciso que haja uma indústria de
reciclagem que atue no local, empresas e/ou atravessadores que comprem o lixo coletado, um
quantum razoável de lixo na cidade (o que pressupõe uma cidade no mínimo de médio porte),
ou seja, é preciso haver certas condições externas que possibilitem e viabilizem a coleta do
lixo. As condições internas são a lumpemproletarização, a falta de alternativas e uma
trajetória individual e/ou familiar que torne conhecida esta possibilidade de adotar a coleta de
lixo como estratégia de sobrevivência. Além disso, determinadas alternativas ou “opções” são
rejeitadas por parecerem mais humilhantes ou desonestas. É comum ouvir, por exemplo, que
coletar lixo é “melhor que roubar”, onde se mistura vergonha e justificativa para a opção pela
coleta de lixo.
18
JUNCÁ, Denise. Ob. cit., p. 114.
10
coletores de lixo possuem uma mentalidade onde se mescla vergonha (da atividade
desenvolvida) e orgulho ferido, o que cria determinados “mecanismos de defesa”, para
utilizar linguagem psicanalítica, que lhe fornece uma justificativa e conforto psíquico.
O caso dos catadores de lixo em Brasília, em muitos aspectos, não difere muito dos de
outras cidades. A renda familiar é baixa e o trabalho precoce é amplamente utilizado. A renda
monetária adquirida com a venda do lixo varia de um mês para outro, pois depende da
19
JUNCÁ, Denise. Ob. cit., p 113. Porém, o trabalho precoce no lixo não é um problema só no Brasil e sim mundial, tal como
ocorre na Etiópia, Zaire, Peru, Índia, Filipinas, Camboja etc. (cf. UNICEF. Situação Mundial da Infância, 1997. Brasília,
1997).
20
“Descendentes de famílias oriundas de diferentes municípios do estado do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, os
atuais catadores de lixo desde cedo começaram a conviver com o cotidiano de negatividade de possibilidades. Em função
da necessidade de ajudar no sustento da família, por volta dos dez anos ingressaram no mundo do trabalho. Alguns
executando tarefas auxiliares aos pais, predominantemente na zona rural, cuidando do gado, tirando leite, ou exercendo
atividades de plantio e capina, principalmente na lavoura da cana de açúcar. Outros buscaram a área do trabalho doméstico,
iniciando como babás, e encontrando uma vantagem adicional: a moradia e a alimentação. Mas nas duas situações não
havia qualquer salário ou rendimento individual. Ajudando os pais, estes é que recebiam de seus patrões, e como
domésticas tinha de retorno roupas, remédios ou pequenos objetos de higiene pessoal” (JUNCÁ, Denise. Ob. cit., p.110).
11
composição e do quantum de lixo que é coletado. Isto decorre do fato de que o preço varia
dependendo do quantum e do tipo do material.
Segundo Bursztyn e Araújo, os produtos extraídos do lixo possuem preços variados, tal
como observamos em nosso trabalho de campo. Segundo estes autores, “cada um destes
produtos é objeto de uma operação diferente de comercialização. O que dá maior volume e
renda é o papel. O branco é o mais valorizado, sendo vendido a R$ 0,08 o quilo. O ‘misto’,
vale bem menos: R$ 0,02. O alumínio e o plástico rendem R$ 0,30 o quilo. Pelo papelão
pode-se obter R$ 0,05 por quilo”21.
O seguinte discurso, apresentado por uma catadora de lixo de Brasília, nos apresenta
uma visão que se tem desta atividade:
“Se não fosse o papel a gente não tinha nada (...). A gente vai
ajuntando de pouquinho. O papel não dá (...). O papel só dá prá
comer e é mal. Tem dia que a gente come, tem dia que a gente não
tem nada. Precisa esperar vender esse papelzinho para ganhar um
dinheirinho pouco, pra gente fazer uma feirinha pra poder comer. E
não dá. Por que o recurso que a gente tem aqui mesmo é só o papel
velho. Se não fosse esse papel aqui a gente já teria até morrido de
fome, senão estava com uma cuia na cabeça pedindo esmola”.
A coleta de lixo é vista como uma atividade vital, como único meio de sobrevivência,
que, porém, é insuficiente. Ele é apresentado como o único recurso possível e assim se vê
justificado, pois não há outra alternativa. Também é desqualificado pelos próprios catadores,
pois no trecho acima vemos algumas expressões no diminutivo (“papelzinho”, “dinheirinho”,
“feirinha”) que retratam esta desqualificação (desvalorização). Mas, independentemente de
ser uma atividade desqualificada, ela é necessária e única alternativa, sob pena de ter que
21
BURSZTYN, Marcel & ARAÚJO, Carlos Henrique. Ob. cit., p. 39.
12
optar por uma atividade ainda mais desqualificada e vergonhosa: pedir esmola (ou, como
colocou o marido desta catadora, catar papel “é melhor do que roubar”). Desta forma, a coleta
de lixo é vista como necessária, porém não é motivo de orgulho e ainda por cima é visto como
insuficiente. Como disse outro catador, “a renda é pouca, só dá prá gente passar mesmo na
marra”.
As despesas das famílias grandes também é maior. O cálculo financeiro que podemos
extrair destas informações é o seguinte: as famílias grandes com poucos (ou nenhum) não-
trabalhador e com um número superior de trabalhadores precoces e não-precoces possuem
uma renda per capita superior à das famílias na mesma situação só que com um número
maior de não-trabalhadores, embora, desde que estes não-trabalhadores sejam menores de dez
anos, a tendência, com o passar do tempo, é esta última elevar o seu nível de renda e a outra
estagnar. As famílias com um número maior de trabalhadores do sexo masculino (precoces ou
não) tendem (pois isto também depende do número e idade dos trabalhadores ativos) a ter
uma renda familiar per capita mais elevada. Enfim, podemos dizer que a formação da renda
familiar depende do tamanho da família, da idade, sexo e número de trabalhadores ativos e
dos inativos. As despesas são maiores quanto maior for a família e, portanto, o aumento da
renda pode apenas acompanhar o aumento das despesas. A renda per capita somente aumenta
nas condições anteriormente citadas.
14
estratégias para ampliar este mercado (obsolescência planejada das mercadorias, produtos
descartáveis, redução do tempo de vida útil dos produtos, as sucessivas modas etc.) mas se
destaca a estratégia de criar necessidades fabricadas, principalmente através da publicidade.
Constatamos que a compra de bens supérfluos tem uma demanda incentivada pelos
trabalhadores precoces, pois estes estão mais envolvidos pela cultura dominante, de caráter
urbano, mercantil ao contrário da cultura rústica dos pais, que também buscam o consumo
de bens supérfluos mas de forma menos intensa. Em muitas casas se vê aparelhos de som e
televisão, entre outros eletrodomésticos e outros bens de consumo supérfluos, e não se vê
condições de moradia e alimentação adequadas, só para citar o contraste entre a substituição
do consumo vital pelo consumo conspícuo.
Portanto, a renda familiar precisa da contribuição do trabalho precoce sob pena de não
conseguir garantir a reprodução da família. As famílias lumpemproletárias dos catadores de
lixo são constrangidas a usarem o trabalho precoce e este é de fundamental importância para a
formação da renda familiar e reprodução das condições de existência da família.
22
Sobre consumismo e substituição do consumo vital pelo consumo conspícuo, veja-se: PIETROCOLLA, L. Ob. cit.; FROMM,
Erich. Ter ou Ser? 4a edição, Rio de Janeiro, Guanabara, 1987; veja-se também sobre consumo conspícuo: VEBLEN,
Thorstein. Ob. cit.
15
Os pais reconhecem o valor da contribuição dos trabalhadores precoces, tal como se
pode depreender da seguintes afirmações:
Destas afirmações pode se ver que o trabalho precoce é reconhecido pela família e não
só isto como também se observa uma certa divisão social do trabalho que confere aos
trabalhadores precoces a parte mais importante da coleta de lixo, que é a própria coleta do
lixo na rua, ou seja, a atividade que define o quantum e a qualidade do lixo coletado, e,
portanto, o seu valor. Esta divisão social do trabalho privilegia a atividade de coleta do lixo na
rua para os trabalhadores precoces de sexo masculino devido a facilidade que eles possuem de
circular na cidade. Os pais e as filhas trabalhadoras (inclusive as trabalhadoras precoces, ou
seja, menores de dezoito anos) trabalham principalmente com a seleção do lixo. Isto deixa
entrever que o trabalho precoce é fundamental para as famílias catadoras de lixo.
Muitas famílias irão utilizar o trabalho precoce sob outra forma, ou seja, irão utilizar o
trabalho precoce não na coleta de lixo e sim em outras atividades, tais como as de engraxate,
vigia de carro etc. Estes trabalhadores precoces também irão contribuir de forma bastante
significativa com a formação da renda familiar, tornando-se uma contribuição também
necessária.
16
trabalho, o cansaço derivado dele, baixa renda familiar etc.23. Mas além disso, as famílias de
catadores de lixo, que não atuam no lixão, possuem um problema adicional: as constantes
mudanças e a distância das escolas. Algumas afirmações colocam as dificuldades envolvidas
em qualquer tentativa de fornecer escolarização para os trabalhadores precoces:
23
Cf. CAMPOS, Maria Machado. Infância Abandonada O Piedoso Disfarce do Trabalho Precoce. In: MARTINS, José de
Sousa (org.). O Massacre dos Inocentes. A Criança sem Infância no Brasil. 2a edição, São Paulo, Hucitec, 1993.
17
nóis em paz aqui. A gente botava os meninos no estudo e eles
chegavam aqui, derrubavam o barraco, tocava fogo, tocava fogo no
papel, tocava fogo no barraco, jogava a gente prá debaixo desses pés
de pau. Sofrendo aqui direto, durante o tempo que eu moro aqui
dentro de Brasília, é sofrendo direto, direto, por causa da Terracap”.
O fato de morarem em locais públicos cria confrontos constantes com a Terracap, órgão
do governo responsável por estes locais, que ao retirá-los dos locais onde se estabelecem,
provoca mudanças permanentes de moradia, o que cria uma dificuldade adicional para o
processo de escolarização dos trabalhadores e trabalhadoras precoces. Isto, obviamente
reforça a tendência de reprodução de pertencimento de classe e de segmento social destes
indivíduos. Neste sentido, a falta de escolarização é extremamente grave do ponto de vista do
desenvolvimento individual, pois dificulta a inserção dos indivíduos que são trabalhadores
precoces em outro segmento social.
Mas o discurso acima traz mais alguns elementos interessantes. Em primeiro lugar, a
incompreensão do papel da escola como um dos meios de manutenção ou alteração do
pertencimento de classe ou segmento social. Isto se vê quando se considera que ter estudado
até a terceira série é “estudar muito”, “bastante” e que “sabe quase tudo”, pois “tem boa
memória”, o significa que a percepção da escola é a de uma instituição que fornece ensino útil
(ler, escrever, fazer conta) e não um meio de ascensão social (concepção dominante, que,
muitas vezes se revela ilusória). Assim, a visão da escola é a de que ela tem um caráter
utilitário. Em segundo lugar, vê-se uma valorização da escolarização, o que já apresenta um
indício de transformação cultural, na qual a cultura rústica perde espaço para a cultura urbana.
Isto se pode ver no grau de emoção (que não pode ser transmitido pela via escrita mas que
está presente na fala) quando ela se refere ao sofrimento provocado pelas constantes
expulsões realizadas pela Terracap, que, embora não se deva apenas ao problema criado para
o acesso à escola pelos filhos, como também pela destruição de sua moradia. Mas, de
qualquer forma, existe um dose de emotividade também relacionada ao fato de não poder ter
garantido a escolarização dos filhos.
Neste caso, o problema criado pela existência do trabalho precoce para a escolarização
é reforçado por estas constantes mudanças. Também se pode dizer que tal baixo nível de
escolarização se deve ao elevado grau de analfabetismo dos pais. Sem dúvida, o grau de
18
analfabetismo dos pais é elevado. Nas vinte famílias pesquisadas que possuem trabalhadores
precoces observamos que há 70% de pais analfabetos e apenas 30% alfabetizados. Também
constatamos que 75% dos trabalhadores precoces de 7 a 14 anos não estão na escola e apenas
25% freqüentam a escola. Por conseguinte, o número de pais analfabetos e o número de
crianças de 7 a 14 anos sem acesso à escola parece reforçar esta hipótese.
Porém, outros números refutam tal conclusão. Em primeiro lugar, devemos considerar
que a influência da educação e valorização da escolarização deve levar em conta não apenas o
pai mas também a mãe e em muitos casos esta possui escolarização enquanto que o marido
não. Nestas famílias, os pais e mães que são simultaneamente analfabetos são 45% e não
70%. Em segundo lugar, os casos em que o pai e a mãe são ambos alfabetizados é bastante
restrito, chegando a 20%. Em terceiro lugar, a diferença entre os filhos de pais analfabetos e
pais alfabetizados que estudam é pequena, sendo que no primeiro caso se conta 10% e no
segundo 0,5%. No caso dos que não freqüentam a escola os números são os seguintes: 40%
para os analfabetos e 15% para os alfabetizados. Porém, como os pais analfabetos são quase o
dobro dos alfabetizados, esta diferença é pequena. Se contarmos apenas as famílias de pais
alfabetizados teremos 25% dos trabalhadores precoces freqüentando a escola e 75% sem
acesso à escola e nas famílias de pais analfabetos teremos 20% freqüentando a escola e 80%
sem acesso a ela. Diferença que é praticamente irrelevante.
O fator mais importante, além dos específicos derivados do trabalho precoce (questão
da jornada de trabalho, cansaço, renda insuficiente etc.), é representado pelas constantes
mudanças que os catadores de lixo são geralmente obrigados a fazer. 20% destas famílias
tiveram que mudar mais de 10 vezes (há casos em que se fala de 20 e de até 50 mudanças,
embora este último caso parece ser mais força de expressão do que afirmação literal) e 25%
mais de 5 vezes desde que se mudaram para Brasília. As famílias que mudaram menos de 5
vezes formam um total de 55% (sendo que dentre estas a maioria teve que mudar três vezes).
O gráfico abaixo relaciona o número de mudanças com o número de filhos na escola e fora
dela.
19
Relação entre Mudança e Escolarização de Trabalhadores Precoces
em 20 Famílias de Catadores de Lixo em Brasília
10
8
6
4
2
0 Famílias com 5 Mudanças ou mais Famílias com 4 Mudanças ou Menos
Com Acesso à Escola 1 4
Sem Acesso à Escola 9 6
O que se pode ver no gráfico acima é que as famílias que mudam mais possuem menos
condições de manter os filhos na escola. Apenas uma destas famílias consegue ter filhos na
escola (10%) enquanto que nove (90%) não conseguem manter os filhos na escola. Entre os
que mudaram menos de cinco vezes a situação é diferente, pois quatro famílias conseguem ter
os filhos na escola (40%) enquanto que seis não conseguem (60%). Neste sentido, as
constantes mudanças que as famílias catadoras de lixo são forçadas a fazer é uma dificuldade
adicional que torna bastante difícil a escolarização dos menores de idade. Isto aumenta mais
ainda a dificuldade dos trabalhadores precoces em ter acesso à educação formal.
Por fim, podemos colocar que as famílias de catadores de lixo vivem em condições
precárias de vida e que possuem uma renda familiar baixa, o que provoca o uso do trabalho
precoce uso necessário, pois sem ele a renda familiar per capita não seria nem próximo ao
mínimo calórico e cria toda uma situação de vida desfavorável para os trabalhadores
precoces não só no presente como também no seu futuro, tal como no caso dos obstáculos
criados à escolarização, o que dificulta mais ainda suas possibilidades de passagem para um
segmento social ou classe com melhores condições de vida.
Artigo publicado originalmente na Revista Estudos (Goiânia), Goiânia, v.
27, n. 3, p. 509-537, 2000.
20
Bibliografia
BURSZTYN, Marcel & ARAÚJO, Carlos Henrique. Da Utopia à Exclusão: Vivendo nas
Ruas em Brasília. Rio de Janeiro/Brasília, Garamond/Codeplan, 1997.
CAMPOS, Maria Machado. Infância Abandonada O Piedoso Disfarce do Trabalho
Precoce. In: MARTINS, José de Sousa (org.). O Massacre dos Inocentes. A
Criança sem Infância no Brasil. 2a edição, São Paulo, Hucitec, 1993.
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