You are on page 1of 270
De Iniciado’ a Perito Patricia Benner ‘Titulo 4 De Iniciado a Perito b Exceléncia e Poder na Pritica Clinica de Enfermageti (#Aigdo Comemorativa) zig signal por Parle Benn, Copyright (©) 20, | oe Todos os Direitos oo _ nag “ifilp.0 Orting Tibi Noviee To < Seolegeeand PO BN lesa nical;Mursing Prashice (Commemorative Edition) Fini ition by Pat aes Be finer, Copyright (c) 2 0 1, All Rights Reserved si ‘ f Patricia Benner, ws pene i cy Madugio ! ae le Anialbuqueralé< utirdsed Sema ‘Coleccio ‘ Enfermagem n° 3%” Coordenagio da Coléegao Ana Albuquerque Queirés Capa Joao Ferrand Quarteto Editora Al. Calouste Gulbenkian, Li 3004-503 Coimbra URL: http://quarteto.regiaocentro.net Email: quarteto_editora@ip.pt Execugio Grifiea Claudia Mairos Impressio ‘Tipografia Arte Pronta Coimbra, Dezembro de 2001 ASBN: 972-8535-97-X_ Depésio Legal: 170 915/01 % itglo original ae sm ao Proprietirio da edi¢aio da Obra) (©) Trak: " so Editora, 2001) (Orig Tanguage tite Piece 's edition of the Work) Pablo «dé acordo com o editor ayia, Pearson Eéucata, ne, pbs como PRENTICE Published by PRENTICE HALL Patricia Benner / 5 Baitora napment wy ihe original publisher, Pearson Education, Inc., publishing as Reservas oa ord soto om egies vie r ~083 ben Mew tN Susi DE INICIADO A PERITO Exceléncia e Poder na Pratica Clinica de Enfermagem Edigao Comemorativa Patricia Benner 2001 SCOLA, SUPERIOR Bipitdtioas COMPRA 2 002 - OS “2 oye! C30 ninwws DE DEUS INDICE Nota INTRODUTORIA ...... bebe eee e eee e eee ee u PREFACIO .....- seve 2D AGRADECIMENTOS «.-0 02002 e cece eect ee ee eee eee . 27 Carfruto 1 A DESCOBERTA DO CONHECIMENTO. INCLUIDO NA PRATICA DA ENFERMAGEM .. 66.6555 005 As diferengas entre conhecimento pritico € te6rico .. O conhecimento inclufdo na pericia . . Desenvolvimento do conhecimento prético Os significados comuns . 32 32, 1.33 35 Assung6es, expectativas e comportamentos tipo. . 38 Os casos paradigmaticos eo conhecimento pessoal ..........+..++.37 As maximas .. . 38 As préticas nfo planeadas 39 Resumo e conclusdes : 40 Capftuto 2 O Moveto Drevrus DE AQUISIGAO DE COMPETENCIAS APLICADO A ENFERMAGEM Métodos .........- veces Interpretagio dos dados «+. Estadol : Iniciado ..... . Estado 2: Iniciado avangado . Estado 3: Competente . . Estado 4: Proficiente . . 6 | De iniciado a perito Estado 5: Perito 0.0... eee eee O significado da experiéncia ....... Capiruto 3 ABORDAGEM INTERPRETATIVA DA IDENTIFICAGKO E DA DESCRICAO DOS CONHECIMENTOS CLINICOS ..... A avaliagdo das performances ............ Identificagio dos dom{nios e de competéncias Resumo..... beeeeeee sees Capiruo 4 AFUNCAO DE AJUDA........ i A relacao favorecedora de recuperacao ¢ de cura: criar um ambiente propicio ao estabelecimento de uma relagio permitindo a recuperagZo COUT eee cece eee cece eens “17 ‘Tomar medidas para assegurar o conforto do doente © preservacio da sua personalidade face & dor eaum estado de extrema fraqueza ....... A presenga: estar com 0 doente . . Optimizar a participacio do doente para que ele controle a sua propria recuperagio .... fe ee eee eee BS Interpretar os diferentes tipos de dor ¢ escolher as estratégias apropriadas para os controlar e gerir . Proporciénar conforto e comunicar pelo toque ......... 6... Proporcionar apoio afectivo ¢ informar as familias dos doentes Guiar os doentes aquando de mudangas nos planos emocional ¢ fisico ...... Resumo e conclusdes .. Capiruto 5 A FUNGAO DE EDUCACKO, DE ORIENTACAO . « : 101 O momento: saber quando o doente esté pronto a aprender .......... 105 Ajudar os doentes a interiorizar as implicag6es da doenca ¢ da recuperagdo no seu estilo de Vida... 0. eee eee e eee ee ee 106 Saber compreender como o doente interpreta a sua doenga .......... 109 Fornecer uma interpretagio do estado do doente dar as razbes dos tratamentos ............ ‘A fungao de guia: tornar abordaveis os aspectos culturalmente inacessiveis de um doente . 113 Resumo conclusdes CapiTULo 6 "A FUNCAO DE DIAGNOSTICO E DE VIGILANCIA DO DOENTE «.- 0-6... 0 ug Detectar e determinar as mudangas significativas do estado do doente ...... 66.666. ce. ees 123 Fornecer um sinal de alarme precoce: antecipar uma crise e uma deterioragao do estado do doente antes que os sinais explicitos confirmem 0 diagndstico . .. wees 125 ‘Antecipar os problemas: pensar no futuro... © 127 Compreender os pedidos e os comportamentos tipos de uma doenga antecipar as necessidades do doente ....-- 0... .2s0es0eee een ees 129 Avaliar 0 potencial de cura do doente e responder as diversas estratégias de tratamento .......-.0.....025 130 Resumo e conclusGes ... 002s. .sceee ees ce veeeee 131 CaviruL0 7 ‘A GESTAO EFICAZ DE SITUAGORS DE EVOLUCAO RAPIDA . . £133 Competéncias em alturas de ermegéncias vitais: apreensio répida de um problema ...... 662. 000e005 fe ticee ees 136 Gestio dos acontecimentos contigentes: fazer corresponder rapidamente as necessidades e os recursos em situagbes de emergéncia............ 138 Identificagio e tomada a cargo da crise de um doente até & chegada do médico ....... Resumo e conclusdes ..-...-..- weet Capfruto 8 ‘A ADMINISTRAGAO E A VIGILANCIA DOS PROTOCOLOS TERAPEUTICOS 145 P6r a funcionar e vigiar um tratamento por via intravenosa com o minimo de riscos e de complicagies .. o ce 148 ‘Adininistrar medicamentos de forma apropriada e sem perigo - 150 Combater os perigos da imobilidade ..... 00... ..e000 152 Criar uma estratégia de tratamento da ferida que facilite a recuperagio (cura), 8 | De iniciado a perito © conforto ¢ uma drenagem apropriada ...... vos 154 Resumo € conclus6es .-. 6. .se esse see eeeev esse esev erences 156 Capiruto 9 ASSEGURAR E VIGIAR A QUALIDADE DOS CUIDADOS .....- vee LSD Fornecer um sistema para assegurar a seguranga do doente durante os cuidados médicos e de enfermagem ........... 163 Avaliar 0 que pode ser omitido ou acrescentado as prescrigdes médicas sem colocar a vida do doente em perigo ...... 165 Obter dos médicos respostas apropriadas em tempo titil ..... Resumo € conclusées ........ Capfruco 10 ‘AS COMPETENCIAS EM MATERIA DE ORGANIZACAO E DISTRIBUIGAO DE TAREFAS «0... 022s 0eeee eee eee 171 Coordenar, ordenar ¢ responder as miiltiplas necessidades e solicitagdes dos doentes: estabelecer prioridades ........ 0.0.20. 6 174 Constituir e consolidar uma equipa médica para proporcionar os melhores cuidados 171 Resumo e conclus6es .... 2+... 000+ 186 CarituLo 11 IMPLICAGOES PARA A INVESTIGAGAO EA PRATICA CLINICA ......--.-+- eee e eee ee sevens 187 Envolvimento versus distanciamento ... . . a ve ee eee es 189 As relagées enfermeira-doente . . eee e eee wees 190 Os sinais de alarme precoce......... -191 Para ld dos cuidados de enfermagem . 193 Competéncias de organizagio e de vigilancia (monitorizagio) . ween 193, O fenémeno do cuidar humano (Caring) ..... CapiTULo 12 IMPLICACGES PARA O DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL EPARA A EDUCACAO ....... eet e ete e eect enee eee LOT O desenvolvimento profissional . .. ce veeeteteeeteee 199 A formagao das enfermeiras ... 207 indice | 9 CapituLo 13, PARA UMA NOVA IDENTIDADE E UMA REDEFINIGAO DOS CUIDADOS DE ENFERMAGEM . 0... 0s. 0002-00 215 Incentivos significativos e sistemas de retribuigao +220 Um sistema de promogao na prética clinica = 222 Methoramento da colaboragio ..- 6... 0... eee cee 224 ‘Um reconhecimento acrescido 224 Cariruco 14 EXCELENCIA E PODER NA PRATICA DE ENFERMAGEM «2-000 0 207 O poder de transformagao ........ be eeteeeeeeeeeeetaeeees 2231 O cuidar de reintegragio 2.232 A defesa (Advocacy) . = 232 O poder da relagdo terapéutica no Ambito da recuperagio, cura e promogio da saiide (healing) . -233 O poder de participagao / afirmagao 2234 Resolugdo de problemas ...... - 235 EpiL0Go - Aplicagdes Priticas ... 02.00.00... 00e veces 241 Do bom e mau uso dos modelos formais em cuidados de enfermagem - Deborah R. Gordon, Ph.D. .... 10.000 e00e0s 244 Integrago de uma enfermeira de nivel III no Hospital el Camino - Anne Huntsman, Janet Reiss Lederer e Elaine M. Peterman 02.00. 000e0csecees cece esses teenies 273 ANEXO TERMINOLOGICO. . 6.602 0s eevee eee eee tenes 295 Nota INTRODUTORIA A Editora Prentice-Hall apresenta esta edigo comemorativa da obra “De Iniciado' a Perito: Exceléncia e Poder na Prdtica Clinica de Enfermagem” depois de dezasseis anos, dez tradugGes e uma recepgfo do livro que tem sido extremamente gratificante. Os objectivos do trabalho exam os de estudar a aprendizagem experiencial na pratica de enfermagem, examinar a aquisigéio de competéncias baseada na aprendizagem clinica e © conhecimento articulado que est inerente & pratica de enfermagem. As narrativas relativas & aprendizagem experiencial ligam o formando, o contexto, as interacgées ¢ o tempo. As narrativas baseadas na-experiéncia tocam caracterfsticas humanas comuns e vulnerabilidades que podem mostrar-se diferentes em outros contextos organizacionais ou culturais. Os leitores afirmam que este livro pde em palavras aquilo que eles sempre souberam, mas nfo eram capazes de expressar acerca da pritica de enfermagem — um elogio perfeito pois que esta obra pretende dar ao piblico, uma linguagem acessivel, uma pratica escondida ou marginalizada . (ie., investigagao articulada). Os leitores sio capazes de comparar ¢ confrontar semelhangas e diferengas entre as narrativas e os seus prdprios contextos praticos e culturais. Quando este texto foi publicado a primeira vez, as enfermeiras estavam a comegar a perspectivar carreiras de longa duragdo na pratica clinica, ¢ estavam interessadas em modos de encontrar o desenvolvimento € avango baseado na pericia clinica e na educago. O avango na carreira foi-se ligan- do ao deixarem os cuidados directos ao paciente e passarem a ter ocupa- Ges ligadas ao ensino e administrago. Este trabalho mostra por que é que as enfermeiras prdticas clinicas necessitam de permanecer e serem * Novice sera traduzido por iniciado ou iniciada, caso a caso, ¢ poderé também ser traduzida pela palavra principiante. Nota da Tradutora (N. da T.) 12 | De iniciado a perito recompensadas pela sua pericia clinica, nos varios contextos da prética. Esta investigagio demonstra que a pratica é, em si mesma, um modo de se obter conhecimento. Oferece uma perspectiva alternativa do conhecimento da enfermeira competente, do modo como se pode prosseguir a pesquisa clinica € 0 desenvolvimento do conhecimento clinico, na pratica de enferma-gem. Enquanto membro participante na tradigfio da pritica de enfermagem, cada enfermeira carrega nos seus ombros 0 passado ¢ 0 presente das suas colegas. © modo como tratamos a nossa aprendizagem experiencial didria, na prética clinica, determina a extensio em que a investigagio e a educagio serdo tanto colectivas como cumulativas, ligadas de um modo vital com a pratica clinica. ‘A enfermagem tem uma prética socialmente organizada e uma forma implicita de conhecimento e de ética ~ como qualquer outra prética, enfrenta continuamente um desafio para o desenvolvimento ou para o declinio. As priticas crescem através da aprendizagem experiencial © através da transmissdo dessa aprendizagem nos contextos de cuidados. As préticas nfo podem ser completamente objectivadas ou formalizadas porque tém sempre de ser trabalhadas em novas formas no ambito de interacgses particulares que ocortem em momentos reais. As historias das enfermeiras ilustram esta verdade. As préticas partilham bases sociais, préticas ¢ histéricas. Priticas clinicas excelentes requerem acco e raciocinio em transic&o com situag6es particulares (Taylor, 1993; Benner, Tanner & Chesla, 199 Benner, Hooper ~ Kyriakidis & Stannard,1999). ‘As priticas do Cuidar? siio baseadas no encontro e nas respostas a um outro conoreto. Tornar-se um membro participante na pritica de enferma- gem, implica que se assume uma intengdo de ajuda e um compromisso de se desenvolverem préticas de cuidar. As narrativas das enfermeiras neste livro fornecem uma visio moral para o valor ¢ a primazia do cuidar para o proceso de recuperago e para que se tomem, as dificeis medidas médicas de cura, seguras ¢ efectivas. Um dos objectivos deste trabalho é o de tornar as praticas de cuidar, que sfio uma parte integrante da exceléncia na prética de enfermagem, visiveis. As histérias das enfermeiras mostram o modo como as vitais ligag6es so estabelecidas no contexto dos dias to ocupados e das miiltiplas exigéncias, Estas ligées sfio intemporais ¢ mostram como > Caring é uma palavra que 20 longo deste livro serd traduzida, caso a caso, por cuidar, cuidar humano ou envolvimento humano nos cuidados. (N.da T.) ca. se ato isa ata or Nota Introdutéria_ | 13 alargar e preservar as nossas préticas de cuidar. As priticas de cuidar podem ser desenvolvidas através de uma melhor linguagem descritiva que incorpore 0 tempo, as interacgdes humanas, os ganhos e as perdas na compreensiio ao longo do tempo. A linguagem organizacional e a preferéncia pelas descrighes procedimentais do conhecimento podem ter como consequéncia que as praticas de cuidar possam ser sobrevalorizadas. Ninguém pode mandar alguém para que cuide ou se implique em préticas de cuidar. Mas os gestores de cuidados de enfermagem e as enfermeiras prdticas podem criar um ambiente ¢ um clima que seja facilitador das priticas de cuidados. As enfermeiras na pritica desenvolvem tanto 0 conhecimento clinico como uma estrutura moral, pois aprendem com os seus pacientes e as suas familias. A aprendizagem experiencial em situag6es de alto risco requer coragem e ambientes que apoiem a aprendizagem. As hist6rias das enfermeiras revelam esta aprendizagem experiencial centrada no préprio agente. A falta de reconhecimento do piblico relativamente & natureza do conhe-cimento das enfermeiras pode levar a que a aprendizagem clinica seja ne-gligenciada nos contextos localizados da pratica. Este trabalho foi a base de um movimento que visou tornar pablico acessfvel a aprendizagem experiencial localizada ao reflectir sobre 0 co- nhecimento clinico que € evidenciado nas narrativas da aprendizagem experiencial. Nas diferentes comunidades Jocais de prética desenvolvem-se distintas competéncias e conhecimento clinic. Muitos hospitais e servigos de cuidados domicilirios iniciaram projectos baseados nas narrativas para documentarem este conhecimento experiencial especifico. Estes projectos recolhem de forma sistematica e reflectem-se nas narrativas clfnicas dos enfermeiros da pritica. Recolhendo 50 a 100 narrativas de aprendizagem experiencial, cria-se um estudo pessoal sobre 0 conhecimento clinic que identifica os pontos fortes da pritica, os desafios mais importantes ou os siléncios nos contextos locais da pritica. A recolha das narrativas e a reflexio interpretativa sobre essas narrativas permite a descoberta de novas competéncias ¢ novo conhecimento, a identificagao de obstéculos &s boas priticas e ainda a identificagiio de Areas de exceléncia. Por exemplo, as hist6rias podem revelar cuidados not4veis proporcionados por familiares, em todos os contextos de cuidados, incluindo no ambito da enfermagem peri-operatéria; ou as narrativas podem revelar um profundo siléncio sobre 5 cuidados no fim da vida. Os principais objectivos destes projectos basea- dos nas narrativas foram os de tornar a aprendizagem experiencial visfvel, colectiva e cumulativa. Ao desenvolver-se uma maior quantidade de narrativas de aprendizagem experiencial, a pessoa que fornece essas narrativas aprende contando as suas histérias. Ensinar a reflexo permite aos enfermeiros clfnicos que identifiquem as preocupagées que organizam ahist6ria; que identifiquém as nogdes do que € correcto que esto presentes na hist6ria; que identifiquem as competéncias relacionais, comunicacionais € de colaboragio; e que estabelecam novas formas de desenvolvimento do conhecimento clinico. O contar hist6rias em pablico, entre os profissionais, torna as distingdes éticas sobre a pritica clinica vistveis e disponiveis para avaliagdo. A forma com que a hist6ria se apresenta ~ 0 que Ihe da forma e o modo como ela acaba ~ é revelado no diélogo e nas percepges da pessoa que conta a hist6ria. As narrativas revelam o contexto, o processo, e 0 contetido de um raciocinio moral prético. Entdo, as histérias criam uma imaginagio moral mesmo se expéem falhas no conhecimento ¢ paradoxos. As historias dos profissionais também demonstram que a compaixo tanto pode ser algo revelador de sabedoria e que tem um baixo custo, como ser algo adverso e que acomoda os cuidados de sade. Aristételes salientou as distingdes entre a prética e a produgdo ou o fazer coisas. Este trabalho permite as enfermeiras distinguirem entre o conhecimento disponfvel através da ciéncia, a tecnologia e a prética. Distingdes entre conhecimento técnico e procedimental ¢ julgamento clinico ou phronesis so evidentes nos exemplos das enfermeiras que demonstram um raciocfnio clinico inerente as interacgdes humanas. No contexto de actuais modelos de engenharia e comerciais nos cuidados de satide, estas distingbes sto ainda mais relevantes. A pratica é um todo integrado que requer que o profissional desenvolva o cardcter, 0 conhecimento, ¢ a competéncia para contribuir para o desenvolvimento da propria prética. A pratica € mais do que uma colecgio de técnicas. O dominio de um conjunto especializado de aspectos da pritica nao qualifica necessariamente 0 profissional para ser reconhecido como um petito. A cincia e a tecnologia promovem o desenvolvimento de uma prética como a de enfermagem, mas sem uma tradic&o coerente que tenha socialmente reconhecidos padrées de pritica e nogdes de boas priticas, os profissionais iio saberio como avaliarem ou prosseguirem o desenvolvimento da cigncia ¢ das tecnologias. Nao € uma questio de escolha, quer do saber cientifico quer do saber da pritica, mas antes de se saber como se relacionarem ambos. Nota Introdutéria | 15 Entrevistar e observar as enfermeiras, para esta investigagao, foi algo que me transformou como enfermeira e como educadora. Esta investigagio foi conduzida durante um perfodo de grande falta de enfermeiras e uma extrema redugao de. suporte financeiro. As enfermeiras educadoras em enfermagem estavam empenhadas num movimento de educagdo baseado nas competéncias. Este movimento estava designado para perspectivar os resultados do ensino e aprendizagem em objectivos comportamentais muito bem definidos. A assungiio era que tanto a aprendizagem como a pritica de enfermagem se poderiam reduzir a um conjunto de técnicas. Uma compreensio técnica da enfermagem era algo muito notério, tanto na educagio em enfermagem, como na pritica. A frase compreensdo técnica refere-se a uma assungiio de que toda a acgdo pode ser determinada através de teorias bem explicitas e de directivas. O objectivo original subjacente a esta investigacao era o de se dirigir ao afastamento entre a teoria ¢ a pratica. Em vez disso, esta investigago revelou muitas faltas de ligacdo entre priticas excelentes e as vantagens para o desenvolvimento da teoria a partir da pratica de enfermagem. A pratica de enfermagem € bem mais complexa do que aquilo que a maioria das teorias formais de enfermagem preconizam. As observagées © as entrevistas narrativas das préticas de enfermagem demonstram niveis muito elevados de raciocinio. Por exemplo: as enfermeiras identificam, precocemente, sinais de aviso, que salvam a vida dos doentes com alteragées subitas do seu estado clinico; as enfermeiras ajustam de forma instantdnea terapéuticas de acordo com as respostas do doente; as priiticas de cuidar, incluindo as interacgées que promovem e acompanham a recuperagio a cura, ajudam os pacientes ¢ as suas familias a viver com as suas doengas. Torna-se aparente que as prdticas de cuidar inerentes aos papéis de ensino/orientagio e de ajuda das enfermeiras foram essenciais para 0 sucesso de intervengdes médicas altamente técnicas porque elas tornaram essas intervengdes seguras e proporcionaram grande confianga aos doentes. ‘As muitas narrativas das experiéncias das priticas de enfermagem reve- laram aspectos importantes do papel da enfermagem que no podiam ser percebidos através de descrigdes formais de técnicas e procedimentos, ou de abordagens centradas nas descrigées de tarefas de um dado trabalho. As enfermeiras descrevem, muitas vezes, uma percepcio muito clara dos sinais e sintomas do doente baseadas nas suas experiéncias anteriores. Este : tipo de certeza e de clareza é distinto de uma certeza inerente a um critério de raciocinio, e de sinais que necessitam de uma posterior avaliagao. OUnHo eB Be Gundan0 16 | De iniciado a perito Articulando © conhecimento imbuido nas préticas clinicas e de cuidar das enfermeiras ¢ dos outros profissionais de sadde proporciona um modo de lirar este tipo de préticas bem competentes das fronteiras em que tem estado. As priticas de cuidar precisam de ser apresentadas ¢ recuperadas (tornadas piblicas, por forma a que possam ser legitimadas e valotizadas) porque elas sustém as relagdes de confianga que tornam a promogdo da satide, a sua restauragio € reabilitago possiveis. As préticas de cuidar nao podem sobreviver se elas continuarem a ser sub-valorizadas. Compreen- der 0 cuidar como uma prética, em vez de ser apenas um puro sentimento ou um conjunto de atitudes que esto para além da pratica, revela o conhe- cimento e a competéncia que o cuidar excelente requer. Estudar uma pratica socialmente organizada permite uma reflexao colectiva que pode cons-truir 0 conhecimento ¢ criar novas agendas para a investigagao. O Modelo Dreyfus de Aquisigdo de Competéncias (Dreyfus e Dreyfus, 1986) € baseado no estudo de uma situagio pritica, na situacio, ¢ determinando o nivel da prética evidenciado na situacio. Desta forma, ilucidam-se os pontos fortes em vez dos défices, ¢ descrevem-se as capacidades da pratica em vez das caracterfsticas ou dos talentos. Em cada etapa da aprendizagem experiencial, os profissionais podem intervir ao seu melhor nivel. Por exemplo, uma pessoa pode ser sermpre o melhor iniciado (tipicamente um estudante do primeiro ano). Uma pessoa pode ser a mais responsdvel ou empenhada na sua aprendizagem experiencial, seja qual for a etapa de aquisigfo de competéncias em que se encontre. © que alguém nao pode fazer é ficar fora da experiéncia, ou ser responsdvel por aquilo que nunca alguma vez experienciou na pritica, Os profissionais podem ser responsdveis por uma pritica segura, e por conhecerem a ciéncia e a tecnologia actualizada. A memorizagio das caracteristicas ¢ os elementos de uma ca-tegoria de diagndstico a partir de um livro, contudo, nao é 0 mesmo que reconhecer quando e como essas caracterfsticas se manifestam em doentes particulares, com um dado leque de variagées. Este discernimento clinico tem de ser aprendido na pratica. A aprendizagem experiencial em ambientes de alto risco requer 0 desenvolvimento de um sentido de estrutura moral e de responsabilidade. A aprendizagem experiencial € reforcada nas comunidades que apoiam a aprendizagem, ¢ em climas organizacionais adequados. Por exemplo, um profissional que apenas viu um doente que esté a recuperar de uma cirurgia ao coragdo nao pode esperar ser capaz de fazer distingdes qualitativas ou comparagées com outros doentes que esto a recuperar de operagdes. Esta das de em das as) vo en- nto he- ica vir ‘us, ido. ais for ém silo ser pa tos am ste de. aa am gia ou sta Nota Introdutéria | 17 habilidade para comparar globalmente casos clfnicos € claramente algo mais subtil e mais exigente para que se reconhegam variagées clinicas, do que pode ser percebido em livros ou em simples descrigdes de momentos erfticos. Esta é uma afirmagao ébvia, mas que é com frequéncia ignorada, numa visio técnica da prética, onde se imagina que os momentos criticos descritos podem tornar explicitos as mirfades de traject6rias e de variagtes nos cuidados a0 doente e na sta recuperagao. Apesar de os profissionais néio poderem ser penalizados por existirem variagdes subtis nos dados clinicos do doente que eles nunca viram ao longo da sua pratica, eles podem trabalhar em colaboracao com os seus colegas para fazerem o melhor uso da sabedoria clinica obtida experiencialmente. Aprender a encontrar os outros em varios estados de vulnerabilidade e de sofrimento requer abertura e uma aprendizagem experiencial ao longo do tempo. Manter a vigilancia, nos varios momentos, sobre as vSrias pistas ¢ tornar efectiva a sua detecedo e a ligag’io com outros sinais, pode revelar ¢ alargar as competéncias de empenhamento ¢ eficdcia clinica. Os casos paradigmaticos sao realgados neste trabalho ~ experiéncias clinicas que ensinam aos clinicos algo novo sobre a pritica, por forma a que as suas préticas subsequentes sejam modificadas ou transformadas de algum modo. Eu encorajo os estudantes de enfermagem e as enfermeiras da pratica a escreverem ou a gravarem os seus casos paradigméticos como forma de estudo individual relativo & sua aprendizagem clinica a0 longo do tempo. Esta € uma boa maneira de ligar a aprendizagem pessoal com a aprendizagem profissional. Por exemplo, aprender a escutar activamente e a responder empaticamente a alguém que esté a enfrentar a morte néo é facilmente aprendido. Todos chegamos a uma situag%o tao pesada emocionalmente com a ansiedade face a sua propria morte ¢ com as competéncias relacionadas com o envolvimento, aprendidas a partir da sua prdpria familia e a partir da vida. Ao registar os casos paradigmaticos em que tanto os bons exemplos de comunicagaio como as falhas ocorrem, as enfermeiras podem aumentar a sua aprendizagem experiencial e 0 seu auto desenvolvimento, As enfermeiras professoras podem usar as experiéncias individuais narradas de modo similar ao que é apresentado neste livro para ajudarem os estudantes a reflectirem sobre as suas préticas e articularem 0 seu conhe-cimento clinico. Os estudantes podem escrever, na primeira pessoa, narrativas de experiéncias sobre situagdes clinicas que Ihes ensinaram algo de novo sobre a pritica, ou que Ihes ficaram na meméria por alguma razo, tal como um erro que aconteceu, uma lig que se 18 | De iniciado a perito aprenden, ou um exemplo de uma prética bem sucedida. Os estudantes so encorajados a escrever com clareza, com vivacidade ¢ honestidade para fornecerem ao leitor os detalhes suficientes para imaginarem a situagio. Porque 0 objectivo é a articulagao de um ensino experiencial, os estudantes podem escrever de um modo vivo sobre falhas na situag&o e fornecerem comentarios reflexivos que ajudem a reforgar as aprendizagens realizadas. Ensinar uma reflexio corajosa na aprendizagem experiencial real e na pritica requer um ambien-te seguro ¢ aberto. As hist6rias das enfermeiras apresentadas neste livro fornecem um guia para este ensino, A enfermagem € praticada em contextos reais, com dificuldades, possibilidades ¢ recursos reais. Os ambientes de trabalho podem ctiar cons- trangimentos as habilidades de resposta eficaz que cada pessoa possui. A enfermagem é socialmente construfda e colectivamente concretizada. Todas as narrativas neste livro provém de um periodo de grande falta de enfermeiras, em que as directivas organizacionais visando os procedimentos cresceram em proporgGes alarmantes. O julgamento clinico exigido para uma necesséria boa pratica de enfermagem era severamente subestimado em cada um dos hospitais estudado. Estas condigdes sao agora reproduzidas, pois a enfermagem enfrenta de novo um problema de falta de enfermeiras, ¢ a indiistria dos cuidados de satide atravessa um perfodo de estratégias de conten¢io. As narrativas de enfermagem demonstram como © contacto com doentes ¢ familias particulares permite as enfermeiras responderem bem mesmo em situagdes que nio sio ideais. Os constrangimentos na prética mostram e apelam a uma capacidade de improvisagao. E paradoxal que, numa situagio de pressiio econémica e pressio sobre as equipas, a necessidade de se apresentar uma visio clara sobre a exceléncia na prética € maior, como se desejdssemos preservar a prética para as ge-ragGes actuais e futuras, tanto de doentes como de enfermeiras. As histérias das enfermeiras apontam o caminho ao mostrarem 0 que é a enfermagem enquanto pratica relacional integrada. Porque as priticas excelentes de cuidar, tanto como as de diagnéstico, de monitorizagao, de intervengio terapéutica, sao relacionais e contextuali- zadas, a enfermeira clinica nfo pode ter a certeza se essa pritica excelente ocorreria, em outro contexto de cuidados, com outras interaccdes, ou circunstancias. O conhecimento especffico localizado, tal como o conhecimento geral, é evidente em cada uma das hist6rias das enfermeiras. Cada uma delas tem tanto de universal como de particular. As enfermeiras clinicas que sio boas em identificar as situagdes clinicas e que fo. ara fo. tes 2m. as. na ras es, Ss da. de os co ate oa de de no ras Os ve ara ca de dli- ate ou as. cas ue Nota Introdutéria | 19 beneficiaram de uma grande aprendizagem clinica iréo previsivelmente agir melhor do que enfermeiras com menos conhecimento clinico em situagdes clinicas complexas e abertas. Todas as enfermeiras clinicas sao ajudadas ou prejudicadas pelo nivel de colaboragio, pelos recursos, e pelas estruturas organizacionais ¢ os processos disponiveis no momento. Quando alguma enfermeira falha na compreensio dos fins e dos objectivos da pritica, 0 bom julgamento clinico é impossivel, pois que 0 bom julgamento clinico depende de se ver 0 correcto em cada situagao clinica e na compreenséo da actualizago desta pritica correcta (Rubin, 1996). Cingir-se As vises técnico-racionais da prética significa que se consideram os julgamentos clinicos e morais como restritos a um célculo racional dos custos e beneficios de um conjunto de acgées baseadas em dados objectivos. Mas 0 discernimento clinico ¢ as interacgdes que promovem a recuperagio e a satide nfio se podem reduzir a célculos racionais acerca de sintomas subjec-tivos e de sinais objectivos. O bom julgamento clinico requer que as enfermeiras tenham uma visio centrada nos fins inerentes ao seu relacionamento com cada paciente. Isto requer 0 encontro com o doente enquanto pessoa, em primeiro lugar, ¢ em segundo lugar, enquanto uma pessoa especffica com as suas potencialidades e valnerabilidades. As narrativas clinicas das enfermeiras, que se apresentam neste livro, continuam a fornecer uma visio moral poderosa de uma tal exceléncia na pratica de enfermagem. PREFACIO Este livro € baseado num dialogo com enfermeiras e com a enfermagem. Trata-se de uma investigagiio descritiva que identifica cinco niveis de competéncia na pratica clinica de enfermagem. Estes nfveis: iniciado, iniciado avancado, competente, proficiente e perito — sio descritos através das palavras das enfermeiras que foram entrevistadas € observadas tanto individualmente como em pequenos grupos. Apenas as situag6es de cuidados a doentes em que as enfermeiras fizeram a diferenca pela positiva, nos resultados junto do doente, foram inclufdas. Estas situagdes oferecem exemplos vivos de exceléncia na pritica actual de enfermagem. Eles nao sto ideais abstractos, contudo eles emergem das imperfeigdes © das contingéncias com as quais as enfermeiras trabalham diariamente. Uma nota para os cépticos Alguns dos que lerem os exemplos iro ficar cépticos pensando se na realidade esta enfermagem é possivel. O seu cepticismo no se justifica, pois estes exemplos sio retirados de situagées clinicas reais em que 2s enfermeiras aprenderam alguma coisa sobre a sua prética ou deram uma significativa contribuigdo para 0 bem estar do doente. Mas se 0 cepticismo do leitor se prende com uma desilusdo generalizada com a enfermagem hospitalar ¢ com a crenga de que as enfermeiras so impotentes para proporcionarem cuidados compassivos e que salvam vidas nos hospitais — ento este livro oferece uma franca confrontagio com os cépticos também um raio de esperanga para os desiludidos. As origens da consciéncia preceptiva da exceléncia Este livro poe em causa algumas das crengas e suposi¢des mais 22 | De iniciado a perito firmemente preservadas pelas enfermeiras. O livro afirma que a consciéncia preceptiva € 0 elemento central de um bom raciocinio de enfermagem, e que isso comega por leves intuigdes e avaliagdes globais que escapam, no infcio, & andlise critica; na maior parte das vezes, a clareza conceptual segue-o em vez de o preceder. As enfermeiras experientes descrevem muitas vezes as suas capacidades preceptivas com expresses como “pressentir”, sentimento de mau estar” ou “a impressdo que as coisas ndo esto a corer bem”. Este tipo de discurso pée pouco a vontade educadores e clinicos, porque a avaliagdo deve passar desses embrides: Preceptivos para provas conclusivas. As enfermeiras peritas sabem que, em todos os casos, uma avaliagdo definitiva do estado do doente nao pode ser satisfeita por pressentimentos vagos, mas aprenderam com a experiéncia a deixar as suas percepgdes guid-las d evidéncia confirmativa Procurando uma atitude cientéfica, 0 clfnico, a enfermeira, 0 médico ov © conselheiro podem negligenciar a importéncia das competéncias Perceptivas. Se as enfermeiras fossem computadores reincamados ou dispositivos mecanicos de vigilancia, elas esperariam sinais claros e explicitos antes de se identificar o primeiro sinal de um problema. Felizmente, os seres humanos peritos que decidem podem captar a glo- balidade de uma situagéo, baseando-se sobre indefinidas e subtis mu- dangas no estado do doente © podem em conjunto com a equipa de satide procurar confirmar a decisdo. Os peritos ndo param nas vagas intuicdes, mas também nao ignoram esses sinais, que poderio conduzir A identificagao precoce de um problema e A sua confirmagio. A importancia da decisio arbitréria Examinando a histéria do ensino dos cuidados de enfermagem nos Es- tados-Unidos, apercebo-me de que o modelo de aquisigio de conhecimentos descritos aqui poderd ser mal interpretado, como sendo defensor de uma aprendizagem informal por tentativa e erro. E por isso importante notar que 0 modelo Dreyfus, de aquisigaio de co- nhecimentos, foi desenvolvido no inicio de uma investigagdo sobre as competéncias de pilotos colocados em situagdes de urgéncia. Nesse contexto, ninguém se importou que 0 modelo fosse mal interpretado ¢ sugeria que o piloto deveria ver “ como € que se comporta 0 avitio por tentativa © erro”; nesse caso, o piloto principiante nio sobreviveria ao treino de base. E a mesma coisa para os cuidados de enfermagem. Pelos de pais eza ates isas ade Ges em iaa Ses, de ido as sse de por ao los Preficio | 23 riscos que comporta, tanto para a enfermeia como para 0 doente, os cuidados de enfermagem competentes necessitam de programas de ceducagao bem planificados. A aquisigao de competéncias baseadas sobre a experiéncia é mais segura ¢ mais répida se assentar sobre boas bases pedagégicas. objectivo deste livro é apresentar os limites das regras formais chamar a atengio sobre decisdes arbitrdrias em situagdes de clinica real Isso no poe o perito numa posiciio especial ¢ privilegiada em relagdo aos prinejpios da fisiologia, dos cuidados de enfermagem e da medicina. Este livro nfo defende um ponto de vista andrquico e caético que pretendesse que houvessem regras que permitissem, por exemplo, ignorar as leis da assepsia, quando algo deve ser feito em caso de urgéncia ao estar em causa a vida do paciente. Ter em conta as circunstancias contingentes de uma situagao nao quererd dizer que é preciso ignorar os princfpios gerais de toda uma situagdo. O meu ponto de vista nfio é o de aconselhar que se abandonem as regras. Afirmo, no entanto, que uma compreenstio mais competente da situagio, mais aprofundada, leva a um comportamento racional, sem ter que seguir regras rigidas. Uma vez descrita a situagio, podemos interpretar as acgées empreendidas como um comportamento racional, razodvel que responde as exigéncias de uma dada situago, mais do que a regras ¢ princfpios rigidos. Poderfamos dar cada vez mais regras descritivas que permitissem miltiplas excepgdes, mas existiriam sempre excepcdes onde o perito funcionaria com essa leveza. Este livro diz respeito a decisdes de risco, espectficas de uma situagdo, que subvalorizamos habitualmente, mas as quais as enfermeiras fazem frente na sua prética quotidiana. Menzies (1960) fala do facto do profissional se esconder atrés das regras e dos habitos, para se defender contra a ansiedade, o que pode ser considerado como uma estratégia. Mas, como tal é uma estratégia irrealista que tem como consequencia o desgaste suplementar que advém do nao reconhecimento ¢ da nZo legitimagao das competéncias de enfermagem. Reflectindo as realidades da pratica © leitor teria certamente preferido que s6 escolhesse exemplos que reflectissem comportamentos ideais de colaboragao e relagGes ideais com os médicos, Na realidade, os administradores e os médicos indicaram-me que nfo gostariam de exemplos que mostrassem a relagdo enfermeira- 24 | De iniciado a perito médico sob uma mé perspectiva. Eu teria, também, gostado de ter encontrado a0 longo deste estudo, 86 relagdes de colaboraco perfeita, mas isso teria sido ficgdo e niio uma investigagio descritiva, um modelo ideal em vez de um modelo testado no terreno. Se hé inexactidées, é sem diivida num outro sentido: as interacgGes médico-enfermeira probleméticas estZio sub-representadas, tendo em conta a proporeiio do tempo passado nas entrevistas a descrever tais representagées. No mundo real, enfermeiras e médicos tém bons e maus dias e alguns so na realidade incompetentes. Quando um médico nfo esté disponivel de imediato, em caso de crise, é muitas vezes a enfermeira que faz a ligagio, bem mais vezes do que é formalmente reconhecido. Podemos dizer que no se trata de cuidados de enfermagem, mas fazemo-lo porque ignoramos a rea- lidade. As execugdes competentes foram, assim, consideradas como excelentes, mesmo nas piores condigdes (por exemplo na falta de colaboragdo ou de reconhecimento formal de certas fungées), pois a enfermeira conseguiu dar a resposta que o doente necessitava. Se nos reportéssemos a0 ideal e apresentéssemos o que gostarfamos de ser, passatfamos ao lado daquilo que € significativo para a nossa pratica efectiva. Niio saber quem somos, ¢ quem somos agora, pord seriamente em perigo 0 que nés queremos vir a ser. Caleidoscépio de intimidades e de distancias O leitor teria razio de se interrogar sobre a representatividade deste trabalho. O objectivo nao era descrever uma hora ou um dia de trabalho tipico, mas de prefer€ncia pér & luz do dia os pontos que se destacam do co- nhecimento cl{nico. Pedimos aos participantes que apresentassem situagdes clinicas que Ihes surgissem em mente. As enfermeiras tém diariamente contactos frequentes com os doentes; a maior parte do tempo, ignoram o impacto da sua intervengao sobre a recuperagao do doente. Muitos desses contactos € intervengées so rotineiros e caiem no esquecimento. Por ou- tras palavras, a relacdo enfermeira-doente nao est conforme um modelo profissional e uniforme, mas é antes um caleidoscépio de intimidade e de distanciamento durante momentos da vida draméticos, humanos e lancinantes. Os momentos comuns da vida nio so contados neste estudo, porque procurdvamos precisamente situagées clinicas excepcionais. Ainda que tivéssemos pedido descrigdes de dias tanto tfpicos como excepcionais, essa distorgdo subsiste. Como procuravamos descrever execugdes bem ter nas Jeal ‘ida to nas nos: ser, iva. 00 aste. Tho co- Ges nte, no ses ou- de se do, da ais, em rT Prefacio | 25 competentes, nao identificdmos exemplos negativos ou com deficiéncias (ver Fenton, p. 262-274 para um exemplo de identificacio de deficiéncias nas intervengGes de enfermagem). Nao € 0 fim, é s6 um principio Sei que pessoas apressadas em construir sistemas quercrao desafiar as trinta e uma competéncias descritas neste livro ou propor outras, como se pudesse existir uma lista finita e definitiva das competéncias. Acabar em trinta e uma pode parecer um pouco bizarro, mas o objectivo desta obra é€ de encorajar as enfermeiras a recolherem os seus préprios exemplos, a prosseguirem as suas linhas de investigagio e a trabalharem sobre as questdes levantadas pelo seu préprio conhecimento pratico. Este trabalho apresenta uma nova maneira de ver a prdtica da enfermagem, para que n&io nos limitemos & descrigdo dessa prética como um processo linear e simplista de resolugao de problemas. Tal constrangimento ¢ uniformidade limitam a nossa compreensio da complexidade e da significago da nossa pratica. Como foi dito de uma maneira muito realista por uma enfermeira aquando de uma discusstio de grupo: “ sabem, hoje agi rapidamente e salvei um bebé. Isto nao é insignificante!” parecia que, até af, ela tinha negligen- ciado a importancia dos seus actos nos seus relatos analfticos. Agradego &s colegas que enriqueceram este trabalho dando descrigdes de aplicagdes praticas (ver epflogo). Este trabalho tornou-se possfvel gragas a uma subvengio federal destinada & desenvolver métodos de avaliagdo em sete escolas de enfermagem e cinco hospitais da 4rea da Bafa de Sio Francisco. Trata-se do projecto AMICAE (Procura de Métodos por um Consensos e uma Avaliagio Intra — profissional). Este projecto foi apoiado por um subsidio do Departamento da Satide e dos Servigos Humanos, Servicos da Satide Pablica, Divisio de Enfermagem, subsidio n.° 7 DLO NU 29104-01. Patricia Benner AGRADECIMENTOS Este livro € baseado num trabalho comunitério, pelo que o esforgo para agradecer todas as contribuig6es sera sempre insuficiente. Eu estou em divida a todos os que me deram acesso e facilitaram 0 contacto com mais de 1200 enfermeiras através de questiondtios ¢ entrevistas. O estudo nio seria possivel sem as décadas de tradigo de cooperacio entre os servigos de enfermagem e os sectores de educagdo em enfermagem, desenvolvidos pelo Comité de cuidados de enfermagem de Sto Francisco ¢ o de educagaio em enfermagem, sob a direcgaio da Dr Helen Naham. Eu agradeco a todos os directores de enfermagem dos hospitais que participaram e aos directores das escolas de enfermagem que tornaram esta investigagio possfvel. A equipa do Projecto AMICAE contribuiu, também, de um modo significativo para esta investigagao. Ruth Colavecchio, Deborah Gordon € Judith Wrubel colaboraram na realizagio ¢ na anélise das entrevistas. Deborah Gordon realizou uma vasta observagiio e fez entrevistas em duas unidades cuidados cirtirgicos gerais, Ruth Colavecchio trabalhou com um dos hospitais participantes ao desenvolver um esquema progressivo de promog&o dos cuidados baseado no modelo de aquisigao de competéncias de Dreyfus aplicado & enfermagem. A dedicagio e interesse de Kathy Field no esforgo para se descreverem as competéncias em enfermagem de um modo novo tornou possivel a ligagdo entre as transcrigdes e as gravagées das entrevistas e as notas de campo. Ela também dactilografou o manusctito e providenciou assisténcia no trabalho de edig&o, Denise Henjum transcreveu muitas horas de entrevistas. Uma nota especial de agradecimento ¢ devida aos professores Hubert L. e Stuart E, Dreyfus que providenciaram um apoio de peritos na aplicagao do seu modelo & pritica clinica de enfermagem. Eu também quero expressar 0 meu apreco a todas as enfermeiras que participaram neste estudo. Eu espero que este livro sirva de tributo tanto as enfermeiras iniciadas como As mais experientes que se colocaram 28 | De iniciado a perito tao disponiveis para descreverem e nos permitiram que observassemos as suas préticas. Sao principalmente as suas hist6rias que so contadas nas paginas seguintes. As suas descrigdes de situagdes de cuidados a doentes em que elas fizeram a diferenga, representam muito bem a pericia e 0 empenhamento das enfermeiras. Elas apresentam a especificidade da enfermagem enquanto uma disciplina e uma arte, de uma forma que nenhuma outra estratégia poderia fazer. Os temas relacionados com a defesa do doente, a pericia, e o envolvimento que cria a vigilancia e que envolvem o cuidar so repetidos ao longo destas hist6rias. Eu estou grata a Edith (Path) Lewis pela inexcedfvel ajuda na ctiagio deste livro. O seu conhecimento profundo do campo da enfermagem permitiu-Ihe ter a visio do grande significado do trabalho e guid-lo na direcgao correcta na perspectiva da sua edig&o. Estou em -divida com as pessoas da Addison-Wesley, particularmente Nancy Evans, Editora Sénior, e Jan deProsse, Coordenador de Produgio, que deram orientagdes especializadas na transformagaio de uma monografia em livro. As suas répidas respostas, a sua dedicagaio & exceléncia, e 0 seu interesse no contetido contribufram enormemente para este trabalho. Finalmente, eu quero agradecer &s seguintes pessoas pela revistio do manuscrito antes da publicago e 0 contributo com as suas preciosas sugestdes: Kathleen Fischer, dos Hospitais Universitarios de Michigan; Marian Langer e Mary Hutchings do Hospital de St. John em St. Louis; Sydney Krampitz da Universidade do Kansas; Shirley Martin, da Universidade do Missouri; Rosalyn Jazwiec e Teresa Tapella do Memorial Hospital de Northwestern. sas CAPITULO 1 nas eo da que na una de we A DESCOBERTA DO CONHECIMENTO ioe INCLU{DO NA PRATICA ve DA ENFERMAGEM! iso asas gan; nuis; da orial " Este capitulo é adaptado, com permissio, a partir de um artigo da autora (“Descoberta do conhecimento incluido na prética de enfermagem”) que foi publicado em: Image: the Journal of Nursing scholarship, vol -xv, N°2, Primavera 1983. A pratica da enfermagem foi estudada, de inicio, de um ponto de vista sociol6gico. Assim, sabemos muita coisa sobre o papel das relagdes, a socializagio e a aculturag&io na pritica de enfermagem. Todavia, sabemos pouco sobre os conhecimentos implicitos na verdadeira pritica da enfermagem, isto é, aquele conhecimento acumulado ao longo do tempo da prética de uma disciplina aplicada. Tal conhecimento nao foi nem estudado, nem explicitado porque as diferencas entre conhecimento pritico e te6rico tém sido incompreendidas (Carper, 1978; Collins & Fielder, 1981). O que falta sfio as observag6es sistemiticas daquilo que aprendem as enfermeiras clinicas na sua pritica quotidiana. As enfermeiras nunca puseram, seriamente, por escrito os resultados das aprendizagens que foram realizando ao longo da sua prdpria pratica. Apesar de numerosos estudos sobre casos precisos terem sido publicados, existem poucas comparagdes clinicas que impliquem o estudo de varios casos ou observacées clinicas relativas as populagdes de doentes. O facto de nao termos relatado o que fizemos ¢ observado sobre o terreno, privou a teoria em ciéncias da enfermagem daquilo que 6 a especificidade e a weza do conhecimento contido na pratica clinica. Praticas bem relatadas e observagées claramente expostas so essenciais para o desenvolvimento da teoria. Este livro tem como objectivo examinar as diferengas que existem entre © conhecimento pratico e tedrico; fornecer exemplos de competéncias identificadas a partir do estudo da prética da enfermagem; descrever aspectos do conhecimento pratico e delinear estratégias destinadas a preservar e desenvolver esse mesmo conhecimento. Em primeiro lugar, contudo, va-mos fazer uma abordagem sobre a natureza desse conhecimento e da maneira como é adquirido. 32 | De iniciado a perito As diferencas entre conhecimento pratico e te6rico A teoria € um excelente instrumento para explicar e predizer. Da forma as perguntas e permite o exame sistematico de uma sequéncia de acontecimentos. Os te6ricos tentam identificar as condigées necessérias ¢ suficientes para que aparegam as situagdes reais. Estabelecendo ligagbes entre causa ¢ efeito entre os acontecimentos, os cientistas chegam ao ‘saber’. Os fil6sofos da ciéncia tais como Kuhn (1970) ¢ Polanyi (1958) observam, contudo, que “saber” e “saber fazer (habilidade)”” constituem dois tipos di-ferentes de conhecimentos: temos numerosas competéncias (habilidades) adquiridas sem “saber”; 6 por vezes impossfvel explicar de maneira teorica a nossa habilidade para actividades tais como a natagio ou andar de bicicleta. Noutros termos, certos conhecimentos praticos poem em cheque formulagdes cientfficas do tipo “saber”. & igualmente possivel desenvolver, para além de tais formulagées cientfficas, um “saber fazer” que possa contrabalangar, desafiar e alargar a teoria em vigor. Assim, 0 desenvolvimento do conhecimento numa disciplina aplicada consiste em desenvolver 0 co-nhecimento pritico (saber fazer), gragas a estudos cientificos e investigagées fundados sobre a teoria ¢ pelo registo do “saber fazer” existente, desenvolvido ao longo da experiéncia clinica vivida, aquando da prética dessa disciplina. O conhecimento incluido na pericia A pericia desenvolve-se quando 0 clinico testa e refina propostas, hipoteses ¢ as expectativas fundadas sobre os princfpios, em situagdes da pratica real. Podemos falar de experiéncia neste sentido (Heidegger, 1962; Gadamer, 1970) quando nogées e expectativas preconcebidas so postas em causa, corrigidas ou no confirmadas pela situagio actual. A experiéncia é por isso necesséria para a pericia. Por exemplo, a solugao encontrada por uma enfermeira proficiente ou perita para resolver um * Saber 6 a palavra que usaremos para traduzir a expresso no original know that, que significa saber sobre alguma coisa. Nota da tradutora.(N.daT.) * A expressio saber fazer serd useda para traduzir a expressio usada pela autora know how. (N da T). ‘ma we Ges 20 58) em sias de vou em ivel ser” 1,0 em dos iber ida, tas, da 62; sta so um re A Descoberta do conhecimento incluido na prética da Enfermagem | 33 problema ser diferente de uma enfermeira principiante ou competente, tal como € descrito no capitulo2. Esta diferenga pode estar atribufda ao saber fazer adquirido através da experiéncia. ‘A enfermeira perita apercebe-se da situagtio como um todo, utiliza como paradigmas de base situagées concretas que ela jé viveu e vai directamente a0 centro do problema sem ter em conta um grande nimero de consideragées intiteis ( Dreyfus, H., 1979; Dreyfus, S., 1981). Ao contrétio, numa situagio nova, a enfermeira competente ou proficiente deve apoiar-se num raciocfnio consciente, deliberado para resolver de forma analitica um problema de natureza elementar. A pericia em matéria de tomadas de decis6es humanas complexas, como € 0 caso nos cuidados de enfermagem, torma possfvel a interpretagao das situagées clinicas. Além disso, os conhecimentos inclufdos na perfcia clinica so a chave do progresso da pratica da enfermagem e do desenvolvimento da ciéncia da enfermagem. Nem todo 0 conhecimento inerente A pericia pode ser apresentado em proposigSes tedricas, ou com estratégias analfticas que dependem da identificago de todos os elementos que estilo presentes na decisiio (Benner & Benner, 1979). Todavia, possivel descrever as intengdes, as previsdes, 08 significados ¢ os resultados que caracterizam a pratica perita, Certos aspectos do saber fazer clfnico podem ser apreendidos devido a descrigdes interpretativas da prética real. Desenvolvimento do conhecimento pratico O conhecimento pratico adquire-se com 0 tempo, ¢ as enfermeiras nem sempre se dio conta dos seus progressos. E necessario construir estratégias para que haja conhecimento desse saber fazer, de maneira a poder desenvolvido e melhorado. Identificamos seis dominios do conhecimento pratico: 1) a hierarquizagao das diferengas qualitativas; 2) os significados comuns; 3) as suposigdes, as expectativas e os comportamentos tipos; 4) os casos padrao e os conhecimentos pessoais; 5) as méximas; 6) as préticas niio planeadas. Cada dominio pode ser estudado utilizando estratégias etnogréficas e interpretativas, destinadas num primeiro tempo a identificar € desenvolver o conhecimento pratico. As enfermeiras peritas aprendem, por exemplo, a reconhecer mudangas fisioldgicas subtis. Podem reconhecer sinais de choque antes mesmo do 34 | De iniciado a perito aparecimento de alteragGes nos sinais vitais e podem deduzir a eventual necessidade de iniciar uma reanimagao, antes que 0 colapso vascular ou que alteragdes draméticas nos sinais vitais se produzam. Esta obra cita numerosos exemplos de reconhecimentos precoces e medidas répidas tomadas pelas enfermeiras peritas (por exemplo, para uma embolia pulmonar ou um choque séptico). Essas capacidades muito minuciosas so © resultado de muitas horas de cuidados ¢ de observacio directa do doente. Muitas vezes, a percepgaio de uma situagio depende do contexto, Isso quer dizer que mudangas subtis s6 tém sentido & luz do historial do doente © da sua situagdo presente. Polanyi (1958) qualifica esta capacidade de Percepefio de conhecimento, da enfermeira perita, de verdadeiro “saber” ou connaisseurship' A documentagao descritiva e interpretativa desse saber poe em evidéncia o conhecimento clinico. E necessério que as enfermeiras acumiulem exemplos das suas capacidades em identificar e que elas descrevam 0 contexto, os significados, as caracteristicas © os resultados do seu saber. Isso permitir-Ihes-4 afinar as suas capacidades e demonstrar ou ilustrar, as diferengas qualitativas que forem capazes de identificar. Uma grande parte deste proceso faz-se naturalmente, quando as enfermeiras comparam os pontos de vista em matéria de diferengas Gualitativas, como a tonicidade numa crianga prematura ou a “sensago” de tum ttero contrafdo em relago aquele que esté contrafdo por causa da presenga de codgulos. A hierarquizacio dessas diferengas qualitativas s6 pode ser elaborada e refinada quando as enfermeiras comparam os seus pontos de vista durante 08 cuidadlos aos doentes em situagdes reais. Por exemplo, as enfermeiras de um servico de neonatologia comparam a apreciago que tém da tonicidade muscular de maneira a poderem chegar a apreciacées consistentes de tonicidade. As enfermeiras que avaliam 0 processo de cura das feridas Comparam a sua linguagem descritiva & medida que os casos de doengas se apresentam. Muitas vezes, termos descritivos particulares irio ser empregues para descrever essas diferencas qualitativas. Todavia, a menos que n&o sejam tomadas medidas para comparar sistematicamente a Significagao desses termos em situaco real, a comunicago nao passard, Este aspecto dos conhecimentos clinicos (0 verdadeito saber) é muitas vezes negligenciado na procura da aprendizagem das tecnologias de ponta. * Connaisseurship, palavra usada no original que podemos traduzir por sabedoria. (NdaT) ual ou ita Jas lia so tte. 380 te de ca 3 as jue os se de do yas de da ae ate de de de las se er os ta. tia, A Descoberta do conhecimento inclufdo na pratica da Enfermagem | 35 Uma quantidade incrfvel de tempo € consagrado a aprender as tiltimas tecnologias, assim como os seus procedimentos, mas nada é feito para que se apreenda, em profundidade, o mecanismo de aquisigao das competéncias em matéria de julgamento clinico. Os significados comuns Como ¢ ilustrado nas competéncias apresentadas nos capitulos 4 5, as enfermeiras que trabalham com situagdes comuns’ em matéria de saiide e de doenga, de nascimento e de morte desenvolvem uma linguagem comum relativa ds nogdes de ajuda, de recuperago e dos recursos necessérios* para fazer frente a tais situagdes humanas. Pot exemplo, este estudo mostrar que as enfermeiras tentam, muitas vezes de maneira t{pica, desenvolver um sentido do “posstvel” para os seus doentes, mesmo nas circunstancias mais criticas e mesmo quando este sentido do possivel talvez s6 signifique uma Gnica tarde sem dores, até mesmo a aceitagdo da dor ou até a morte. As enfermeiras adquirem com 0 contacto com os familiares e os doentes todo um leque de respostas, de significados e de comportamentos destinados a fazer frente as situagdes mais extremas. Estes significados comuns evoluem no tempo e sao partilhados pelas enfermeiras; eles formam uma tradigao. Compreendé-los sem os tornar incompreensiveis pela andlise fora do contexto, pode fornecer a base de um estudo sistemético e de um desenvolvimento mais avangado da pratica e da teoria, Significados comuns aparecem quando diversas situagdes clinicas sio relatadas e quando as intengSes, 0 contexto e 0 sentido no foram alterados pela narragio. AssungGes, expectativas e comportamentos tipo Os relatos de situagGes reais apresentados sob forma de narrativas, onde + Common no original, podemos também traduzir por idénticas. (N. da T:) * Coping € uma palavra de dificil tradugio que iremos caso a caso colocar em portugués, de acordo com o mais adequado sentido em cada frase. (N da T) 36 | De iniciado a perito © contexto esta intacto, estdo carregados de suposigées, de expectativas e de “comportamentos tipos”” que podem niio fazer parte de conhecimentos formalmente reconhecidos. Procurar nas narrativas as suposigdes € as expectativas subjacentes as apreciagdes ou as intervengSes, permite colocar novas perguntas, para refinar, desenvolver e avaliar mais precisamente o conhecimento. Por exemplo, depois de ter observado a evolugao clinica de numerosos doentes tendo patologias parecidas ou no, as enfermeiras podem aprender a prever um certo seguimento dos acontecimentos, sem nunca terem realmente formulados essas suposicSes. Estas previsbes s6 podem apresentar-se em situagées reais, e nflo num quadro de abstracgdes ou de generalizagées, As enfermeiras desenvolvem igualmente “comportamentos tipos” para agir em relago aos doentes. Os psicdlogos da Gestalt definem esses comportamentos tipos como sendo uma predisposigio a agir de uma certa maneira em circunstancias bem precisas, Esses comportamentos acumulam-se ao longo do tempo e podem mesmo revelar-se menos faceis de explicar, do que 0s acontecimentos previsiveis ou as suposigées, muitas vezes visiveis para o observador exterior, Estes comportamentos tipo constituem uma orientagao para a situagdo e isto altera 0 modo como ela € percebida © descrita. Estes comportamentos podem, por vezes, passar despercebidos, pois nunca podem ser completamente explicitos, porque 0 facto de os tornar explicitos mudaria a sua fungao. Estudos multiculturais puseram em evidéncia comportamentos tipos diferentes frente a uma situago idéntica. S40 ainda mais visiveis quando as acgdes nfo tem um mesmo sentido para pessoas de culturas diferentes, Experiéncias multiculturais deliberadas podem ser provocadas pedindo-se as enfermeiras para comparar incidentes criticos provenientes da sua pratica e as maneiras como elas abordam uma dada Situagao clinica. Abordagens divergentes e falta de comunicagio sobre uma mesma si- taco clinica podem fazer surgir comportamentos diferentes. Por exem- plo, vimos aparecer dois comportamentos diferentes nas descrigdes dadas por duas enfermeiras aquando da tomada a cargo de um doente até a * Set 6 também uma palavra que se torna dificil de traduzir. Neste contexto cotocamos a opsio por comportamentos tipos, seguindo a prépria explicagtio dada pela autora, isto é: uma predisposigéo a agir de certos modos de acordo com situagdes particulares. (N. da T.) ase tos 2 as dear teo ade iras sem +86 Ges das ‘A Descoberta do conhecimento inclufdo na pratica da Enfermagem | 37 chegada do médico. A enfermeira que trabalha num quadro onde a desconfianca era tal que os médicos se recusavam a confirmar por escrito fas suas prescrigdes verbais, nao tinha 0 mesmo comportamento, nem o mesmo sentido das possibilidades frente a uma urgéncia, que uma colega que evolufa num ambiente onde a confianga e a comunicagio médico — onfermeira era grande. A descoberta das suposigdes, das expectativas e dos comportamentos tipo pode por & luz do dia um dominio nao explorado do conhecimento pratico, podendo depois ser sistematicamente estudado & desenvolvidos, ou refutado. Os casos paradigmaticos e 0 conhecimento pessoal Heidegger (1962) ¢ Gadamer (1975) definem a experiéncia como 0 melhoramento das ideias preconcebidas que nfo siio confirmadas pela si- tuago actual. A condig&o prévia para a percepgio de uma situagio é um conhecimento prévio ou a existéncia de um comportamento tipo. Na pratica, este conhecimento anterior, ou pre-conhecimento, é muitas vezes formado a partir da teotia, pelos princfpios e pelas experiéncias anteriores $6. quando o acontecimento refina, elabora ou invalida este preconhecimento é que ele merece ser chamado de experiéncia. E ao longo do: tempo que uma enfermeira adquire a “experiéncia”, e que o conhecimento clinico — mistura entre os conhecimentos préticos simples © 08 conhecimentos tedricos brutos - se desenvolve. Uma experiéncia particular pode ter forga suficiente para servir de modelo ou paradigma (Benner & Wrubel, 1982). Um grande nimero de exemplos apresentados nos capitulos seguintes sio para-digmas para as enfermeiras que os expuseram. As enfermeiras proficientes e peritas acumulam, assim, grupos de casos paradigmaticos em fungio dos diferentes tipos de doentes (cf. capftulo 2). Sendo assim, abordam o caso de um doente utilizando situagdes passadas concretas, da mesma maneira que um investigador utiliza um paradigma. As situagées passadas destacam-se porque mudaram a percepgdo da enfermeira. As experiéncias concretas passadas guiam assim as percepgdes 08 actos do perito e permitem-lhe aprender rapidamente a situagio. Este tipo de conhecimento clf{nico € mais compreensivo do que qualquer outra descrigao tedrica, visto que a enfermeira proficiente compara situagdes passadas com situagGes presentes, e isso na sua globalidade. 38 | De iniciado a perito Alguns casos paradigméticos so suficientemente simples e marcantes para que possam ser utilizados como estudos de casos para os estudantes (Benner & Wrubel, 1982). As formadoras clfnicas peritas apresentam casos paradigméticos que transmitem mais que os principios abstractos ou normas orientadoras*. Mas para que os estudantes possam aprender a partir de um caso paradigmatic de outra pessoa, devem activamente repetir ou imaginar a situagZo. As simulagdes podem ser mais eficazes porque obrigam o estudante a agir ¢ a tomar decisGes. E ainda Ihes dio ocasido de conhecerem e lidarem com casos paradigmiticos, estando a ser guiados. Todavia, muitos casos paradigmaticos sio muito complexos para serem simulados ou utilizados como exemplos, porque é a interacgiio com os co- nhecimentos anteriores do estudante que cria a “experiéncia” — isto é, um afinar préprio ou uma melhoria de ideias preconcebidas, assim como uma compreensdo prévia, Polanyi (1958) chama a isso uma transigfio com 0 conhecimento pessoal. Cada pessoa traz a sua propria historia, 0 seu cami- nho intelectual e a sua vontade de aprender quando esta perante uma situa- Gao clinica particular. As tansig6es criadas por este conhecimento pessoal © as acedes clinicas determinam, entio, as accies e as decisdes que se tomam. E por isso que uma disciplina clinica necesita de pessoas peritas para modelar essas transigdes dindmicas entre 0 conhecimento pessoal e a situagfo clinica. As enfermeiras experientes podem lembrar-se rapidamente das situa- ges clinicas que modificaram as suas abordagens aos cuidados a proporcionar aos doentes. E pelo registo sistemético ¢ pelo estudo desses casos para-digmaticos que é possfvel desenvolver o conhecimento que hes est4 ine-rente. As maximas Os individuos peritos transmitem instrugdes codificadas que sé tém Sentido se a pessoa j4 tem uma boa compreensio da situagio. Polanyi (1958) qualifica essas instrugdes de “méximas” (Dreyfus,1982; Benner, 1982; Benner & Wrubel, 1982). Por exemplo, as enfermeiras dos servicos de cuidados intensivos indicam de maneira codificada as mudangas subtis * Guidelines no original. (N da T) tes tes tir val iyi 2, os tis ‘A Descoberta do conhecimento inclufdo na pritica da Enfermagem | 39 que afectam o ritmo respiratério das criangas prematuras. Essas informagées s6 terio sentido para aquele que tem uma vasta experiéncia na observacao do ritmo respirat6rio das criangas prematuras. Polanyi (1958) dé/o exemplo das m&ximas no desporto. Dizemos ao jogador de golfe ou ao tenista experiente para “nao largar os olhos da bola” enquanto que esse discurso seria insensato para um principiante. As enfermeiras peritas podem aprender muito a partir das méximas que yao transmitindo umas as outras. Todavia, 0 observador exterior ou uma ‘enfermeira menos experiente pode igualmente dat retirar informagées sobre (0s domfnios do conhecimento clfnico — particularmente, o conhecimento preceptivo que esta contido nas méximas. Recolhendo as méximas usadas, podemos encontrar um ponto de partida que permita identificar uma area de decisdo clinica. As priticas no planeadas © campo das enfermeiras nos cuidados realizados nos hospitais, ¢ noutros contextos de cuidados, alargou-se consideravelmente pelas préticas no planeadas e pelas intervengdes delegadas pelos médicos ou outros profissionais de satide. Esta delegagdo nao pianeada pode ser qualificada de delegacio por defeito. Por exemplo, um novo tratamento ou um novo protocolo para um diagnéstico é introduzido e, por causa do elemento de isco que isso acarreta, tratamento ou o protocolo para 0 diagnéstico deve ser administrado e monitorizado pelos médicos. Mas muitas vezes é sobre a.enfermeira que a responsabilidade recai, porque 6 ela que se encontra & cabeceira do doente. Essas préticas, que vao acontecendo, tém miiltiplas consequéncias para a pratica de enfermagem. Por exemplo, as enfermeiras tornaram-se peritas quando foi necessério adaptar a posologia ou desabituar os doentes dos medicamentos vasopressores e antiarrftmicos, mesmos se esses conhecimentos nao foram sistematicamente descritos ou estudados. As percepedes ¢ as decisées clinicas stio modificadas pela aquisigiio de uma Tova competéncia. No entanto, essas mudangas vao continuar a passar despercebidas e a ndo serem explicitas, a ndo ser que as enfermeiras estudem em pormenor essas mudangas € 0 “saber fazer” que daf resulta € que se desenvolve na sua prépria pritica. 40 | De iniciado a perito Resumo e conclusées Uma grande quantidade de conhecimento no referenciado esté integrado na prética e no “saber fazer” das enfermeiras peritas, mas esse conhecimento nao poderd alargar-se ou desenvolver-se completamente se as enfermeiras ndo anotarem sistematicamente aquilo que aprendem a partir da sua propria experiéncia. A perfcia clfnica néio foi adequadamente descrita ou apresentada em enfermagem, e essa falha na desc contribuiu para a falta de reconhecimento e de retribuigio face & pratica da enfermagem. Além disso, uma boa descrigiio do conhecimento prético é essencial ao desenvolvimento e ao alargamento da teoria em enfermagem. A cigncia da enfermagem tem muito a ganhar com as enfermeiras que comparam os seus sistemas de hierarquizag%o qualitativa, quando fazem os seus julgamentos elfnicos, e desctevem ¢ documentam as observacées, os seus comportamentos tipo, os casos paradigmiticos, as méximas eas mudangas que vao surgindo nas suas priticas. Ha muito para aprender e muita coisa a apreciar, & medida que as enfermeiras descobrem significados comuns adquiridos em resultado da ajuda, da orientagio, da intervencio os acontecimentos humanos significativos que esto no Ambito da arte e da ciéncia de enfermagem. CAPiTULO 2 O MobELO DREYFUS DE AQUISICAO DE COMPETENCIAS APLICADO A ENFERMAGEM O matemitico ¢ analista dos sistemas Stuart Dreyfus e 0 filésofo Hubert Dreyfus desenvolveram um modelo de aquisigio de competéncias fundado sobre 0 estudo de jogadores de xadrez e de pilotos de avides. O modelo Dreyfus (Dreyfus & Dreyfus, 1980; Dreyfus, 1981) estabelece que, na aquisigo ¢ no desenvolvimento de uma competéncia, um estudante passa por cinco nfveis sucessivos de proficiéncia: iniciado, iniciado avancado, competente, proficiente e perito. Estes diferentes nfveis sio o reflexo de mudangas, em trés aspectos gerais, que se introduzem aquando da aquisigo de uma competéncia, O primeiro é a passagem de uma confianga em principios abstractos 2 utilizagio, a titulo de paradigma, de uma expe- riéncia passada concreta; 0 segundo é a modificagdo da maneira como o formando se apercebe de uma situag%o ~ nfo a vé tanto como um conjunto de elementos tirados aqui ¢ ali, mas como um todo no qual s6 algumas partes so relevantes; 0 terceiro aspecto é a passagem de observador desligado a executante envolvido. Este ultimo ja nao est do lado de fora da situagao e do processo, mas esté empenbado na situagio. Iremos apresentar os resultados de um estudo sistematico da aplicabilidade deste modelo em enfermagem. As expressdes “competéncia” e “préticas competentes” serdo utilizados indistintamente; com efeito, as duas englobam a nogdo de cuidados de enfermagem competentes e as capacidades de julgamento clinico. Em nenhum caso estes termos serio utilizados para falar de capacidades psicomotoras ou outras, demonstraveis fora do contexto normal da pritica da enfermagem. Assim, competéncias ¢ priticas competentes referem-se aos cuidados de enfermagem desenvolvidos em situagées reais. 44 | De iniciado a perito Métodos Para constatar e compreender as diferengas de comportamento em matéria de competéncia clinica e de apreciagdo da situagdo entre iniciados @ peritos, foram conduzidas entrevistas em pares compostos por uma re- presentante de cada categoria. Essas enfermeiras (21 pares) foram escolhidas em tés hospitais em que se usam enfermeiras tutoras para orientar as enfermeiras recém diplomadas. As duas enfermeiras do par, a tutora e a recém diplomada, foram entrevistadas separadamente sobre casos de doentes com os quais as duas ti-nham sido confrontadas ¢ que as tinham marcado, Perguntimos as duas que conhecimentos clinicos tinham achado particularmente dificeis de ensinar ou aprender. O objectivo desta pesquisa era descobrir de uma forma bem distinta caracteristicas diferentes na descrigio do mesmo caso elinico feito pela iniciada e pela perita. Se assim fosse, e se Fosse possivel identificar essas diferengas a partir das descrigées feitas pelas enfermeiras, em que medida poderfamos t@-las em conta e que ensinamentos poderiamos retirar dat A estas descrigdes realizadas pelos elementos do par, acrescentaram-se entrevistas e/ou observagées sobre o terreno de 51 enfermeiras experientes suplementares, onze recém diplomadas e cinco estudantes do tltimo ano, afim de afinar e de melhor descrever as caracteristicas das acgées executadas por enfermeitas em fases diferentes de aquisigio de competéncias. As entrevistas (em pequenos grupos e individuais) ¢ a observagio sobre o terreno foram conduzidas em seis hospitais: dois hospitais comunitérios privados, dois centros hospitalares regionais de ensino, um centro hospitalar universitario ¢ um hospital geral. Foi pedido as 51 enfermeiras experientes designadas pelos responsaveis de formacdo, em colaboragio com os encarregados ¢ seus colegas que escolhessem enfermeiras que tinham menos de cinco anos de experiéncia sobre 0 terreno ¢ reconhecidas como sendo excelentes conhecedoras do seu oficio. Entre essas tiltimas escolhidas, sete eram titulares de um mestrado e a maioria tinha a licenciatura. Todavia, o nivel de educagdo/ cultura-geral nao constitufa um critério formal de selecgdo. Nao tentimos em caso algum classificar as enfermeiras em fungio do seu nivel de competéncia, mas procurdmos julgar um nivel particular de prética em fungiio de cada caso clinico. Isso vai no sentido do modelo Dreyfus: propor num contexto preciso critérios que permitam saber se a em dos re- am vara am uas uas de ‘ma ico ‘vel ras, nos se ates mo, bes de ea lois de reis. que icia seu loe oral do de elo ea © Modelo Dreyfus de aquisicZo de competéncias aplicado Enfermagem | 45 pessoa possui qualidades ou tragos caracterizadores de competéncia. O objectivo nao era encontrar o individuo competente em todos os campos, apesar das circunstdncias ou do nivel de formagio. Uma série de conversagdes — uma por dia a dois por semana ~ em pequenos grupos, de quatro vezes duas horas, foram conduzidas por quatro a oito enfermeiras experientes que vinham de diferentes servigos do mesmo hospital. As 51 enfermeiras experientes tiveram uma conversa individual e as observacdes foram feitas para 26 delas. Em todos os casos, a participac&o nos cuidados era mfnima — ajudar de tempos a tempos as enfermeiras a transportar os doentes ou noutras tarefas menores afim de tornar a observactio menos incomoda ¢ importuna. Antes das conversagées, distribuimos aos participantes um texto que dava as grandes linhas do género de descrigo que nos interessava (cf., em anexo, 0 Guia para a descrigo de incidentes criticos). Com a experiéncia, apercebemo-nos de que 0 termo “incidente critico” tinha sido mal escolhido porque fazia pensar em doentes num estado critico e em situagées de crise. Foi necessitio explicar que também estavamos interessados em acontecimentos significativos, que nao estavam ligados a uma situagio de crise. As entrevistas foram conduzidas pela autora, por uma enfermeira investigadora, um estudante de mestrado em antropologia e um investigador da Area de psicologia, As entrevistas foram gravadas e transcritas palavra por palavra, afim de se analisar o texto. Em todas as séties de conversagdes de grupo, excepto uma, pelo menos dois dos investigadores estavam presentes, afim de facilitar o trabalho de grupo. Interpretagiio dos dados Os textos das entrevistas e dos registos das observag6es participantes foram lidos, separadamente, por cada um dos membros da equipa de investigagao, que seguidamente confrontaram as suas interpretagdes dos dados até chegar a uma validaco por consenso. Uma interpretago sé era aceite quando toda a equipe estava de acordo sobre a caracterizagao e a interpretagio da competéncia principal que af estava patente e s6 no caso em que ela era, sem contestagiio, o reflexo de uma verdadeira competéncia pratica, A estratégia de interpretago utilizada apoia-se sobre a fenomenologia 46 | De iniciado a perito de Heidegger Heidegger, 1962; Palmer, 1969; Benner, no prelo) 0 que corresponde bem & descriggio do método de comparacao constante de Strauss e Glaser (Glaser, 1978; Glaser & Strauss, 1967; Wilson 197), ainda que 0 objectivo ndo tivesse sido tirar daf elementos tedricos, mas antes identificar os significados e contetidos. Os seguintes trechos das entrevistas descrevem 0 mesmo caso clinico, visto por uma enfermeira principiante e uma enfermeira com experiénci A iiltima descreve aqui uma situago de emergéncia numa unidade de tratamento intensivo: Tinha trabalhado até tarde ¢ estava quase para ir para casa quando uma enfermeira tutora me diz: “Jolene, vem ver”. Havia urgéncia na sua voz, mas nfo como quando ha uma paragem cardfaca. Entro © examino o doente. A sua frequéncia cardfaca est4 nos 120, esté sob respiragio artificial e a ventilagdo parecia normal, Pergunto: “O que é que nao esté bem?”. Uma recém diplomada que tratava do doente aponta um mar de sangue. Uma grande quantidade de sangue saia da sua boca. Esse homem tinha sido submetido a uma ressecgao de um cancro mandibular. Mais ou menos uma semana atrés tinha sofrido uma hemorragia a0 nivel da carétida externa, que tinha sido ligada, devido A sua ruptura causada pela radioterapia, Essa ferida infectou-se ¢ o doente fez uma insuficiéncia respirat6ria, pela qual tinha sido internado nos tratamentos intensivos. Examino assim 0 penso e constato que esti seco. Mais sangue saia da sua boca. © homem tinha uma traqueostomia por causa da operagio & qual se submeteu. Tinha também uma sonda nasogéstrica para o alimentar, ¢ penso que talvez a artéria cardtida ou 0 tronco briquio- cefilico tinha cedido. Desligémos 0 doente do respirador para ver se qualquer coisa safa da traqueia. Havia um pouco de sangue, mas parecia que quase tudo tinha passado da faringe aos pulmées. Comegdmos entZo por ventilé-lo ma-nualmente tentando adivinhar o que poderia estar na sua boca para fazer sair uma tdo grande quantidade de sangue... Questionada, a enfermeira experiente salientou a importincia da ventilagio manual, que Ihe permitia ter a certeza de que todo oxigénio estava a ser administrado ao doente, e poder apreciar o grau de resisténcia nos pulmdes. Podemos reparar que, para esta perita, a tmada de consciéncia do pro- © Modelo Dreyfus de aquisigaio de competéncias aplicado AEnfermagem | 47 jue : blema comegou no corredor, quando ia para ao quarto do paciente. Ela jé de : se tinha apercebido da urgéncia pelo tom de voz empregue pela enfermeira, 7), mas nao se tratava de uma paragem cardfaca. Este tipo de percepgio do as : problema s6 pode manifestar-se devido & experiéncia prévia. Depois de ter concluido que o problema era da cardtida e nao do tronco bréquio-cefalico, enquanto exercia uma pressio sobre a regio da carétida e continuando a ia. 4 yentilagao manual, a enfermeira perita salienta: de Naquele momento o problema era o sangue. Necessitivamos dele ¢ disse entiio: “Alguém tem de ligar ao banco de sangue e ir buscé-lo.” A enfermeira respondeu: “acabémos de ligar e nao ha”. Ninguém se tinha apercebido que o doente estava a perder o seu sangue e que niio havia no banco de sangue ndo havia para ele, Tiramos uma amostra de sangue ¢ enviémo-la para determinar 0 grupo ¢ fazer a compatibilidade. Durante esse tempo, comecei a infectar plasma e Ringer, porque a pressiio media- na tinha caido a mais ou menos 30 e o sangue continuava a sair da boca. O entrevistador — havia médicos presentes nese momento? A enfermeira perita ~ tinham sido chamados, mas ainda nfo tinham chegado. Foi nesse momento, sensivelmente, que o interno dos tratamentos intensivos chegou ¢ olhou para 0 que se passava com ar : idiota, como se perguntasse “ 0 que tem que ser feito?”. Perguntou se tinhamos colocado um cateter. Respondi “sim, temos um cateter para a pressdio venosa central, mas penso que isso nao seja suficiente * “Vou fazer um desbridamento” disse ele. “Penso que nao seja necessario, respondi eu, penso que posso colocar mais um “Peguei entio num cateter n° 14 e introduzi-o numa veia do antebrago. Dois plasmas estavam a correr. “Que devo fazer?” respondeu o interno. Respondi: “ E necessério que desca ao banco de sangue e que nos traga unidades compatfveis com 0 grupo deste doente, porque no sero dados a uma enfermeira. E a nica : pessoa a quem entregardo o sangue compativel. Traga duas unidades; s6 Ihe serio entregues duas de cada vez, pouco importa a gravidade do problema. Mas traga as duas e volte o quanto antes.” B assim partiu. da 1i0 sia O reequilibro hidro-electrolitico do doente foi conseguido e as perdas sanguineas foram suficientemente compensadas para permitir levar a tempo 0 doente ao bloco operatério e Ihe reparar a artéria. isiastess fa 48 | De iniciado a perito ‘A maneira como esta enfermeira perita descreve a situagdo permite a0 ouvinte imaginar-se no centro da acgfio; esquecemo-nos de quem esté a contar a hist6tia, a qual s6 contém os detalhes necessérios, para permitir que outras enfermeiras compreendam o que se passa. Nenhum pormenor indtil, excepto quando os ouvintes necessitam de esclarecimentos sobre : certos pontos técnicos. A enfermeira perita domina bem a linguagem; fala sem hesitagdes da pressio sanguinea. Utiliza as mios para mostrar como © balio de ventilagio manual reage quando esta verifica a resisténcia | pulmonar. Sente nas suas mios a diferenga de resistencia, 0 que ela f consegue exprimir por gestos. Estes pontos stio mais claros quando sao comparados com a descriglio de uma mesma situagio feita por uma enfermeira principiante avangada: Py Esse homem era alguém de muito simpético, muito vivo, muito alerta ¢ atento, Infelizmente era necessério aspird-lo, aproximadamente todas as horas ou de duas em duas, para Ihe serem retiradas quantidades mo- deradas de secregdes vindas da traqueia. Essas secregdes tinham um aspecto resistente e uma cor ligeiramente acastanhada. Infelizmente, ele no suportava muito bem a aspiragio das secregdes. Punham-no numa situagdo de desconforto, faziam-no tossir, moderadamente, ¢ davam-Ihe vOmitos, 0 que por sua vez the provocavam uma subida passageira da pressfio arterial. No fim de um desses momentos de aspiracdo, enquanto estava a trocar seu aerossol, pds-se a tossir e a cuspir quantidades muito importantes de sangue vermelho vivo. Comecei a entrar em panico, pedi ajuda & enfermeira do lado, pu-lo ligeiramente em posigo de Trendelen- burg ¢ acelerei a sua perfusio. Continuei ligeiramente em panico e até um i pouco mais. Se bem que esta principiante avangada se tenha comportado muito bem nessa situacdo, em relagdo ao seu nfvel de competéncia, a sua descrigdo i deixa transparecer a sua angiistia. Ndo temos uma ideia tio clara da situa- | Ho como na descrigio feita pela enfermeira especializada. Perguntamo- t nos, confusamente, se nao foi ela que provocou a ruptura da carétida pelas | aspiragSes muito brutais. A enfermeira principiante nfio tem nenhum meio , para avaliar o que € excessivamente traumético, ainda que descreva a aspiragio das secregdes deixando transparecer a pergunta: sera que essa acgdo teria Ievado & ruptura da carétida? i ‘Ao escutar a sua narragéio, podemos notar as referéncias ao manual de ao ia itr lor ore. ala D0 cia ela Ho ma O Modelo Dreyfus de aquisigo de competéncias aplicado AEnfermagem | 49 estudo; utiliza um vocabulério nZo muito apropriado e dé informagées indteis. A sua compreensiio do acontecimento ndo é tio completa nem tio clara como a da enfermeira perita. Essa tem um grande avango quando é necessario mobilizar os recursos dispontveis e fazer frente ao problema seguinte inesperado. ‘Através da andlise desta situagio e de muitas outras, ¢ pelo modelo Dreyfus, tornou-se possfvel descrever as caracterfsticas, os comportamentos em cada nivel de desenvolvimento e identificar em termos gerais as necessidades em matéria de ensino/aprendizagem em cada nivel. Estado 1: Iniciado As iniciadas nao tém nenhuma experiéncia das situagbes com que elas possam ser confrontadas. Para as ensinar ¢ permitir que elas adquiram experiéncia tio necesséria ao desenvolvimento das suas competéncias, sfo- Thes descritas situagdes em termos de elementos objectivos tais como: 0 peso, os Ifquidos ingeridos e eliminados, a pressio arterial, a pulsagio e outros parimetros objectivamente mediveis, que permitam conhecer a condig&o de um doente — caracteristicas identificaveis sem experiéncia clinica. Sao-Ihes igualmente ensinadas as normas, independentemente do contexto, para guiar os seus actos em fungio dos diversos elementos. Por exemplo: Para determinar 0 equilibrio hidrico, verificar, durante trés dias seguidos, o peso do doente cada manh@, assim como o suplemento hidrico a sua diurese. Um aumento de peso assim como um suplemento hidrico constantemente superior a 500cc & diurese poderia indicar uma retencao de gua, situagdo essa, em que, deveria ser iniciada uma restrigdo hidrica até que seja determinada a causa desse desequilibrio, Estas regras impdem A iniciada um comportamento tipico extremamente limitado e rigido. O centro da dificuldade reside no seguinte facto: visto as iniciadas nfo terem nenhuma experiéncia da situagiio A qual vaio fazer frente, tém que Ihes ser dadas regras para as guiar nos seus acto: Mas 0 facto de seguirem essas regras poderé nao it ao encontro de um comportamento correcto, porque niio Ihes podem ser indicados quais os actos mais dteis numa dada situaco real. 1 | 50 | De iniciado a perito As estudantes de enfermagem entram em cada servigo novo, com o estatuto de iniciadas; tém dificuldade em integrar 0 que aprenderam nos livros com aquilo que vivem em situagiio real. Mas estas estudantes nao so as Gnicas iniciadas; todas as enfermeiras que integram um novo servico em que nfo conhecem os doentes podem encontrar-se a este nivel, se os objectivos ¢ os aspectos inerentes aos cuidados nao lhes forem familiares. Este ponto ilustra as hipéteses do modelo Dreyfus fundadas sobre a experiéncia em situaco, o que distingue o nivel dos actos competentes, que podem ser atingidos gragas aos prinejpios e 8 teoria aprendida numa sala de aulas, ¢ as decisGes e aptiddes que dependem do contexto, as quais sé podem ser adquiridas perante situagdes reais (Dreyfus, 1982). Por exem- plo, uma enfermeira especializada e tendo muita experiéncia no tratamento dos doentes adultos em estado eritico encontrar-se ia num nivel de ini-ciada do ponto vista das competéncia se fosse transferida para uma unidade de cuidados intensivos em neonatologia. O modelo Dreyfus de aquisigiio de competéncias é um modelo dependente da situagio e no relativo a inteligéncia ou aos dons de uma pessoa. © comportamento das iniciadas avangadas € aquele que pode ser aceitével, pois jé fizeram frente a suficientes situages reais para notar (elas préprias ou sobre a indicagiio de um orientador) os factores significativos que se reproduzem em situagGes idénticas e que o modelo Dreyfus qualifica Por “aspectos da situagao”, E preciso experiéncia para reconhecer esses “aspectos” em situagio real. J& no acontece o mesmo com os elementos mediveis ¢ independentes do contexto ou das listas que indicam uma atitude a seguir ou coisas para fazer, que a principiante aprende e utiliza. Estes aspectos abrangem o conjunto das caracteristicas globais que s6 podem ser identificadas gragas as experiéncias anteriores. Por exemplo, para avaliar se um doente esté pronto para se orien- tar e aprender sozinho é necessdrio ter conhecido a mesma situagio com ou- tros pacientes, tendo tido a necessidade de aprendizagens similares. Eis a maneira como uma enfermeira perita descreve os elementos que lhe permitem dizer que 0 seu doente esté pronto para se ocupar da sua ileostomia: no nos sao que ser elas vos fica ‘0 Modelo Dreyfus de aquisigaio de competéncias aplicado & Enfermagem | 51 Antes, pensava que ele se sentia perdido perante a operagio a que tinha acabado de se submeter. Parecia abatido tanto fisicamente como moralmente ¢ estava num estado de nervosismo extremo. Além disso tratava a ferida com precaugiio a mais, visto j no haver essa .necessidade. Mas essa manbi foi diferente, comegou a fazer perguntas _ sobre o tratamento que lhe era feito. ‘As implicagées para o ensino e a aprendizagem instrutor pode dar indicagGes que permitam saber em que momento 0 doente esté pronto para aprender. Por exemplo: “ tente saber se 0 doente faz perguntas sobre a sua operagao ou sobre o estado da sua ferida aquando da ‘mudanga dos pensos”; “verifique se o doente olha para a ferida ou Ihe toca “de vez em quando”. Mas essas indicagées dependem dos conhecimentos - daquele que cuida, nesse ponto preciso do seu trabalho quotidiano. Assim, enquanto podemos explicitar certos aspectos, € impossivel torné-los completamente objectivos. A enfermeira pode retirar indicios pela maneira como o doente coloca as perguntas sobre a operagdo ou o estado da sua ferida, aquando da mudanga dos pensos, mas nenhuma dessa indicagdes € " y4elida em todas as situagGes. A enfermeira tem que ter muita experiéncia antes de poder aplicar os seus critérios em cada um dos doentes. “A principiante avangada ou a pessoa que a orienta podem formular princfpios que ditam as acgdes em termos de atributos e de aspectos, Esses prinefpios que pressupdem elementos significativos fundados sobre a experiéncia sfio apelides de “indicagdes”. Elas integram tanto quanto possivel atributos e aspectos, mas tém tendéncia a ignorar 0 que as diferencia de uma maneira importante, isto 6, que elas déem a todos os atributos e a todos os aspectos a mesma importancia. Eo que ilustra os ~ comentdirios de uma enfermeira perita em relagdo & enfermeira principiante hum servigo de cuidados intensivos em neonatologia: Dou instrugdes muito detalhadas e muito explicitas & recém iplomada: “Quando entrar ¢ vir 0 bebé pela primeira vez, tome-lhe os sinais vitais e faga um exame fisico. Verifique, de seguida, os pontos de injecgio das perfuragdes assim como o respirador e assegure-se que funciona, Verifique os monitores € os alarmes.” E é 0 que clas fazem exactamente ponto por ponto, independentemente do que acontega... Blas 52 | De iniciado a perito seriam incapazes de fazer uma triagem entre 0 que pode ficar de lado e o que é mais importante. Seriam incapazes de ir de um bebé para o outro fazendo o que é mais importante e desempenhar mais tarde o resto da tarefas. As principiantes e as principiantes avangadas s6 podem aprender um pequeno aspecto da situagdo: isso tudo muito novo, muito estranho e cada vez mais tém que se concentrar nas regras que Ihes ensinaram. A enfermeira perita continua: Se digo: “fagam estas oito coisas” elas fazem-nas sem se preocupar se © outro bebé chora até perder o folego. Quando se dio conta, ficam espe- cadas, sem saber 0 que fazer. As orientadoras e as recém-licenciadas passam muito tempo concentrando-se sobre o reconhecimento do aspecto que constitui, aquando das avaliagSes fisicas, um bom tema de aprendizagem. A enfermeira ira praticar para distinguir entre peristalismo normal, hiper activo ou inexistente num doente operado. Mas nos dominios priticos onde a enfermeira jé adquiriu competéncia, o reconhecimento do aspecto sera provavelmente redundante e sera possfvel concentrar-se sobre perguntas préticas de um nivel mais avangado, como julgar a importncia relativa dos diferentes aspectos da situagao. A implicagao maior na educagio das profissionais de enfermagem reside no facto de que as enfermeiras principiantes necessitam de ser enquadradas_no contexto da pritica clinica. Necessitam de ajuda, por exemplo, em matéria de prioridades, porque vio agindo em fungio dos critérios gerais e comegam agora a conhecer situagées repetitivas caracteristicas no quadro da prética didria. O cuidado que é levado aos doentes deve ser ve-tificado pelas enfermeiras que atingiram pelo menos 0 nivel de “competente” afim de se assegurar que as necessidades dos doentes nao sejam ne-gligenciadas, porque a principiante ainda nao é capaz de fazer a triagem entre 0 que é mais e menos importante. A descrigo dada por uma orientadora das capacidades de uma recém diplomada pde em evidencia essa necessidade. No inicio, uma s6 coisa era importante no doente todo o resto estava quase exclufdo. Por exemplo, fizemos um electrocardiograma e achava que o doente tinha extrasistoles ventriculares e que era necessério avisar um ada po ndo ind ou ea ser atas dos em ser por dos vas aos $0 dos paz. ada em ipaicanenlir O Modelo Dreyfus de aquisigao de competéncias aplicado Enfermagem | 53 ‘© médico. Pois bem, parecia que de repente o tempo tinha parado: a enfermeira parou, olhou para o electrocardiograma e quis que eu Ihe explicasse o que era um electrocardiograma, como era lido, enquanto trés doentes esperavam nas urgéncias para ser atendidos. Para ela, era normal aprender, mas no tinhamos tempo para deixar tudo de lado ¢ eu explicar- Ihe o que era um ECG. Para orientar as enfermeiras principiantes, numerosos hospitais empre- gam orientadoras, Desta maneira, as principiantes podem tirar proveito das situagGes e aprender durante esse perfodo a estabelecer prioridades devido As situag6es que as marcaram. Isto tudo para que nem os doentes, nem as enfermeiras principiantes tenham problemas. Estado 3: Competente A enfermeira competente trabalha no mesmo servi¢o h4 dois ou ués anos: Torna-se competente quando comega a aperceber-se dos seus actos em termos objectivos ou dos planos a longo prazo dos quais est4 cons- ciente. Este plano dita quais os atributos e aspectos da situagio presente ou prevista que devem ser considerados como os mais importantes, € os que podem ser ignorados. Assim, para a enfermeira competente, um plano estabelece urna perspectiva e baseia-se sobre uma anilise consciente, abstracta e analitica do problema. Uma orientadora descreve como ela evoluiu do estado estimulo-resposta ao da competéncia adquirida ao longo da pritica da enfermagem: ‘Tinha quatro doentes. Um tinha de aprender a tomar conta da sua colostomia, os outros necessitavam de muito mais coisas. Estava ocupada ‘com variadissimas coisas. A perfusiio de um tinha acabado ¢ tive que resolver a situago, de seguida, tinha-me esquecido de dar alguns medicamentos tive que me despachar para distribui-los. Depois, alguém comegou a ter néuseas € tentei reconforté-lo. E por fim, a bolsa da colostomia tinha-se descolado ¢ tive que ensinar 0 doente a resolver a situagdio. De repente, apercebi-me gue a manha jé tinha acabado e que ninguém tinha sido lavado, O entrevistador — Entéo, s6 reagia perante o que era urgente? Seca! 54 | De iniciado a perito A enfermeira — Quando entrava nos quartos, era imediatamente bombardeada pelas queixas dos doentes e sem uma ideia precisa sobre a maneira como ia organizar-me. Hoje, chego depois de ter sido informada sobre a situagdo e sei mais ou menos em que ponto estio as perfusdes. E ainda, sei o que tenho para fazer. Antes de entrar num quarto, escrevo quais os medicamentos que devo dar para todo o dia, depois no quarto asseguro-me que todas as perlusdes correm bem. Vou de cama em cama 86 para dizer bom dia. Mas fago-os sentir que estou a trabalhar. Verifico as perfusdes, os pensos. E depois estd tudo bem, Sei que os doentes nio se vio esvair em sangue; sei que as diureses estiio normais; sei que as perfusdes correm bem... Depois, toda a minha manhi est programada e posso continuar o meu trabalho. Estou muito mais organizada. Sei o que tenho para fazer e combino com os doentes para saber © que eles querem fazer. A enfermeira competente nao tem a rapidez nem a maleabilidade da enfermeira proficiente, mas tem o sentimento que sabe bem das coisas ¢ que € capaz de fazer frente a muitos imprevistos que sio 0 normal na prética da enfermagem. A planificagaio consciente e deliberada que caracteriza este nivel de competéncia, ajuda a ganhar eficiéncia e organizagiio. As implicagdes para o ensino ¢ a aprendizagem Sentimo-nos mais & vontade nesse estado de desenvolvimento de competéncias. © mundo clinico parece finalmente organizado, depois de grandes esforgos. As enfermeiras podem nesse estado tirar beneficios dos exercicios das tomadas de decis6es ¢ de simulagdes, que Ihes dio a prética pata planear ¢ coordenar os miltiplos e diversos cuidados para fazer f as necessidades dos doentes. Estado 4: Proficiente De maneira caracteristica, a enfermeira proficiente apercebe-se das si- tuagdes como uma globalidade e no em termos de aspectos isolados, ¢ as O Modelo Dreyfus de aquisig&io de competéncias aplicado 4 Enfermagem | 55 suas acgdes sto guiadas por méximas. A percepedo é aqui uma palavra chave. A perspectiva no é muito bem pensada mas “apresenta-se por si mesma”, porque é fundada sobre a experiéncia e os acontecimentos re- centes. A descrigfo dada por uma enfermeira de um servigo de reanimagao neonatal diz respeito a enfermeiras principiantes que ilustra essa mudanga: Penso que a coisa mais importante que me ficou na cabega nessas Giltimas semanas foi saber se, a0 cabo destes és meses, a recém diplomada poderia tratar sem perigo, ou se sabia apenas fazer os cuidados de enfermagem, ou mesmo s6 cumprir com as tarefas especificas. Para mim, o objectivo dos cuidados de enfermagem € de levar uma crianga de | um ponto A a um ponto B. Para isso, € necessario praticar actos. Mas os 1 cuidados de enfermagem nao se resumem a um seguimento de actos... ‘ Desejava ver surgir uma luz de compreensfio nos seus olhos: que cla compreenda que este € 0 estado deste bebé hoje, e eis como eu quero que este bebé esteja daqui a seis semanas. Que posso eu fazer, hoje, para ajudar este bebé a estar cada vez methor a0 longo do trajecto? E é essa da mudanga que est a acontecer. Comegon, agora, a ver as coi se ‘ todo ¢ nao como uma lista de tarefas a cumprir. na 5 que A enfermeira proficiente aprende pela experiéncia quais os e ; acontecimentos tipicos que acontecer numa determinada situagdo, e como se pode reconhecer que o que era previsto nfio se cai concretizar. Trata-se de uma teia de perspectivas ¢ como o nota Stuart Dreyfus (1982): Excepto em circunstiincias anormais, a pessoa experiente vai viver a situagio presente como uma situacio tipica, jé vivida e que cla guardou de i na sua meméria (como um todo e com as suas caracteristicas principais) de | por causa do encadeamento de acontecimentos passados... Por isso, a fos pessoa viverd as suas situagdes a todo o momento através de uma ica : perspectiva mas, antes de a avaliar conscientemente, esta situacio iré ice 4 apresentar-se ela propria. (p-19) Por causa dessa capacidade, fundada sobre a experiéncia, de reconhecer situagées no seu todo, a enfermeira proficiente pode agora saber que 0 que ela previa nao iré manifestar-se. Esta compreenstio global melhora 0 seu processo de decisiio que se torna cada vez menos trabalhoso, porque a enfermeira possui, agora, uma perspectiva que Ihe permite saber quais dos muitos aspectos € atributos sio importantes. Enquanto que a enfermeira 56 | De iniciado a perito competente ainda nao € suficientemente experiente para reconhecer uma ua¢do no seu todo, ou em termos de aspectos, quais os mais marcantes e 08 mais importantes. A enfermeira proficiente no toma tanto em conta as possibilidades e orienta-se directamente sobre 0 problema. Considera os aspectos de uma situagdo como sendo mais ou menos importantes: quando falava, anteriormente, do desejo do seu doente em aprender como tomar conta da sua ileostomia, a enfermeira especialista mostrava 0 seu contentamento em ter parado tudo e ter passado aquele tempo com o seu doente, no momento preciso em que cle estava mais receptivo. Podemos supor que adiar essa sessio teria sido tao nefasto como querer ensinar-Ihe as coisas antes do tempo. A onfermeira proficiente utiliza méximas que a guiam, mas uma grande compreenstio da situagio € necesséria antes de poder utilizé-las. As méximas reflectem 0 que apareceria como nuances incompreensiveis da situa-clo & enfermeira iniciada ou competente; podem significar qualquer coisa a um determinado momento e outra completamente diferente mais tarde. Uma vez que h4 uma boa compreensio da situagio, a maxima fornece, no entanto, um indicio sobre 0 que deve ser tomado em consideragio. As mé-ximas reflectem as nuances da situagio, 0 que aparece, claramente, aqui, quando se desmama os doentes do respirador: Bem, vigiem os sinais vitais para ver se nfo se passa nada de significativo... Mas, até aqui, é necessério jogar um pouco as adivinhas, tentar saber se o doente esta s6 angustiado, porque esté habituado a que a me-dicina respire por ele..Se cle esti um pouco ansioso, ndo quer administrar-lhe medicamentos porque tem medo que o doente pare de respirar. Por outro lado, talvez. seja realmente necessério acalmé-lo um pouco. Tudo depende da situagao. Essa é uma verdadeira experiéncia. Tem assim um bordado constituido pelo que fez no passado e sabe quando ira ter dificuldades. As implicagdes para o ensino e a aprendizagem As enfermeiras proficientes aprendem melhor quando se utilizam estudos de casos que pdem a prova e requerem a capacidade de aprender uma situagdo. © desempenho melhora se for pedido & estudante, para citar exemplos vividos e casos tipos para se ter uma melhor ideia. O facto de Ihe © Modelo Dreyfus de aquisigao de competéncias aplicado A Enfermagem | 57 dar regras princfpios independentes do contexto, no s6 Ihe daré um sentimento de frustragio, mas também a estimularé para dar exemplos de si-tuagdes onde o principio ou a regra seré contrariada. Neste nfvel, as enfermeiras proficientes, podem acabar por acreditar que a teoria sobre a qual as suas competéncias ¢ os seus actos estavam fundados no inicio, nfo era senio um amontoado initil e enganador, Ou talvez pensassem que a andlise de decisdes elaborada pelo educador era apenas um meio desnecessdrio para resolver um problema clinico, que pode agora ser rapidamente compreendido gragas A sua experiéncia. Isso seria particularmente verdade se a teoria utilizada fosse apropriada para permitir ‘avenfermeira principiante saber como abordar sem perigo as situagdes. Nao esté por isso adaptada para descrever ou explicar aspectos mais complexos ou mais subtis de uma situagéio. ‘A enfermeira proficiente aprende melhor por um método indutivo, quando comegamos por um caso clinico e que a deixamos utilizar os seus meios de compreensio da situagdo. Quando introduzimos situagdes que ultrapassam os seus meios de compreensio e de abordagem, descobrimos um dominio virgem onde a aprendizagem é necesséria. Podemos afinar exercicios de aprendizagem, pedindo as enfermeiras para expor dois tipos de estudos de casos tirados das suas préprias praticas: (1) situagdes que puderam controlar, pensando que tinham sido as suas intervengGes que ti- nham feito a diferenga; (2) situagdes onde no ficaram satisfeitas com elas proprias, onde se sentiram ultrapassadas. Os estudos de casos devem conter elementos intiteis ¢ estranhos, assim como, em certos casos, informagies insuficientes tornando impossivel uma escolha inteligente. Para serem eficazes os estudos de casos devem ter niveis de complexidade e de ambiguidade parecidos aos das situag6es reais. E a enfermeira proficiente que é, muitas vezes, capaz de reconhecer uma deterioragio do estado do doente antes mesmo das mudangas explicitas nos sinais vitais - essa competéncia € chamada de sinal de alarme Precoce (cf. capitulo 6). Uma vez que podemos identificar as enfermeiras pe-ritas e as enfermeiras proficientes sem tiscos de erro, podemos fazer duas perguntas priticas: Qual é 0 factor que facilita a passagem do estado competente para 0 estado proficiente, além do factor tempo? O que atrasa essa passagem? . | Encontramos enfermeiras proficientes nas que trabalham sobre a mesma populagao de doentes ha cinco anos. Esse perfodo de tempo é uma estimativa que necessita ser aprofundada. Voltaremos a passar do nivel da 58 | De inicindo a perito 1 competéncia quando for pedido algo de nove. ou unt descrigio analftica € processual da situagio. Admitimos que as decisdes tomadas pelas peritas so-no na base de uma avaliagtio explicita de opgdes fundadas sobre a comparagao entre os elementos caracteristicos. Todavia, na realidade, as decisGes tomadas pelas peritas sio mais holisticas Estado 5: Perito A enfermeira perita jé no se apoia sobre um principio analitico (regra, indicagZo, maxima) para passar do estado de compreensio da situagio ao acto aproprindo. A perita, que tem uma enorme experiéncia, compreende, agora, de maneira intuitiva cada situagdo e apreende directamente o proble- ma sem se perder num largo leque de solucGes e de diagndsticos estéreis. E diffeil fazer-se uma boa ideia das suas capacidades. porque ela age a partir de uma compreensio profunda da situagio global. Ao xadrez, por exemplo, © mestre a quem for perguntado porque fez essa jozada particularmente brilhante, ele responderia simplesmente: “Porque o senti parecia-me bem”; ou ento, aos dirigentes de uma empresa, interrogados sobre os factores que entrariam em linha de conta aquando a tomada de uma decisio hipotética € sobre a importincia que eles Ihe dariam, responderiam provavelmente: “ Isso depende!”” problema das peritas € que dizem tudo que sabem, € isso € posto em evidéncia no trecho seguinte, tirado de uma entrevista com uma enfermeira perita em psiquiatria, que trabalha h4 quinze anos. Ela é muito respeitada tanto pelas colegas como pelos médicos, pelas suas capacidades de julgamento e competéncias. Quando digo a um médico: “Este doente é psicético”, no sei como sustentar a minha afirmagio. Mas nunca me engano, porque conhece as psicoses de A aZ. De facto, sinto-0, sei-o e confi. Pouco me importa que mais nada se produza. Sei que tenho razao. Isto pode ser comparado com outra enfermeira do grupo, que descreveu durante a entrevista, quando disse de uma doente “que havia alguma coisa que nio estava bem com ela”. Uma das coisas que fago agora & encontrar uma linguagem prépria do servigo para que a comunicagio passe melhor entre nds. Mas, na rea- lidade, tudo 0 que eu tento fazer é tirar palavras da giria para fala qualquer coisa que eu penso ser indescritivel. Nao podemos generalizar demais a certeza exposta nese pequeno ima Ges via, gra, a0 ide, ole- is. ea por ada. tin. dos. de am, em sira ada de 2no ‘0 Modelo Dreyfus de aquisigiio de competéncias aplicado A Enfermagem | 59 trecho. A enfermeira nao diz que nunca se enganava, mas referia-se & sua propria percepcio — a sua capacidade de reconhecimento. Esse tipo de certeza e de percepcao parece ter pontos em comum com a capacidade de reconhecer 0 rosto humano sem errar. Esta enfermeira diz que pode reco- nhecer as mudangas frequentes nos psicéticos, devido aos seus quinze anos de prética. Essa afirmacaio abre uma via de investigagZo interessante, se esta certeza aparece empiricamente e, se for 0 caso, quais so as enfermeiras que a tém e em que condigdes. Esta enfermeira, de seguida, descreve uma situagio onde sabe que um doente muito zangado 6, por erro, diagnosticado como sendo psicético. Convencida de que o doente s6 est muito zangado diz: “vamos fazer um MMPI (Inventério de Personalidade Multi-fasica do Minnesota) para ver quem tem razio.” Continua: “tenho a certeza que tenho razio, pouco importa o resultado do IMMPI”. Felizmente para ela os resultados confirmaram o que tinha dito, ¢ jé tinha comegado a cuidar 0 doente, com sucesso, com base na sua avaliagio. ~ Dreyfus e Dreyfus (1977) notam que: Enquanto o aprendiz. de piloto, o estudante em linguas, 0 jogador de xadrez ou o condutor seguem as regras, as suas competéncias estagnam ¢ ficam medfocres. Mas com 0 dominio da actividade vem a transformacio da competéncia, mecanismo parecido ao que € produzido quando por um cego que aprende a utilizar uma cana. O principiante ressente, na planta da mio, uma pressio que pode utilizar par detectar a presenga de um objecto distante tais como os passeios. Mas com a pritica, jé nfio é a pressdo que a pessoa cega sente na planta da mao mas simplesmente 0 passeio. A cana transformar-se-4 numa extensio do seu prdprio corpo. (p.12) O mesmo fenémeno produz-se quando os utensilios das enfermeiras peritas se transformam. Bis a descrigio que Dreyfus e Dreyfus (1977) dio da pessoa experiente: A pessoa experiente jé nfo tem em conta as caracteristicas e as regras. Essas pessoas sio maledveis e mostram um nivel elevado de adaptabilidade e de competéncias: 0 jogador de xadrez desenvolve um instinto do jogo; o estudante de linguas fala correntemente; o piloto para de pensar que est a pilotar um avido e pensa simplesmente que voa. 60 | De iniciado a perito (p12) Nao podemos concluir que a perita nunca utiliza instrumentos analiticos. Uma capacidade muito desenvolvida de analisar os acontecimentos € necessdria em situagdes onde a enfermeira nfo tem nenhuma experiéncia prévia. Os instrumentos analiticos so igualmente necessérios, quando a perita avalia mal a situagdo e, de seguida, descobre que 08 acontecimentos ¢ os comportamentos no se desenrolaram como previsto. Quando nao tem escolha possivel, a nica maneira de sair desta mné interpretagio é utilizar um processo de resolugdo analitica. As implicagées para o ensino e a aprendizagem As enfermeiras peritas nao si dificeis de reconhecer porque, muitas vezes, dao opinides clinicas ou gerem situagdes complexas de uma maneira F notavel. Enquanto que o reconhecimento dos colegas e dos doentes € vist- f vel, as competéncias da perita nfo podem ser reconhecidas pelos critérios om habituais de avaliagao. E aqui que os limites do formalismo — isto é, a incapacidade de aprender todas as etapas do processo, das competéncias ] humanas de alto nivel — se tornam visfveis (Benner, 1982; Kuhn, 1970, p. 192). Para avaliar o nivel de competéncia da perita, é necessdrio \ acrescentar aos critérios habituais de medidas quantitativas e da avaliagio } da prdtica, uma perspectiva interpretativa destinada a descrever a prética dos cuidados de enfermagem (cf. capitulo 3), assim como as estratégias qualitativas de avaliagiio. O contexto e as significagdes inerentes as ; situagdes clinicas influenciam fortemente as competéncias da perita. Assim, as estra-tégias de avaliagao que se apoiam sobre os elementos ¢ os i prineipios independentes do contexto no podem ter em conta os : conhecimentos inclu{dos nos actos praticados pela perita sobre o terreno. A documentagao sistemética das competéncias da perita constitui uma primeira etapa para o desenvolvimento dos conhecimentos clinicos. As i enfermeiras peritas poderio beneficiar da consignagio e da descri sistemética dos incidentes criticos qué terlio vivido ao longo das suas is Praticas, as quais poem a nu a experiéncia ou a baixa de competéncia, A medida que as especialistas documentarao os seus actos, ser possivel estudar adiante e desenvolver novos dominios de conhecimentos. As peritas podem também ser consultadas pelas outras enfermeiras. os 2s te re 10 ta O Modelo Dreyfus de aquisigaio de competéncias aplicado A Enfermagem | 61 Podem ser particularmente eficazes quando se trata de pedir uma avaliagio médica mais avangada quando detectam precocemente alteragdes clinicas. No entanto, excepto nas unidades de tratamento intensivo, a maior parte das enfermeiras peritas tem poucas oportunidades de comparar e desenvolver com as suas colegas um consenso a respeito das suas observagées. Assim, se fizéssemos sistematicamente esforgos para desenvolver uma linguagem descritiva aceite por todos ¢ destinada a comparar as observagdes das enfermeiras peritas, as suas competéncias seriam melhoradas. Oestudo dos comportamentos proficientes e peritos permitiriam descre- ver 0 comportamento das enfermeiras peritas, assim como suas consequéncias para os doentes. Esse conhecimento pode ser desenvolvido para alargar o campo de acefio das enfermeiras que desejam e siio capazes de atingir a exceléncia. A vistio de “o que é possivel” é uma das caracteristicas que diferenciam os comportamentos da competéncia dos da proficiente e por fim os da perita. Nem todas as enfermeiras serdo capazes de se tornarem peritas. As descrigdes que dio as peritas da exceléncia oferecem, no entanto, horizontes para as enfermeiras competentes e podem facilitar a sua passagem ao estado proficiente. Quando as peritas podem descrever situagées clinicas onde a sua intervengio fez a diferenga, uma parte dos conhecimentos decorrente da sua pritica torna-se visivel. E é com esta visibilidade que 0 realce e reconhecimento da pericia se tormam possiveis. O significado da experiéncia A palavra “experiéncia’”, tal como € utilizada aqui nao faz s6 referéncia A passagem do tempo. Trata-se antes de melhorar teorias © nogdes pré- concebidas através do encontro de numerosas situagées reais que acrescentam nuances ou diferengas subtis & teoria (Gadamer, 1970; Benner & Wrubel, 1982), A teoria oferece 0 que pode ser explicitado e formalizado, mas a pritica € sempre mais complexa ¢ apresenta muito mais realidades do que as que se podem apreender pela teoria. Na verdade, a teoria guia as enfermeiras e permite-Ihes colocar as questdes certas. Isto pode ser ilustrado pelo tipo de transformagées de que so alvo as praticas através da influéncia de teorias, (por exemplo, as teoria sobre 0 processo de Juto, sobre a morte e os moribundos, os estudos sobre 62 | De iniciado a perito a separagtio mae-filho em pediatria, sobre as ligagdes entre recém nascidos ¢ sua mae em obstetricia. Todavia, qualquer enfermeira com experiéncia € conhecimento de tais teorias encontra diferengas que a teoria formal niio consegue exprimir. E esse didlogo clinico com a teoria que torna os melho- ramentos acessiveis ou posstveis & enfermeira experiente. Por outro lado, a teoria e a procura so geradas a partir do mundo real, isto 6, a partir dos actos praticados pelas especialistas num dado dominio. E s6 a partir das suposigdes © das expectativas inclufdas na pritica da enfermeira perita que siio colocadas perguntas destinadas a experiéncias cientificas ¢ A construgio de uma teoria, Enquanto as praticas dos peritos num dado dominio passarem desapercebidas, nao ficarem documentadas, enquanto 0 desenvolvimento da pericia clinica for limitado por carteira clinicas curtas, faltard um elo essencial ao desenvolvimento de uma teoria em cuidados de enfermagem. Uma eafermeira que tomou a cargo nume- rosos doentes adquire bases s6lidas, gragas as quais pode interpretar novas situagdes, mas esses conhecimentos com formas miiltiplas, com as suas referéncias concretas, nfio podem ser colocados sob forma de princfpios abstractos nem mesmo sob forma de linhas orientadoras explfcita: Existe um afastamento, uma descontinuidade, entre 0 nivel competente ¢ os niveis proficiente e perita. Se quisermos que as enfermeiras peritas te- nham mais atengio perante os pormenores, os modelos ou regras formais. as suas competéncias deteriorar-se-do. Este ponto de vista sobre a aquisigfio das competéncias nao significa todavia, que as regras ¢ as fSrmulas s6 se encontrem no inconsciente. A explicagiio deste aspecto encontra-se no livro de Hubert Dreyfus “What Computers Can’t do: The Limits of Artificial Intelligence” (1979). Para se poder fazer uma ideia sobre esse modelo, pense em todas essas experiéncias que necessitam de uma aprendizagem, como andar de bicicleta, eonduzir um carro, aprender uma segunda lingua ou colocar uma perfusio. No inicio, a execugio € hesitante e é rfgida, € absolutamente necessirio apoiar-se sobre instrugdes explicitas. A execugio é governada pelas regras. Tradicionalmente, os Ocidentais pensam que, com a expe- rigncia ¢ o dominio de uma competéncia, as regras do inicio acabam por fazer parte do inconsciente. Mas esta afirmagiio nio tem fundamento pe- rante a realidade e ignora o papel da percepgdio nos actos profissionais Hubert ¢ Stuart Dreyfus (1977) trouxeram exemplos de estudos conduzidos na Forga Aérea que demonstravam que deixando de lado as regas, poderfamos tornar-nos competentes. Citam o exemplo de aspirantes O Modelo Dreyfus de aquisicao de competéncias aplicado AEnfermagem | 63 pilotos a quem foi ensinado a seguir uma sequéncia fixa de leitura 6ptica de instrumentos e de paingis. Os pesquisadores da aviagdo acharam que os instrutores que tinham editado estas leis podiam encontrar os erros nos quadros de bordo mais rapidamente que os estudantes. Perguntaram-se se 8 instrutores aplicavam mais rapidamente e melhor as regras que os aspirantes pilotos; seguiram os movimentos dos olhos dos instrutores e acharam que nio utilizavam de forma alguma as regras que ensinavam aos seus alunos. Melhor, o nao seguimento das regras permitia aos instrutores agir mais depressa e melhor. Assim, uma assungdo importante do modelo de Dreyfus é que, com a experiéncia eo dominio, a competéncia transforma-se. E esta mudanga leva aum melhoramento das actuagdes. Se, por exemplo, insistirmos para que 0s pilotos peritos sigam as regras e as linhas orientadoras que utilizaram quando eram principiantes, as suas actuagdes, no momento presente, deteriorar-se-iam verdadeiramente. Uma das implicagdes deste modelo é que os modelos estruturais formais, a andlise das decisdes ou os modelos de processos néo podem descre-ver niveis avangados de actuacées clinicas que podemos observar na realidade. Uma abordagem interpretativa da descrigio da pritica dos cuidados de enfermagem ser4 apresentada no capitulo 3 como um meio de descre-ver 0 processo de decistio rapida e global pelas peritas. Da mesma forma, trata-se de um meio de apreender o contexto e as significagdes inerentes & pritica dos cuidados de enfermagem em situagio real. Os educadores € os conhecedores do seu offcio dedicaram-se ao problema de descrever de forma satisfat6ria a extensiio e a profundidade dos cuidados de enfermagem em situagio real. O processo de cuidados de enfermagem e a andlise das decisGes sao limitados na medida em que a dificuldade da larefa, a impor-tincia relativa, os aspectos relacionais ¢ os resultados de uma prética competente nao séo completamente apreendidos se neles nao incluirmos 0 contexto, as intengdes e as interpretages desta pritica competente. CaAPpiTULO 3 ABORDAGEM INTERPRETATIVA DA IDENTIFICACAO E DA DESCRICAO DOS CONHECIMENTOS CLINICOS ‘A abordagem interpretativa utilizada no projecto AMICAE e a sua extensdio aqui apresentada, tem origem nos trabalhos de Heidegger (1962) e Taylor (1971). Trata-se de um método diferente do das ciéncias sociais proposto por Rabinow e Sullivan (1979). Numa tal estratégia, utiliza-se a s{ntese mais do que a andlise, o que permite descrever facilmente a prética da enfermagem, preservando a sua riqueza. Este modelo de estudo assemelha-se & interpretagdo de um texto. Por exemplo, uma frase nao pode ser compreendida apenas pela andlise das palavras. A frase € sobretudo compreendida como fazendo parte de um todo maior, e 0 seu significado é interpretado a partir do contexto. Da mesma forma, podemos considerar que um comportamento pode ter vérios significados e nao apenas um; compreendé-lo requer entdo que se examine num contexto alargado. Os conhecimentos préticos, particularmente ao nfvel da experiéncia, devem ser estudados de uma forma global. Podemos facilmente ilustrar esta questfio fazendo notar que o significado de uma higiene na cama depende das mudangas que intervém no estado de satide do doente. Se, no infcio da doenga, a higiene na cama pode ser uma medida essencial para o conforto do doente, pode tornar-se, 3 medida que 0 seu estado melhora, uma medida excessiva que reforga a sua dependéncia. Assim, para compreender o significado especifico de qualquer acto (ou cuidado de enfermagem), é absolutamente necessério conhe-cer 0 contexto e saber que esse contexto limita consequentemente os significados possfveis de um comportamento segundo conjuntos exploriveis e titeis. Desta forma, a abordagem interpretativa apoia-se sempre no contexto particular da situagiio; isto é, 0 momento propicio no qual é preciso agir, os significados, a raziio desta situago precisa. Com uma abordagem interpretativa, as intengdes e a compreensao das participantes sao tidas em linha de conta ¢ consideradas como dependendo de um mundo tendo significados comuns. Por exemplo, as intengdes ¢ a empatia constituem uma expresso pessoal das participantes numa dada situagdo mas, uma vez explicados estes termos, o seu sentido torna-se claro para aquelas que partilham a mesma cultura: as participantes podem falar sobre isso € o intérprete que partilha os seus conhecimentos e experiéncia pode compreendé-los. Uma abordagem interpretativa evita o problema das listas de trabalhos sem fim, que nao comportam qualquer indicag&o de importincia (Benner, 1982; Benner & Benner, 1979) porque uma vez descrito 0 contexto da si: tuagdo real, 0 ntimero de interpretagées ou de significados possiveis é limi- tado. Normalmente, uma ou duas interpretagdes “melhores” emergem, porque 0 significado da situago conservado ¢ nao despojado sob a forma de caracteristicas ou de comportamentos objectivos e independentes do contexto (Dreyfus, 1979). Os dominios e as competéncias (com os seus exemplos) em matéria de cuidados de enfermagem, que serio apresentados nos capitulos 4 a 10, ilustram esta abordagem interpretativa fundada na situagdo, permitindo a identificagio ¢ a descrig&io dos conhecimentos incluidos na pratica clinica; tra-ta-se de uma mistura entre a teoria e a experiéncia. Esta abordagem difere da enumeragao das competéncias elementares e mais avangadas que os educadores ensinam aos estudantes ao longo das suas primeiras experiéncias. Pelo contrério, os exemplos dados aqui salientaro os actos de enfermagem que utilizam um grande dominio de experiéncias. E apenas quando observamos um caso na sua globalidade que podemos apreciar a importancia do contributo da enfermeira para o bem-estar do doente. E é apenas quando temos uma vis%io do conjunto que podemos comegar a arquitectar uma teoria e abrir uma via de pesquisa em cuidados de enfermagem, gragas a uma massa de conhecimentos clinicos bem catalogada. As enfermeiras adquirem cada vez mais conhecimentos clinicos com 0 tempo e perdem o rasto do que aprenderam. Um dos aspectos positivos se- cundérios dos encontros em pequenos grupos utilizados neste estudo € que as enfermeiras comecaram a aperceber-se de que os seus julgamentos clinicos se tinham afirmado © melhorado com o tempo. As orientadoras reco-nheceram que as suas dificuldades, ¢ até as suas frustragdes nas suas tentativas de partilhar os seus conhecimentos com as novas diplomadas, provinham do facto de que elas expunham nogées demasiado complicadas Para serem apresentadas sob a forma de instrugGes e de avisos a estudante. | i | 69 Uma grande parte da sua habilidade (saber fazer) s6 podia ser transmitida na situagdo. Na pratica, a variedade dos casos ¢ as excepgdes escapam As descrigdes dos manuais, mas cedem a pouco e pouco o passo A riqueza de situagées, similares ou nao, encontradas pela enfermeira experiente. E esta demons- tragdo que € indispensdvel ao neéfito. Todos os exemplos apresentados no reflectirao um nivel de pratica qualificado ou experiente, mas todos ser‘io o reflexo dos conhecimentos clinicos. Encorajamos 0 leitor a procurar os dominios de conhecimentos praticos que foram descritos no capitulo I: a hierarquizacio das diferencas qualitativas, a prova do saber; as assungdes, as expectativas e os comportamentos tipo; os paradigmas; as méximas; e finalmente, as competéncias desenvolvidas na sequéncia de uma delegagio de responsabilidade particular e nao planeada da parte dos médicos ou de outros membros da equipa de cuidados. Qualquer enfermeira pode comparar estes exemplos com si-tuagées similares ou nio, tiradas da sua propria vivéncia. Quando houver desacordo, acordo, questionamento, aperfeigoamento ou extensdo dos exemplos serd indicio de que um novo dominio de conhecimentos clinicos esté a ser descoberto. Em oposigao & abordagem interpretativa fundada na situagdo, o modelo de processo linear em cuidados de enfermagem pode verdadeiramente esconder os conhecimentos clinicos decorrentes da pritica quotidiana, porque este modelo simplifica exageradamente e deixa desnecessariamente de lado 0 contexto e 0 contetido dos actos de enfermagem. A pritica da enfermagem € de tipo racional e no pode portanto ser descrita de forma adequada por estratégias que negligenciam o contetido, o contexto e a fun- cio. Tanner (1983) chama a atengo para outras pesquisas que corroboram © facto de que a enfermeira ou 0 médico comegam por emitir muito cedo uma hipétese antes de estabelecer um diagnéstico, coisa que 0 modelo de Dreyfus qualifica de apreensio répida do problema. Se € possfvel descrever a experiéncia (Kuhn, 1979, p. 192), nao po- demos reconstituir a partir das narragdes dos especialistas, e sob a forma de etapas explicitas e claras, os processos mentais ou todos os elementos que entram em linha de conta na sua capacidade de reconhecimento, e que Ihes permite fazer avaliagdes répidas dos doentes. Isto nao quer dizer no entanto, que as consequéncias e as caracterfsticas dos actos das enfermeiras experientes ndo podem ser observados e consignados sob a forma de narragées explicativas. 70 | De iniciado a perito Supor que € possivel consignar todas as etapas de prética da enfermagem, € supor que os cuidados de enfermagem seguem uma andamento processual e no global. Por exemplo, uma avaliago répida dos aspectos mais importantes do problema, isto €, os tragos caracteristicos, ser evidente na enfermeira experiente. Podemos sempre tentar modelar ou expli-citar todos os elementos que entram numa decisio tomada por uma enfermeira, mas na realidade as especialistas nao tomam a sua decisio seguindo um procedimento elementar. Elas nao tiram conclusées elemento a elemento; pelo contrario, elas consideram o conjunto da situagaio. Mesmo quando elas tentam contar de forma detalhada os elementos que entraram na sua decisio, esquecem-se de mencionar elementos essenciais. Como os psicélogos da Gestalt o fizeram notar desde ha muito, o todo & maior do que as partes que 0 compdem. Da mesma forma, as diferengas qualitativas que as peritas fazem a partir da sua experiéncia, a qual compreende situagées similares ou no, no podem ser transmitidas sob a forma de descriges escritas precisas. Elas so igualmente dificeis de consignar ~ por exemplo as diferengas de toques ou as sensagées ~ porque as iniciadas nao s6 tém falta de experiéncia do “toque” e das “sensagdes”, mas tém igualmente necessidade de seguir protocolos e estratégias analfticas. As especialistas sabem sempre mais do que aquilo que sao capazes de dizer (Polanyi, 1962); os seus conhecimentos situam-se mais naquilo que elas percebem do que nos preceitos. A Avaliagiio das Performances A avaliagdo das performances nao pode ser mais produtiva e precisa do que as competéncias escolhidas para a avaliagio. As técnicas de ava- liagdo, independentemente da sua preciso, nao podem ultrapassar as li- mitagdes devidas & identificagao das competéncias a avaliar. Pottinger (1979) pds em relevo os limites de duas estratégias de identificagiio de competéncias correntemente utilizadas: 0 consenso experto € a andlise do trabalho. Sabemos pouco sobre a maneira de avaliar a capacidade de uma pessoa reconhecer ou procurar os problemas a resolver, ou sobre a capacidade de estabe-lecer as escolhas ou as estratégias de resolugio. Assim, no projecto AMICAE, esforcaram-se por identificar as competéncias evidentes na pratica real — por exemplo, capacidades tais como enfrentar situagdes de | 71 alto risco; a estabilidade face ao stress, os cuidados eficazes e compassivos dispensados aos recém-nascidos indefesos ou a doentes em coma (ou a ou- tros doentes incapazes de se proteger sozinhos ou que pedem um certo nivel de cuidados); encontrar o problema “no momento” ¢ resolvé-lo “no momento” (por exemplo, resolver o problema em situagdes de crise ou quando os pedidos so numerosos); fazer face & dor de outra pessoa; ou fazer prova de empatia em relagdo a moribundos. Mas conhecemos melhor a maneira de avaliar a capacidade de resolver os problemas quando a situagio se reduz a defini-los e a propor opgées. Os outros aspectos do processo de resolugio de problemas, tais como encontré-los e estabelecer solugées, sfio muitas vezes negligenciados. Identificacdo dos Dominios e de Competéncias No decorrer das entrevistas, pediu-se as enfermeiras que descrevessem epis6dios onde cuidavam de doentes, sob a forma de narracées tio deta- Thadas quanto possfvel, expondo igualmente 0 que elas pensavam entio ea sua interpretag&o dos acontecimentos, assim como a cronologia das acgGes ¢ dos resultados. As transcrigdes e as notas tomadas no momento foram estudadas. Trinta e uma competéncia emergiram desta anilise, que foram depois classificadas em sete domfnios na base da similaridade da fungiio e da intengiio. A forga deste método reside na identificaciio das competéncias a partir de casos reais, e nfo a partir dos modelos ou das situages hipotéticas elaboradas por especialistas. As transcrigées das em particular. Um epis6dio enfermeira-doente podia conter varias competéncias conducentes assim a varios exemplos para uma 86 narragiio de interacgio enfermeira-doente. As vantagens deste método de identificagdo em matéria de cuidados de enfermagem sio: assinalar pedidos de actuagéo, recursos e incémodos Yerdadeiros ¢ niio hipotéticos, uma descric&o rica da pratica da entrevistas e das notas que foram lidas varias vezes tentando passar sistematicamente do particular ao geral, 0 que permitiu constatar as incongruéncias entre a interpretagdo das partes ¢ do todo. As interpretagdes sob a forma de competéncias identificadas foram apresentadas equipa de pesquisa para validagiio consensual. Além disso. esta validacio consensual pode ser avaliada pelo leitor que dispée de deta- hes suficientes para julgar se a competéncia é correctamente descrita, por 72 | De iniciado a perito exemplo. Exemplos miltiplos de cada competéncia permitiram estar certos das interpretagées e impediram aquele que interpretava de dar demasiada importancia a um caso enfermagem. O contexto € conservado e a descrigio é entdo sintética ou global, e nao elementar e processual. Os sete dominios foram identificados a partir dos exemplos considerados como representatives de uma competéncia em particular. As competéncias de cada dominio nfo formam em caso algum uma lista exaustiva e sero apresentados nos cap/tulos relacionados com os dominios especificos. De notar que uma boa descrigdio da competéncia depende dos exemplos. Bons exemplos permitem o reconhecimento de situagdes similares, mesmo se acontecer que varios tragos sejam totalmente diferentes. Acentua-se a situagdo no seu todo e nao nas tarefas especificas, como € 0 caso quando se ensina um iniciado. Coneluiremos com os pontos comuns observados nos exemplos. Encorajaremos os leitores a encetar um didlogo activo com a ajuda destes exemplos, comparando-os com a sua propria pratica profissional. Resumo Uma abordagem interpretativa fundada na situagio e destinada a des- crever a prética da enfermagem ultrapassa o efeito redutor inerente a qualquer abordagem da anélise das tarefas, quando estas sto enumeradas sem contetido e sem objectivo. Além disso, ela ultrapassa o problema das des-crigdes globais e demasiado gerais fundadas nas categorias de processos de cuidados de enfermagem Os Dominios dos Cuidados de Enfermagem A funcio de ajuda + A fungao de educagio, de guia % A fungao de diagnéstico, de acompanhamento ¢ monitorizagao do doente * A tomada a cargo eficaz de situagdes de evolugio ripida + A administragio e o acompanhamento de protocolos terapéuticos * Assegurar e acompanhar a qualidade dos cuidados de Satide * As competéncias em matéria de organizagio e de reparti io das tarefas | CAPITULO 4 A FUNCAO DE AJUDA i ( Os doentes viram-se para as enfermeiras em busca de diferentes tipos de ajuda que nao esperam receber dos outros profissionais de sade. Procurar ajuda e recebé-la so dois problemas diferentes. Uma pessoa pode ser ajudada sem o ter pedido, mas pode pedir ajuda sem ser capaz de a receber. Acontece mesmo que a “ajuda” nfo ajude; por vezes, alguns individuos tendo uma grande necessidade de guardar 0 controlo sobre si-préprios, no so capazes de admitir que precisam de ajuda, quanto mais recebé-la, Um grande némero das enfermeiras que interrogimos pareciam cons- cientes do facto de que o problema de receber e procurar ajuda dependia dos individuos. Por vezes, escondiam a ajuda dada aos doentes e a sua implicagdo pessoal por detras de um pouco de humor ou de um ar despreo- cupado. Em todos os casos, elas tém um cuidado extremo em limitar ao maximo o sentimento de obrigagio do doente para com elas; tentaram ser delicadas, papel principal do “que presta cuidados” e evitar que se estabelega um contracto social ou que o doente se sinta em divida para com elas. Isto nfio quer dizer que todas as enfermeiras foram de grande ajuda ou fizeram prova de astiicia nesse papel. Era claro para elas que eram de maior socorro para alguns doentes do que para outros. Reconheciam frequentemente o interesse em terem no mesmo servigo enfermeiras diferentes capazes de se ocuparem de doentes diferentes. No entanto, eu propria fiquei francamente surpreendida perante a qualidade dos cuidados que observei. Numa época em que 0 individualismo é rei e em que 0 poder € o estatuto, so admitidos como sendo as forgas que motivam as relagdes humanas, eu esperava observar jogos de poder; em vez disso, ‘encontrei enfermeiras que lutavam por evitar este tipo de interacgo. No reinado da tecnologia, a dor humana e os dilemas séo facilmente reduzidos a “problemas a resolver”. Estudamos separadamente o espirito ¢ 76 | De iniciado a perito © corpo — 0 psicoldgico e 0 fisico -, depois achamos dificil recombinar estes elementos para efectuar uma abordagem global ou total do doente. Os exemplos no dominio da ajuda ilustram, no entanto, que uma abordagem global existe verdadeiramente no contexto pritico de uma relago onde doente e enfermeira so implicados. A situagio e a relagio determinam 0 que é possivel e 0 que € global. O normal do processo humano de decisao de alto nivel € que a situagdo estrutura a abordagem, de forma a que a resposta esteja de acordo com o pedido (Dreyfus, 1979, p. 256-271). Para fins de estudo, ser4 titil desmembrar as situagées e analisé-las; na pratica, os que tomam as decisbes compreendem a situagio gragas As suas experigncias passadas, o que hes permite aprender a globalidade e virar- se para os aspectos mais importantes. Fazem-no associando os significados escondidos na situagdo. Se 0 nosso conceito de ciéncia os diz para ignorarmos estes “significados”, entio nés somos quebrados por uma prética holfstica (Dreyfus, 1980; Benner, imprensa). Os exemplos deste capftulo mostram 0 que € 0 holismo. Demonstram igualmente que a ajuda trazida pela enfermeira vai para além das definigées estreitas daquilo que € terapéutico, no qual a mudanga 6 considerada em termos de melhoramento mensurdvel, de abandono de compromissos ou de significados impossfveis de manter, ou ainda de estabelecimentos de objectivos. A ajuda evocada aqui encerra transformagées do sentido; trata- se por vezes simplesmente de ter a coragem de ficar com 0 doente, de oferecer 0 reconforto que a situagdo permite. As generalidades nfo ajudam a descre-ver este tipo de ajuda, que esta melhor ilustrado através dos exemplos de situagGes particulares expostas pelas enfermeiras. Como 0 mostra o quadro que se segue, a funcao de ajuda foi subdividida em oito competéncias, resultantes da andlise das observagées e das entrevistas. Dominio: O Papel da Ajuda + A relacio de cura: criar um ambiente propicio 2o estabelecimento de uma relagiio que permita a cura + Tomar medidas para assegurar 0 conforto do doente e preservar a sua personalidade face & dor e a umestado de extrema fraqueza 4 A presenga: estar com o doente A fungio de ajuda | 77 + Optimizar a participagio do doente para que este controle a sua prépria cura % Interpretar os diferentes tipos de dor e escolher as estratégias apropriadas para as controlar e gerir + Reconfortar e comunicar pelo toque “+ Trazer um apoio afectivo e informar as familias dos doentes * Guiar os doentes aquando das mudangas que acontegam nos planos emocional e fisico - propor novas escolhas, eliminar as antigas: guiar, educar, servir de intermedifrio ‘+ Agir como mediador psicol6gico e cultural % Utilizar objectivos com um fim terapéutico ‘ Estabelecer e manter um ambiente terapéutico A Relagao Favorecedora de Recuperagiio e de Cura: Criar um Ambiente Propicio ao Estabelecimento de uma Relagio Permitindo a Cura Um certo mimero de exemplos nos quais as enfermeiras pensaram que @ sua intervengdo tinha feito uma diferenga no progresso do doente mostraram que existia uma relagdo de cura entre o doente e a enfermeira. Varias etapas marcam 0 processo relacional: “ Uma esperanga comum ao doente e & enfermeira ¢ Uma interpretago ou uma compreensio aceitavel da doenga, da dor, do medo, da ansiedade, ou de outras emogoes fonte de stress. * Uma ajuda ao doente para aceitar um apoio social, emocional ou espiritual. Exemplo I Uma enfermeira perita descreve como age com uma jovem hospitalizada com um cancro da mama em estado avangado. Mae de uma 78 | De iniciado a perito jovem crianga, vive numa comunidade. Tentou diversas medicinas naturais ‘para curar 0 seu cancro: todas falharam. Est neste momento muito magra e tem um volume muito importante no peito assim como uma ferida aberta. O entrevistador - Quando a oigo descrever as suas relagdes com esta doente e aquilo que sentia por ela, parece-me que vocé se sentia investida em relagéo a ela. Por exemplo, quando foi esquiar, pensou nela; no regresso, consultou o dossier dela e foi vé-la embora ela néo Ihe tivesse sido atribuida. Quando 6 que se comegou a sentir implicada? A enfermeira perita — No primeiro dia em que a vi. O entrevistador ~ Fale-me um pouco desse primeiro encontro. ‘A enfermeira perita — O tinico outro caso de cancro deste género que eu tinha visto, foi quando eu ainda era estudante de enfermagem (jé hd mais de vinte anos), e veio-me logo & memédria quando entrei no quarto dela, A primeira doente que eu tive morreu. Eu sentia que esta podia ainda viver se — e eu li o dossier dela com atengéo — ela seguisse uma radioterapia, uma quimioterapia, um bom regime alimentar, etc.; ela podia ainda esperar viver entre oito a dez anos. Ou talvez tivesse a sorte de se curar totalmente. Para mim, era como um desafio ~ trabalhar com alguém naquele estado, ajudé-la a mudar o seu estilo de vida para me- Ihorar a sua satide. Comentdrio Reduzido No seguimento da entrevista, a enfermeira descreve as suas relagGes no decorrer das semanas que seguiram: como tomou conhecimento da forma como a doente interpretava a sua doenga € o seu encorajamento para ter mais. confianga, levando-a a exercitar-se sobre ela (a enfermeira), assim como sobre os outros membros da equipa médica e a sua familia. Ela ensinou igualmente A jovem como aumentar as protefnas do seu regime alimentar. Na sequéncia da intervencao desta enfermeira, a doente decidiu em- preender um tratamento médico racional, uma radioterapia ¢ uma quimio- terapia. A esperanga e as estratégias concretas propostas pela enfermeira permitiram jovem escolher um programa terapéutico. Finalmente, a doente deixou o hospital com uma ferida cicatrizada e com a esperanca de que algo era possivel. A enfermeira foi a personagem escolhida que suscitou a esperanga nesta jovem ¢ the permitiu escolher um tratamento eficaz. A fungao de ajuda | 79 | | Exemplo Il A enfermeira perita ~ 0 doente, um jovem de dezassete anos que foi internado com uma fractura da coluna ao nivel das cervicais posteriores, é admitido nos cuidados intensivos consciente, com todas as suas faculdades mentais. Esta tetraplégico. Os seus sinais vitais estiio estdveis, a sua respiragio superficial, mas aparentemente suficiente, Em 24 horas, por causa dos movimentos respiratérios insuficientes, manifestou-se uma perda de capacidade pulmonar. Os médicos decidiram entubd-lo para the assegurar uma pressao positiva no respirador. Por causa da instabilidade da sua fractura, no se podiam empreender quaisquer outras medidas de ajuda respiratéria. O doente estava extremamente ansioso por causa da entubagdo. O seu ritmo respiratério comegou a aumentar de forma dramética apés a entubagao até ultrapassar os 40, € a sua presséio parcial em gas carbénico (PCO2) caiu, O doente estava incapaz de reduzir o seu ritmo respiratorio : por causa da sua ansiedade extrema. Os médicos pensaram em aumentar ; os sedativos — os sedativos leves ndo the traziam qualquer ajuda — para : poder controlar totalmente a ventilagéo gracas ao respirador, 0 que teve : por efeito aumentar ainda mais a sua ansiedade. Eu conhecia as | implicagées que podia ter uma tal medida, tendo em conta os seus enormes problemas de recuperagio e de reeducagéo; ele ndo tinha necessidade t 4 : disso. Uma questio impunha-se: podia ser evitado? Eu estava impressio- nada pela atitude positiva e a forca de cardcter do jovem. Sabia que podiamos resolver esse problema - a sua ansiedade e por ai a sua polipneia —sem utilizar métodos téo radicais. Comecei a falar com ele, a tranquiliza- lo utitizando um tom mais calmo e tranquilo possivel. Falei-lhe de uma forma segura, honesta e profissional, ¢ no entanto com 0 coragdo, e intervi 4 seu favor e a seu pedido perto dos milltiplos médicos para Ihes explicar aquilo que “eu sentia com as tripas”, os meus medos a respeito da sua cura, e negociar wna trégua afim de tentar resolver esse problema. ‘Nao podia falar por causa dos tubos; néo podia escrever porque estava tetraplégico, e no the permitiamos que mexesse a cabeca por causa da instabilidade da sua fractura. O tinico meio para comunicar era com os olhos e a sua capacidade espantosa de formar palavras claramente e de forma compreensivel com os labios. Levou trés horas e meia a relaxar. Precisava de compreender 0 que 4 the tinha acontecido e 0 que lhe estava a acontecer. Precisava de ser 80 | De iniciado a perito tranquilizado e, sobretudo, de aprender a confiar em nds. Precisava de saber 0 que poderia ser o seu futuro. Precisava de saber que nos preocupdvamos com ele enquanto individuo, e que ndo era apenas um doente qualquer sem defesas. Quando comecou a entender isso tudo, aprendeu a confiar em nds; af estava a chave. Era necessdrio que se sentisse implicado em vez de se submeter aos tratamentos; porque entéo sentir-se-ia tail. Este caso é importante para mim porque representa o conceito que tenho de cuidados de enfermagem. Quando tratamos este tipo de doentes, estas consideragées ficam muitas veces ld atrés. 0 epilogo foi uma simples declaragao feita com os labios para mim, mais tarde nesse dia, quando ele péde reencontrar um ritmo respirat6rio por volta dos 20 ¢ que jé ndo se sentia ameagado de perder os poucos misculos que ainda funcionavam por uma paralisia quimica. As suas palavras foram: “Obrigado. Vocé ajudow-me mesmo muito. Néo quero imaginar o que se teria passado se nao estivesse cd e se nao me tivesse tomado a cargo.” O entrevistador — Quais foram as suas preocupagées, em que pensou durante esse periodo de tempo? A enfermeira perita — As minhas preocupagées eram de que eu podia enganar-me, que the estava a causar um stress iniitil deixando-o com uma taxa elevada de CO2, e que ele nao reagiria, Eu pensava: “Aprende a ser um lutador desde 0 inicio, porque isto sé esté a comegar. Nao renuncies. Se ao menos eu pudesse ganhar a tua confianga. Néo quero que te transformes num vegetal, isto é, um organismo fisiologicamente controlado por sedativos. Por favor, acalma-te, acalma-te”. Senti um sentimemo de urgéncia. Eva absolutamente necessdrio que 0 seu ritmo respiratério diminuisse. Senti pena dele. Senti a necessidade de conseguir. Estava triste - ele era tio novo e téo cheio de vida e a sua juventude tinha-the sido retirada, Eu queria que ele tivesse todas as hipéteses possiveis. Depois, fiquei contente. Tinha 0 sentimento de plenitude e de orgulho. A parte pior foi a frustragdo. Era preciso manter- me paciente, guardar wn humor igual repetindo as mesmas frases pela enésima vez, Comentario Reduzido A fungao de ajuda | 81 Esta enfermeira utilizou o seu julgamento. Estava certa de que o doente poderia recuperar o controlo do seu ritmo respiratério e que um tal resultado era importante para o scu moral, ¢ até para a sua cura. Mesmo assim, como ela claramente o diz, nada lhe permitia estar certa de que a sua interveng&o seria coroada de éxito. O sucesso s6 foi assegurado depois de cerca de quatro horas passadas a tranquilizar e encorajar constantemente o doente. : Tanto neste exemplo como no precedente, a enfermeira utiliza ambas as suas necessidades € as dos seus doentes; ela encontra uma interpretacio ou uma compreensao da situagiio que seja aceitavel para eles; ¢ ela ajuda-os a utilizar os seus préprios recursos. No segundo exemplo, a enfermeira diz ter “ficado impressionada pela atitude positiva e a forga de carécter do jovem”. Ela apercebeu-se de que 0 doente se sentia impotente, e que essa impoténcia aumentaria se perdesse 0 controlo da respiragfio. No primeiro exemplo, a enfermeira ajudou a doente a tirar partido dos seus proprios sistemas de defesa, assim como dos outros meios de cura, integrando ao mesmo tempo novas estratégias. Em cada caso, as intervengdes da enfermeira provinham do facto de que esta se sentia implicada, e de que é essa implicagio que parece ser a caracteristica do papel de ajuda da enfermeira. ‘Tomar Medidas para Assegurar 0 Conforto do Doente ea Preservaciio da sua Personalidade face 4 Dor ea um estado de extrema Fraqueza Muitas enfermeiras devem enfrentar o facto de elas ou outras pessoas néio poderem fazer muita coisa para prolongar a vida de um doente. Em contrapartida, é muitas vezes possfvel melhorar a qualidade de vida, por mais curta que ela seja, dos seus tltimos dias no hospital. Enquanto ela deve ser capaz de renunciar a tentar salvar a vida de um doente a qualquer prego, a enfermeira nfo deve evitar o doente, e deve além disso encontrar meios de o reconfortar, a ele e & sua familia. Exemplo I ‘Uma enfermeira perita descreve como os seus colegas e ela acompa- 82 | De iniciado a perito Tratava-se de una muther de oitenta @ seis anos que sofria de broncopneumonia crénica hé varios anos. Tinha feito varios tratamentos de acompanhamento ¢ conhecido varias intervengdes por parte dos médicos. O seu filho, que the era muito chegado, passou muito tenipo a cuidar dela. Foi admitida novamente no nosso servigo a semana passada. Estava muito doente. O seu filho falou com 0 médico e tomou a decisiio de que a equipa médica ndo a devia tratar mais. Tudo 0 que deviamos fazer era deixé-la morrer tranquila e confortavelmente. Ela era minha paciente, ¢ ndo era porque eles jé ndo iriam facer mais nada por ela que isso significava que eu pararia de me ocupar dela. Eu fazia-the entéo a higiene. Ela tinka una pequena mala com todos os seus objectos pessoais. Bu jd a conhecia hé wn certo tempo. Ela era muito meticulosa ¢ muito limpa, Eu vesti-the ent&o uma das suas camisas de dormir ¢ endireitei-a com a ajuda dos travesseiros. Eu ndo pensava que 0 que fazia por ela era extraordindrio. Mas 0 seu filho disse-me no fim, que tinha sido muito importante para ele, ver que as enfermeiras ainda se tinham ocupado da sua née. Exemplo I Uma enfermeira perita descreve como tata de uma diabética cega e gravemente doente. E nesse dia, nds lavimos-the os cabelos, 0 que ndo tinha sido feito desde hé semanas. Levantémo-la da cama e fizemo-la sentar-se. Esse simples exercicio encantou-a, porque ela tinha estado tio doente que tinha sido obrigada a ficar deitada de costas, onde wna escara se estava a formar, Todos estes pequenos nadas - lavar-the 0 cabelo, senti-ta, mobiligar-the bragos ¢ pernas - foram wn verdadeiro prazer para ela. E ela fez-nos saber disso. Confiou-me 0 quanto era maravilhoso ter pessoas que the liam algo, endo eu trouxe unt livro. Ela tinka-me falado de um livro que the inte- ressava, entiio a sua prima, que era estidante de enfermagem no servico, @ eu, organizdmo-nos para tho lermos cada uma por adorava isso. sua vez. B ela A fungao de ajuda | 83 Comentério Reduzido Nos dois exemplos, a personalidade do doente é tomada em conside- ragdo pela enfermeira. A enfermeira deve ser capaz de ultrapassar 0 estado de espitito habitual que consiste em “agir para” e em “cura:” o doente. Em vez disso, deve contribuir para fazer sentir ao doente que ele € uma pessoa | por inteiro com tudo o que isso subentende de respeito pela sua dignidade. A Presenga: Estar com o Doente | Levamos muitas vezes as enfermeiras a acreditar, ao longo da sua | formagao, que serio mais eficazes se fizerem alguma coisa pelo doente. Vérias enfermeiras notaram, no entanto, a importancia essencial que representava o simples facto de estat Ia: Exemplo I { | | A enfermeira perita — Trata-se de uma relagdo de pessoa para pessoa. | Contentamo-nos em estar ld e em comunicar verdadeiramente com as pessoas. E, por vezes, ressentimos uma espécie de intimidade. Voce fala | de empatia e néio sei mais 0 qué: mas quando alguém tem medo, basta sentarmo-nos e ouvir, por vezes nem é preciso dizer seja o que for Eu penso que se trata de uma coisa importante porque eu tento sempre obter uma resposta, Mas constatei que, quando me calava ¢ me contentava em 1 ouvir, era mais eficaz; é preciso apenas que alguém esteja ali para ouvir | © outro exprimir as suas preocupagées, endo se é necessariamente t obrigado a propor uma resposta, sugerir algo ou resolver um problema; : mas apenas porque tiveram a oportunidade de falar com alguém, isso i torna as coisas mais faceis. Exemplo I Observagao de uma enfermeira perita por um entrevistador: S Elicabeth, enfermeira experiente, tratando de um doente que tinka tido um choque séptico e tinka tido arrepios terrfveis. Quando a situagiio 84 | De iniciado a petito ficou sob controlo e que jé ndo havia mais nada a fazer, Elizabeth segurou o doente pelos ombros com muita firmeca, simplesmente para estar com ele durante esses momentos terriveis. Parecia-lhe que, pela sua simples presenga, ela reconfortava o doente. Exemplo Il ‘Acenfermeira perita— Uma mulher foi admitida com diverticulose. Ela tinha sofrido uma mastectomia bilateral e, quando the fizeram wna Iaparotomia, descobriram que 0 cancro the tinha invadido todo o abdémen. S6 conseguiram abri-la ¢ tornar a fechar. O médico que a tratou falou com o marido dela e recomendou-Ihe que ndo dissesse nada a mulher até que ela se tivesse recomposto da intervencéo. O seu prognéstico era negro. Ela tinha provavelmente apenas mais algumas semanas de vida. Lembro-me bem do dia en que ela ia morrer ¢ em que esperdvamos todas gue o filho dela chegasse do Texas. Ble jd nito via a inde hd varios anos ¢ esta queria absolutamente vé-lo antes de morrer Ela delirava ¢ 0 seu marido estava cheio de medo que o filho néo chegasse a tempo. Eu passava muito tempo com ele no quarto da mulher falando com os dois e fazendo a higiene da doente, Ela estava incontinente e sangrava por varios sitios. Viemos a saber depois que 0 ai io do filho estava com duas horas de atraso, 0 que s6 aumentou a angiistia de todos. O filho acabou por chegar e ex expliquei-the aquilo que ele devia esperar encontrar quando entrasse no quarto, Passaram guinze minutos juntos, os trés, antes que ela morresse. Ela estava desperta e falava o tempo todo. Chordmos todos nesse dia, espantados e reforeados por essa demons-tragdo de forga de cardeter Comentario Reduzido ‘As enfesmeiras peritas esto conscientes aqui do valor da sua presenga junto dos docntes. Elas insistem muito na importincia do toque ¢ das relagdes pessoais entre o doente a enfermeira. Elas falam também da necessidade de permitir aos scus doentes que exprimam o que ressentem, muitas vezes sem que elas tenham que intervir. ' | A fungio de ajuda | 85 Optimizar a Participacao do Doente para que ele controle a sua prépria recuperagio Esta competéncia implica pelo menos duas componentes: ser capaz de sentir num doente a forya, a energia, 0 desejo e a capacidade de melhorar; canalizar essas forgas na relagao entre a enfermeira e 0 doente. Em certos casos, a enfermeira deve defender a causa do doente - por exemplo, protestar contra uma intervengiio técnica potencialmente perigosa, preferindo que o doente controle e melhore ele prdprio a sua condigiio. Em certos casos, trata-se de negociar para ganhar tempo. Em situagées como estas, as enfermeiras utilizaram os lagos que as uniam aos seus doentes, para fazer ressaltar a sua implicag&o e o controle de que sio capazes. Por detrés desta competéncia, encontra-se uma determinagao destinada a permitir ao doente ter um melhor controlo sobre a sua vida. . Exemplo I Uma enfermeira perita descreve varios episédios respeitantes a uma doente idosa que se esté a restabelecer de um ligeiro ataque. A doente, pianista de concertos, esté deprimida por causa da fraqueza da sua mio direita. Trata-se de convencé-la a tratar-se com uma cinesiterapia que ela recusa. Eu contento-me em sentar-me, ouvir e falar-the. Nao the digo que quero que ela se trate com uma cinesiterapia, mas essa é a minha intengdio. Digo-lhe que ela esté a comecar a fazer progressos. “Compare com hé dois dias atras: hoje, consegue mexer um pouco melhor os dedos. Vocé fez progressos por causa dos exercicios. Se continuar com os exercicios, eu penso que poderé utilizar as méos ainda melhor” Eu encorajo-a, fazendo-a ver os aspectos positivos, porque ela sé focaliza os negativos, assim como aquilo que ela jé n&o consegue fazer. Lembro-the que, quando foi admitida, 0 seu braco jé praticamente néo tinka forca e que era preciso ajudé-la a comer. Neste momento, ela consegue segurar so-zinha uma chdvena, mexer os dedos e levantar o brago acima da cabeca. Eu digo-the: “Olhe, néo conseguia fazer isso ontem e consegue ‘fazé-lo hoje. Comeco a enumerar todas as coisas que consigo ver e que 86 | De iniciado a perito ndo tinka visto no dia anterior. Depois da nossa conversa, elt tratow-se com uma cinesiterapia Com 0 passar do tempo, a enfermeira perita vai continuar a fazer notar a paciente os progressos que constata e a dar-lhe uma ideia do tempo necessério para a sua cura, Ela relativiza as limitagdes sentidas pela paciente, diz-Ihe que a sua cura € possfvel e que ela podera novamente f ensinar a tocar piano. A paciente quer continuar a fazer tanto quanto antes. : A enfermeira pede & sua filha que traga ao hospital um teclado de trabalho para a sua mie. As trés examinam os meios de conseguir perfodos de repouso € de evitar as escadas no domicflio para que ela possa continuar a ensinar a tocar piano aos seus alunos. Exenplo II O doente, wn homem de trinta ¢ seis anos operado varias veces, tinka sofrido varias complicagées. Taha antecedentes de tilcera e tinha sido transferido de wn outro hospital depois de uma operagdo a uma pancrea- tite hemorrdgica. Tinka sido operado uma vez mais; tinhan-the tirado i quase todo o pancreas, e tubos saian-the por todos os tados. Tina wna 4 enorme ferida abdominal, varias perfuragdes, etc. Como tinha sido sempre independente, era-the extremamente dificil aceitar o facto de estar doente e sem defesa. Teve altos e baixos no pds operatorio, até estar tio furioso e tio deprimido que recusou qualquer tratamento, intervengdo e ) transfusdo. Recusava igualmente levantar-se ou tomar conta de si mesmo. Jé nos conhectamos relativamente bem, entéo, fui falar com ele. Ele disse-me: “Estou farto de ser picado a todo 0 momento e de néio ter una palavra a dizer: Sinto-me muito indefeso. As pessoas estéio sempre a fazer- me alguna coisa!” Respondi-the que, tendo em conta o seu estado e a necessidade do internamento, ia ser dificil mudar as coisas, mas que ele podia modificar a forma de ver a situagao. Disse-the que ele tinha feito a | escolha de vir para aquele hospital para ser methor tratado, e que, em vez de pensar que faziamos as coisas contra ele, podia considerar que tudo i era feito para ele, para 0 ajudar a methorar; que em vez de se sentir desarmado face ao que the faziamos fisicamente, ele era 0 tinico a poder gjudar-se mentalmente guardando tudo isto no pensamento.. que era preciso que ele se lembrasse que ele & uma pessoa ... néio apenas um doente. | A fungao de ajuda | 87 Como ele ficou muito calmo enquanto eu the falava, eu ndo podia saber em absoluto se tinha conseguido convencé-lo. Eu pensava por momentos que exigia demais, mas salientei que, enquanto amiga, sentia- me obrigada a dizer o que pensava. Na manha seguinte, quando ex cheguei ao trabalho, vi-o sentado no corredor, othando pela janela. Perguntei-the o que tinha mudado para ele, ¢ ele respondeu-me: “Vocé tinha razéio! Eu vou deixé-la ajudar-me a curar-me o mais depressa posstvel!” Acreditei verdadeiramente que tinha feito uma diferenga na vida desse homem ajudando-o a enfrentar as circunstincias que ele pensava niéio controlar, simplesmente ajudando-o a apelar aos seus recursos internos. Comentario Reduzido Nestes dois exemplos, a enfermeira ajuda o paciente a compreender que ele exerce um certo controlo sobre o que Ihe fazem e que ele participa na sua cura. Muitos pacientes sentem-se pouco implicados na sua cura e no seu tratamento; muitas vezes, é a enfermeira que ajuda o paciente a recuperar o sentimento de que participa, e a um certo controlo sobre as coisas. Interpretar os diferentes tipos de dor e escolher as estratégias apropriadas para os controlar e gerir Existe toda uma panéplia de tratamentos com vista a responder a tipos particulares de dor. A escolha da estratégia apropriada ao bom momento faz parte integrante do dominio de competéncia da enfermeira, como 0 ilustra 0 exemplo seguinte: Exemplo A enfermeira perita em psiquiatria ~ Fui chamada as urgéncias para intervir numa situagdo de crise. O médico dizia que 0 paciente estava histérico, que se queixava de dores fortes nas costas, mas que esse caso era psiquidtrico. Eu vio jovem e constatei que ele sofria realmente muito. 88 | De iniciado a perito Tinha caido de wna altura de 5 metros alguns meses antes, ¢ estava & espera de uma decisdo a respeito da sua incapacidade para 0 trabalho. Estava histérico em parte porque ninguém acreditava nele, ¢ também provavelmente por causa do facto de que o seu caso iria em breve passar ho tribunal, Eu pensei que havia dois aspectos no seu problema. Por wit lado, néo era indicado admiti-lo na psiquiatria, porque classificado como proveniente da psiquiatria, 0 seu caso seria menos credivel na justiga. Pensei, por outro lado, que alguém que sofria tanto nao devia entrar num servigo de psiquiatria. Se era preciso admiti-lo no hospital, seria nun servico de medicina para exames mais alargados. Pude obter wna prescrigéo de Demerol, que o ajudou. O seu corpo estava agitado por espasmos. A pessoa que interveio na altura da crise seguinte apoiou a minha decisao ¢ o paciente foi mandado para casa. Os pacientes que sofrem enormemente tornam-se histéricos, sobretudo quando ndo acreditam neles. Fiquei muito satisfeita com a minha deciséo. Proporcionar conforto e comunicar pelo toque As enfermeiras utilizam muitas vezes 0 toque para reconfortar e esta- belecer um contacto com um paciente fechado e deprimido. Este tipo de contacto, cheio de calor humano, é muitas vezes o Gnico meio que permite 0 reconforto e a comunicagio. Exemplo I Nota do observador: Elisabeth foi lavar as méos e tirow wna bisnaga de creme da gaveta do paciente. Ela ajudou-o a tirar a parte de cima do pijama e sentou-se na borda da cama. Ele tem wn ar apdtico e niio parece inclinado & comunicagéo. Blicabeth pds muito creme nas mdos e preveniu-o que ia estar frio - ¢ pediu desculpa por isso. Durante uns momentos, ela massajou-o com as médos. Noutros momentos, ela esfregou-o vi-gorosamente com a mdo direita, mas visivelmente com suavidade. Ainda néo tinka havido muitas trocas verbais nesta altura, Elisabeth disse-lhe que gostaria de 0 massajar mais tempo, mas consagrou-lhe menos tempo, parece-me, ent relagio ao que eu a inka | A fungao de ajuda | 89 visto fazer a um doente quando a carga de servigo era menor Quando a massagem terminou, ela pegou numa toalha e limpou o excesso de creme das costas do doente. Ela disse-Ihe que tentariam recomecar a operagdo mais tarde. No corredor, perguntei-the coisas sobre esta sesso: tratava- se de um cuidado habitual? Ela disse que sim: jé hé algum tempo que este paciente tinha problemas nas costas. Perguntei-the qual era o problema dele. Tinham-the tirado um pedaco do cdlon e ele tinha agora uma colostomia. Ela disse-me: “Encontraram um grande tumor cancerigeno e ele estd muito mal, mas néo fala muito daquilo que sente. Eu utilizo a ‘massagem nas costas como uma ocasido para falar com ele ¢ comunicar de maneira diferente com ele.” * Exemplo I A enfermeira perita — Tratava-se de uma urgéncia. Estévamos a ocupar-nos de uma paciente, a entubé-la, etc. No meio daquilo tudo, ela precisava de alguém, e éramos as tinicas a segurar-lhe a mao. Ela estava em lagrimas. Néo sabia 0 que se estava a passar. Ela era surda, mas sabia que era grave; ela chorava - viamos as lagrimas deslizar pela cara, Os médicos tentavam entubd-la, e Ana, a outra enfermeira, ¢ eu estdvamos simplesmente sentadas ali no meio de toda esta agitagdo. Nés 6 lhe segurdvamos a mao e repetiamos: “Esté tudo bem.” Sentiamos que era uma das coisas mais importantes a fazer Porque ela precisava de alguém e porque sé podia ser reconfortada e tranquilicada pelo toque ¢ pela vista. Comentario Reduzido As enfermeiras utilizaram tradicionalmente 0 toque como uma abordagem terapéutica. Ele veicula tanto mensagens de apoio como um reconforto € uma estimulagdo fisica, Trata-se talvez do simbélico da imposig&o das miios, caracterfstica dos cuidados de enfermagem. Mas, & semelhanga de qualquer outra forma de comunicagdo, 0 toque veicula numerosas mensagens e deve ser utilizado com discernimento. 90 | De iniciado a perito Proporcionar apoio afectivo e informar as familias dos doentes ‘As enfermeiras relataram varios exemplos que sublinham a importancia do papel das familias como interlocutores na cura do doente, importincia tdo determinante quanto a do tratamento. Assim, a enfermeira apoia optimiza 0 papel positive dos membros da familia na cura do doente, dando-lhes as informagdes necessirias para Ihe providenciar cuidados fisicos e trazendo-lhes um apoio afectivo. Exemplo 1 ‘A enfermeira perita - Tivemos wn doente admitido num estado nutito erftico com wna ruptura de aneurisma, Nao pensévamos que fosse sobreviver. A sua mulher néo tinha familia, ninguém para a apoiar. Sé havia ela e 0 marido. Néio tinham tido filhos. Eu pude ficar com ela, Levei-a d cafetaria e tentei, ao longo de toda a refeigdo, fazer-Ihe entender o estado do marido. ‘Num grande niimero de servicos de cuidados intensivos, as visitas no so admitidas. Se isso se compreende para os relacionamentos afastados, eu penso que é bom, tanto para o doente como para a sua familia mais préxima, estarem unidos. Era muito importante para ela estar com o marido, tanto que eu fiz tudo o que pude para que ela pudesse entrar ¢ ir sentar-se perto da cama. Era tudo o que ela queria. Depois faldmos, respondi « todas as suas perguntas ¢ expliquei-the 0 que estavamos a fazer ao marido, que acabou \ por fazer didlise. E af, mais uma vee, tomei 0 cuidado de the explicar tudo. Depois disso, ela telefonou-me para casa wna ou duas vezes. Sinto-me nuito satisfeita quando posso agir assim. Depois, quando 0 | doente voltou para casa, o seu estado melhorou bastante. Exemplo If A enfermeira perita _ Eu fiquei com a parturiente que estava em trabalho de parto. Ja havia trés horas € nada tinha mudado. Eu jé tinha chegado ao ponto em que jd nem the queria dizer nada, Ela sentia-se tao mal. Jé tinha tomado medicamentos e queria que o parto avangasse, mas A fungao de ajuda | 91 néo era o caso. O marido, muito presente, queria tomar conta dela. Quando eu a quis ajudar a ir & casa de banho, ele pediu para fazer. Tirei entéio as garrafas do pé de perfusiio e levei toda a gente. E em vez de ser eu a dizer-lhe que ela estava a ir muito bem com a relaxagdo e a respiracao, foi ele que tomou tudo em méios, to bem que eu o deixei fazer, até porque me apercebia que ele o fazia ben e que tinha necessidade de o fazer Entretanto, 0 médico chamou-me para saber em que ponto ela estava. | Nao tinha havido nenhum progresso mas o trabalho de parto estava normal. E ele disse-me: “Entao, damos-lhe mais uma hora.” Mas como a situagdo continuava a nao evoluir, ele quis fazer uma cesariana.. O médico veio e disse: “Vamos fazer-tha agora.” Pedi-lhe que a (fizesse na sala de partos, de forma a que o marido pudesse estar presente, | porque os maridos nao sao admitidos na sala de operagdes. Além disso, ela queria permanecer acordada; consegui encontrar um anestesista habituado a este género de situagdes. Tudo correu bem. O marido pode ficar com a mulher e tirar fotografia: | Comentdrio Reduzido Nestes dois exemplos, a enfermeira toma em linha de conta tanto as necessidades dos membros da famflia, como as dos doentes. Ela deve saber quando se deve apagar e permitir aos membros da familia terem um maior papel, ¢ quando os deve substituir. Guiar os doentes aquando de mudancas que acontegam i nos planos emocional e fisico - Propor uma nova escolha, eliminar as antigas; guiar, educar, servir de intermediéria A enfermeira na psiquiatria tem fungées especificas no hospital quando surgem crises agudas, por causa da prépria natureza da doenga mental do contexto do servigo em psiquiatria. Enquanto que a maioria das enfermeiras utilizam os seus conhecimentos de cuidados de enfermagem em psiquiatria com bastante regularidade, as competéncias enumeradas neste dominio sio oriundas de um servigo psiquidtrico de urgéncia de um hospital geral. O que distingue estas competéncias, so os objectivos terapéuticos especificos e os fins da enfermeira em psiquiatria. 92 | De iniciado a perito Esta ditima utiliza varios meios para levar um doente a desenvolver as suas possibilidades. Ela guia e serve de mediador para ajudar as pessoas num estado de grande confusdo a abrirem um caminho em direcgio a um mundo mais normal ¢ menos deformado. A enfermeira é directa, firme, € aborda o doente tentando ser tio clara quanto possivel. Ao tentar ajudar as pessoas a mudar, a enfermeira age como um mediador psicoldgico € cultural; utiliza objectivos com um fim terapéutico; esforga-se por estabelecer ¢ manter um ambiente terapéutico. Agir como mediador psicolégico e cultural Os doentes psiquidtricos so muitas vezes marginais; eles nfo sentem € néio véem as coisas da mesma maneira que as pessoas “normais”; um grande ntimero de regras normais para os outros no significam nada para eles. Assim, a enfermeira em psiquiatria serve de intermedidria entre 0 doente e um mundo mais normal. Ela aprende a compreender os doentes com a singularidade deles; ela aprende a linguagem particular deles, assim como os sentimentos que escondem o comportamento deles e as palavras que eles empregam; ela aprende a compreender os significados deformados que as coisas tém para eles e que Ihes sao préprios. ‘A enfermeira aprende a compreender e a lembrar-se de que os doentes nao compreendem - 0 que s6 pode ser tomado por garantido quando nos relacionamos com eles. Ela aprende a “ler” certos doentes. Por exemplo a estimar e distinguir certos nfveis de regressio, de forma a saber que tipo de linguagem utilizar. Ela sabe se um doente esté em perigo. Finalmente, a enfermeira precisa de aprender os esquemas e cenérios que os doentes fazem para antecipar as suas respostas face a um acontecimento qualquer. Na base desta perspicdcia, encontra-se uma abertura e uma aceitagiio da “diferenga” do doente. Por vezes, as enfermeiras compreendem logo, gra- as & experiéncia que adquiriram ao longo da sua carreira com doentes que tém um problema particular. Exemplo I A enfermeira perita em psiquiatria— Ew estava a fazer a ronda, Entrei edisse: “Bom dia, eu sou a Sue. Vocé deve ser a Anne.” E ela respondeu: | “ O que & que isso the interessa? Eu sou completamente louca.” Achei- Ihe piada: “Entéo porque no me fala sobre isso?” Eu sabia desde 0 inicio que havia muito sofrimento por debaixo daquela linguagem agressiva — uma tal intensidade, quase uma agonia. Eu nem sequer conhecia a histéria dela, no sabia nada sobre ela. Mas isso eu sabia. E, ao longo do més seguinte, eu descobri o porqué de todo esse sofrimento. Por vezes, as experiéncias com um doente ultrapassam completamente a enfermeira. Nesse caso, a compreenstio vem permitindo aos doentes ensinar 4 enfermeira 0 que significa estar no estado deles, “por-se na pele” A fungao de ajuda | 93 | ( deles. Exemplo I Uma enfermeira perita em psiquiatria conta 0 que aprendeu com um doente que sofria de uma deficiéncia motora cerebral. Ela ensinow-me o que era estar prisioneira num corpo que ndo quer fazer aquilo que queremos que ele faga. Ela ensinou-me 0 que era ser ‘mirada pelas outras pessoas e ser tratada como se fosse uma atrasada mental, embora o seu espirito fosse sio. Mas como o queixo cai, ou a forma de falar é diferente, ou 0 aspecto é estranho, ou os bracos tém ‘movimentos descoordenados, é-se tratado como se o espirito também tivesse sofrido lesoes. Ela ensinow-me o que era dispender tanto tempo energia tentando controlar o corpo até chegar ao ponto de ndo ter forcas para fazer seja 0 que for. Ao mesmo tempo que a enfermeira em psiquiatria tenta compreender 0 que o doente quer dizer, ela tenta também ensinar-Ihe o que é o mundo das pessoas normais. Ela trabalha também de forma diferente para criar uma cultura comum partilhada no servigo ou num grupo e na qual todos podem patticipar. A enfermeira fé-lo, traduzindo para os doentes aquilo que 0 comportamento deles quer dizer para os outros, e explica igualmente o | doente aos membros do grupo de forma a que eles 0 compreendam e nfo 0 | excluam por causa do seu comportamento. Por exemplo, uma enfermeira diré a um doente: “As pessoas vaio zangar-se se Ihes falar dessa maneira”, ¢ explicard também o que os outros 94 | De iniciado a perito fardio ou niio. A enfermeira faz isso pondo claramente em relevo as suas expectativas, estabelecendo objectives, estabelecendo regras 3s quais as pessoas devem obedecer e ajudando-as a consegui-lo. Ela transmite aos doentes uma linguagem com a qual eles podem exprimir 0 que sentem, de forma a que os outros possam compreender e niio se sentirem ameacados. Af, podemos considerar a enfermeira em psiquiatria como um mediador psicoldgico e cultural para os doentes, porque ela os ajuda a tornarem-se seres mais sociais que poderio relacionar-se sa-tisfatoriamente com os outros. Este papel de mediador e diplomata dependeré da posi¢o que a enfermeira vai adoptar em relagio ao doente - posigdo que a separaré do doente mas que Ihe permitird estar de qualquer maneira na possibilidade de o ajudar. A enfermeira esta com o doente, mas sem simbiose; ela conserva a sua propria personalidade e a sua integridade mental. As enfermeiras nao so postas em petigo pelas percepcdes ou pelo comportamento dos doentes. O ltimo sucesso do doente (melhoramento sintomatico ou comportamental, cura, etc.) no deve ser atribufdo & habilidade ou d reputagfio da enfermeira; 0 seu valor intrinseco vai para o doente. Em outros termos, a enfermeira est do lado do doente para 0 bem deste tiltimo e nfo para obter satisfagiio nas relagdes de dependéncia ou por ambigio pessoal. Uma vez que 0 ego do doente € perturbado ¢ as suas fronteiras so frdgeis, a atitude da enfermeira reduz muitas vezes a tensio ou o stress vivido pelo doente, e permite-Ihe explorar novas possibilidades. O doente jd nfo precisa de resis-tir ao terapeuta para conseguir definir-se a si mesmo. Ha mwitas maneiras de observar isto nos factos. Por exemplo, a enfermeira nfo aceita a responsabilidade no lugar do doente, mas reenvia Iha. A responsabilidade da vida do doente pertence-Ihe, assim como todas as reivindicagdes de sucesso. Isto pode revelar-se dificil de fazer, mas a enfermeira em psiquiatria restitui a vida ao doente, Exemplo II A enfermeira perita em psiquiatria (Falando com o entrevistador) ~ E eu penso que é preciso explicar claramente as coisas ao doente, a saber: a que eu espero de si é que tome conta de si mesmo, ¢ que ndo me pega para o fazer por si. Eu no sou responsdvel por si; 0 facto de que eu seja responsavel por min jé é um trabalho a tempo inteiro. E quando voce ee 6 A fungao de ajuda | 95 comegar a ser responsdvel por si mesmo, isso também the vai tomar 0 tempo todo. Podemos dizer uma mensagem destas com muita amabilidade e delicadeza, mas penso que deve ser dito... | Comentario Reduzido | A mediagao psicolégica e cultural constitui uma competéncia importante que as enfermeiras demoram a adquirir. Elas conseguem-no, ao | mesmo tempo que vio melhorando a capacidade de desenvolver relagdes terapéuticas e interpretar um largo leque de nogdes e comportamentos normais € anormais. Utilizar objectivos terapeuticamente ‘Ao dar a possibilidade ao doente de se investir numa terapia, e isto num largo perfodo de tempo, a enfermeira faz sobressair a utilidade dos objectivos. Estes tltimos devem ser realistas, estar ao alcance do individuo, e visar uma melhor integragao social e psicologicamente. A enfermeira deve também ajudar o doente a reconhecer quando ele foi bem sucedido. Esta competéncia difere daquela que consiste em fazer uma avaliago do potencial do doente a melhorar e a responder aos diferentes procedimentos de tratamento (este ponto ser discutido mais tarde), no sentido em que uma tal intervengao sé é possivel quando a enfermeira fez uma avalia-cGo correcta. A utilizagéio de objectivos com fins terapéuticos necesita que a enfermeira nfio se engane nem no nivel de dificuldade do objectivo a atingir, nem na escolha do momento mais apropriado para fazer progredir o doente. Exemplo a A enfermeira perita em psiquiatria (descrigao de uma paciente em te- rapia de grupo) — Ela estabeleceu o contacto com os seus filhos nuna altura em que jd nio os via hd muito tempo. Ela tem agora com eles relagdes sits e vé-os quase todos os fins de semana. Leva-os para casa dela. Responde as perguntas deles quando Ihe perguntam porque é que

You might also like