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OS PARADOXOS DA MEMORI Ulpiano Bezerra de Meneses Mhaito bom aia! Bu gostaria — e nao apenas por mera etiqueta — de agrade- cer a0 SESC, Para mim ¢ realmente uma satisfagdo estar aqui, na medida em que convite que me foi feito pressupde que eu tenha algo a dizer que seja do interesse de um ntimero to volumoso de pessoas como as deste auditério. Como se trata de palestra que abre um semindrio, eu me perguntei que tipo de tratamento poderia dar a tema téo amplo — Memoria e Cultura — com um subtitulo — A importincia da memsria na formagao cultural humana, Seria adequado esta- bel 1 um mapeamento de territérie que depois fosse ilustrado e desenvolvido nas reunides subseqiientes do s mindtio? Era uma perspectiva muito pretensiosa, Tive, entdo, uma iluminacdo: utilizar o que a propria palavra abertura significa. E uma palestea de abertura. Qual ¢ minha fungéio? Ea de um porteiro. Vou abrir a porta. 0 vou estabelecer nenhuma sistematizacao do campo, nao vou propor trilhas que valesse a pena seguir na programagio posterior — que me pareee, alids, de excelente qualidade, assim como os nomes dos responséveis. Nao se trata, portanto, de definir o horizonte em que © evento vai se desenrolar, mas, ja tendo estade la dentro, abro a porta para que os convidados entrem. f esta a minha fungio. Portante, entendam camo a fungdo-de um porteito esta palestra. E ainda necessito eselarecer autre pres: suposto: nao sou especialista em memGria. Mas sou historiador e, como historiador, tenho também um campo de militancia especifiea que é 0 patriméniocultural. Portanto, necessitei € necesito sempre de insumos relativos 4 problemitica da meméria, Sou tum consumidor de reflexdes sobre a meméria, muito mais que um produtor. Dessa maneira, ndoesperem uma apresentagdo — nem que s¢ja na fungdo de porteiro — com © tratamento de um especialista, mas de quem precisou dominar algo dos problemas da meméria para o exercicio de sua prépria atividade profissional. ‘Assim, dentro destes parametros, posso comecar a abrira porta, Vou abri-la em dois lances. No primeiro, que esté mais préximo do tema do semindrio, gostaria de fazer uma brevissima exposicao, muito breve mesmo, do proceso de hominizagio, processo pelo qual os primatas superiores chegaram até o Homo sapiens ¢ hoje na variedade sapiens sapiens que nos caracteriza, Como também nfo sou especialista ‘nessa drea, mew objetivo € apenas dar idéia do lugar visceral da meméria em nosso proceso evolutivo, K necessdria, portanto, alguma nogio do que & proprio de nossa ‘eondicao humana. No segundo lance de abertura desta porta vou expor cinco paradoxos relativos 4 memoria. Paradoxo é uma palavra interessante e muito cémoda. O prefixo para em grego significa algo paralelo ow algo que vai em direcfio contraria, ¢ doxa 6 opinidio. Portanto, paradoxo literalmente significaria uma opiniao contraditéria. ‘Mas € opiniao, ¢ nao conhecimento. Isto é, trata-se de uma opiniéo contraditor que pode ser desfeita pelo conhecimento. Paradoxo sempre implica uma contradigao aparente, mas que pode ser desmontada quando se descobre sua légica oculta. Vou apresentar cinco paradoxos para mostrar justamente como a extensdo € a comple xidade do campo da meméria se prestam a certas polarizagées que compensaria desmontar. Apresentarei, pois, estes cinco paradoxos para desfazer algumas idéias que polarizaram a meméria em torno de certas questdes, mas que sao apenas falsas aparéncias — opini .5 que um procedimento eritico é capaz de desfazer. Hominizag4o, memoria, cultura Entao, o primeiro lance da abertura desta porta: rapidamente, alguma coisa sobre o processo de hominizagdo ¢ o papel que nele teve a meméria. Como eu disse, apenas para uma idéia geral — repito que nao sou especialista em evolugdo humana, seja biolgica ou cultural. Apontaria, tao-somente, que no processo de hominizagao ha duas faculdades — a palavra que estou usando é perigosa porque memoria nao é faculdade, ou nao é sé faculdade, mas vamos simplificar — entao, no processo de hominizagao eu d que ha dois marcos fundamentais: 0 surgimento de duas aptidées mentais — a abstracdo € aarticulacdo. Ambas estio associadas, € claro, ao desenvolvimento da capacidade craniana, no bojede um processo extremamente complexo, in¢luindo mudangas cor- porais ¢ habitos de vida, A abstracdo 6 a capacidade pela qual a percepgao (que me permite, por meio dos sentidos, entrar em contato com o mundo empirico e material que me rodeia) pode ser levada a0 nivel do conhecimento —o nivel ondea percepgao de cada ente, coisa, pessoa ou fendmeno me fornece elementos com os quais construo eategorias de eventos. Portanto, nao me atenho a percepgao do evento x, y ou z, mas utilizo o que eles ttm em comum para definir uma classe na qual 0s aloco. A acéo de furar ou de cortar, por exemplo, ocorre na vida comum sob diversas formas — mas nao é na singularidade do evento de furar ou cortar que eu formulo 0 conceito de furo e de furar ou de corte ¢ cortar. 5 justamente pela abstragao, ou seja, retirando aquilo que nao é essencial. Portanto, é um processo por intermédio do qual transformo o sensivel em inteligivel, transformo a resposta que dou a cada caso. em que sou solicitado pelas condigdes da vida em categoria inteligivel, em categoria abstrata, Esta faculdade nao funciona sozinha, porque, além de transformar o dado “puramente perceptivel” (entre aspas porque nao existe dado puramente perceptivel), procuro estabelecer ar- tictilacao entre os fendmenos. Isto é, do que aconteceu quando pressionei um objeto Pontiagudo na madeira, na pedrae até na minha mao, construo as categorias abstratas “furo” e “furar” e, além disso, infiro relagées de causa ¢ efeito entre o furo e a forma om Angulo agudo. O que significa isso? A possibilidade de previsio, de projeto, de Programagdo, que serd fundamental para a constituigao dacultura eda vida humana. Acapacidade de abstragdo e a de articulagio estabelecem, por assim dizer, uma espécic de base para a instituigo da cultura como prépria do comportamento humano. Mas esas duas faculdades nao sao suficientes, falta alguma coisa. Falta a memoria, pois ainda que eu fosse eapaz de abstrair e de articular, sem memoria teria de recomegar as respostas adequadas a cada novo impulso. Seria, portanto, um processo ininterrupto de estimulos respostas, sem continuidade e sem a possibilidade de passar a outros patamares, Seria, por isso, apenas uma reiteragao € n&o uma qualidade, que o com- portamento poderia agregar. A meméria, entretanto, que permite a recuperagao da experiéncia, € que vai possibilitar que.as respostas satisfatérias possam ser utilizadas em todas as situagSes similares, Mas ainda alguma outra coisa estd faltando, pois mesmo que estas experiéneias pudessem ser recuperadas e definir padres — padres, por exemplo, como a tipologia de artefatos —, elas permaneceriam individuals. Essa outra coisa que estd faltando, que se associa A memOria, é a linguagem. Ba linguagem que permite que a meméria seja um vefculo de socializagao das experiéncias indivi- duais, A capacidade de abstracao ¢ a de articulagdo, portanto, no morrem no nivel individual. No individuo, elas tém continuidade, mas podem também se transmitir a uma comunidade de pessoas. Aqui temos 0 quadro fundamental em que se percebe a importancia seminal que teve a meméria, Seria interessante acreseentar ¢ artefate A abstragao, & atticulagao & 8 linguagem, Mas esta 6 uma outra conversa. Gostaria apenas dé apantar a importancia desempenhada pela memoria na evolugio humana ada linguagem na constituigao da cultura. H um grande pré-historiador franeés de meados do séoulo passado chamade André Leroi-Gourhan que desenvolveu a idéia de que no comportamento operatério hereditdiriodos primatas superiores predomina uma memoria de constituigao individual. Pois nao é necessdrio que haja esta comunicaeio, na medida em que o essencial dos compertamentos é previsto em um programa biolégico. No caso humano, entretanto, oproblema da meméria csié dominado pelo problema da linguagem. O que representa, portanto, a possibilidade de escolha, a possibilidade de diversificagao: a meméria e a linguagem sio fatores que permitiram aos homens — por causa do horizonte mais amplo que a programagao genética — definir escolhas, ¢, por isso, instituir ¢ difundir significados ¢ valores. (Uma teoria do valor, é bom lembrar, tem de ser encaminhada 4 partir de wma teoria da necessidade.) De maneira que o homem é um individuo 2 zoolégico, mas ao mesmo tempo criador de meméria social, o que significa criador de historia, de variagdo, de transformagiio ede mutabilidade. Eclaro que esta preeminén- cia da lingwagem na memdria muitas vezes traz implicagdes — para o observador, para oespecialista — que nfiosio adequadas. Ha quem tenha quelificado como problemiético ochamado modelo textual da memsria, Um dos conferencistas a falar aqui amanha, James Fentress, escreveul, com Chris Wickham, um livro intitulado Meméria social, em que eles apontam, justamente, como a predominancia deste padrao de memoria criou alguns obstdetlos para seu entendimento além do conterido lingiifstico. E mostraram, inclusive, que quando a meméria é considerada uma forma deconhecimento — entre 0s trés tipos de conhecimento possiveis: o sensorial e “experiencial” (o conhecimento das coisas), 0 conhecimente pragmatico (de como fazer as coisas) ¢ @ propasitivo (por intermédio de proposigdes sobre as coisas) —, é este tiltimo que domina. Entio, vejam: um tipo de conhecimento ¢ aquele direto das coisas, 0 outro € 0 de como as coisas devem ser feitas ou ocorrem, eo terceiro, o que se perfaz na proposi¢ao sobre as coisas, Este conhecimento propositivo ¢ de base lingiiistica. Quando tratamos da meméria, € nesta perspectiva — pelo menos nas sociedades ocidentais — que a : como conhecimente de tipo lingitistico, de tipo verbal, mas ela meméria seria vis é muito mais que isso. Portanto, é preciso superar esta redugdo da memoria aos seus contetidas lingiifsticos, mas nao € disso que vamos tratar aqui. Ja que se falon na linguagem como relacionada A meméria, é hom que s¢ fale, também, em imaginacio, que € outta caracteristica do bicho homem, Porque a lin- guagem nao é sé um instrumento de comunicagdo — seria muito reles transformar a linguagem em uma espécie de relais entre wm emissor e um receptor. A meméria nfo 86 transmite conhecimento e significagbes, mas cria significados. ‘Tem de ser enten- dida, pois, como uma ago, uma agao produtora de significados. Portanto, estartios em pleno ambiente do imagindrio, Vygotsky, um ilustre psieéloge que trabalhou com questoes ligadas A imaginacio, disse que a atividade criadora da imaginagdo esta em relagdo direta com a riqueza e a variedade da experiéncia acumulada pelo homem, poisesta experiéneia é 0 material com o qual a fantasia erige seus edificios. A fantasia no esté contraposta & meméria, mas nela se apdia ¢ dispoe seus dados em novas & novas combinacdes. A imaginagdo ndo é, portanto, 0 aposto a verdade empirica. A imaginagdo é uma forma de ampliar a experiéncia do homem além da sua prépria experiéncia individual. A imaginagdo é a cultura em agéio. E af a meméria tem, tam bém, um papel a desempenhar. A presenga da memoria ¢ estudada igualmente em outras dimensoes — como adas neurociéncias, de que nao vamos tratar aqui, embora elas estejam em desenval- vimento acelerado e extraordindrio. Nossa perspectiva é tratar a meméria como fato social, mas seria importante alguma referéncia a esta plataforma bioligica. Como os préprios bidloges vém notando, ¢ eu cito um deles, que é Steven Rose, em um livro intitulado O cérebro da século XXJ, a neurociéncia tem de se definir pelo fato de que, em tiltima instancia, o cérebra nao trabalha com informagio, mas com significados. © que equivale de certa forma a dizer que trabalha com dadgs histéricos, Nao hai sig- nificados permanentes, niio hd significados por esséncia. Os significados, como tudo aquilo que € hist6rico, sio mutaveis. Seja como for, tudo isso quer dizer que ¢ impossivel falar de meméria como se memoria fosse um dado que tivesse significagao em si, abstrata, sem histdria, $6 é possivel falar da meméria quando se leva em conta que ela também tem uma histéri E quando digo histéria da meméria, no é apenas das teorias ¢ dos conceitos sobre memOria. Isso também é fundamental, claro. Por exemplo, no texto de apresentagao deste seminario se menciona o conceite de quadros sociais da meméria formulado na virada do séeulo XIX para o XX por Maurice Halbwachs, em que ele diz que a meméria somente pode ser entendida a partir das condigdes preexistentes na sociedade, para que determinadas lembrancas possam estabelecer a coesio social. Este conceito s6 se entende integralmente se levarmos em conta essa virada de século, quando o grande problema das ciéncias sociais — Halbwachs era da mesma estirpe que Durkheim, um dos fundadores da sociologia moderna — estava naquilo que manteria a sociedade como um todo, ou seja, na busca de coesio, unidade. Hoje, essa problematica esta um pouco fora de horizonte. Hoje, quando se fala em sociedade, « tiltima coisa em que se pensa € coesiio, integracio, Nem é mais politicamente correto falar de unidade ow cuesio social. Hoje, a idéia de sociedade ¢ a da fragmentagao, do conflito, ¢ nao io. Nosso problema é: apesar do conflito, como manter lagos de interaciio? © contra Veja-se que no campo da Histéria, por isso mesmo, no século KIX ¢ inicios do XX (isto é, a época de Halbwachs), 0 que dominava era a Histéria politica, das nagées, da i i Franga, do Brasil — do Estado-nagio —ea sociedade era a sociedade nacional. Mesmo quando se passa do nivel politico para o social, ainda uma determinada sociedade que se tem como um conjunto, se ndo harmOnico, pela menos homogénco e unitdrio, apesar das marginalidades ¢ das excegées. Em nossas dias, contudo, esta Historia social passou a ser a Histéria da cultura, abrangendo a possibilidade das muiltiplas hist6rias, das muiltiplas vozes: dos excluidos, das mulheres, das minorias etc. E, hoje, fazer Histéria ¢ fazer historia de conflitos. E'¢ por isso que a Histéria da cultura estd se orientando para uma perspectiva etnogréfica, como acontece, por exemple, com a chamada Historia oral. Entio, é claro que nesta transformacio as disciplinas que Procuram dar conta da sociedade, e por isso mesmo procturam dar conta da meméria, mudaram, ¢ mudaram radicalmente. Mas nfo estou falando unicamente das teorias € dos coneeitos sebre a memsria, ¢ sim, também, da prépria operagio da memtéria, da maneira como a memBria se institui, funciona ¢ produz efeitos. Nao entrarei em detalhes aqui, mas seria interessantissimo, por exemplo, comparar uma sociedade de comunicacio oral com outra de comunicagao cibernética, como a nossa. Nao é Possivel imaginar que um mesmo conceito de meméria possa explicar coisas em uma sociedade de comunicagio oral e na nossa sociedade de comunicagio cibernética. Mas isso fica para o préximo seminério, Falei da fragmentagéo da sociedade, que vai interferit também até no nivel da mem6ria individual. O que se chama hoje de meméria individual nde pode ser exatamente 0 mesmo que antes do século XVIII, antes portanto da constituigao da idéia de sujeito. Além disso, ‘m nosso tempo, quando sc fala em meméria individual, alguns psicélogos, como ¢ o caso de Kenneth Gergen, dizem que terfamos de falar de identidades multifr nicas — a palavra é horrivel, ¢ vem degrego, onde phrén significa entendimento, conhecimento, tendéncia; portanto, multifrenologia significa multipli- Cidade de tendéncias como objeto de conhecimento. A identidade do individuo, hoje, Se define de formas muiltiplas, no interior da prépria subjetividade. A multifrenia $€ expressa pelo fato de que agora cada um tem tantos passados quanto diferentes empregos ou desempregos, cénjuges, parentes — principalmente os parentes por afinidade, os filhos dos novos parceiros —, residéncias ¢ assim por diante. Portanto, Mio € apenas no nivel coletivo ¢ social que a fragmentacio ¢ o suporte de operago da meméria, mas até no nivel individual, Em conseqiiéncia, seria vdo apresentar qualquer conceito unificador da meméria. © segundo lance da abertura da porta, como jé disse, , € a apresentagio de cinco paradoxos. Bles fazem parte de uma escolha a que procedi, uma escolha arbitréria, sem nada de sistematico ou abrangente. Na minha escolha pessoal so cinco as ques- tGes: a voga da meméria ao mesmo tempo que hd uma crise da meméria; o binémio insepardvel da memGria ¢ da amnésia; a meméria individual que nio se desprende da coletiva; a subjetividade, que nio exclui a objetividade; ¢, finalmente, o passado, que desemboca ou que se produz no presente. Sao apenas oportunidade de continuar demonstrando esta mutabilidade extraordindria e a diversidade com que a meméria se apresenta nos dias de hoje. Primeiro paradoxo: voga e crise da memoria A meméria esta na ordem do dia, a meméria esta presente na multiplicagéio dos museus, nas “instituigdes de memdria”, centros de meméria, arquivos, memérias de empresas, memsrias de partidos, de igrejas, de familias, de clubes, de ONGs, nos documentirias, novelas de época, moda retrd, movimentos sociais de preservacio de bens culturais, reivindicagdes de identidade ¢ cidadania etc. — sao todos cecursos mobilizadores de meméria, Acrescentem-se a preservagao de dreas urhanas, o tom- bamento de bai tiragem das biografias precoces de garotas de programa —, o mercado de antigiiidades, Tos, a atraciio das biografias e autobiografias — é s6 ver o mimeroe a a publicacio da correspondéncia trocada por intelectuais ou politicos ¢ par af afora. Muito bem, essa efervescéncia deve signifiear que a meméria estd na ordem do dia. Mais sinda, a preoeupagdo com a coleta e o registro de informagao e decumen- tagio atinge ds vezes niveis preocupantes. Hi um conto do escritor argentino Jorge Luis Borges, segundo o qual um rei solicitou aos seus cartégrafos um mapa do reino. ue fosse o melhor mapa possivel, a mais preciso, Os eartografos comegaram por debater o problema da escala. Qual a melhor escala para mupear o territério real? Depois de muita discussio chegaram & conclusio de que seria 1/1. Portanto, simples- mente mapearam cada detalhe eoineidente com @ territério todo. As vezes tem-se & eae =_— - impresstio, nessa fiiria arquivistiea, que se pretende obter um duplo do real, Como 0 duplo coincide com aquilé que ele referencia, nada permite conhecer de nove. Um es- pecialista cm arquivos, chamado Michel Melot, fez uma earacterizagao absolutamente extraordindria do que ele chama de uma verdadeira pulsio decumental alucinatéria nos nossos tempos. Diz ele: Imaginemos cada cidadio transformado em colecionador eem conservattor, cada ‘objeto transformando-se em seu préprio simbolo. a nago inteira fixada em sua Prépria imagem, como nos tableaiex vivants laqueles esperdculos teatrais do final do século XIX e comego do XX, com personagens estiticas representando situacdes]; 0 pélen néo escapa mais das flores, mas fica conservado para os firtu- 105 botdnicos, o manuscrito vai arquivado antes da publicagiio, conservando-se a matriz por seguranga, mesmo qué éla nido produza nenhum exemplar. A historia, enfim, se produz para interesse exelusivo dos historiadores, ¢ por cles mesmios ‘vem bloqucada, como o cirurgido imobiliza seu paciente para poder operd-o. Recentemente tive a prova de que essa situagio existe de yerdade e até ocorre com conhecidos, Uma colega da USP foi a uma biblioteca universitéria e solicitou wi livro pertencente a uma colegao importante, que fora doada ¢ mantida como um fundo & parte. O livro, da década de 1940, era uma brochura com as paginas ainda fechadas. A colega teve as maiores dificuldades para conseguir a auttorizagio oficial de abrir as paginas com uma espdtula, porque se alegava que a brochura devia ser mantida em sua situagao original — ue impedia a leitura... Vé-se, portanto, que Michel Melot no estava alucinado quando escreven o texto transcrito. Mas a pergunta que me fago é se essa efervescéncia toda representaria alguma consisténcia da meméria nos dias que correm. Poderia até ser mais especifico: essa efervescéncia toda ¢ capaz de produzir consciéncia hist6rica? Para mim, uma das fungGes desejdveis da meméria seria essa, aumentar a capacidade de perceber as transformagées da sociedade pela agio humana, permitindo que se tenha quase que afetivamente — ¢ nao apenas cognitivamente —a experiéncia da dindmiea social, da acao das forcas que constroem a sociedade e que podem mudé-la a todo instante, René Dubos foi um importante bidlogo franco-americano que se interessou muito pela problematica dos muscus, da cultura e do patrimOnio, e acompanhou, ” nos Estados Unidos, a trajetéria de adolescentes entre catorze e vinte anos nas dé cadas de 1950, 1960 e até inicio de 1970, ¢ selecionou para estudo uma amostragem daqueles que assistiam A TV pelo menos seis horas por dia. Foram décadas em que faltava o 0s telejornais comecaram a se firmar como veiculo de informagio. E que de importante vinha acontecendo no mundo inteiro: a eleigao de Kennedy & Presidéncia dos Estados Unidos, a revolugao cubana, a crise dos misseis, a Baia dos Poreos, o assassinate de Kennedy, a Guerra da Cortia, a divisto do mundo pela guerra fria, a ascensao do império soviético ete. ete, ete, Trata-se de fatos fundamentais para entender nao 86 o que foi o século XX, mas até sua projegdo neste século XXI em que estamos vivendo. No entanto, a consciéncia dessa realidade toda era absolutamente nula nos jovens observados, pois, apesar do hombardeamgnto de informagées sobre uma histéria em curso, nada ficou: a hiperinformacdo produs desinformagao. Para esses jovens, 0 passado era apenas uma anterioridade temporal, mas Thes faltava a pervepgao do que é insubstitufvel para entender a condi¢ao bdsica da vida humana e que a hist6ria fornece, que é a diferenciagdo no tempo. A Histéria nio é a disciplina do passado, mas da diferenca. Claro que ela necesita do passado para identificar € explicar a diferenga. Porque pela diferenca se compreende a transformagao, adinamica ar os sentidos, que rege nossas vidas, Sem uma idéia de passado que assegure di ‘os mecanismos, as légicas, os vetores, og agentes da diferenca e da transformagdo, a mudanga é ininteligivel, é apenas um fator de anguistia. Ora, é 2 nogio de pasado corrente entre nds ¢ as relacdes com ele tecidas que esto em crise. Hé um historiador da literatura chamado Richard Terdiman, que escreveu um livrointitulado exatamente Passado, presente, moelernidadee a criseda meméria, em que mostra que a partir do século XVIII os traumas da Revolugao Francesa produziram nas sociedades ocidentais a perda do sentido do tempo como fluxo continue e trangiiilo, terrupto, que tinha anterioridades, sim, mas ndo Até entao, o tempo era esse fluxo ini: rupturas, descontinuidades. Porém, no século XVIIL o tempo vai se transformar em dado problemético da vida; ¢ nao estou falando apenas da teoria, mas da experiéncia de vida do proprio homem comum, em que a ruptura ¢ a descontinuidade yao ser fundamentais para definir o passado, Jd no se trata mais somente de uma anteriori- dade fluindo sem obstaculos — o fluxo, por exemplo, da histéria sagrada, da histéria escatolégica, da histéria da superagdo dos tempos até o Juizo Final. & a partir desse Ai eR atl a rere ae en Si erable rompimento da conexde organica com o passado da descoberta do tempo histérico, pela experiéneia de acompanhar mudancas em estruturas sociais consideradas eter- nas, quie comega, segundo Terdiman, uma crise da meméria. Coineidentemente, 6 a partir do mesmo século XVIII que surgem formalmente organizadas as instituig6es da meméria — 0 muscu moderno data dai. Quer dizer, o museu 6 um sintoma da crise da memoria, resposta possivel & crise da meméria, ¢ nao fruto da descoberta da memoria. Segundo paradoxo: memoria versus amnésia? No nivel mais elementar deste binomia— memiéria e esquecimento—, a memé- ria no € considerada apenas um mecanismo de registro, conservagao € recuperagao. E quando falo em registro nao ¢ depésito no sentido puramente passivo, mas ativo, nio é um almoxarifado; quando falo em retengao, nao se trata de retengdo pura ¢ simples, mas daquela que implica reciclagem, reformulagdo etc., também presentes na recuperagao. Mas, de qualquer maneira, quando se pensaem meméria costumia-se pensar em aspectos de retengio, de registro, de depésito de informagées, conhecimento ou experiéncias. No entanto, a memaria é, também, um mecanismo de sclegao, de descarte, de eliminagao. Naoé possivel entender a meméria sem entendé-ta, também, e talvez mais ainda, como mecanismo de climinagao: a meméria é um mecanismo de esqueci ento programado JA citei Borges, cito de novo, em um outre conto também fabuloso ¢ muito conhecido, que se chama Funes, 0 memoriaso. Funes € a personagem que, como o préprio apelido indica, é incapaz de esquecer. Retinha cada dado de cada cireunstan- cia que havia vivido, uma conversa com todas as palavras ¢ todas as reagGes de seus nterlocutores, o ambiente, o céu estrelado, cada estrela que ele via brilhar, e, nesta progressdio em que era incapaz de esquecer, comeca a perder sua condi¢éo humana, deixa deser humano pela incapacidade de esquecer. Esquecer, sem diivida, ¢ condigao de yida humana. O proprio Borges diz ainda em um terceiro conto que esquecer € requisite para pensar. © pensamento se fax por eliminagio, por abstragao. Abstrait é eliminar, é esquecer. $6 pensa quem € capaz de esquecer. O que é uma maravilha para os desmemoriados! Por certo, nao basta esquecer para pensar... Em uma linha semelhante, Michel de Montaigne, o grande pensador do‘Renascimento, diaia: a bi: blioteca se imagina come o lugar onde se concentram a sabedoria ¢ o conhecimento da humanidade. § um erro, porque o que se pode concentrar af é sempre pouco. A biblioteca é a marca de que a maior parte desse conhecimento se perderd, Nessa mesma direcio se deveria reconhecer que o museu, muitas vezes chamado de casa da meméria, poderia igualmente ser chamado de casa do esquecimento, pois o que estd fora dele é muito mais numeroso que o que estd dentro e nao goza do mesmo privilégio de conservagao. Mas quanda se fala de amnésia & bom que se fale, também, dos mecanismos repressivos — claro que existem alguns bem evidentes, gomo o que na Roma antiga se chamava de dammnatio memoriac, danagao da memoria, quando o imperador caia em desgraga: seu nome era entéo apagado de todos os monumentos, até de documentos oficiais, provocando intimeros problemas, come a invalidagao de decisdes. Veja-se algo compardvel em casos recentes, como no Iraque, com as estiituas de Saddam Hussein sendo destruidas. Mas nao é este o aspecto mais importante; nem sequer o iconoclas- mo, ou seja, a destruigao de imagens por serem portadoras de memériae valores. Em certas circunstancias, como ocorren, por exemplo, na sociedade bizantina ott entdo na Inglaterra do século XVII, ou no surgimento do protestantismo, a destruigéo de imagens desempenhou papel relevante. O historiador francés Serge Gruzinski escre- ‘veu uma obra extremamente interessante denominada A guerra das imagens, em que trata da amnésia provocada pelos espanhdis na colonizagio do México, por meio exa- tamente da substituicdo das imagens dos indigenas (entendidas como “idolos”) pelas imagens sacras dos europeus. Parece evidente, pais, que o process de memorizagao € indissociavel do processo de amnésia. Também se fala das memérias subterrdneas — Michel Pollack pesquisou as mem6rias proibidas, a8 memérias vergonhosas, as memérias inconfessaveis, no caso, Por exemplo, dos colaboracionistas franceses na Segunda Guerra Mundial. Ou, en- to, nos casos daqueles joveris que, na Alsicia, tiveram de servir 0 exército nazista, ‘eet YR EE NC i Lap ge assim por diante. A meméria do Holocausto constitui uma memGria traumatica na qual nao € @ process do conhecimento, mas suas dimensdes ético-politicas € psico- logicas que esto evidentes ¢ definem o due pode ¢ 0 que ndo pode ser memorizado. Costuma-se falar hofé, no campo das ciéneias sociais, em dizibilidade e visibilidade, dade ou grupo, pelos quais algumas coisas Dizibilidade sao os critérios, em uma s: podem ser ditas e outras, no, O mesmo vale para o campo visual — ha coisas que sie invisiveis, nio porque estejam fora do campo visual, mas porque nao devem ser vistas. B o secretismo, a interdigéo do segredo. Hé uma terceira categoria, também, que poderia ser criada ao lade da dizibilidade ¢ da visibilidade: a memorabilidade, E nem sempre é o Estado o elemento repressor, slo também os grupos sociais menores — inclusive a prépria familia — que definem o que convém ¢ 0 que no canvém ser objeto de meméria. Mas hd ainda outros aspectos da amnésia social que merecem referéneia, Mui- tos pensadores, como o filésofo inglés Thomas Hobbes, na vitada do séeulo XVI para o XVI, fizeram da amnésia ¢ néio da meméria social a pedra de toque do contrat social: a amnésia fundaria a sociedade, pois Ihe garantiria comegar do zero, ao esque- cer os ressentimentos provocados pelos inevitaveis conflitos ¢ a violéncia que estio sempre na base da sua constituigéo. Jé o francés Renan, no século XIX, propunha que a histéria nao era conveniente consolidagao do Estado-nagao: o esquecimenta seria mais util. Em. suma, falar da memoria obriga a falar igualmente do esquecimento, Na Antiguidade, na Idade Média e no Renascimento a arte da meméria procurava ensi- nar 0 uso € 0 desenvolvimenta dos recursos mneménicos, ¢ a inglesa Frances Yates esereveu um livro famoso a respeito. Mas a medievalista Mary Carruthers demonstra como a propria arte da meméria — ao comtrério do que Yates pensava — pressupu- nha esquecimento porque nao se fundamentava exclusivamente na repeti¢ao, mas incorporava inovagées e, como arte compositiva, servia-se de eliminagdes. Seja como for, hoje circulam obras sobre arte de esquecer, como a organizada por Adrian Forty e Susanne Kiichler. Terceiro paradoxo: individuo versus sociedade? ‘Toda meméria é social. Tudo bem — mas por qué? Porque pressupée interlacu- cao. (Embora se deva distinguir a memdria coletiva da meméria social, tal disting3o, no momento, nao é relevante para nossos problemas e foi desprezada aqui.) Ndo existe meméria individual, lembranga, rememoragao? Claro que sim! ‘Todavia, ou essa meméria & acessivel, ou se socializa — e s6 quando se socializa é que ela pode aparecer. Além disso, por exemplo, o que se chama de meméria latente comumente vem ii tona pela intervencio de um interlocutor ativo. A meméria que nos interessa prioritariamente aqui é a memGria coletiva — nao o somatério das memdrias indi- viduais, mas aquela que se fundamenta nas redes de interagéo, redes estruturadas ¢ imbricadas em circuitos de comunicagio. De maneira que, entie, mesmo a memé ria autobiografica é a que se realiza apenas enquanto reconstrucao contextual, em situagio — como comproyam os especialistas de Histéria oral. ‘Toda meméria, diz France Ferrarotti, é uma experiéncia de comunidade, que nunca se efetiva em um vacuo social, Nessa ética, quando se fala em perda da meméria nao deveria se tratar da perda de uma substancia vulnerivel, fridvel, fragil, que precise ser recuperada ou até depurada, mas tal perda deve ser entendida come perda dos elos comunitérios. Esta, sim, é a perda efictiva, Esta transigao ambigua entre o coletivo ¢ o individual talvez. fique mais clara com de exemplos. Um deles € 0 das colegies privadas. Todos sabemos que as co legdes privadas so uma forma de construir meméria, construir subjetividade, por isso jd chegaram a ser consideradas atos autobiograficos: a colegao privada ¢ um ato autobiogréfico. Isto fica visivel em telagdo a terceiros, quando, por exemplo, a colegio opera como suporte de classificagdes saciais: tenho minha colecao e com ela me sinto superior as demais, entdo recebo visitantes, Mais visivel ainda fica a dimensao coletiva na doagdo de colegées privadas — doar colecdes € doar memsria, memt6ria que desejo permanente — de mim ou de minha familia. B por isso, também, que os especialistas dizem que a colegao fla muito mais do colecionader que sobre as coisas colecionadas. Mas desgjaria mostrar que até no caso do colecionador neurstico, aquele do desfrute solitério, a relagdo com o coletivo também es 4 presente, mesmo qu sejacomoameaga, os moraine set sense ¢, portante, precise ser negada. O caso mais cxtraordindrio que conhego, mencionad por Maurice Rheims, é 0 de um parisiense, colecionador de incunsbulos. Era propri tuirio de um incundbulo medieval, belissimo documento semeado de iluminuras ¢ ¢ uma qualidade extraordindvia. O proprietério acrecitava que fosse pega tinica, até qu teve noticia de um incundbulo semelhante nas maos de colecionador em Nova Yor! Imediatamente fez as malas ¢ foi aos Estados Unidos, companhado de um tabelidio, nova-iorguine do ineundbule nfio queria vendé-lo, mas cam o prego subindo acedeu proposta do francés, Ato continuo a compra, na presenga do tabelido, a pega foi incin rada, O tabeliao, naturalmente, registrau o fato. Nesseeaso, seria correto entender qu aagiio se perfax nos limites extremos da individualidade? Nao, porque justamente s ¢ definir perante os demai 0 Gnico proprietério de uma pega tinica é uma forma de ‘os outros, 2 sociedade. De maneira que ainda que seja por reagdo, a colegie é sempt imagem diante dos outros. O segundo exemplo é o suvenir. Em francés, souvenir significa lembrar, ¢ sub tantivado, lembranga. O que existiria de mais pessoal? Mas como pode ser peso: ‘ante: senhe riffel t ma lembranca pré-febricada, que jd vem pronta? Eu nao digo ao fabri fabricante, estive na Torre Eiffel equero que me fabrique uma cépia da Torre como a percebi. Nao ¢ assim que acontece — a torre, em papier mdehé ou ein meta jd estard fabricada, ¢ em série, E a memsria individual anterior & propria experiés cia individual. Como funciona? Estdo vendo que neste caso se imbricam, de nov! 08 niveis do individual e do coletivo, este tiltimo por se tratar de uma mereador feita como sio feitas as mercadorias — pela alienagéo dos sujeitos. Mas a memoéri neste caso, para funcionar exige a narragio, O suvenis depende, pois, da linguagen Portanto, o suvenir da ‘Torre Biffel é apenas a referéncia de que necessito para a na racdo da minha experiéneia individual: [have been (t)here. Entao voces estao vend ‘comtio subjetividade ¢ objetividade nao podem ser tidas como excludentes, quanto memria, Da mesma forma, a polaridade radical entre mem6ria individual ¢ meméc coletiva é aparente. Isso nos leva a. outro problema: Como assuumir memérias alheias, memérias ¢ terceitos? No entante, todos os projetes de construcde ¢ reforgo de identidade si programas de transferéncia de memoria, Recentemente, ao-estudar politicas public arqueolégicas, deparei-me coin uma série de textos que propunham formas de valori~ zar as identidades arqueolégicas na sociedade brasileira, Nao sei o que tais propostas possam representar, A excegiio de alguns casas de quilombolas e dos grupos indfgenas em reservas ou de comunidades nativas de descendentes, que ainda mantém vincu- los continuos e identificdveis com seus antepassados pré-coloniais, que identidade #lobal ou que meméria unitéria pode a sociedade brasileira como um tode pretender das culturas que ocuparam nosso territério antes da chegade dos europeus? E qual seria 0 focode referencia: 0 tronco mais numeroso ¢ espalhado, os tupis-guaranis? Os franceses qué bei couhecem Asterix, podem dizer nos ancétres, les ganlois (nossos antepassados, os gauleses). Poderfamos, assim, nés também, como um bloce, dizer nossos antepassados, os tupis-quaranis? Nao. E por qué? Porque, como afirmava 0 antrapélogo Darcy Ribeiro, os grupos indigenas estdo na nossa histéria por exclusao, presentes por auséncia, se se pade dizer. De maneira que a identidade arqueelégica pode significar muitas coises, mas ndo nessas propostas genéticas e homogeneizadoras crucial nos casos. Seja como for, 0 problema em causa ¢ a transferéncia de meméria, de comemoragio, Como sabemos, comemaragio € um dos eventos de memdéria que nao se fundamenta essencialmente na lembranga, na rememoracio dos participantes, mas em uma meméria jé constituide & qual se adere. Este é também 0 caso do mo- numento, como forma objetiva de comemoracao. Houve momentos em que se podia imaginar o monumento como a ctistalizagao fisica da memériacoletiva. Oséculo X1X fai a época de ouro dos monumentos puiblicos, a ponto de se ter falado, em relagio & Franga, de uma verdadeira statuomanie, Mas hoje, com a redugéo das fungdes ¢ dos sentidos clos espagos puiblicos, os monumentos perderam muitissimo de sua natureza coletiva. Afinal, o habitante da cidade passou de cidadao a passante — aguele que apenas passa pelos espagos, ¢ nao os pratica mais — e, depois, - aquele passageino que élevado a atravessar os espagos, de um ponto a outro: ele toma o dnibus, o metré, anulando o que existe no intervalo. Como, entdo, os espagos ptiblicos poderiam servir eficazmente para mobilizar 2 memGria coletive? Dai coneluir que o monumento desa pareceu? Nao, massofreu importantes mutagdes. Veja-se areciclagem bem-humorada acontecida em Sao Paulo com » monumento a Borba Gato, na avenida Santo Amaro, que se transformou em um mareo puiblico de localizagao: fala-se “antes” ou “depois' do monumtento ao bandeitante: (ou “Bonecao”), para orientagio de eaminho, © movimento antimonumento, que comegou na década de 1980 na Europa ¢ nos Estados Unidos, levou a extremos a ambigiidade da memdria individual/so- cial, O exemplo mais extraordindrio de antimonumento com que jé me deparei da cidade de Harburg, na Alemanha, em que se resolveu construir um obelisco dedicado as vitimas do nazismo — tema traumitico para uma cidade alema. Do que consiste esse monumento? De um buraco no chao que funciona como uma espécie de hainha para 0 obelisca, Mas, ao contrario de todo obeliseo — que sobe do chao para o ar livre —, este, que ¢ feito de uma lamina de chumbo, recebe mensagens ¢ inserigdes e vai sendo enterrado na hainha, & medida que as inscrig6es preenchem sua superficie, Nao poderia haver melhor ilustragao da simbiose entre o individual e 0 social. O espaco € publico, 0 monumento é piblico, mas as memérias que ele recebe sio individuais. © paracdoxo se completa com o fato de que, enterradas, as mensagens nem sio lidas por terceiros. Quarto paradoxo: subjetividade/objetividade Q exemplo de antimonumento ¢ oportunidade de registrar uma tendéncia da memdria em nossos dias: a subjetivacio do que j4 foi meméria coletiva — o.que nos fidade da subjetividade ¢ da objetividade no leva & questio da aparente incompati campo da meméria. James Fentress, j4 mencionado aqui, ¢ Chris Wickham escre- ‘vem que é bom distinguit a memsria como agdo ¢ a meméria como representagao. ‘Comemorar, por exemplo, é uma modalidade da memoria come ago, porque é um tipo de comportamento e implica performance, um envolvimento de atos. Ao passo que lembrar ou rememorar enquadra-se, pot exceléncia, na meméria como repre- sentagiio, imaginacao do passado, imaginagio de eventos etc. Todavia, é preciso re- conhecer que praticas ¢ representagdes so indissocidveis, ¢ que, portanto, memoria como aco e como representagio ndo podem ser compartimentadas, Vou dar s6 um exemplo na minha drea de especialidade para justificar 0s cursos sobre a Antiguidade mencionados na apresentagio de meu curriculo feita pelo mediador desta sessiie. Ne Peloponeso, importante regido da Grécia, havia na época areaica — século VI aC. — um rito freqitente pratieado no inieie da primavera, que comecava pela selegio de uma Arvore, em um bosque. Essa dérvore era abatida e com o tronco se fazia um simulacro de forma humana, depois usada em wma ceriménia de hierogamia (casamento sagrado). Finalmente esse tronco — transformado em figura de noiva — era queimado. Hoje sabemos que todos esses tracos sio diagnésticos de que os especialistas denominam rite de fogo novo, associado justamente ao rejuvenescer da natureza apés o inverno, a fertilidade humana ¢ a importancia do fogo — néio 36-0 fogo industrial, mas preeisamente o fogo al ientar. Daf a selegio de um ele- mento da natureza que depois passa por todos esses atos até consumir-se no Fogo. Acontece que os gregos continuaram a praticar esses rituais ao longo do tempo, mas foram perdendo a lembranca das motivag6es e significades originais, Embora as agdes continuassem a ser praticadas (meméria como agda), seus sentidos foram se apagando (meméria como representago). Como apenas reprodu gestos, sem saber 0 que representam, nao é satisfatério, procurou-se legitimar essa reprodugdo gestual com sentidos novos que The foram atribuidos, No caso, utilizou-se © mito das relagdes conjugais conflituosas entre Zeus e Hera, Zeus & conhecido como um deus-pula-cerea na miitologia grega: ele estava sempre na mira de sua esposa Hera. © mito — que, como se sabe, muitas vezes é uma narrativa explicativa — pode fun- cionar como representagdo que explica ¢ justifica as agdes praticadas, Assim, tudo Siraria em torno de uma dessas escapadelas de Zeus, em que ele foi pego com a mao na botija. Para fel ‘idade geral, logo se descobriu que nfio havia nenhuma rival de Hera, somente ant simul: ro, uma boneca: uma brincadeira, que terminava coma alegre fogueira. Fica bem clara a imbricagao da subjetividade e da objetividade ea superagio do dilema por um tempo eriado. E.€ por isso que quando hé confuses entre a meméria como processo e seus suportes, € se fala em resgatar a meméria, a resposta s6 pode ser: se € para resgatar, 0 melhor échamar © corpo de bombeiros. Mas a meméria é um proceso que depende, ‘sim, de suportes objetivos, porém nao se confunde com eles. Ninguém chama os bom beiros para resgatar uma depressao de que esteja sofrendo, Da mesma forma, quando se trata apenas de resgatar, recuperar, trazer & tona o que ja existia objetivamente, concretamente, s6 posso resgatar suportesda meméria: fotografias, objetos, cadernos de anotagées ou relatos, outros documentos. Esta questdo leva a uma outra: a oposigdo que se faz entre a memoria vivida, ou memoria experiéncia, ¢ a memoria externalizada, completamente objetivada. ‘Uma meméria puramente subjetiva ¢ uma meméria objetivada. Ha uma obra muito importante, muito séria, de um historiador francés chamado Pierre Nora, Os lugares de meméria, mas que virou uma espécie de arroz-de-festa: todo mundo a cita e cita mal, Fle mesmo escreveu alguns trechos um pouco retéticos demais ¢ que dio possi- bilidade ao maw use de que tem sofrido. Diz ele: a meméria nas sociedades anteriores a contemporaneidade era uma memGéria espontines, viva, realizada, experiencia in ternalizada. Entretanto, ela vai progressivamente se transformando em uma meméria que se da fora das pessoas, fora da experiéncia. De ambientes de meméria passa-se & lugares de meméria. Que lugares de meméria so esses? So espagos, coisas, pessoas, instituigdes, ceriménias, simbolos etc. que condensam meméria. Ela nio esté mais difusa nas pessoas, mas sintetizada em plataformas precisas ¢ limitadas, 08 lugares meméria morreu com a escrita. Antes, ela de meméria, Nora ecoa Platao, que dizi estava dentro dos homens, habitava suas mentes, mas, agora, as mentes humanas nao mais a controlam, pois ela est desterrada na escrita, De certa maneira Nora repro- duzo conservadorismo de Platio, recusando (como jufzo de valor) a transformagdo histérica da meméria. E claro que determinadas formas de meméria das saciedades simples sdo hoje obsoletas, e a meméria comunitéria que Nora privilegia nao tem mais viabilidade no mundo hodierno, Mas serd que por isso também se esgotaram os espagos de meméria como experiéncia? Sdo outros, provavelmente, esses espagos, idez. Quem sabe os espagos de massa, os estédios nas competicées esportivas ou nos grandes eventos mu- ¢ talvez nem tenhamos ainda condigdes de percebé-los com sicais, ou, € claro, a internet, Sito, hoje, espacos de uma meméria nova em construgao, meméria em circulagio, meméria ago, meméria experiéncia. A meméria “viva” nao desaparecen, assumiu outras possibilidades que vio além dos lugares de memoria de Nora. Nao obstante, a revolucio cibernética criau uma meméria objetiva, totalmente externalizada ¢ de capacidade aparentemente infinita, muito mais do que é capaz a meméria internalizada, Pode ocorrer, assim, que se tenha um homem totalmente desmemoriado, mas tendo a sua disposigéo uma memoria artificial fabulosa, Contudo, nao basta ao homem desmemoriado acessar mecanicamente © depésito inesgotivel da internet ¢ navegar ao sabor dos hipertextas. Hd uma epistemologia do hipertexto que ainda nao foi claborada, Uma charge publicada hd algum tempo na Revista FA- PESP é extremamente elucidadora desta concepeao falsamente objetiva da meméria externalizada, Em uma ampla sala um computador ocupa todo o espaco disponivel. ‘ientistas em um laboratério Duas pessoas com guarda-pé branco — sio, portanto, — esto ao lado de enorme engenho, que expele rolos de fumaca e rolos de papel. Abrindo um largo sorriso, um cientista diz para o outro: “Finalmente, temos agora todas as respostas", Ao que acrescenta 0 interlocutor: “Que étimo, mas quais eram ‘mesmo as penguntas?”, Penso que esta, sim, 6 a situagdo que estamos vivende e que temos de resolver, deixando de lado a oposig&o entre objetividade € subjetividade, meméria subjetiva e meméria objetiva. Sem contar oseguinte: essa meméria externalizada da informética ironicamente é ura memdria em que a objetivacdo (0 hardware) nao interfere mo contetido, cujo suporte é essencialmente légico, matemAtico, imaterial (0 software). Nem por isso a objetivagdo e a subjetivagao deixam de se misturar: 0 Hote! Drouet, famosa casa de leildes em Paris, j4 venden disquetes “originais” com obras de arte cibernétiea... Pode-se conchuir que a meméria é um campo de negociagao. Ultimo paradoxo: passado ou presente? Qual o tempo natural da meméria? Seria ¢ passado? Eu responderia: sem diivida, o tempo da memoria ¢ o presente, mas ela nevessita do passado. © tempo da meméria € 0 presente porque ¢ no presente que se constréi.a meméria — a memoria nao se constrdi no passado, se constrdi no presente. Em segundo lugar, porque sia as necessidades do presente que a memsria responde, nao as necessidades do passa- do nem as do futuro, embora muitas vezes, retoricamente, seja apresentado assim. Finalmente, os usos todos da memGria silo usos no presente — tradigio 6 existe no “Tradigao” presente das sociedades. Nao existe tradigdo fora do presente da sociedade. vein do -verbo latino érado, que signifiea dar atravésde (trans-de), Portanto, 86 existe tradigao se algo foi recebido, ¢ 86 € recebido no presente. Mas é claro, entiio, que o contetido da meméria envolve, sim, implica o pasado, porque a inteligibilidade das transformagaes da vida (de que tratei no inicio) precisa do passado para ser identi- ficada e entendida, Mas vejam o seguinte: qual a natureza do documento, co objeto histérico? fi um objeto do meu presente (ele proprio ou por referéncia), funciona no meu presente, na minha contemporaneidade, Foi produzido no passado, claro, mas, se interajo com ele, 6 meu contemporinea, A contemporaneidade retine em um tempo sincrénico diversas temporalidades. Para entender melhor talvez, valha a pena uma imagem esclarecedora, a foto do dlbum de familia, O patriarca da familia fez, noventa anos, entio se reuniu toda a familia ne mesmo espago para uma foto. Nela temos 0 patriatca, com seus muitos anos, olhar bago, pele corrugada, dozso encurvado, roupa fora de moda, No outro extremo o hebé que aeabou de completar nove meses, com sua pele de péssego, scus olhos vivas, sua agitagda, No intervalo, as diversas idades ¢ suas marcas, Portanto, cada um traz consigo 0 que de especifico a diversa espessu- ra temporal de suas vidas assinalou, Todos, porém, estio presentes em um mesmo- momento cronolégico e, por isso, o anciio e o bebé podem interagir. F, nesse tempo sinerdnico com muiltiplas temporalidades que opera a meméria. Paracompletar ¢ coneluir: como prometido, o porteiro abriuas portas — quero corer — para a multiforme paisagem da meméria com suas ambigitidades, sua fluider, sua complexidade, as inimeras articulagoes e os paradoxos que escapam & prisdo de teorias uniformizantes ou bindmios mutuamente excludentes. Creio, assim, ter cumprido mew papel, sé despertei ou reavivei em alguém o interesse por este campo infindavel de questdes — algumasmuito pertinentes e muito relevantes ¢ que sero certamente aprofundadas na seqiiéncia deste semindrio. Muito obrigado.

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