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REFERENCIAS CULTURAIS: BASE PARA Novas POLiTIcas DE PATRIMONIO * InTRoDUCAo: A protecio de bens culturais de excepcional valor histésico ¢ attistica, em nome do interesse publica, é pritica social consolidada no Brasil ha mais de cinguenta anos. Essa pritica, inaugurada pelo Service do Pattiménio Histésico e Axtistico Nacional (Sphan), nfo costumava, até os anos setenta, suscitar maiores diividas quanto aos principios que nosteavam a aplicagio do tinico instrumento legal disponivel: o tombamento. As dificuldades ¢ sesisténcias encontrados pelos pioneitos do Sphan decossiam sobretudo de protestos a limitasio do diteito de propsiedade e de uso dos bens tombados. Mas a autosidade intelectual ¢ moral dos modemistas que adesitam ao Sphan ¢ que se apresentavam como defensores do interesse danas >, legitimava a escolha dos bens asesem protegidos nos termos do Decreto-lei no. 25, de 30 de novembro de 1937. Entretanto, Misio de Andrade jé assinalara na proposta entregue ao ministro Gustavo Capanema em 1936 que o patsiménio cultural da nagio compseendia muitos outros bens além de monumentos ¢ obras de arte. Anos depois, em fala a Cara do Pattiménio Histético ¢ Attistico Nacional do Conselho Nacional de Cultura, Rodsigo Melo Franco de Andtade reconhecia que “o acervo dos bens culturais compreendidos no campo de agio do érgio integrante do Conselho ultrapassa largamente a selagio numérica dos bens inscritos nos livros do Tomba, bem como a fragio dos que devem, por seus requisitos, ser inchuidos no tombamento” (1987-71) Esporadicamente, nas seuniées do Conselho Consultivo do érgio, exam discutidos os limites do tombamento como tinico instrumento de protegio adequado a diversidade do patriménio cultural beasileiso ! Somente a pastir de meados da década de setenta os critésios adotados pelo Iphan comecaram a sex objeto de seavaliagées sistematicas, que levaram & proposta de uma nova pesspectiva para a preservacio de bens culturais, Essas reavaliagdes partiam de pessoas vinculadas a atividades “modemnas”, como o design, a inchistuia e a informatica? Entre outras mudancas, foi introduzida no vocabulitio das politicas culturais a nogio de “referéncia cultural”, ¢ foram levantadas questées que, até entio, no preocupavam aqueles que formulavam ¢ implementavam as politicas de patsiménio. Indagasées sobre quem tem legitimidade para selecionar o que deve ser preservado, a partic de que valores, em nome de que interesses ¢ de que grupos, passaram a pér em destaque a dimensio social e politica de uma atividade que costuma ser vista como eminentemente técnica, Entendia-se que 0 patsiménio cultural brasileiro nfo devia se restringit aos grandes monumentos, aos testemunhos da historia “ “oficial”, em que sobsetudo as elites se reconhecem, mas devia incluir também manifestacées culturais representativas para os outros grupos que compéem a sociedade beasileisa — cs indios, os negros, os imigrantes, as classes populares em geral ‘Quando se fala em “seferéncias cultusais”, se pressupdem sujeitos para os quais essas refeséncias facam sentido (ceferéncias para quem?). Essa pempectiva veio deslocar o foco dos bens — que em © Registro do Patriménio Imaterial & 8 ° getal se impSem por sua monumentalidade, por sua siqueza, por seu “peso” matesial e simbélico — para a dindmica de atsibuigéo de sentidos e valores. Ou seja, pata o fato de que os bens culturais nio valem por si mesmos, nio tém um valor intsinseco. © valor Ihes ¢ sempre atsibuido por sujeitos particulates e em fungio de detesminados ciitétics ¢ intesesses histosicamente condicionados. Levada as ultimas conseqiiéncias, essa perspectiva afitma a selatividade de qualquer proceso de atuibuiso de valor — seja valor histético, attistico, nacional, etc. — a bens, e pde em questio os ctitésios até entio adotados pasa a constituigio de “patsiménios culturais”, legitimados por disciplinas como a histosia, a historia da atte, a arqueclogia, a etnografia, etc > Relativizando o cxitésio do sabes, chamava- se a atengio pata o papel do poder Neste texta, parto do pressuposto de que ocorseu no Brasil, nos anos setenta, uma reosientagio de uma pritica implementada pelo Estado desde 1937—a preservagio de bens culturais — reosientagio que, embora estivesse em consonancia com mudangas nos diferentes campos das ciéncias sociais — a historia, e sobsetudo a antropologia — pastiu de agentes vinculados a outras axea (o design, a inchistsia, ainformética) e no exescicio de uma pritica institucional e politica A nogio de “efeséncia cultusal”, entre outsas, foi incorporada por esses agentes aseu discusso, como um dos emblemas de sua proposta Pouco explorada enquanto conceito, tomou-se porém a marca de uma postusa inovadora em selagio 4 nogdo de “pattiménio histético ¢ astistico”, na medida em que, naquele momento, semetia ptimordialmente ao patriménio cultural nfo consagrado. A nocio de “teferéncia cultural”, ¢ as imimeras expetiéncias que, em seu nome, foram sealizadss, serviram de base, juntamente com a seleitura das posigdes de Misio de Andrade no seu anteprojeto pata um Servico do Pattiménio Attistico Nacional ena sua atuagio no Depastamento de Cultura, pata a definicio de patsiménio cultural expressa no astigo 216 da Constituigio Federal de 1988, que alarga o conceito ao falar de “bens cultussis de natuseza matesial e imaterial” (0 guifo é nosso) Entretanto, o cumpsimento do preceito constitucional implica em regulamentasio no que diz sespeito & preservasio dos bens culturais de natureza imatesial, para os quais instrumentos de protecio de cariter testiitive, como é o tombamento, so inadequados. E preciso csiar formas de identificagio ¢ de apoio que, sem tolher ou congelar essas manifestacées culturais, nem apsisioné-las a valoses discutiveis como o de autenticidade, favorecam sua continuidade. Por esse motive, considero que setomar a expesiéncia relativamente recente do CNRC, ¢ tentar avangar no entendimento da nogio de seferéncia cultural, pode contuibuir para alcangar esse objetivo, 1. ANOCAO DE REFERENCIA CULTURAL: 1.1 Sobre os sentidos do termo “referéncia” O termo “seferéncia” ¢ de uso corrente na linguagem quotidiana, pelo menos em um segistro culto. Etimologicamente, vem do vetbo latino referye, que significa “levar’, “transfesir”, “remetes” Pressupée uma telagio entre dois termos, um movimento em detetminada dite Na linguagem corsente, o termo “tefeséncias” é sinénimo de informagées (pecks refeséncias sobse um candidatc); em uma biblioteca, “obsas de refeséncia” so obras de consulta, que esclarecem sobre uma linguagem, um determinado assunto, etc; quando cientistas mencionam “centros de seferéncia” em sua sea, isso significa “modelo”, padrio de qualidade, remissio obsigatésia quando se estuda aquele assunto; quando dizemos que um determinado indivicio ou grupo perdeu seus “pontos de refestncia”, isso indica uma crise de identidade, um desensaizamento, em geral decoreente de uma mudanca significativa: transferéncia pata local desconhecido, alteragio de situagio social, em suma, uma perda importante Em sentido conotativa, “tefettncia” evoca a idéia de um ponto de apoio ou de encontro, base, «¢, porextensio, uma “verdade” consensualmente aceita porum determinado grupo, ou uma autotidade coletivamente seconhecida. Aponta, portanto, para uma convergéncia de pontos de vista (Os texmos “seferdncia” e “referente” sio elaborados como conceitos pela filosofia, basicamente pela Logica e pela Filosofia da Linguagem, com Gottlob Frege, Bertrand Russell,etc ; pela Linguistica, por Saussure, Ogden ¢ Richarch, Jakobson, etc ; pela Psicologia e pelas Cigncias Sociais. (CE MORA, 1994:623-628) ‘Na base de todas essas elaboragdes esta uma questio central para a epistemologia é possivel pensar em “tefestncias” e sobsetudo em “referentes” independentes da linguagem? Tanto na filosofia da linguagem quanto na linghistica, ha os que tecorrem as nogdes de “qeferéncia” ¢ de “seferente” pata designar o que existitia independentemente do pensamento ¢ da inguagem, a “sealidade extemna”, o “mundo” A base dessa concepsio é um dos pressupostos da filosofia modema: o de que amente humana se caracteniza por “espelhar”, por “tefletic” o mundo, o que tedunda em conceber o conhecimento como a representacio comseta da cealidade * As teosias referencialistas da significagio foram contestadas tanto no campo da linghistica quanto no da filosofia, para o que contsibuiram o desenvolvimento da psicandlise e da antropologia Passou-se a questionar a possibilidade de se pensar ¢ conhecer uma sealidade antesios ¢ extema a qualquer intespsetacio. ‘Para os cientistas que atsibuem a linguagem uma posicio central na producio do conhecimento, ¢ nfo apenas como veiculo, 6 ¢ possivel falar do mundo, representélo, através da linguagem. Sio cédigos linghisticos ¢ contextos referenciais compastillhados —e no o contato e a apreensio “conseta” de uma mesma realidade extemna—que permite a comunicacio, Logo, s6 é possivel conhecer o que ¢ vetbalizavel, 26 @ seal o que pode ser dito. © papel do sujeito que “cz” assume, nesse contexto, uma nova importincia Entretanto os termos “sefeséncia” ¢ “teferente” continuam conotando “univocidade”, “transparfncia” da comunicaso em selagio ao que se quer dizer Para o linguista Roman Jakobson, (1963:209-248) quando um enunciado é compreendido sem ambighidade — como, por exemplo, quando digo “hoje é dia 11 de fevereito” — predomina a fungio referencial da comunicagio. Mas essa univocidade ¢ essa clareza no detivam, para Jakobson, de uma relagdo entre palavsa e realidade externa, ¢ sim do dominio, pelos intetlocutores, dos mesmos cédigos lingtisticos ¢ das mesmas convengées ¢ significagdes cuistalizadas, Por exemplo, se a mesma informagio fosse formulada em usso, ouse amesma idéia— falar do tempo presente — fosse transmitida com base em outro calendisio, possivelmente nfo se sealizatia a comunicagio, pelo menos para o mesmo auditétio. Logo, o fato de © Registro do Patriménio Imaterial 88 Imaterial Registro do Patri se compartilhar um universo de significages — ou de “referéncias” — propicia a comunicagio, , simbolicamente, a coesio entre diferentes sujeitos Por outro lado, aceitar a centralidade do discusso, ¢ o axioma de que todo conhecimento é produzido a partir de um Iugas, em uma enunciagio, levanta novos problemas para a epistemologia (como distinguis o verdadeito do falso2) e para a ética (como discsiminar o bom do mau, o melhor do piow). O grande debate, hoje, nas ciéncias humanas, ¢ que tem extensio na politica e no diseito, entre o teconhecimento de valores univessais ¢ a afitmacio de que todos os valores (¢ todo conhecimento) sio relatives 1.2 Sobse a nogio de “tefestncia cultural” A expresso “seferéncia cultural” tem sido utilizada sobsetudo em textos que tfm como base uma concepcio antropolégica de cultura, e que enfatizam a divessidade no s6 da produsio matesial, como também dos sentidos ¢ valores atsibuidos pelos diferentes sujeitos a bens e priticas sociais. Essa pempectiva plusal de algum modo veio “descentrar” os ctitétios, considerados objetivos, porque fundados em saberes considesados legitimos, que costumavam nostear as interpretagSes e as atuacdes no campo da preservagio de bens cultusais Por exemplo, no caso de inventésios em sitios histésicos usbanos, quando o que esté em jogo nfo é apenas a protecio de determinados bens — sejam bens asuiteténicos isolados, sejam acesvos de bens méveis —mas o reordenamento de um espago, a questio é ainda mais complex, pois implica a administragio de intesesses distintos, ¢ a intexferéncia no destino de uma segiio e dos que nela habitam. Trata-se de procuzir um conhecimento para iluminar uma intervengio? ‘Ao se incluir nesse conhecimento a identificagio de “referéncias cultusais”, deseja-se que, nessa intervencio, seja levada em conta nfo apenas a considesagio do valor histosico e attistico dos bens. Masmo que a isso se actescente uma preocupagio com a acionalidade econémica e social da intervengio, possivel que os inventarios deixem de fora a dimensio simbélica daquele espaco pata seus habitantes, necessatiamente plural e divessificada. Pois, do ponto de vista da cultura, considerar apenas a concentsagio, em uma determinada area, de um mimeso significative de monumentos excepcionais, de algum modo a “desvitaliza”, uma vez que se deixa, assim, de apreender em toda a sua complexidade, a dindmica de ocupagio ¢ de uso daquele espago. Logo, quando nose trata de solo visgem, inexplorado, mas de regides que tém historia, tradicbes, ou seja, quando se trata de um solo “cultivado”, que tem cultura inscsita nele, pensar em uma intervengo, mesmo que seja com o objetivo de “preservar o patsiménio”, implica em uma reosientagio do uso desse solo. Trata-se de levar em conta um ambiente, que nfo se constitui apenas de natureza —vegetagio, relevo, tics e lagos, fauna e flora, etc. —e de um conjunto de construgées, mas sobretudo de um proceso cultural — ou seja, a maneira como determinados sujeitos ocupam esse solo, utilizam ¢ valosizam os secussos existentes, como constréem sua histésia, como produzem edificagdes e objetcs, conhecimentos, uscs ¢ costumes, Embora essas informagées s6 possam ser apreendidas a pastir de manifestagdes matesiais, ou “supottes” — sitios, monumentos, conjuntos urbanos, attefatos, relatos, sitos, priticas, etc. —s6 se constituem como “referéncias cultusais” quando so consideradas ¢ valosizadas enquanto marcas distintivas por sujeitos definidos Fala em sefertncias culturais nesse caso significa, pois, disigir o olhar pata representagdes que configura uma “identidade” da regio para seus habitantes, e que remetem paisagem, is edificagdes «¢ objetos, aos “Eazeres” e “saberes”, as crencas, habitos, etc Referincias culturais no se constituem, postanto, em objetos considerados em si mesmos, intuinsicamente valiosos, nem apteender teferéncias significa apenas armazenar bens ou informagées, Ao identificarem determinados elementos como pasticularmente significativos, os grupos sociais, ‘operam uma ressemantizacio desses elementos, selacionando-os a uma representagio coletiva, a que cada membro do grupo de algum modbo se identifica O ato de apreender “tefeséncias cultusais” pressupde no apenas a captacio de determinadas septesentagdes simbélicas como também a elaboragio de relagdes entee elas, ¢ a consteucio de sistemas que “filem” daquele contexto cultural, no sentido de sepresenti-loS Nessa pempectiva, os sujeitos dos diferentes contextos culturais tém um papel nfo apenas de informantes como também de intévpretes de seu pattiménio cultural. Na stegunda paste deste texto, a pattir de exemplos, vou tentar desenvolver este raciocinio. O conheceré o psimeizo passo para “psoteger” essas refertncias — pois é preciso antes de mais nada identificé-las, enuncié-las. Entretanto, como a dimensio simbélica do espago costuma set mais “vivida” que conhecida, ¢ também porque sua considesagio pode limitar a realizacio de interesses outros (como a valotizagio do solo como mescadosia, para construcio de novas edificacées), essa dimensio raramente é levada em conta no planejamento urbano. Sio, inclusive, valores que 36 costumam ser conscientizados quando se supée a iminéncia da perda (CE GONGALVES,1996), como ocosreu, por exemplo, nos anos trinta, quando alguns intelectuais modemistas perceberam que 0 processo de utbanizacio e o abandono das cidades histéticas mineisas ameacava destruir istemediavelmente o legado da atte basroca do pesiodo colonial. Entretanto, como a preservacio de bens culturais no atende a um interesse meramente amuseclégico ou etnografico, o conhecer— que se vale do saber ja consolidado das diferentes ciéncias —# um paso necessatio mas nio suficiente para uma intervencio. Nesse ponta, o politico vai se aliar a0 saber — o que no significa que a dimensio politica nio estivesse ja presente, de algum modo, no momento do conhecer” ‘Presesvar tracos de sua cultura é também, hoje sabemos, uma demonstsagio de poder® Pois sio os poderosos que nfo s6 conseguem preservar as marcas de sua identidade como, muitas vezes, chegam até ase apsopsiar de refeséncias de outros grupos (no caso do Brasil, de indics ¢ negros), sessemantizando-as na sua intespretasio, Isso quando nfo recorrem simplesmente & desteuigio dos vvestigios da cultura daqueles que desejam submeter E do lugar da he gemonia cultural que se constréem sepresentagdes de uma “identidade nacional” Postanto, se considesamos a atividade de identificar ceferéncias ¢ proteger bens cultusais nio apenas como um sabes, mas também como um podes, cabe perguntar: quem tetia legitimidade pasa decidir quais so as xeferéncias mais significativas ¢ o que deve set preservado, sobretudo quando esto em jogo diferentes verses da identidade de um mesmo grupo? © Registro do Patriménio Imaterial 90 Imaterial Registro do Patri © Estado tradicionalmente delega aos intelectuais essa fungio. Sao eles os encartegados de clar museus, asquivos, tombar bens, etc. Esses espacos — os bens neles preservados — tomam-se assim publicos, mas cabe perguntar quio publicos na realidade sio. Sé muito secentemente a defesa de valores como a qualidade de vida, a protegio do meio- ambiente, ¢ a preservagio de seferéncias cultusais que nio apenas as de valor “excepcional” (leia-se, do ponto de vista daqueles que detém o poder de assim defini-las), passou a ser entendida como direito do cidadio, que pressiona o poder piiblico no sentido de assegusar para si o gozo desses direitos, As referéncias cultusais de grupos antes sem voz prépuia (as chamadas “minosias”) comecam, a ser seconhecidas nos textos legais como objetos de diseitos. Como se teata, em linguagem jusidica, de “interesses difusos”, de afesicio subjetiva, sua definico para fins de protego constitui um problema complexo, dificilmente solucionavel através da transposigio de modelos O fato & que o principio exclusivo de autosidade —seja ela cientifica, religiosa, fincada na tradigio, ou mesmo politica (0 Estado agindo em nome da Nagi) — ja nfo se sustenta em uma sociedade que se queira democitica, Por outro lado, a ausculta de outsas “votes”, a considesagio de outros intesesses que mio os dos grupos de maior poder econémico e/ou intelectual, s6 ¢ possivel quando a propsia sociedade se organiza com essa finalidade Nesse sentido, o seconhecimento, de um lado, da divessidade de contextos culturais, da plusalidade de representagdes desses contextos, e do conflito dos interesses em jogo, e, de outro lado, da necessidade de se definis um consenso —o que preservas, com que finalidade, qual o custo, ete. — pressupde a necessidade de se ctiarem espacos ptibliccs, nfo apenas para usuftuto da comunidade, como pata as prdptias tomadas de decisio. Processo complexo e nem sempre viavel, mas em principio possivel, hoje, quando descentralizagio e organizacio da sociedade civil sto palaveas de ordem que esto, aos poucos, se tomando realidade, Nesse contexto, tanto a autosidade do saber (dos intelectuais) quanto do poder (0 Estado e a sociedade, através de suas formas de septesentagio politica) tém patticipagio fundamental no proceso de selecio do que deve ser preservado, mas nfo constituem poderes decisétios exclusives. Podemos dizer que, a pastir dos anos setenta, o eixo do problema da preservacio se deslocou de uma esfera eminentemente técnica para um campo em que anegociagio politica tem reconhecido o seu papel Se nos anos 90 o processo mencionado acima nfo ¢ mais apenas uma utopia — como algumas iniciativas, em vatics locais, vim demonstrando — ainda o era nos anos 70, em pleno regime militar, quando foi ctiado o Centro Nacional de Referéncia Cultural (CNRO), postesiosmente incosporado & Fundagéo Nacional Pré-meméria (FNPM). E sobre esse pano-de-fundo, e a partir de uma pesspectiva ctitica, mas que leva em conta os limites daquele momento, que vou falar da expesiéncia de trabalho do CNRC ¢ da FNPM, de que tive o privilégio de pasticipar 2. AEXFERIENCIA DO CNRC Ao sex ctiado, em 1° de julho de 1975, 0 CNRC definia como seu objetivo “o tragado de um sistema seferencial basico para a desctigio e andlise de dindmica cultural brasileisa” (CE MEC/Sphan/FNPM,1980, Magalhies, 1985, Fonseca,1997) A escolha do termo “tefetincia” para caractesizar a atividade do Centeo tinha um intexesse estratégico naquele momento: teatava-se de se distinguir das instituig6es oficiais, “museclogicas”, ¢ proporuma forma nova e modemna de atuagio na area de cultusa. Tudo —o objeto, o métods, a forma de trabalhar e arsegimentar pessoal, e mesmo o formato institucional —se psopunha como diferenciado. E Aloisio Magalhies soube, com sua habilidade, conseguis, para a sealizagio dessa expesiéncia, © apcio de setoxes mais esclatecidos do govesno militas, com do entio Ministro da Inchistsia e Coméscio, Severo Gomes, ¢, postesiormete, do Ministso da Educagio ¢ Cultusa, Eduatdo Postella, « dos genesais Golbery do Couto ¢ Silva e Rubem Ludwig Nis primeises tempos, outsas visées sobre o trabalho do CNRC se contsapunham a concepeio de Aloisio Magalhies. Para o embsixador Viadimir Mustinho, « também pata 0 ministro Severo Gomes, otzabalho do CNRC devesia assumisuma feicio predominantemente etnogsafica e bem mais modesta Predominou, no entanto, na fase inicial, a visio de Fausto Alvim Jiinios, matemitico com especializagio em informatica Os fundamentos que justificavam a existéncia do CNRC foram sendo formulados po Aloisio ‘Magilhies, com a colaboragio dos funcionatios do CNRC ¢ de consultores extesncs, ¢ a pastic das expesiéncias de trabalho, durante a segunda metade dos anos 70. Pata Aloisio, havia ocossida, nas décadas de 50 e 60, um “achatamento” de valozes, uma homogeneizacio da cultura. De um lado se tinha a cultuea “oficial” sefesida a um passado “morto”, que eta museificado, De outs, se vesificava a absosgio actitica dos valores ex6genos, da modemizacio, da tecnologia e do mercado. A seagio a esse processo devia sex buscada na cultusa, dominio do pasticulas, da divessidade. Mas nfo na cultusa “mosta” do patriménio do passada, referéncias concretas posém estiticas e distantes da nacionalidade Ena preciso buscar as saizes vivas da identidade nacional exatamente naqueles contextos ¢ bens que © Sphan excluisa de sua atividade, por considerar estranhos aos ctitésios (histérico, astistico, de excepcionalidade) que presidiam os tombamentos. Pasa Aloisio Magalhies, o Brasil ocupava, entre os paises, uma posigio privilegiada em termos de pesspectiva de desenvolvimento, Aqui corxistiam, naquele momento, tanto o mundo avangado da tecnologia e da inchistsia quanto © mundo das teadigdes populates, do fazer astesanal. No projeto do CINRC se pretencla cmuzar esses dois mundos —o recusso as mais modesnas tecnologias pata recupesat « proteger as saizes auténticas da nacionalidade — com o objetivo de fomecer indicadoses para um desenvolvimento apropsiado, (MAGALHAES, 1985) Desde os psimeizos anos, © trabalho sealizado no CNRC foi objeto de avaliagées solicitadas a especialistas beasileizos ¢ estrangeitos, muitos dos quais levantavam questées sobre a metodologia proposta? Entre os bratileiss, sobsetudo nos meios académicos, havia desconfiancas quanto a um. projeto cultural desenvolvido com © apoio de um govemo autositasio O fata, potém, ¢ que o principal interlocutor do CNRC esa o Estado, entfo o protagonista dos projetos de desenvolvimento pata o pais. E 0 discusso de Aloisio Magalhes encontsou seceptividade junto a esses intedlocutores ‘As sefexéncias que 0 CNRC se propunha a aprender exam as da cultura em sua dinamica (produsig, cisculacio e consume) e na sua relagio com os contextos socio-econémicos. Ou seja, um ptojeto bastante complexo ¢ ambicioso, e que visava exatamente aqueles bens que o Iphan considesava § © Registro do Patri 92 Imaterial Registro do Patri fora de sua escala de valores. E, gracnalmente, a preocupagio com os ‘novos patriménics”"” passou a incluis os sujeitos a que se refesiam esses patsiménios, psimeizo com a idéia de “devolucio” dos resultados das pesquisas as populagées interessadas e, postesiormente, com sua patticipaso enquanto pasceitos (CE MEC,1983), Infelizmente, imtimeros projetos desenvolvidos pelo CNRC nfo chegaram a essa fase, ficando seus selatésios e eventuais resultados guardados nas gavetas, O projeto Tecelagem Manual no Tsiangulo Mineiro, desenvolvido no ambito do Programa “Tecnologias Pattimoniais”, foi dos poucos trabalhos sealizados em que todas as fases propostas foram cumpsidas, sendo possivel uma avaliagio da expesiéncia. (CE FNPM,1984 Mauseau,1986) Presta-se, postanto, a ser apresentado aqui como subsidio para uma proposta de inventisio de sefecéncias cultusais ¢ como base para o estudo de formas de apoio ao patsiménio imatesial ‘Tinha-se, nesse caso, um campo claramente delimitado — uma pritica especifica numa regio definida — ¢ objetivos bem modestos — documentar ¢ compreender essa atividade, no sentido de fomecer subsidios a eventuais projetos de incentive Avuma coleta minuciosa de informagées (sobre a tecnologia, os padsdes, os produtos, as diferentes osientacSes da pritica, a histésia, os contextos onde essas priticas se davam, as tecedeitas etc) se aliou uma pesquisa dos meios de documentacio mais adequados para registrar as informagées (fotos, desenhos, video, textos, uso do computador para reprochsir padsées ete) Pattia-se do pressuposto de que s6 era possivel entender as diferentes osientagSes da pritica atual de tecelagem se essas osientacdes fossem relacionadas & evolugio da tecnologia desde sua introdugo no Brasil, és possibilidades ¢ limites do equipamento ¢ da técnica, ¢ as mecessidades — matesiais ¢ simbélicas — que a manutensio dessa pritica vinha atender no momento atual. Essas informagées eram imprescindiveis para se pensar em eventuais formas de apoio ¢ incentivo a essa atividade que fossem adequadas a sua especificidade Uma caractesistica da pesquisa, ¢ que se revelou fundamental para a apreensio dessa especificidade, como também pata ctiar uma ponte de didlogo com as tecedeisas, foi o centramento na tecnologia A descsico minuciosa de todo o processo de fabsicagio de tecidos, além de propiciar a secuperacio desse fazer (de modo a segistri-lo e a possibilitar sua eventual ceprodugio em outros locais ou por pessoas desejosas de aprender a teces) foi um caminho seguro para se avaliar 0 potencial ¢ os impasses atuais dessa atividade na regiio. (CE MAUREAU, 1986) Nossa hipétese exa de que se tivéssemos pastido de categosias mais genésicas e/ou abstratas — mas que podiam se constituic em a prioris — como indagar se se trata de astesanato ou indiistria caseita, se a produgfo atual conserva sua “autenticidade”, ou mesmo tentar captar disetamente 0 imaginasio das tecedeisas, as representagdes que constsdem sobse o “tecer” — essa postura podesia ter levado a pesquisa a seprochzi modelos de anilise estranhos a maneira como as tecedeitas encatam sua atividade, deixando de fora o que sesia a maior siqueza e a mais impostante contsibuigio de uma pesquisa como essa —a apreensio dos sentidos que as tecedeiras, implicita e explicitamente, atsibuem 4 sua pritica com a tecelagem. Possivelmente, nfo se tesia reunido, com a mesma seguranga, os elementos —no caso, as seferéncias — pata se avaliar possiveis intervengdes no sentido de presevar ‘ou nfo essa atividade —seja fomentando a pritica tradicional, seja incicando sua reosientacio visando aum novo objetivo (mescado de bens astesanais).!! E importante ftisar que nfo se pastia também de psessupostos que costumam estar presentes tanto nas peequisas feitas pelos folclosistas quanto pelos planejadoses econdmicos: seja a defeea incondicional da necessidade de se proteger procutos e modcs de vida “auténticos”, numa visio idealizada da cultusa popular, seja a sedugio da atividade astesanal a um tipo de teabalho anacsSnico, ‘mas que podesia sepresentas altemativa economicamente viavel —em fungio do mescado de prochutos astesanais, alimentado pelas classes média ¢ alta e sobsetudo em funcio do tusismo — para ccupar mio-de-cbra nfo qualificada Em ambos os casos, o foco estasia em valoses extesnos aos dos produtores e ususios habituais, « talvez fora das possibilidades daquela situagio especifica No inicio da pesquisa, que incosporou a contsibuico do trabalho ja sealizado por Edmar de Almeida, pattia-se apenas de uma pesplexidade — por que ainda se tece no Tiiéngulo Mineizo, ja que economicamente essa atividade mio é mais compensadosa? —e de uma indagacio — haves condigées « havesd intesesse, sobsetudo por paste das tecedeisas, em intervencées com o objetivo de presexvar esta atividade? Os sesultados da pesquisa indicasam que o setomo mais produtivo da pesquisa do ponto de vista das tecedbeisas seria um catdlogo que reunisse padsées ¢ cédigos pasa teces-cs produtos, petmitindo- Ihes assim dispor tanto de uma colegio maior que a de qualquer uma delas podesia seunit incividualmente, quanto de um mostmuasio do que podiam teces, para dialogar com seus eventuais fregueses. Outtos produtos — como a publicacio ¢ video — disigiam-se a outsas esfesas de publica, com © objetive, além de registso, de propiciar aos eventuais consumidoses uma melhor compseensio do que é a tecelagem manual, apsoximando, assim, a demanda, daquilo que © produtor pode efetivamente oferecer. Ou, em outros tetmos, sevelando a especificidade cultusal do que costuma set buscado como mesa mercadosia, em getal porseu catiter exético, popular ou folelésico, uma vez que © consumidor costuma peojetat sobse a atividade astesanal valoses que muitas vezes so estranhos aquele universo (como a osiginalidade no caso da tecelagem).!” Em teszmee gerais, a pesquisa com a tecelagem, assim como outsas realizadas sobse a cesimica, © teangado indigena ¢ o attesanato de reciclagem de pneus, veio mostsar a impossibilidade de se sechsis diferentes atividades a um tinico modelo de intespretacio. Pois justamente o que distingue as produgdes pié-industsiais da procucio industsial é sua divessidade, em fungio de sua adequacio a0 meic-ambiente, as necessidades do momento, a um univesso simbélico, ete. Ou seja, a tentativa de apseender as sefesinciae cultusais que catactesizam a tecelagem manual em teases de quatso pedis tal como ¢ praticada no Tsiéngulo Mineiso pastia do pressuposto de que, sob uma capa de “cesisténcia”, de seitesagio de gestos ¢ produtos, se desenvelvia uma dinamica especifica, Essa pesspectiva esta bem distante de uma visio — que é a que costuma ser adotada pelos folclosistas — que intespseta as manifestagdes da cultusa popular a pastic de uma noo mitica de tempo, enfatizando o seu caxiter sepetitive, opondo tuadigéo a mudanca. Ao tentarem sesgatar ou preservar a “gutenticidade” dessas manifestacdes, esses estudiosos na verdade estio tentando preservar seus proptios valores, convestendo a cultura popular em simbolo de um tempo perdido e em sefiigio pata a vida modema.® Osientar um tzabalho de presesvasio a patti da nogio de “teferéncia cultural” — tal como ¢ entendida neste texto — significa buscar formas de se aproximar do ponto-de-vista dos sujeitos © Registro do Patriménio Imaterial 94 Imaterial Registro do Patri diretamente envolvidos com a dindmica da produgio, cisculacio ¢ consumo dos bens culturais, Ou seja, significa, em uitima instancia, teconhecerthes o estatuto de legitimos detentores no apenas de um “saber-fazer”, como também do destino de sua psdpsia cultura. Nao é preciso chamar a atengio pasa as implicagdes politicas dessa pesspectiva, nem pata seus limites em situag6es concretas, quando até 0 termo “comunidade” pode servir para encobsir intesesses de grupos locais mais poderosos, de autosidades politicas ete Essas expesiéncias de trabalha, iniciadas no CNRC ¢ incosporadas & Fundagio Nacional Pro- memiétia, ctiada em 1979, contubuitam para a elaboragio do documento Diretizes para operacionaligasio da politica ailtrral do MECC, de 1983, feuto do trabalho coletivo das vatias instituigdes que integravam. a Secretatia de Cultura do MEG, criada em 1981 ¢ entregue a Aloisio Magalhies. Nesse documento, ¢ clatamente afitmado o principio da parcetia entre Estado e comunidade na produgio e preservagio. dos bens cultusais, o que, no entender de alguns, soava falso em um pesiodo de ditadusa militar Além disso, cuiticava-se também uma imagem idealizada da cultura populas, que obscurecia a dimensio da subaltemidade, das contradigées ¢ dos conflitos com que esses grupos se debatiam. Na verdade, 0 discusso da pasticipasio sevelava claramente o seu cariter contsaditétio: enunciado pelo Estado, s6 podia, no entanto, ser concsstizado por iniciativa da sociedade 3. CONCLUSAO: Resuminds, espero que tenha ficado clato que nfo entendo seferéncias culturais como objetos ou puiticas, nem como dados coletados sobse esses bens. Um Centro de Referéncias Culturais nio se confundisia com um museu ou um banco de dados Anogio de “referéncia cultural” pressupée a producio de informagées ¢ a pesquisa de suportes amatesiais para documenté-las, mas significa algo mais: um trabalho de elaboragio desses dados, de compreensio da ressemantizagio de bens ¢ priticas realizadas por determinados grupos sociais, tendo em vista a construcio de um sistema referencial da cultura daquele contexto especifico, Nesse process, a situasio de didlogo que necessatiamente se estabelece entre pesquisadores e membros da comunidade propicia uma troca de que todos saitio ensiquecidos: para os agentes extemos, valores antes desconhecidos visto ampliar seu conhecimento ¢ compreensio do patsiménio cultural, para os hhabitantes da regio, esse contato pode significar a oportunidade de recuperar e valosizar pastes do seu acervo de bens cultusais ¢ de incorporé-las ao desenvolvimento da comunidade Apreender seferéncias culturais significativas para um determinado grupo social pressupée no apenas um trabalho de pesquisa, documentasio ¢ andlise, como também a consciéncia de que possivelmente se produzirio leitusas, verses do contexto cultural em causa, diferenciadas ¢ talvez até contraditésias — ja que dificilmente se estar lidando com uma comunidade homogénea Reconhecer essa civessidade nio significa que nfo se possa avaliar, distinguic e hiesarquizar o saber produzido. Haverd sempre sefecéncias que serio mais marcadas e/ou significativas, seja pelo valor matesial, seja pelo valorsimbélico envolvidos. Por outro lado, bens aparentemente insignificantes, podem ser fundamentais para a construgio da identidade social de uma comunidade, de uma cidade, de um gmupo étnico, etc. Ou seja, é preciso definir um ponto-de-vista para organizar o que se quer identificas, ¢ para isso é preciso definir um determinado recorte ou recostes — como, por exemplo, 0 trabalho, a religiosidade, a sociabilidade — o que, evidentemente, vai indicar uma determinada compreensio do campo que se quer mapear!* Conchiindo, acredito que pensar a preservacio de bens cultusais a pastir da identificagéo de sefecéncias cultusais — do modo como essa nosio foi entendida neste texto — significa adotar uma postusa antes preventiva que “cusativa”. Pois trata-se de identificar, na dindmica social em que se inserem bens ¢ priticas culturais, sentidos e valores vivos, marcos de vivéncias e expesiéncias que conformam uma cultura pasa os sujeitos que com ela se identificam. Valores e sentidos esses que estio sendo constantemente produzidos e seelaborados, e que evidenciam a insesyio da atividade de preservacio de bens cultusais no campo das priticas simbélicas. Brasilia, absil de 2000 Cecilia Londves #Thnto adaptido de commmicagio feite no semsinitio Prusnagio + Deumobinonts peomovido pelo Centeo de Refesiuncia Ammbiontal de Joaquien lgidio, realizado em Campinas em Ll ¢ 18 de fevessico de 1995, Y © Registro do Patriménio Imaterial

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