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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS


DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

O RETORNO DA VELHA SENHORA OU


A CATEGORIA TEMPO ENTRE OS KRAHÔ
JÚLIO CÉSAR BORGES

Dissertação apresentada ao
Departamento de Antropologia
da Universidade de Brasília,
como parte dos requisitos para a
obtenção do título de Mestre,
sob orientação da
Profª. Drª. Alcida Rita Ramos

BRASÍLIA,
MARÇO DE 2004
2
2

O RETORNO DA VELHA SENHORA OU


A CATEGORIA TEMPO ENTRE OS KRAHÔ

Júlio César Borges

Dissertação de Mestrado em Antropologia Social,


defendida no dia 1º de março de 2004

BANCA EXAMINADORA:

Prof. Dr. Julio Cezar Melatti, DAN/UnB

Profª. Drª. Rita Heloísa de Almeida, FUNAI

Prof. Dr. Roque de Barros Laraia, DAN/UnB (Suplente)


SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS ................................................................................................... PG. 05

APRESENTAÇÃO ........................................................................................................ PG. 06

PRELÚDIO ................................................................................................................. PG. 11

CAPÍTULO I:
O TEMPO COMO CONSTRUÇÃO HUMANA ................................................................. PG. 15

CAPÍTULO II:
ALTERNÂNCIA E LINEARIDADE DO TEMPO: OS CICLOS COTIDIANOS ..................... PG. 31

CAPÍTULO III:
O DUPLO ASPECTO DO TEMPO NOS CICLOS SAZONAIS .............................................. PG. 64

CAPÍTULO IV:
O DUALISMO DO TEMPO NA PESSOA ........................................................................... PG. 86

CONCLUSÃO ................................................................................................................ PG. 99

ANEXO ........................................................................................................................ PG. 104

BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... PG. 108


"O movimento do Tao nasce dos contrários..."
"Todas as coisas são produzidas pelo Tao
e nutridas pelo seu constante fluir.
Recebem suas formas de acordo com sua própria natureza e se completam,
de conformidade com suas contingências existenciais."

LAO TSÉ
AGRADECIMENTOS

Muitos foram aqueles que, de uma forma ou de outra, contribuíram com a


elaboração desta dissertação. Agradeço primeiramente ao Departamento de Ciências
Sociais da Universidade Federal de Goiás, em especial às professoras Genilda Darc
Bernades, Maria Luíza Rodrigues e Selma Sena do Amaral; à Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela concessão da bolsa de
estudos do Programa de Demanda Social; e ao Departamento de Antropologia da UnB, na
figura de Rosa Cordeiro por sua inabalável solicitude e competência e aos professores
Carla Teixeira, Paul Little, Stephen Baines, Ellen Woortmann, Mariza Peirano, pelo
aprendizado que propiciaram com suas aulas.

À Alcida Rita Ramos, sou grato pelo muito que me ensinou do ofício, nas aulas e
na orientação desta dissertação.

À Rita Heloísa de Almeida e ao professor Julio Cezar Melatti, por terem aceitado
participar da banca examinadora. Também agradeço ao Melatti pela permissão dada, em
fevereiro deste ano, para apresentação dos mitos das metades e de Hartãt.

À Nádia Farage, da Unicamp, com quem tive a oportunidade de trabalhar durante


um semestre por conta do Estágio Docente I.

Aos colegas do programa, e em especial os da Katakumba que fazem desse espaço


um lugar de sociabilidade humana e de intercâmbio intelectual: Lú Ramos, Cesar Perez,
Cloude, Marquinhos, Lea, Rodrigo Pádua, Léo, Dionísio, Ronaldo Lobão, Gonzalo,
Karenina, Patrícia, Carlos Caixeta, Carlos Emanuel, Jaime, Ney Maciel, Thiago Ávila,
Adolfo, Marcus, Ivan, Héber, Roberto, José Pimenta.

Ao Manoel Alves Kateye, que recebeu tão bem em setembro último.

E às três mulheres da minha vida, porque sem elas eu não teria me atentado para o
mistério do tempo: minha mãe, Beatriz; minha esposa, Heliane; e minha filha, Maria Luz.
APRESENTAÇÃO

Esta dissertação bem poderia ser tomada como signo do tema de que trata - o
tempo. Ela procura corresponder à expectativa, culturalmente construída, de que com o seu
fluir, experiências e conhecimentos se acumulam e acabam por produzir resultados
concretos. Como o produto final de um processo de aprendizagem, ela fecha um ciclo que
durou quatro semestres acadêmicos, preenchidos com tantas atividades que pareceram
passar "voando"1, e que fizeram do seu autor, espera-se, um sujeito mais sabedor das coisas
humanas, embora as coisas não caminhem linearmente de maneira tão simples. Por outro
lado, ela resulta, em parte, do meu envolvimento com um ambiente social - o da
universidade – que, de certo modo, tem seu calendário próprio, em alguns aspectos
independente daquele do mundo social mais amplo e em outros altamente influenciado por
ele. Some-se a isso ser esta dissertação o objeto ritual central na cerimônia que
simbolicamente encerra o referido ciclo acadêmico. Mas, sem mais "perda de tempo",
vamos ao assunto principal.

*******

O "sistema temporal" é uma via assaz útil para o entendimento de uma sociedade,
visto que ele lança luz sobre as principais articulações que dão ritmo e dinâmica à vida
social (Sue, 1995: 23). Porque o estudo dos tempos de uma sociedade pode revelar as
atividades sociais que são particularmente importantes e significativas para ela, nos
informando assim acerca do seu sistema de valores e da sua organização social, tomo como
o objeto central a noção de tempo entre os índios Krahô. Busco apreendê-la a partir da
revisão da bibliografia interessada neste povo Timbira, de afiliação lingüística Jê e que
habita o norte do Estado do Tocantins. O conjunto de tais obras inclui desde a clássica
monografia de Curt Nimuendajú, Eastern Timbira (1946)2 e os estudos de Harald Schultz
(1950) até os trabalhos de Vilma Chiara (1961-62, 1978, 1979), Manuela Carneiro da
Cunha (1978, 1979, 1986), Maria Elisa Ladeira (1982) e Gilberto Azanha (1984), e,

1 Aliás, esta é uma percepção do tempo generalizada, atualmente, nas sociedades modernas, tal é a
quantidade de atividades com as quais os sujeitos se têm envolvido. Imagens de movimento intenso são
geralmente utilizadas para expressar essa sensação. Assim, é comum ouvirmos expressões do tipo "este ano
passou correndo", "o dia hoje voou" e outras afins. É interessante notar o uso de verbos que denotam ação,
movimento para se referir a uma realidade muitas vezes tomada como etérea, metafísica ou no mínimo
abstrata: o tempo.
2 Isto, muito embora a maior parte de seu texto verse sobre os Rankokamekrá, ramo dos Canela do Maranhão
e que também são classificados como Timbira Orientais.
principalmente, os de Julio Cezar Melatti (1970, 1973, 1974, 1974b, 1976, 1976b, 1978,
1978b, 1981, 1982, 1984, 1993, 2002). Ainda recorrerei a alguns trabalhos do Projeto
Havard-Brasil Central, cujos resultados estão reunidos em Dialectical Societies (Maybury-
Lewis, 1979), visto que alguns deles lidam com o problema de tempo e ritual em
sociedades Timbira, como é o caso do estudo de Jean Lave (1979) sobre os ciclos
delimitados pelos rituais de nominação entre os Krikati. Desta última autora é o trabalho
acerca dos sistemas de metades dos Timbira Orientais (Lave, 1977), ao qual também
recorro. Em alguns pontos da dissertação evocarei observações realizadas por mim quando
estive na aldeia Krahô de Manoel Alves, em setembro de 2004.
Assim, procuro deslindar dimensões não-ditas da cultura e da sociedade Krahò
naquilo que já foi dito. Mais que a um conceito abstrato da filosofia nativa, pretendo
chegar à compreensão da temporalidade Krahô tal como vivida nos rituais - do ciclo diário,
do ciclo anual, da construção da pessoa humana - e na forma como se organizam
socialmente para o desempenho das práticas cotidianas. Se os estudos sobre tempo e
sociedade podem ser divididos em pragmáticos e cosmológicos, como sugere Ezzell (2002:
86), não vejo como cindir os significados que as pessoas atribuem ao mundo e a maneira
como agem sobre ele. Pretendo responder a perguntas como: Qual a visão que os índios
Krahô têm do fluxo das coisas e dos seres? Quais são seus "pontos de referência"
temporais? Quais são os marcadores simbólicos da sua periodização do tempo? Mas
também: Quais as implicações pragmáticas dessa visão na ordenação das suas práticas
culturais? A organização das práticas cotidianas depende, pois, da ordenação simbólica
inerente ao tempo social (Ramos, 1990.; Overing, 1995; Silva, 2000).
Dito de outra forma, procuro ver como a gama de significados da organização
dualista Krahô (Lévi-Strauss, 1970; Maybury-Lewis, 1979; Melatti, 1976) se faz refletir
sobre sua concepção e experiência do "tempo". Sem perder de vista que tempo e espaço são
dimensões interconectadas, ao analisar a temporalidade da práxis observo também o
movimento das pessoas, o deslocar de seus corpos pelos espaços simbólicos da aldeia para
chegar à compreensão de como o "tempo" é vivido, construído e significado através das
suas práticas cotidianas (Munn, 1992: 116). Assim procedendo, espero descrever de modo
convincente como sua temporalidade se estrutura em torno do "tempo social dominante" do
ritual, do cerimonial, visto que as cerimônias parecem ser para os Krahô sua razão de ser e
que "um tempo social não designa senão uma prática tida como dominante que é
particularmente valorizada, agregando de fato uma multiplicidade de práticas sociais"3
3 "Un temps social ne désigne qu'une pratique censée être dominant que est particulièrement valorisée,
agrégant en fait une multiplicité de pratiques sociales".
(Sue, 1995: 124).
Uma categoria cultural como a de "tempo" pode se manifestar em estruturas de
sentido que vão desde o vocabulário e a gramática (Whorf, 1968) até complexos
calendários, ou pode estar condensada em comportamentos simbólicos como os dos rituais
que, observa Leach (1974), cumprem a função de ordenar temporalmente a vida social.
Nesse sentido, vejo o comportamento humano como uma ação simbólica, uma ação que
"diz" algo. Com Geertz, defendo que ao analisar o fluxo dos comportamentos sociais,
pode-se perceber que "fatos pequenos podem relacionar-se a grandes temas", pois "as ações
sociais são comentários a respeito de mais do que elas mesmas" (Geertz, 1989: 34). Para
chegar ao tempo vivido, adoto, pois, uma perspectiva hermeneuticamente orientada que
busca a interpretação através da abertura dos símbolos, que possibilita “a articulação entre
o lingüístico e o não-lingüístico, a linguagem e a experiência vivida” (Ricoeur, 1987: 58), o
elo vital entre o sistema simbólico e a vivência cotidiana.
Minha escolha pelo tema do tempo sociocultural liga-se ao fato de pretender chegar
à compreensão de uma "alteridade radical" (Peirano, 1998) estudando a forma como esse
Outro constrói seu tempo, como o concebe e como o vive. Este intento torna-se ainda mais
relevante na medida em que vemos e presenciamos um Ocidente, em sua crescente parcela
urbana, preso a um presente cada vez mais absoluto, a um ritmo social cada vez mais
frenético. Este foi o meu impulso original: como sociedades donas de outras tradições
culturais percebem o tempo e como esta percepção está ligada às suas práticas cotidianas,
sob quais ritmos sociais vivem esses sujeitos outros? Quanto aos Krahô, meu interesse por
eles começou na graduação, quando então pude, pela primeira vez, ler "Ritos de uma Tribo
Timbira" (Melatti, 1978). Desta leitura, me impressionou muito a quantidade de rituais -
"festas" - desse povo, que há mais de um século já havia estabelecido contato ininterrupto
com a sociedade nacional. Esta dissertação dá continuidade, certamente de maneira mais
elaborada, ao meu trabalho de final de curso no qual esboço uma pesquisa acerca da sua
temporalidade como sendo construída a partir dos rituais, pois continuo acreditando que
compreendê-la, sob a luz da antropologia, pode relativizar nossa própria noção e
experiência do tempo4.
4 Ainda sobre meu interesse pelos Krahô, durante o curso de Introdução à Antropologia, ministrado pela
professora Drª. Telma Camargo, também tive a oportunidade de assistir ao documentário "Krahô: os filhos
da terra", de Luís Eduardo Jorge, que registra a fase final do rito funerário de Tôh Tôt, neto do então cacique
da aldeia Manoel Alves, Secundo Tôh Tôt. Dois outros fatos contribuíram para que eu me decidisse a estudar
esta sociedade: primeiro, as conversas que mantinha com uma amiga, Hévila Cruz (hoje mestre em
Antropologia pela UFSC), que passou boa parte da sua infância na aldeia Pedra Branca e que estava
realizando uma pesquisa sobre como se apresenta, a esses índios, a ligação entre a noção de pessoa e a de
doença; e segundo, a localização relativamente próxima da sua Terra Indígena da cidade de Goiânia, onde eu
morava.
À parte a relevância desta temática no pensamento antropológico, como veremos
abaixo, tomar como objeto de estudo a noção de "tempo" de uma sociedade indígena das
Terras Baixas da América do Sul é retomar uma questão clássica na Etnologia Sul
Americana, cujo marco foi o simpósio organizado por Joana Overing, em 1976 5. Devo
acrescentar ainda que o mapeamento da bibliografia etnográfica concernente aos Krahô
revela que há uma lacuna no que diz respeito a esse tema. Não existem trabalhos
específicos sobre o "tempo", a não ser uma breve discussão feita por Carneiro da Cunha
(1986) sobre a noção de tempo entre os Timbira Orientais num ensaio dedicado ao
messianismo Canela. Tal espaço precisa ser preenchido, posto ser a categoria de tempo de
tal importância no sistema sociocultural Krahô que se faz instituída na sua organização
social, como veremos.
Um estudo antropológico do "tempo" do Outro, ademais, pode fazer jus a um dos
mais caros objetivos da antropologia, qual seja, o de alargar o universo do discurso humano
(Geertz, op. cit.: 24). Isto porque sob a categoria "tempo" encontramos todo um arcabouço
de construtos lógicos que informam a visão dos sujeitos humanos acerca da ordenação do
cosmos, dos seres que o povoam, da sucessão das coisas, construtos estes que podem
apontar para direções diferentes das nossas. Além disso, o que torna nossa disciplina digna
de interesse é que seus achados, suas descobertas, guardam uma "especificidade
complexa", uma "circunstancialidade", ainda segundo Geertz (Idem: 34; 228). Ou seja, a
pesquisa antropológica é capaz de chamar a atenção para formas muito particulares de
respostas a questões gerais como a do "tempo"; uma questão que pode ser, de saída, nossa,
mas que também pode mobilizar outras pessoas noutros lugares.

*******

A dissertação começa com um capítulo onde desconstruo o “tempo” como uma


realidade objetiva, dotado de uma essência independente dos seres humanos. Assim
fazendo, procuro demonstrar que ele é construído pelas, e para as, atividades sociais, bem
como deixo claras as perspectivas a partir das quais abordo a temporalidade Krahô. Em
seguida, o capítulo dois começa com uma breve etnohistória desta sociedade pari passu
com uma caracterização da ligação da morfologia espacial das suas aldeias com sua
cosmologia e organização social. Passo então a uma análise de duas seqüências mitológicas
5 “Social time and social space in Lowland South American Societies”, realizado durante o 42º Congresso
Internacional de Americanistas, em Paris (Overing Kaplan, 1977).
como bases cosmológicas sobre as quais se funda a noção de tempo Krahô, para depois
abordar como esta noção embebe de sentido as práticas dos ciclos cotidiano. No capítulo
seguinte, analiso como os ritos desempenham o papel de marcadores do tempo sazonal,
bem como discuto como as corridas de toras são ritos permeados do simbolismo da
alternância e da linearidade. Ainda neste capítulo, veremos como os conceitos Wakmeye e
Katamye concorrem para a formação de um sistema de classificação dos mundos “natural”
e social associado à categorização do tempo. O último capítulo é um esforço de análise de
como o simbolismo do tempo perpassa a construção da pessoa humana segundo a
perspectiva desta sociedade indígena.
PRELÚDIO

O mito descrito abaixo revela dimensões inesperadas da sociedade Krahô. Ele põe
em evidência, entre outras coisas, o papel central da mulher na criação do tempo, abrindo,
assim, um caminho analítico até aqui inexplorado na literatura etnográfica sobre os Krahô.

Disse que foi povo antigo dessa aldeia6. O povo saiu para o mato para caçar. E foi
passando os dias e as noites no mato. E foram arranchar num outro lugar. Uma
velha saiu para o mato. E andava tirando fita de tucum. E por lá mesmo se perdeu.
Não sabia mais de onde tinha vindo, aonde estava o rancho; não podia mais
voltar. Lá mesmo andou, andou, procurando de onde tinha vindo e não achou. Lá
mesmo passou o dia. No mato. E a noite desceu e ela caminhou e parou lá num
lugar. Não dormiu à noite, passou a noite acordada, tentando escutar algum grito
de seu povo.
Até que chegou meia-noite. E lá vinha zoada, vem conversando, gritando como nós
quando corremos com tora. Aí ela ficou quieta, escutando. Quando vem chegando
perto, ela ficou pensando que era o povo dela, mas não era; era a Noite. Eram
muitos: eram homens, mulheres, moças. Chegaram e falaram para ela: "Como vai
vovó? Como vai vovó?" O chefe deles falou para ela: "Que você teve, que está
ficando aí sozinha, longe dos outros?" Ela respondeu: "Ora, eu fiquei assim
porque eu saí do rancho e fui para o mato, tirar fita de tucum para fazer cordinha,
fazer enfeite para mocinha. Aí fui tirando, fui tirando, e meu juízo não deu mais
para voltar. Aí eu dei volta, dei volta e não sabia onde está o rancho e me perdi e
assim a noite desceu aqui mesmo, sem saber aonde é que eu vou". A Noite falou:
"E foi assim que você ficou?" "Foi". "Você está perdida mas não vai acontecer
nada. Quando nós formos embora ainda vem outro grupo empurrando nós. Eu
falei para você porque nós queremos mesmo falar para você, você está aqui
sozinha e como eu já falei, já sei como você ficou. Não vai acontecer nada, nós já
passamos quase todos, ainda falta um restinho. Quando nós acabarmos de passar,
aí quando aclarear o dia, ainda vem outra turma, que é o Dia. O Dia vem chegar
aqui, o Dia também vai explicar para você e eu não vou contar história muita
porque nós já vamos avexadinho e eu falei para você. Você está vendo nós; nós
somos a Noite e nós somos Katamye, que é a Noite. E vem ainda outro partido,
outro grupo, que é o Dia e chama Wakmẽye. Quando você chegar lá na aldeia de
novo, você vai explicar para o povo para fazer desse jeito. Pode contar a história
que nós estamos passando, que nós somos Katamye. Todos nós conhecidos pela
folha verde (folha de buriti mesmo). O nosso toro se chama Katamti e nós fazemos
chapéu e pomos palha no pescoço, mas é só com palha madura, que é nosso
enfeite. Wakmẽye, vem atrás, é só com olho (olho de buriti, olho verde, novo) e
você amanhã ainda vem Wakmẽye atrás e vai botar você lá no povo seu". E a
Noite ia passando, passando e já se vem o dia amanhecendo.
Quando aclareou o dia, lá se vem Wakmẽye. Chefe de Wakmẽye. (A noite tinha

6 Narrado, no dia 02 de janeiro de 1965, por José Aurélio a Julio Cezar Melatti, de quem obtive a autorização
para publicá-lo.
vindo gritando). Aí falou com a velha: "Como vai minha vó?" Todos falavam:
"Como vai minha avó?" Aí o chefe parou (os outros iam passando) (só falavam
com ela e passavam). O chefe quis saber dela e perguntou a ela como ficou assim e
ela respondeu do mesmo jeito que respondeu para a Noite. E o Dia falou com ela:
"Também, você ficou assim não é?" "É, fiquei assim, passei a noite aqui, agora o
dia amanheceu e eu não sei como vou chegar a meu povo". "Pois você não está
muito perdida não. Você viu o povo que passou na frente?" "Eu vi". "Eles
conversaram com você?" "Conversaram. Eu vi eles passando. Conversaram. Aí me
disseram que vinha mais um povo atrás deles". "Pois é; é nós, você está vendo que
nós já chegamos e já estamos passando. E eu fiquei para conversar, para saber
como você ficou. Pois você vai aí direitinho nesse rumo, que seu povo está perto.
Você pode ir que você vai chegar lá. Tá bom. Eu já sei. Eu já contei. Você pode
contar na sua aldeia que nós passamos e que nós somos assim desse jeito. E nós
somos assim. Agora Katamye já passou. E nós somos Wakmẽye que vamos
passando. Nós somos Wakmẽye. Quando você chegar no seu povo, você pode
explicar que nós somos assim, você viu. O toro que nós vamos levando chama
Katamti. Agora, no verão, tem outro tora que chama Wakmeti, esse é do nosso
partido. Ele é assim: meio curto e é pintado de urucu. E do Katamye, que se chama
Katamti, é tintado de carvão. E assim você pode ir. Se quiser passar mais uma
hora aqui, você pode ir, que não se perde. Esse que vai aboiando pro Katamye é
um Wakmẽye e esse que vem gritando, é um dos Katamye. (...) Mas nós não, nós
vamos avexando a Noite, para poder passar logo, para você ir embora logo".
Aí já passou tudo. Aí a velha levantou. “Agora eu vou direitinho”. Mas o Dia
mesmo é que vai governando o juízo dela, para ela chegar. Aí a velha foi embora.
Foi caminhando, caminhando, assuntando, foi mesmo no rumo direito que lhe
ensinaram. Até que chegou no rancho.
Aí chegou. O povo ajuntou. Perguntou para ela. Aí ela contou o caso como foi,
falou para o povo que se perdeu, que dormiu no mato sozinha. Aí falou com o
povo: "Eu encontrei com outro povo, por isso eu cheguei sempre. Se não tivesse
encontrado, eu talvez não tivesse chegado porque vocês não estavam mais se
importando comigo, vocês não me iriam procurar, vocês não estavam mais se
importando de mim. Pois foi assim que fiquei. Eu cheguei porque eu encontrei
sempre. Vocês podem ir embora. Amanhã eu vou contar a vocês o que foi que eu
aprendi e vocês vão ficar assim de agora em diante desse jeito. Amanhã eu vou
contar o caso. Eu já cheguei, sempre andava com Deus. Sempre nosso Papam. Eu
fui perdida mas já estou aqui. Vocês estão me vendo no mesmo corpo, do mesmo
jeito que vocês estão vendo. E hoje eu não posso contar. Eu vou comer e dormir".
Aí a velha comeu bastante, encheu barriga e pegou no sono. Dormiu, dormiu,
dormiu. E a velha dormiu muito porque passou a noite todinha acordada, com
medo, assuntando. Quando dá fé a velha não era velha demais era velha assim
como a mulher de Gabriel. Quando foi outro dia ela chamou o povo para contar o
caso para eles.
Aí o povo ajuntou, muito povo. Aí a velha contou: "Olhe eu vou contar o caso que
eu vi. Eu fui no mato, aí lá mesmo eu me perdi. Aí fiquei, fiquei, não podia chegar
mais aqui, estava sem saber. Aí a noite desceu. Aí eu fiquei lá, passando a noite,
sem dormir, acordada toda a vida. Aí lá se vem o barulho, a zoada e aí eu fiquei
assim me admirei, fiquei assanhada de medo, mas eu agüentei, não tinha para
onde correr, o jeito era ficar. Aí fiquei, fiquei, até que chegou esse "povão". Aí
falou comigo, aí eu respondi, me perguntou, aí eu contei o caso como é que foi e aí
eles me ensinaram onde é que vocês estão. Cortou a tora para mim. Aí eu fiquei.
Lá se vem outra turma, outro partido. Aí disse que era Katamye que passou na
frente e Wakmẽye ainda vem chegando, chegando, chegando, até que chegou eles
também. Aí falou comigo, agora esse contou o caso para mim. Aí contaram o caso
para mim como é que estavam arrumando os dois partidos deles e eu agora eu vou
fazer do jeito que eu vi. Vou fazer partido Katamye e de Wakmẽye. Agora vocês
vão fazer assim: disse que nós vamos ser assim de dois partidos. O Katamye é na
frente, que é o primeiro, e Wakmẽye é depois. E Katamye vai cortar o tora
primeiro do tanto que for, mas é partido no meio. Katamye fica desse lado e
Wakmẽye fica desse lado. Nós vamos pegar essa opinião. Katamye fica por detrás
da casa e Wakmẽye fica no pátio. Quando amanhã vai correr com milho, Katamye
correndo atrás da casa e Wakmẽye correndo no pátio". Aí velha mandou cortar
tora. Katamti. Aí as mulheres, os meninos, todas as crianças que ficam no partido
do Katamye é para sair tudo, tudo, só ficam os velhos que não podem correr, na
aldeia. Aí disse que o povo ajuntavam muito e aí repartia. Os homens repartiram.
Foram ficar no partido do Katamye e aqueles que queria ser Wakmẽye já ficou
tudinho separado. Aí foram embora cortar tora no mato. Cortaram tora, passaram
carvão. Os Katamye deveriam riscar com carvão e pau de leite em volta do olho
(agora não tem mais isso). Só ficaram Wakmẽye na aldeia. Pelas uma hora da
tarde, Wakmẽye foi atrás. Aí levaram duas pessoas, uma do Wakmẽye e um do
Katamye. Um dos Katamye acompanhando os Wakmẽye e um dos Wakmẽye
acompanhando os Katamye, para aboiar, mandando. Os Katamye ficaram de
joelho e com a cabeça baixa sem reparar Wakmẽye que vem chegando. Aí foi
chegando Wakmẽye, foi chegando. Aí o gritador gritou, gritou outra vez e aí
apanharam tora e correram, correram para a aldeia, levando tora, um dos
Katamye acompanhou os Wakmẽye e um dos Wakmẽye acompanhou os Katamye e
foi gritando e foi mandando. Até que chegaram na aldeia. E correram na aldeia,
correram na aldeia, correram na aldeia. Aí largaram de correr, jogaram o tora. E
aí acabou.
A velha falou: "Pois é assim que vocês vão fazer. Agora vocês do Katamye,
botando o nome nos meninos, este já ficou no partido dos Katamye. E Wakmẽye vai
botando nome nas crianças que nascem e elas vão ficar Wakmẽye E esse nome não
pode sair do partido, é toda vida no lugar do partido. Quando se bota nome na
criança, ela fica toda a vida no partido.
A velha também ensinou outra arrumação: Põhïpre. Quando foi mesmo no dia de
apanhar o milho na roça era só o partido dos Txon que ia apanhar milho para
fazer o feixe. Aí deixavam uma casa da aldeia e os Katamye iam fazer feixe. Aí os
Katamye espalharam. Na roça dos Wakmẽye para roubar. Apanharam todos os
legumes: batata, milho, banana. Estragaram. Quando Katamye chegou com as
coisas, à noite, lá no mato, atrás das casas. Aí fazem o feixe de milho. Tiram palha
de bacaba, trançam, enchem de milho e de legumes: batata, abóbora, cana, milho.
Os Urubus só apanham da roça o milho, mas não apanham legumes. Aí vão
moquear batata, abóbora etc. Wakmẽye vai ficar a noite toda no pátio sem dormir.
De manhã correm com os dois feixes de milho para o pátio (Wakmẽye mais
Katamye). Quando Wakmẽye vem chegando, o feixe dos Wakmẽye está amarrado.
Aí correm com feixe de milho e põe no pátio. Nunca o Wakmẽye põe o feixe de
milho primeiro porque o feixe é mais pesado e está amarrado. Aí abrem e aí vão
repartir com representante de outras aldeias que estão aqui: os Krahó e não Krahó
(mesmo os que moram permanentemente aqui). O povo da aldeia não ganha.
No outro dia Wakmẽye vai roubar na roça de Katamye. Os Wakmẽye fazem dois
feixinhos de milho escondido. Katamye não dá fé. O povo não vai dormir. Os
Katamye vão reparar os Wakmẽye, senão não acham. Nessa festa os Wakmẽye só
comem o milho miúdo, a batata mirrada, enquanto o milho graúdo, a batata
graúda fica para os Wakmẽye [um dos nomes de metade está trocado]. De
madrugada Katamye está procurando os feixinhos. Os feixinhos estão com um
Wakmẽye escondido. Aonde os Katamye encontrar, correm. Só dois corredores, ou
mais, quantos encontrarem. Aí corre e aí acaba.

O que se segue é, em grande medida, uma análise das lições que esse mito nos traz.
CAPÍTULO I
O TEMPO COMO CONSTRUÇÃO HUMANA

Antes de entrar na discussão etnográfica da temporalidade Krahô, apresento neste


capítulo alguns autores nos quais apoio minha abordagem do "tempo" como objeto digno
de investigação antropológica. A partir da revisão crítica de suas propostas teóricas,
veremos quão antiga é a preocupação com o "tempo" na antropologia, ao mesmo tempo
que atestar-se-á sua relevância para a discussão de vários tópicos teóricos7. Adianto desde
já que esses autores me ajudaram a encarar o "tempo" como estando estreitamente
vinculado às práticas culturais e como sendo, em primeira instância, ordenado
simbolicamente por elas, dentre as quais destacam-se os rituais. Fundamento nestes autores
minha compreensão de que as temporalidades são construções simbólicas que variam de
sociedade para sociedade e que, assim, são importantes índices de alteridade. Todavia,
precederá esta discussão o exercício da "dúvida radical" (Bourdieu, 1989: 34), um
exercício fundamental na construção de qualquer objeto científico e sem o qual a pesquisa
deixa contaminar-se pelo que Bourdieu chama de "introdução clandestina de conceitos do
senso comum".
Nesse sentido, um procedimento capaz de evitar que um objeto de investigação - a
noção ocidental de tempo, a do pesquisador - seja assumido como instrumento de
investigação é a análise histórica da construção social desse objeto, como sugere Bourdieu
(Op. cit.: 36-7). Proceder assim torna-se ainda mais importante na medida em que
constatamos que o "tempo", em nossa sociedade, se apresenta às consciências de uma
maneira tão naturalizada que se transforma num conceito reificado, num conceito que
parece representar uma realidade concreta, palpável8. Como uma "categoria do
entendimento" (Durkheim, 1989), como um quadro essencial dos esquemas cognitivos das
sociedades, é compreensível que o "tempo" apareça às pessoas como inquestionável, tão
7 Seja dito, ao problematizar suas abordagens teóricas, estarei outrossim reconstituindo o percurso histórico
da antropologia do tempo; uma reconstituição inevitavelmente limitada dadas as pretensões deste trabalho, é
certo. Cf. Fabian (1983) e Munn (1992), autores mais credenciados, para uma revisão de fôlego da literatura
concernente.
8 É importante ficar claro que não posso, aqui, entrar na problemática da história do tempo na Física, que
passa pelo conceito de "tempo objetivo" de Newton, partindo da idéia de "tempo físico" de Galileu, atravessa
o conceito de "tempo relativo" de Einstein e ruma no sentido do "tempo indeterminado" da teoria quântica.
Para uma tal discussão, cf. o livro de Paul Davies, "O Enigma do Tempo" (1999). De qualquer modo, a
existência dos debates na Física em torno do "tempo" aponta, no mínimo, para uma preocupação
culturalmente formada em torno dessa questão.
"verdadeiro" como o são suas próprias preocupações cotidianas. Contudo, a idéia que hoje
fazemos do "tempo" tem uma origem histórica passível de ser localizada. E é isso o que
busco abaixo: uma reflexão acerca da história social do conceito ocidental de "tempo" que
leve a "uma ruptura com modos de pensamento, conceitos e métodos que têm a seu favor
todas as aparências do senso comum" 9 (Bourdieu, idem: 49; grifos do original).

A particularidade da noção ocidental de tempo


A noção segundo a qual uma das principais propriedades do tempo é o seu fluir
linear, objetivo, constante e irreversível numa direção tal que faz com que certos
acontecimentos venham à tona é uma noção particular do ocidental moderno. Norbert Elias
(1995 [1992]: 36) lembra que somente pudemos chegar a essa experiência do tempo após o
desenvolvimento social da sua mediação que redundou na criação e aperfeiçoamento dos
relógios de movimento contínuo, na grade de sucessão do calendário romano e na noção de
eras que se encadeiam10. A favor da dependência de referenciais "artificiais" de tempo,
associaram-se a esse desenvolvimento outros processos tais como a urbanização, a
comercialização e a mecanização crescente das sociedades européias, principalmente as
nórdicas e ocidentais, que fizeram com que os enclaves humanos ganhassem uma relativa
autonomia do ambiente natural11. Desse modo, foi a complexificação própria do
desenvolvimento do capitalismo que fez com que a coordenação das atividades sociais
ficasse cada vez mais dependente de instrumentos "artificiais" e precisos de medição do
tempo12 (Elias, idem: 98; Thompson, 1987: 272-4).
9 Bourdieu toma de empréstimo a noção de "ruptura epistemológica" de G. Bachelard para se referir a essa
ruptura com a visão de mundo do senso comum. Uma ruptura que provoca, bem lembra ele, uma mudança
radical na maneira de ver os fenômenos da vida social, "uma revolução mental, uma mudança de toda a visão
do mundo social" (Idem: 49). Lembremos que a advertência quanto aos cuidados que o cientista social deve
ter com as pré-noções aparece já em Durkheim (1978).
10 Cf. Elias (Idem), pgs. 46-7 e 152-5 para uma análise das reformas do calendário romano como prova de
que o "tempo" não possui uma natureza essencial, e pgs. 47-9 para uma história social na noção de Era.
11 Gilberto Freyre (2003) mostra quão diferentes eram a noção de tempo dos ibéricos e a dos ingleses e
holandeses, no final do século XV, época das Grandes Navegações. Os barcos dos primeiros, mais vagarosos,
eram expressão da sua perspectiva mais afinada com os ritmos naturais que com que as marcações exatas e
pontuais dos relógios, que já orientavam os nórdicos. A noção ibérica de tempo menospreza a pressa, a
pontualidade, a velocidade, o que de fato lhes colocou em desvantagem econômica (Idem: 19). Segundo a
cosmovisão que subjaz a noção ibérica, a vida deve ser vivida lentamente e os períodos de trabalho devem
combinar-se com períodos de descanso - contrariamente à concepção protestante, segundo a qual somente o
domingo deve ser reservado para o ócio (: 20). O tempo para os ibéricos não era progressivo como o dos
nórdicos que, acentuadamente após a Revolução Industrial, o associaram ao trabalho constante e para quem
"perder tempo" era (e é) quase um pecado capital: o tempo, estando inscrito no trabalho, conduz à salvação,
no que o relógio se tornou a materialização da consciência moral do tempo. Observa Freyre que "a
obediência ao relógio, entre os europeus do norte, tornou-se quase uma parte dos seus ritos religiosos" (2003:
15).

12 Também teve um papel central na emergência da noção de tempo como um fluxo linear, objetivo e
Entre os séculos XIII e XIX, podem ser localizados os marcos históricos da
mudança na percepção e experiência do tempo desencadeada pelo uso extensivo e
intensivo dos relógios mecânicos, sugere Thompson (1987). Essa mudança levou a que os
relógios passassem, de uma utilização privativa às igrejas e aos mosteiros, a ser
introduzidos e disseminados no interior dos lares da burguesia emergente, até chegar à sua
aplicação como mecanismo de controle dos trabalhadores assalariados. A precisão, a
ordem, a sucessão, qualidades próprias do tempo industrial se fazem sentir na
representação que as sociedades ocidentais têm do tempo, lembra Sue (Op. cit.: 125).
Aliás, se o relógio mecânico surgiu primeiramente nas ordens monásticas, no século XIII,
foi pela necessidade de um instrumento preciso de contagem do "tempo" que tornasse
possível uma maior rigidez na observância dos horários de orações e demais atividades,
observa Andrewes (2002: 90).
Essa religiosidade do tempo disciplinar das comunidades monásticas chegou, pois,
disseminada, ao século XIX. Nesse sentido, Foucault lembra que, "durante séculos, as
ordens religiosas foram as mestras da disciplina: eram os especialistas do tempo, grandes
técnicos do ritmo e das atividades regulares" (1996: 137). As características fundamentais
do tempo disciplinar - exatidão, aplicação e regularidade - ajustaram o corpo a imperativos
temporais e seus gestos, a uma trama que os ordena13. O tempo, detalhadamente fracionado
segundo os imperativos da exatidão, é organizado disciplinadamente de modo a render o
máximo de utilização de cada uma de suas unidades constitutivas. Ocupa-se não só os dias,
mas dentro destes as horas e os minutos para se obter mais rapidez e mais eficiência (Ib.
idem: 140).
As missões religiosas, com seus micro-processos de controle temporal do corpo,
também ajudaram a criar, assim, um "tempo" que, além de especializado e fracionado,
assume um caráter linear, posto que a disciplina impõe momentos que, dispostos em série,
se integram uns aos outros e rumam a um ponto terminal, ponto este que é tão determinado
culturalmente quanto o é o fracionamento do tempo e sua própria inexaurível linearidade14.

irreversível, Galileu Galilei. Ele foi, segundo Elias, o primeiro a utilizar um cronômetro de fabricação
humana como padrão de medida de processos físicos; com ele, emergiu o conceito de "tempo físico", um
conceito fundado na noção de "natureza" como uma rede de relações objetivas sujeita a leis universais de
causa e efeito (Elias, idem: 92). Podemos dizer que a imbricação destes conceitos, promovida por Galileu,
promoveu uma transformação na visão e na experiência do tempo que se tinha na Idade Média, sendo
portanto um dos germes da noção moderna de tempo. Antes de Galileu, o "tempo" atendia à demanda
praticamente exclusiva de coordenação das atividades sociais e mesmo os relógios eram aplicados na
sincronização precisa dos afazeres humanos.
13 Segundo Foucault, " (...) o tempo penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder"
(Idem: 138).
14 Cf. Foucault (Idem), pgs. 144-5, para uma análise crítica da utilização da noção linear de tempo como um
instrumento de controle do corpo, primeiro nos mosteiros e depois nas prisões, no século XIX. Cf. Overing
Mas o aperfeiçoamento e disseminação dos relógios mecânicos associou-se não somente a
uma noção do tempo como um fluxo linear, senão que também ajudou a construir a visão
reificadora do "tempo" como uma "coisa", uma realidade objetiva, exterior aos seres
humanos. É o fato de os relógios serem referenciais de tempo que têm um movimento
próprio e contínuo que fez com que eles fossem tomados como a própria encarnação do
tempo; são eles - os relógios15 - que fizeram com que o "tempo" adquirisse "uma espécie de
vida autônoma na linguagem e no pensamento dos homens" (Elias, op. cit.: 95-7).

Toda esta discussão tem o propósito de demonstrar que nosso conceito de "tempo"
tem uma história particular, que sua emergência dependeu de todo um conjunto de
condições sociais específicas para que viesse a se estabelecer e que, tendo nascido no
Ocidente, não é universal, apesar da sua atual disseminação mundo afora16. Feita esta
brevíssima história social da noção ocidental de tempo, estamos agora em condições de
olhar para esta noção como uma particularidade sociocultural que se defronta com uma
enorme diversidade de formas de se conceber e de se vivenciar o que chamamos "tempo".
Cabe vermos, em seguida, como é possível abordar essa variedade a partir dos ângulos
teóricos da antropologia.

*******

Apesar de a diversidade das temporalidades corresponder à diversidade de


sociedades estudadas pelos etnógrafos e de ser, assim, um traço revelador da alteridade, a
atenção teórica dirigida ao "tempo" como um problema focal tem sido insuficiente, ao
longo da história da antropologia, para compreendê-lo, em si mesmo, como uma dimensão

(1995) e Posey (1982) para outras implicações políticas da noção de tempo como um fluxo linear e
irreversível.
15 Cf. Andrewes (Op. cit.) para uma história social dos relógios mecânicos no Ocidente.
16 Postill (2002) destaca, nesse sentido, o papel da mídia - rádio e televisão - na disseminação global tanto do
calendário gregoriano quanto do relógio. Seu próprio estudo é sobre as transformações que essas mídias têm
provocado, ao trazer um nova maneira de contar o tempo, na sociabilidade doméstica de uma pequena
comunidade do interior da Malásia. A universalização do "tempo dos relógios" tem sido destacada por outros
autores como um instrumento de colonização das chamadas sociedades tradicionais por parte das sociedades
européias e norte-americana. Nesse sentido, cf., p. ex., Comaroff e Comaroff (1991), Thomas (1994) e
Schieffelin (2002).
inescapável da experiência e da prática socioculturais17. Neste sentido, Munn (Op. cit.: 93)
observa que "o tópico do tempo freqüentemente se fragmenta em várias outras dimensões e
tópicos com os quais o antropólogos lidam no mundo social"18, e com os quais se encontra
estreitamente vinculado, tais como estruturas políticas, descendência, narrativa, história,
cosmologia e outros. De qualquer modo, o "tempo" aparece na antropologia desde seus
primeiros autores evolucionistas até antropólogos contemporâneos "interpretativistas", seja
como uma espécie de régua com a qual se media a distância civilizacional entre as
sociedades (p. ex. em Morgan), seja como um recurso para se chegar aos modelos nativos
de pensamento social (Geertz). Seja como for, ele tem aparecido na paisagem da teoria
antropológica ou em primeiro plano ou como um camaleão a caminhar por folhagem
variada.

O tempo como medida da diferença e da distância sociocultural


Ecoando a imagem européia do ser humano na segunda metade do século dezenove,
o evolucionismo sociocultural reforçou a pressuposição da diferença entre as culturas em
termos temporais, uma vez que associou o “primitivo” e o “selvagem” aos primatas e aos
animais não por meio de analogia mas por derivação, posto estarem no mais baixo estágio
da evolução humana19 (Stocking, 1987: 326). Mas, para chegar ao conceito de “primitivo”,
um conceito temporal do Ocidente moderno, os evolucionistas socioculturais tiveram de
manejar uma noção de tempo que promoveu um esquema no qual culturas passadas e
culturas vivas foram alocadas numa inclinação temporal, umas acima e outras abaixo no
fluxo do tempo. Para fazer isso, eles tiveram que secularizar o Tempo, tornando-o natural,
imanente ao mundo; tiveram também que afirmar que os relacionamentos entre as partes
do mundo podiam ser entendidos como relações temporais. Com isso, propuseram um
"tempo" que traz certas coisas no curso da evolução (Fabian, 1983: 15). A aceitação do
tempo naturalizado por parte dos evolucionistas socioculturais, como uma pressuposição
da história universal, trouxe como conseqüência o fato de que os esforços da antropologia
de construir suas relações com o Outro por meio do artifício temporal implicou a afirmação
17 Sobre o tempo como um índice de alteridade, Roger Sue assevera que cada sociedade produz um
agenciamento próprio dos seus tempos sociais, derivado das práticas culturalmente construídas de maneira
que permite ao antropólogo fazer "leituras" das diferenças entre as sociedades ou "d'un modèle de civilisation
à un autre" (Op. cit.: 22; 31). Cf. também Ramos (Op. cit.) e Silva (2000).
18 "The topic of time frequently fragments into all the other dimensions and topics anthropologists deal with
in the social world".
19 Observa Stocking (1987: 314) que a antropologia evolucionista foi o produto de uma época de auto-
confiança cultural sem paralelo na história. Toda manifestação de variedade cultural possível era interpretada
segundo os modelos e os postulados da própria cultura ocidental.
da diferença como distância, ao espacializar o tempo (Idem: 16).
Tomemos o exemplo do estadunidense Lewis Henry Morgan. Na sua, talvez,
principal obra encontramos os caracteres centrais da noção do tempo naturalizado sob uma
rica discussão acerca do processo constituinte da sociedade política a partir da sociedade
gentílica, uma das linhas pelas quais teria passado a evolução humana20. Em A Sociedade
Primitiva (1974) [Ancient Society, 1877], vemos em vários momentos a afirmação da
distância entre o europeu – o observador – e o selvagem ou bárbaro – o Outro observado –
quando Morgan se vale de metáforas temporais como recurso discursivo para demonstrar a
pertinência da sua divisão da evolução humana em períodos étnicos, como também ao
discutir detidamente os sistemas de governo de tipo gentílico e de tipo político21.
Ao discorrer sobre a sociedade gentílica e sua passagem para a sociedade civil,
Morgan faz uso da noção de um tempo que, naturalizado, é cumulativo22, ou seja, que traz
no seu fluir transformações qualitativas e lineares que vão do mais simples ao mais
complexo, e que acabam por desembocar na instauração do Estado e no advento da
civilização. Assim, ao olhar para uma sociedade indígena, "primitiva", o observador
europeu estaria olhando para o que fora sua própria sociedade no "começo da civilização",
pois todos partem do mesmo ponto, já que a história da humanidade é una. Segundo esta
noção, o “ser” das sociedades indígenas é o “vir a ser” das sociedades ocidentais; o
presente indígena é o passado europeu. Ao manipular esta “equação paleolítica” (Stocking,
op. cit.: 283), Morgan fez eco a uma forma de pensar a alteridade própria da sua época,
qual seja, em termos de distância entre diferentes, entre o observador ocidental e o
observado. Ao se deslocar espacialmente para ir aos Iroqueses, Morgan logrou um
deslocamento temporal para ir ao próprio passado dos europeus23.

O tempo como índice da alteridade e como síntese da sociedade: um percurso


É com os autores da Escola Francesa de Sociologia que a temporalidade vai receber
atenção especial. Ainda que seus esforços, principalmente os de Durkheim, mas também os
de Mauss, tenham sido dirigidos mais para a demonstração da natureza social do tempo do

20 Além dos sistemas de governo, as invenções e descobertas, o casamento, o parentesco e a propriedade são
as outras instituições elucidativas do progresso humano para Morgan.
21 Cf., p. ex., as pgs. 81-2, 104, 162 e 320.
22 Isso vale também para as outras instituições e para as invenções e descobertas.
23 Não devemos nos esquecer da experiência de campo de Morgan, num período em que a antropologia era
feita a partir das poltronas de gabinetes confortáveis em Nova York, Londres, Paris. Além disso, enquanto os
antropólogos da sua época estavam mais interessados em inventariar traços culturais isolados, Morgan já
falava em "estrutura social", “sistemas sociais indígenas”, em “inteligibilidade das sociedades indígenas”
(1965 [1881]: xxiv). Sua teoria geral do processo de evolução sociocultural demandou uma teoria particular
do funcionamento de uma sociedade particular.
que para a elaboração de uma sociologia geral do tempo, eles foram os primeiros a dar
consistência sociológica à noção de tempo e abriram, assim, o caminho para futuras
pesquisas sobre este aspecto da vida em sociedade24 (Sue, op. cit.: 53). Os estudos destes
precursores emergiram num momento histórico em que a intelectualidade ocidental se via
diante da complexa questão da diversidade temporal vs. singularidade temporal,
heterogeneidade vs. homogeneidade. Durkheim e seus colegas optaram, então, por fundar o
"tempo" sobre os alicerces etnográficos da diversidade social (Munn, op. cit.: 94). Mas
também estavam empenhados em estabelecer a sociologia - ou antropologia - como
disciplina autônoma face à psicologia e à filosofia25. Daí a ênfase de que o tempo é
expressão de uma realidade social, e que o tempo qualitativo da duração psicológica
(Bergson) está fundado antes de tudo nos quadros do tempo coletivo.
É como uma categoria do entendimento humano que Durkheim (1989) concebe o
tempo. Ele assimila as categorias aos conceitos, que, como obra da comunidade, têm a
propriedade de ser universalizáveis e comunicáveis entre aqueles que partilham de um
mesmo código lingüístico: são partículas simbólicas sem as quais nenhuma comunicação
seria possível. Sendo comuns a toda uma sociedade, eles são representações coletivas, ou
seja, correspondem ao modo como a coletividade pensa o universo físico e social26 (Idem:
513). Quanto às categorias, Durkheim nota que elas exprimem as condições fundamentais
do pensamento: elas regulam a vida lógica (: 43). Portanto, nem todos os conceitos são
categorias, porque estas é que são a "ossatura do entendimento", sua "moldura sólida"; os
outros conceitos são "contingentes e móveis, podendo até mesmo faltar a uma sociedade" (:
38).
Nesse sentido, se a gênese das categorias é a própria vida social, se "cada
civilização possui seu sistema organizado de conceitos que a caracteriza" (: 514), então as
noções de tempo variam de uma sociedade a outra27. O tempo, em Durkheim, é uma
categoria universal por ser essencial ao funcionamento do pensamento humano, mas é cada

24 Nancy Munn também localiza a origem da antropologia do tempo nos estudos clássicos dos fundadores da
Escola Francesa de Sociologia (Op. cit.: 94).
25 Sobre este aspecto cf. Cardoso de Oliveira (1983).
26 O argumento de Durkheim é que os conceitos com os quais os seres humanos pensam o humano nasceram
da religião e, sendo esta eminentemente social, são coisas sociais. A religião, tendo participado da formação
do pensamento humano, teria então lhe fornecido além dos conteúdos a sua própria forma (Idem: 38). Uma
primeira apresentação deste postulado da correspondência entre sistema lógico-conceitual e sistema social
encontra-se em "Algumas formas primitivas de classificação" onde se lê que "os tipos de classificação
exprimem as próprias sociedades no seio das quais eles foram elaborados" (Durkheim e Mauss, 1981: 441).
27 Durkheim afirma que as categorias, "o ponto comum onde todos os espíritos se encontram", jamais são
fixadas de forma definitiva, porque "elas mudam conforme os lugares e os tempos" (: 44). Assim, as
categorias têm o duplo aspecto de serem universais - encontram-se em qualquer sociedade humana - e
particulares a cada sociedade e a cada período histórico na vida de uma sociedade.
sociedade particular que lhe dá o conteúdo, pois "as sociedades são sujeitos particulares
que particularizam o que pensam" (1989: 523). Sendo uma categoria, que realidade social o
tempo exprime? Sob a noção de tempo encontramos, segundo Durkheim, as atividades
sociais que dão ritmo à vida coletiva, e estas seriam marcadas pela oscilação entre períodos
profanos e sagrados delimitados pelos rituais, pelas cerimônias religiosas - momentos de
efervescência coletiva (: 273-4).
Os períodos de tempo - as durações - correspondem aos intervalos dos rituais e o
calendário, ao ritmo da atividade coletiva. Verdadeira instituição social, o tempo consiste
num quadro impessoal que ultrapassa as experiências individuais porque, observa
Durkheim, sua noção depende de como "o tempo é objetivamente pensado por todos os
membros de uma civilização” (Idem: 39). Marcar uma caçada, estabelecer a data de uma
festa demanda datas fixadas socialmente, um tempo comum estabelecido e concebido por
todos da mesma forma. Os pontos de referência indispensáveis para a classificação
temporal das coisas são tomados, pois, da vida social, no sentido que é o grupo que os
elege, que os torna significativos. Assim, as temporalidades, variando com as formas como
as sociedades são constituídas e organizadas, mudando em conformidade com a articulação
das suas instituições religiosas, políticas e econômicas, aparecem em Durkheim como
reveladoras dos seus sistemas de valores e da sua estrutura social. As noções de tempo são
como páginas onde se inscrevem a visão de mundo e a organização das sociedades
humanas.
É sob o signo do mesmo contexto histórico de Durkheim, seu tio, que Marcel
Mauss vai redigir sua monografia sobre os ciclos sazonais da vida social dos Eskimó
(1968a [1904-05]). Nela, ele procurou demonstrar que as noções de verão e de inverno se
configuram como representações coletivas, porque a elas estaria associado todo um
sistema de classificação dos seres e das coisas e um conjunto de interdições rituais28 (Idem:
448-9). Além disso, os regimes jurídicos, a religião, os padrões de habitação e de coesão
variam segundo as duas estações do ano que afetam aquela população. O verão é a época
da dispersão, do direito individual e familiar, da habitação em pequenas tendas (tupik), do
profano; já o inverno é a estação da efervescência coletiva, do direito coletivo, da habitação
nas casas extensas (iglu), de festas coletivas nas casas comunais (tapik), é o tempo do
sagrado. Mauss também destaca o papel dos rituais na delimitação simbólica do tempo, ou
dos tempos, já que neste contexto etnográfico temos pelo menos dois tempos: o da

28 Observa Mauss que "chaque saison sert à définir tout un genre d'êtres et de choses. (...) On peut dire que la
notion de l'hiver et la notion de l'été sont comme deux pôles autour desquels gravite le système d'idées des
Eskimós" (Idem: 450).
dispersão, o tempo profano, em contraposição ao tempo da concentração, do sagrado. Isto
porque as festas seriam instâncias responsáveis pela sublimação do sentimento comunal: "o
sentimento que a coletividade tem de si mesma, de sua unidade, aí transpira de todas as
maneiras"29 (Idem: 445). Como lembra Cardoso de Oliveira, Mauss foi conduzido à
categoria de tempo pela análise de fenômenos religiosos. Por esse caminho, ele notou que
“o calendário das festas religiosas fornece a noção concreta da duração, em lugar de uma
noção abstrata do tempo. O tempo são as festas” (Mauss apud. Cardoso de Oliveira, 1983:
138).
Vemos então que a Escola Francesa de Sociologia, ao privilegiar a noção de tempo
como uma categoria fundamental do espírito humano, como uma representação coletiva,
percebeu o potencial analítico da temporalidade para desvelar os sistemas simbólicos
constituintes dos esquemas cosmológicos e práticos de uma sociedade. Como observa Sue
(Op. cit.: 53-4) a respeito dessas investigações seminais, seus autores teriam não somente
comprovado que o tempo tem um caráter social, mas também que ele traduz e articula os
valores e as crenças centrais de uma sociedade, que fundamenta o liame social e que "a
percepção e a organização do tempo seriam reveladores privilegiados da estrutura social"30.
Uma outra proposta de abordagem teórica aberta à diversidade dos tempos sociais
vai aparecer nos anos 30 do século XX, com as investigações etno-lingüísticas de
Benjamin Lee Whorf (1968), que percebeu que as noções de tempo são veiculadas através
das línguas e que, portanto, são variáveis de cultura a cultura. Para ele, a linguagem não
somente comunica o pensamento mas também trabalha na sua formação (Idem: 85), de
maneira que, sendo um fenômeno do domínio da linguagem, o pensamento é um fenômeno
cultural31. Seu modus operandi encontra-se nas “operações lingüísticas padronizantes”
(linguistic patterning operations) (: 68). Podendo variar de acordo com a estrutura de uma
língua particular, essas operações consistem basicamente em “processos de ligação” de
palavras e morfemas que então produzem as categorias e padrões nos quais o significado
lingüístico repousa; esses “processos de ligação” são de ordem cultural (: 69). Além deles,
cada língua contém conceitos com um quadro cósmico de referência, que cristalizam em si
os postulados básicos de uma filosofia implícita, na qual está assentado o pensamento de

29 "Nous ne voulons pas dire simplement que les fêtes sont célébrées en commun, mais que le sentiment que
la communauté a d'elle-même, de son unité, y transpire de toutes les manières".
30 "Elle [E.F.S] a prouvé que la perception et l'organization du temps étaient des révélateurs privilégés de la
structure sociale" (Idem: 54).
31 Escrevendo em 1936, Whorf destaca o papel de Boas e Sapir no desenvolvimento da lingüística. O
primeiro foi importante como o pioneiro na demonstração da sutileza e complexidade das categorias de
pensamento subjacentes às línguas nativas da América; o segundo, como aquele que inaugurou a abordagem
lingüística do pensamento, a lingüística como campo fundamental da Antropologia.
uma sociedade, de uma civilização. Nas línguas ocidentais, uma tal palavra é, p.ex., tempo
e seus correlatos passado, presente e futuro (: 61).
Whorf constatou que os Hopi não têm uma noção de tempo como a do Ocidente; o
tempo para eles não é um fluxo contínuo, no qual todas as coisas do universo se processam
de um modo igual e previsível, ou seja, do passado ao presente rumando ao futuro. A
língua Hopi, afirma ele, nem mesmo contém qualquer palavra, expressão, construção ou
forma gramatical que refira ao que nós chamamos “tempo” (:57-8). Em Hopi, a palavra que
tem um quadro cósmico de referência é tunátya, que, segundo uma tradução aproximada,
32
significa "esperar", "esperando por" . Este termo hopi reflete o grande dualismo
objetividade-subjetividade que caracteriza sua filosofia acerca do universo. Sem fazer uso
de um conceito de “tempo”, a metafísica Hopi considera o universo como sendo composto
por dois grandes níveis cósmicos que, por aproximação, podem ser chamados de
manifesto/objetivo e não-manifesto/subjetivo33. Assim, analisando a noção de tempo na sua
expressão lingüística pode-se penetrar no seu sistema de pensamento, nos seus valores
culturais, na sua perspectiva sobre a vida.
Vamos ouvir ecos do postulado relativista segundo o qual o tempo varia com as
sociedades também na antropologia inglesa, na primeira monografia, de uma série de três,
que E. E. Evans-Pritchard (2002 [1940]) dedicou aos Nuer. De fato, nela percebemos a
influência do estudo acerca das variações sazonais da vida social Eskimó, de Marcel
Mauss, principalmente no seu conceito de "tempo ecológico", conforme aponta Munn (Op.
cit.: 96). Como o próprio Evans-Pritchard deixa claro, sem a compreensão do tempo (e do
espaço) nuer não se pode compreender a estreita dependência entre o sistema político-
social e o território ou meio-ambiente onde vive (ou viveu) aquela sociedade. Assim, é a
temporalidade a via de acesso ao entendimento da vida social. Ele demonstra que a noção
de tempo nuer depende de uma dupla determinação. De um lado, ela é derivada das suas
relações com o meio-ambiente; de outro, reflete as relações mútuas dos grupos de pessoas
dentro da estrutural social. O primeiro conceito Evans-Pritchard denomina “tempo
ecológico”; o segundo, “tempo estrutural” (Idem: 108). Mas também no que diz respeito ao

32 Em inglês, hope : “The verb tunátya contains in its idea of hope something our words ‘thought’, ‘desire’,
and ‘cause’, which sometimes must be used to translate it” (Idem: 61; grifo meu).
33 Segundo a cosmologia hopi descrita por Whorf, o nível objetivo ou manifesto compreende tudo que é
acessível aos sentidos, o universo físico e histórico, onde não se distingue o presente do passado e o futuro
não existe. Já o nível subjetivo ou não-manifesto abarca o que nós chamamos de futuro, mas vai além:
também compreende tudo que existe na “mente” ou no “coração” (como dizem os Hopi, observa Whorf) não
só dos seres humanos mas também das plantas, animais e de todas as coisas porque a natureza e o cosmos
possuem “coração” (:59-60). Este nível não-manifesto é o campo da intelecção, da mentalidade, da emoção
que são as forças vivas e inteligentes que provocam a “manifestação”; aqui encontram-se o desejo, o
propósito, as causas essenciais que levam a vida do seu domínio interior à sua manifestação objetiva.
tempo ecológico, o conceito de tempo depende dos significados atribuídos pelos grupos
sociais aos referentes naturais, de maneira que, em última análise, o tempo somente se
torna humanamente significativo depois da sua socialização.
O tempo ecológico é um tempo cíclico e está ligado à alternância das estações
chuvosa, Tot, e seca, Mai. Esse movimento temporal é fundamental para a marcação do
ritmo das atividades humanas, mas são estas atividades que fornecem o conceito de estação
para os Nuer. Desse modo, o ano é a alternância entre um período de residências na aldeia
e de práticas de horticultura, cieng, e um período de residência em acampamentos e de
atividades de pesca, wec34. É através da lente das práticas sociais que os nuer observam o
fluir do tempo. O tempo da cotidianidade é a sucessão das tarefas pastoris e suas relações
mútuas. Nada é mais eloqüente do que a seguinte frase: “O relógio diário é o gado...” (Op.
cit.: 114). A coordenação dos acontecimentos cotidianos depende, assim, da referência às
atividades sociais. E se a passagem do tempo ecológico é percebida pelo movimento dos
corpos celestes e pela mudança no clima, em última instância sua significação depende do
fluxo das práticas sociais, pois “a passagem do tempo é percebida na relação que uma
atividade mantém com as outras” (: 115). Nesse sentido, vê-se que os períodos alternados
do ano nuer não têm o mesmo significado. A estação seca é percebida como mais
monótona, em geral sem acontecimentos marcantes, ao passo que a estação chuvosa é
preenchida com festas, danças e cerimônias, no que mais uma vez vemos a influência da
noção de “variações sazonais” de Mauss.
O conceito de tempo estrutural, que emerge das interrelações dos grupos sociais, é
outro que nos ajuda a ver como o tempo depende dos significados que os seres humanos
lhe atribuem. Existem, no caso dos Nuer, pelo menos quatro formas através das quais o
tempo é “estruralmente” configurado. Uma das maneiras de se contar o tempo é utilizando
a distância estrutural, a distância que separa as pessoas no sistema de conjuntos etários e
cujos marcos dependem dos rituais de iniciação35. A passagem do tempo é medida, assim,
em termos do intervalo entre o começo dos conjuntos sucessivos. São as pessoas, ou
melhor, o movimento das "pessoais morais" através da estrutura social, cujas posições são
fixas, que fornece as bases da percepção da passagem do tempo estrutural, um tempo
humanizado porque qualitativo36. Em suma, o tempo estrutural deriva da relação entre
34 Evans-Pritchard ressalta que “o contraste entre o modo de vida no auge das chuvas e no auge da seca é que
fornece os pólos conceituais na contagem do tempo” (Idem: 109).
35 Sobre outras maneiras de "contar" o tempo estrutural, cf. pgs. 118-20. Sobre o sistema de conjuntos
etários, cf. pgs. 257-70.
36 Vale notar a critica que Nancy Munn (Op. cit.: 97) dirige a Evans-Pritchard por ele ter separado da sua
análise do tempo estrutural o espaço das atividades concretamente vividas e significativas para essas "pessoas
morais".
grupos de pessoas (2002: 118).
Leach é outro autor que nos ajuda a compreender o "tempo" como uma categoria
que nasce da vida social. Ele vai além para afirmar que a própria regularidade do tempo é
uma noção fabricada pelo homem. Para ele, é a seqüência anual das atividades sociais que
fornece a medida do tempo, sendo os rituais os seus marcadores simbólicos (1974: 205).
Ele nota que, em qualquer grupo humano, comportamentos simbólicos são utilizados para
demarcar as unidades de tempo: veste-se roupas especiais, pinta-se o corpo, come-se
comidas especiais, comporta-se de modo especial (: 203). O fluxo do tempo, criado pelo
homem, é, desse modo, ordenado pela celebração de rituais que, por sua vez, criam os
intervalos de tempo que conferem ordem à vida social.
Se são as sociedades que criam seu próprio sistema temporal, então a visão de que o
tempo seria um fluxo linear no qual todas as coisas seguem um caminho que vai do
passado ao futuro e que tem um efeito progressivo, cumulativo é circunscrita social e
historicamente às sociedades ocidentais, como já havíamos visto. Leach observa que
subjacente à cosmologia de um grande número de sociedades mundo afora está a noção de
tempo como "oscilação entre contrastes repetidos", que vê a seqüência dos acontecimentos
como uma sucessão de alternância entre opostos, cuja repetição dá ritmo ao devir: sol-
chuva, dia-noite, vida-morte (: 206). Daí sua advertência quanto ao perigo de se utilizar o
termo "cíclico" para denotar este tipo de concepção, pois, como ele, podemos projetar uma
notação geométrica sobre contextos etnográficos nos quais ela pode estar ausente 37 (: 195).
A noção de tempo de um grupo social faz-se sentir também na forma como ele
concebe a pessoa humana, como aliás já havia indicado Evans-Pritchard. Para Leach, aos
ritos de passagem, ritos que marcam simbolicamente os estágios do ciclo vital da pessoa,
está ligada uma representação do tempo como um movimento pendular, que torna possível
a alternância vida-morte-vida: morre-se num estágio para viver em outro (Idem: 206).
Noutro registro, Geertz (1989: 225-277) também estabelece uma interdependência entre
noção de tempo e concepção da pessoa que, aliás, para ele é um fenômeno universal. A
análise do sistema temporal balinês foi a via que Geertz encontrou para interpretar seu
modelo social de pensamento. Para ele, a maneira como um grupo humano concebe o
envelhecimento biológico afeta profundamente a maneira como ele vê o tempo (Idem:
37 Sobre a diversidade de noções de tempo, ela pode ocorrer no interior de uma mesma sociedade. Neste
sentido, Leach observa que entre os Kachim não há um conceito equivalente a "tempo". Todavia, se não se
pode falar, neste contexto, de um conceito de tempo, tem-se uma ampla gama de conceitos particulares
aplicados às situações específicas. Ou seja, temos várias noções de tempo (Idem: 193). Algo semelhante
percebeu Ramos (1990: 179) entre os Sanumá, grupo Yanomami que habita o norte de Roraima, para os quais
julga mais apropriado falar em várias noções de tempo e não uma única, noções essas expressas num tempo
individual, num tempo social, num tempo do eterno retorno e num tempo histórico.
255).
Pautando sua análise pela tipologia fenomenológica de Alfred Schultz acerca das
relações sociais38, Geertz observa que os balineses têm uma noção estática de tempo porque
possuem uma concepção despersonalizante da pessoa humana, uma concepção que se
esforça para enfocar os papéis sociais mais que os atores, que despreza a perecibilidade
destes e destaca a eternidade daqueles 39. Outra característica do sistema temporal balinês é
seu duplo calendário - "permutacional" e lunar-solar - que pressupõe uma noção
taxonômica de tempo, já que dividem e classificam os dias em "dias cheios" ou bons e
"dias vazios" ou ruins tanto no que concerne a vida religiosa quanto aos assuntos da vida
cotidiana (: 257-65).
Geertz chegou à noção balinesa de tempo analisando as estruturas simbólicas
através das quais as pessoas são percebidas e as práticas sociais ordenadas. É também
como um sistema simbólico que Norbert Elias (1998 [1992]) propõe que se tome o tempo,
numa obra que tem pretensões outras que as do antropólogo americano 40. O símbolo
tempo é, em Elias, um símbolo relacional, pois sintetiza a relação que um grupo social
estabelece entre dois ou mais processos, sendo um deles padronizado socialmente para
servir aos outros como quadro de referência e padrão de medida. Os processos que podem
servir a esse propósito são caracterizados pelo seu desenrolar contínuo, por estarem
ininterruptamente num movimento que é unilinear, unidirecional e em velocidade
uniforme; em suma, têm um movimento regular. O relógio, bem como o sol ou as estações
são exemplos desses processos físicos que as sociedades institucionalizam como símbolos
temporais (Idem: 39-40; 95). Como símbolos, as unidades de tempo (p. ex., "hora", "dia",
"noite", "nascente", "poente") emitem mensagens àqueles que partilham o mesmo código

38 Alfred Schultz, filósofo e sociólogo alemão radicado nos Estados Unidos, divide as relações sociais que as
pessoas estabelecem na sua vida cotidiana em quatro tipos-ideais principais. Para ele, os "companheiros" ou
"parceiros" podem apresentar-se um ao outro como "predecessores", "contemporâneos", "consócios" ou
"sucessores". Cf. Geertz (Idem), pgs. 229-33, para um detalhamento destes conceitos.
39 Contudo, é digno de nota que a afirmação de que os balineses possuem "concepção atemporalizante de
tempo" (Geertz, 1989: 256-7; 260) parece antes de tudo repousar sobre a visão de tempo ocidental da qual
Geertz não consegue se libertar e segundo a qual a aptidão cultural para a mudança e para a história estaria
tão-somente ligada a uma noção linear do tempo, a noção do próprio antropólogo. Pelo menos essa é a crítica
que lhe dirigem Nancy Munn (Op. cit.: 98-100) e Nicholas Thomas (1994: 216), para quem esta postura é
ainda resquício do colonialismo que impregna o fazer antropológico, com o que concordo em parte. A
terminologia de Geertz de fato conduz a esse julgamento. Apesar disso, prefiro ver no estudo do antropólogo
estadunidense uma tentativa de compreender um modelo de pensamento que "vai numa direção
acentuadamente diferente da nossa" (Geertz, op. cit.: 258). O ímpeto anti-colonialista pode às vezes cavalgar
sobre a pretensão universalista da cosmologia ocidental, seu próprio alvo, e pode, assim, deixar de ver,
passando por cima, as particularidades dos casos etnográficos concretos.
40 O tempo, para Elias, é um "instrumento de diagnóstico sociológico" (Idem: 21) como o fora para os
fundadores da Escola Francesa de Sociologia, mas um instrumento que lança luz sobre o processo civilizador.
Esta, sua a preocupação central. De fato, "Sobre o tempo" é o terceiro ensaio, de uma série de três, que ele
dedica a esse tema.
de comunicação. Essas mensagens indicam às pessoas o momento de se realizarem
determinadas atividades sociais e a duração que elas têm, fornecendo-lhes um meio de
orientação no fluxo incessante do devir, além de ser uma forma de coordenar as condutas e
as sensibilidades (: 30; 67; 83-4).
Assim, os referenciais de tempo são processos físicos - "naturais" (o sol, as
estações) ou de origem humana (relógios) - transformados em símbolos que os grupos
41
humanos institucionalizam segundo seus interesses culturais específicos (: 95). Elias
lembra ainda que o estudo da noção de tempo de um grupo humano deve relacioná-la a
outras instituições sociais e que ela é inseparável da representação do universo que tal
grupo faz e das condições nas quais vive (Elias, 1998 [1992]: 130; 141). É também
preocupada com os interesses culturais particulares das sociedades, ou com os "projetos"
culturais, que Nancy Munn (Op. cit.) propõe uma abordagem do tempo segundo a qual
processos naturais ou atividades sociais somente são utilizados como instrumentos
simbólicos após terem sido instituídos socialmente como "pontos de referência" para a
orientação da praxis, individual ou coletiva (: 102).
Isso significa levar em conta o "projeto" cultural dos sujeitos, pois, observa ela, as
pessoas constróem sua temporalidade em modos particulares de relação entre si e entre elas
e seus pontos de referência temporal. O interesse dos atores na contagem do tempo está
ligado aos seus propósitos de ação e interação num mundo que é, antes de tudo, um mundo
vivido. Nesse sentido, Munn sugere o conceito de "temporalização" (: 116), que "vê o
tempo como um processo simbólico que é continuamente produzido nas atividades
cotidianas" 42, atividades que configuram os "projetos" culturais de um povo, o conjunto de
objetivos culturais que revelam sua avaliação do que é o bom viver, seu sistema de valores.
Para dar conta da relação entre a estrutura simbólica do tempo e as práticas sociais,
o francês Roger Sue (1995) propõe o conceito de "tempos sociais". Ao invés de um tempo
social único, cada sociedade teria vários blocos de tempo através dos quais articula, dá
ritmo e coordenação às principais atividades coletivas às quais atribui importância
particular (Idem: 29). Entre estes tempos sociais, um destaca-se como determinante do
ritmo preponderante em cuja base se encontra uma prática social assumida coletivamente
como sendo de maior relevância (p. ex., o trabalho nas sociedades altamente
41 Valer destacar que, enquanto para Leach a ordem que fornece os meios de orientação temporal a uma
sociedade humana são os rituais, ou seja, suas próprias atividades sociais, Elias localiza tal ordem no domínio
dos processos físicos: os relógios, o movimento do sol, a alternância das estações. Em momento algum ele
vislumbra os rituais como demarcadores simbólicos do tempo.
42 "I have tentatively sketched a notion of "temporalization" that views time as a symbolic process
continually being produced in everyday practices".
industrializadas, ou os rituais em sociedades indígenas como a Krahô) e em torno da qual
giram as outras práticas. É nesta estrutura simbólica dos tempos sociais que a vida social
encontra seus ritmos e alternâncias. Daí o autor falar em "tempo social dominante", um
tempo que, baseado numa prática social preponderante, estrutura e polariza os outros
tempos sociais em torno dele próprio 43 (: 124).

*******

E aqui, com Munn e Sue, concluímos nosso percurso. Ele nos levou do tempo como
um meio de medição das distâncias socioculturais, passando por abordagens que se
valeram dele para chegar às representações coletivas das sociedades, até propostas teóricas
que o tomam com um problema focal, como objeto principal de investigação
antropológica, como bem evidenciou minha própria abordagem dessa questão. Nesse
sentido, espero que tenha ficado claro que o "tempo" tem ganhado na antropologia cada
vez mais destaque como uma face na qual a alteridade se manifesta, como uma página na
qual se pode obter informações valiosíssimas acerca das cosmologias e da ordenação das
práticas culturais. Ademais, como assevera Cardoso de Oliveira (Op. cit.: 145), tomando
categorias como a de tempo como objeto privilegiado de estudo, as pesquisas
antropológicas podem tornar-se mais libertas dos etnocentrismos que em muito ainda
impregnam os horizontes conceituais da nossa disciplina.

43 "La structure des temps sociaux s'organise autour d'un temps dominant qui structure et polarise l'ensemble
des temps sociaux autour de sa propre structure" (grifos do original).
CAPÍTULO II
ALTERNÂNCIA E LINEARIDADE DO TEMPO: OS CICLOS COTIDIANOS

Antes de entrar na questão da noção de tempo Krahô propriamente dita, algumas


informações preliminares acerca da sua organização social e da sua cosmologia se fazem
necessárias de modo a deixar clara a leitura do que virá mais abaixo.
Os Krahó, falantes de uma variante da língua Jê, tronco Macro-Jê, são uma
sociedade Timbira Oriental, do qual fazem parte ainda os Canela-Ramkokamekrá, os
Canela-Apaniekrá, os Krikati, os Pïkobyê e os Gaviões. Um dos aspectos fundamentais da
história da formação dos Krahô é, segundo Azanha (1984: 46-55), a relação entre dois
grupos Timbira, Mãkrare e Pãrekamekra-Kenpokateyê, dos quais eles teriam surgido44.
Ainda hoje esse subdivisão ressoa, em especial, no vigor com que as aldeias Krahô se
apegam às tradições timbira, ou ao que Azanha (Idem: 05; 51) chama de "Forma Timbira":
corrida de toras, aldeias circulares, rituais de iniciação e do ciclo anual, elementos
estreitamente relacionados à construção da sua temporalidade. Quanto ao ritual de
iniciação do Khetwaye, por exemplo, Melatti (1978: 274-293) indica a existência de
diferenças de detalhes na forma como é realizado pelos Mãkrare e pelos Kenpokateyê.
Gilberto Azanha lembra que os Mãkrare, de todos os Timbira, foram os que
primeiro estabeleceram uma aliança com um cupen (“civilizado”) rico, em 1810: o
fazendeiro e comerciante Francisco de Magalhães, fundador da atual cidade de Carolina
(MA). Essa aliança, da perspectiva dos índios, serviu aos seus propósitos de expansão
sobre o território de outros grupos. Penetrando no extremo norte do atual Estado do
Tocantins, os Mãkrare entraram em contato com os Pãrekamekra, cujos grupos locais -
Kenpokateyê e Põkateyê - estavam instalados em duas aldeias e com quem estabeleceram
uma aliança (1984: 46-47). Em 1848, os Mãkrare e os Pãrekamekra- Kenpokateyê, já
chamados de Krahô, foram levados para o sul pelo Frei Rafael de Taggia e em 1849/50,
após uma epidemia de sarampo, os sobreviventes seguiram para a região onde hoje estão
localizadas as suas aldeias (Idem: 47-8). Nesse sentido, Azanha destaca que, atualmente, as
aldeias Krahô ou são Mãkrare ou Pãrekamekra- Kenpokateyê 45 (Ib.idem: 49).
44 Sem poder discutir em detalhes a complexa história da formação dos Krahô, indico o capítulo final da
dissertação de G. Azanha (1984), "Notas preliminares para uma etno-história Krahô".
45 Há um mito que explica a origem dos Mâkrare. Trata-se do mito da mulher e da cobra (Schultz, 1950:
156-8), que fala do tempo em que o mundo começou ser povoado pelos índios. Haviam então muitos índios,
Contudo, segundo Melatti (1978: 78), existiria ainda a subdivisão Krikatire e
Krïkateyê na aldeia Boa União, além da referência a outros grupos como Pãhãmekra e
Krãhamekra. Some-se que as aldeias Pãrekamekra têm vivido entre si uma rivalidade
levada a cabo pelos subgrupos Kenpokateyê (dentre as quais Azanha cita a aldeia Pedra
Branca) e Põkateyê (aldeia Rio Vermelho, por exemplo) e eles, em conjunto, têm mantido
relações de distanciamento e indiferença com as aldeias Mãkrare (p. ex., aldeias Galheiro e
Santa Cruz). Em boa medida, estas relações por vezes não muito amigáveis entre
Pãrekamekra e Mãkrare têm a ver com as dificuldades que os Mãkrare demonstram para
seguir vivendo segundo os padrões culturais tradicionais e que são explicadas, segundo
Azanha (1984: 50-2), pela proximidade das suas aldeias com os cupen, elemento que
"limita e descaracteriza"46. Porém, ele adverte, aldeias Mãkrare podem continuar, sim, a
reproduzir a "Forma Timbira"47 (Idem: 51). Além do quê, os Krahô se consideram uma
unidade, a maioria das pessoas sendo muito pouco informada acerca das subdivisões
(Melatti, idem).

As aldeias circulares são "um dos aspectos mais característicos da cultura Timbira"
(Nimuendajú, 1946: 37). Vimos com Azanha que as aldeias krahô mantêm sua morfologia
espacial como forma de resistência frente ao cupen48. O ser Timbira não se realizaria sem a
forma tradicional das aldeias. Aliás, nascer numa aldeia Krahô é um dos principais
definidores da identidade étnica do sujeito, mas numa aldeia tradicional porque aquelas que
têm a forma dos povoados dos brancos (algumas Mãkrare) não são de mehin (Timbira),
nem tampouco de cupen, mas de cupen cahogré, "falsos civilizados" (Melatti, 1984: 190) .
O modelo das aldeias é o seguinte: cada casa (Ikré) é ligada ao pátio (Kë), também circular,
por um caminho radial denominado Prïkarã; diante das casas passa um caminho circular
(Krikapë) no qual são realizadas as corridas de toras e certos rituais (Melatti, 1978: 34). O

que brigavam bastante entre si. Um dia, um índio matou a ema do outro. O dono da ema zangou-se, reuniu
seus parentes e fundou uma nova aldeia à qual deu o nome Mãkrare, "filhos da ema".
46 Nimuendajú, que esteve entre os Krahô em 1930 e contou 100 indivíduos Mãkrare e 300 Kenpokateyê,
designou a perda dos diacríticos timbira dos Mãkrare como “decadência” (1946: 26). Azanha (1984: 51) faz
referência a uma genealogia dos Mãkrare, que ele elaborou e que remonta até o começo do século XX,
segundo a qual a composição atual deste grupo é de descendentes Xerente (a maioria), “civilizados”, Apinayé
(Timbiras Ocidentais) e Canela.
47 Azanha cita como exemplo a aldeia da Serrinha, atual Galheiro (Idem: 51).
48 Cupen é um substantivo que designa o "outro", o "estrangeiro" tanto indígena não-timbira quanto branco.
Ou, segundo Azanha (Op. cit.: 32), é o que "da 'Forma Timbira' não apresenta nada de reconhecível" e com o
qual, portanto, nenhuma reciprocidade é possível. O verdadeiramente Timbira e, logo, humano é chamado
mehin, termo que Nimuendajú (1946: 12) sugere seja traduzido por "pessoa" (person). Sabendo que outros
dois traços distintos dos Timbira Orientais são o corte de cabelo e os batoques auriculares, não deixa de ser
interessante observar que, para algumas dessas sociedades, mehin tem também o sentido de "corpo" (cf.
Nimuendajú, idem).
pátio da aldeia é, segundo sua ideologia dualista, o domínio masculino. Nele se realizam as
reuniões diárias dos homens, os cantos e danças ao nascer e ao pôr-do-sol, além de outros
ritos. Até recentemente, era no Kë que os rapazes solteiros dormiam. A periferia,
conformada pelas casas, é o domínio feminino. É onde as mulheres realizam as tarefas
domésticas, onde as pessoas nascem e onde, teoricamente, elas devem morrer
(Nimuendajú, 1946: 133; Carneiro da Cunha, 1978: 16). O pátio, centro da aldeia, é
associado ao sol, ao dia, à estação seca, ao passo que a periferia é ligada à lua, à noite, à
estação chuvosa. Assim, na configuração espacial da aldeia krahô está refletida a oposição
dos elementos centrais constituintes do universo segundo a cosmologia dualista dos
Timbira-Jê (Melatti, 1974b: 41; Maybury-Lewis, 1979: 09).
Na periferia da aldeia vivem as famílias elementares, as unidades socioeconômicas
básicas. Cada família elementar dispõe de uma roça e é a ela que o homem destina quase
tudo o que produz. Numa casa é comum morarem várias famílias elementares, ligadas entre
si pelas relações de parentesco das mulheres, já que a residência é uxorilocal. Quando uma
mulher cozinha, o alimento é repartido entre todos da casa, embora cada família elementar
fique em separado para comer (Melatti, 1978: 52; Ladeira, 1982: 16). O grupo doméstico
formado pela co-habitação de famílias elementares inter-relacionadas é melhor articulado
quando o sogro dos homens está vivo, pois é ele que coordena suas atividades econômicas.
Neste sentido, Ladeira (1982: 23) lembra que a "força do chefe do grupo doméstico" é um
fenômeno que se manifesta entre os Krahô devido ao fato de as mulheres, aí, terem um
peso político insuficiente para neutralizar a ação do homem no âmbito doméstico49.
Quando uma casa fica demasiado cheia, outra é construída ao lado. O conjunto de casas
contíguas forma um segmento residencial, de maneira que entre os Krahô "seus segmentos
residenciais quase sempre coincidem com o grupo doméstico", sublinha Ladeira (Idem:
25). A principal característica dos segmentos residenciais é a exogamia, já que não
recebem um nome especial, não têm prerrogativas rituais ou o direito sobre certos bens
nem tampouco estabelecem relações de hierarquia entre si50 (Melatti, 1973: 04; Ladeira,
idem: 19). A periferia, em suma, é a esfera das relações de parentesco: nela, as pessoas são
49 Contrariamente ao que ocorre entre os Canela, onde a força política das mulheres está atrelada ao peso
dos segmentos residenciais nos processos decisórios: "Quanto mais casas e mulheres tiver um segmento
residencial mais força terá para impor seus interesses frente aos outros segmentos, pois são as alianças
estabelecidas entre eles que garantem a estabilidade política da aldeia" (Idem: 22).
50 Lévi-Strauss (1970 [1956]: 164) generaliza para todos os Timbira Orientais as observações de
Nimuendajú de que o casamento é regulado pelas metades Harãkateye e Khöikateye. Porém, a unidade
exogâmica entre os Krahô é o segmento residencial. Sobre isso, Ladeira (Idem: 20) destaca que a quebra do
princípio de exogamia implica no reconhecimento da separação dos parentes membros do segmento
residencial. Ademais, em vários mitos, vamos ver, o rompimento com esta regra desencadeia uma ruptura nos
laços de parentesco cujos efeitos são uma separação espacial de fato.
ligadas umas às outras através do corpo. No contraponto, o pátio é o tablado onde as
relações de natureza cerimonial são encenadas: nele, o que liga as pessoas são seus nomes
pessoais.
O dualismo complementar faz com que, nos cantos e danças do poente, as mulheres
levem a periferia para o pátio. Este, por sua vez, se faz presente na periferia através de uma
instituição central no sistema social Krahô. Trata-se do Wïtï, meninos e meninas que têm
participação importante em vários ritos. Os/as wïtï são crianças associadas aos três grupos
básicos das sociedade. As mulheres têm um menino wïtï, os indivíduos imaturos do sexo
51
masculino têm uma menina e os homens adultos têm outra menina como sua wïtï
(Melatti, 1978: 302). Pesa, na seleção das crianças, a conduta dos pais: eles devem ser
generosos, amantes da paz, industriosos (Nimuendajú, idem: 92-3; Melatti, idem: 303-4).
Eles devem, enfim, encarnar os mais altos valores morais da sociedade, que tem como
locus não somente o pátio, mas também a periferia: a casa do wïtï. Dois outros fatos
corroboram a associação da casa do wïtï com o pátio. O primeiro é que ela é
permanentemente aberta ao grupo associado; é seu ponto de reunião, pois, como me disse
um morador da aldeia Manoel Alves, é sua "pensão". O segundo é que, se não houver,
durante um período, nenhuma casa de wïtï, as corridas de toras terminam, todas elas, no
pátio. Assim, tendo "como que a presença do centro da aldeia na sua periferia" (Melatti,
idem: 306), o espaço social da aldeia só ganha sentido se vivido na completude da
interação dos seus contrários52.
O dualismo complementar expresso por essa relação do centro com a periferia da
aldeia é somente um exemplo do arranjo dual do universo no qual se movimentam os
Timbira. Esse dualismo realiza o que Lévi-Strauss (1971 [1956]: 155; 165) pôs em relevo:
a justaposição de dicotomias assimétricas (dualismo “concêntrico”) sobre dicotomias
simétricas (dualismo “diametral")53. É assim que o leste se opõe ao oeste, o dia à noite, o

51 Pode acontecer que algumas aldeias tenham meninos e meninas wïtï associados às mulheres e aos homens
das metades Harãkateye e Khöikateye. Isso, que Melatti (Idem: 303) viu na aldeia Cacheira, eu vi na aldeia
Manoel Alves. Nimuendajú, que esteve na aldeia do Porto dos Ramkokamekrá, também observou os wïtï
associados as essas metades, sobre o que ele diz que as duas crianças escolhidas devem ter os pais
pertencentes a metades contrárias e que suas casas devem estar dispostas de maneira diametralmente opostas
(1946: 92-3). São essas metades que participam dos ritos de investidura e de abdicação do wïtï (cf. Melatti,
ib. idem: 306-13). De qualquer modo, as crianças escolhidas devem ser virgens, com idade entre 5 e 7 anos;
quando alcançam a puberdade, por volta dos 12 anos, deixam der ser wïtï.
52 Melatti (1973: 03) chamou essas "exceções institucionalizadas" que afirmam a igualdade dos pólos
contrários de "oposição da oposição". Ele dá como outro exemplo a antiga prática do enterro, no pátio, de
certas figuras de prestígio, quando se sabe que o costume era o sepultamento na periferia, ou junto às casas ou
dentro delas, numa afirmação de que os vivos estão ligados ao centro e que, portanto, são diferentes dos
mortos. Assim, a oposição vivos-mortos encontra sua própria oposição nos sepultamentos excepcionais:
mortos e vivos são iguais. Sobre a oposição vivos e mortos, cf. também Carneiro da Cunha (1978).
53 Este texto de 1956 testemunha um uso mais ampliado do conceito de organização dualista por parte de
Lévi-Strauss, que aí inclui a oposição entre aspectos dos mundos físico e metafísico para além daquela entre
masculino ao feminino; mas o leste e o dia estão ligados ao centro, ao masculino, ao pátio,
enquanto que o oeste e a noite estão associados ao periférico, ao feminino. Neste sentido,
esse autor ainda observa (Idem: 170-1) que, sob esse simbolismo antitético, se oculta uma
concepção que atribui valores desiguais a dois termos de base: estabilidade e mudança, ou
continuidade e descontinuidade.
Por outro lado, essa visão dualista do universo, que os Krahô compartilham com os
demais Jê, e segundo a qual é da própria natureza das coisas e dos seres se apresentarem
como bipartidos em oposições (Melatti, 1976: 140; Maybury-Lewis, 1979: 12-3),
manifesta-se na forma como a sociedade é arranjada, qual seja, num complexo sistema de
pares de metades. Para os propósitos desta dissertação, discorrerei brevemente sobre dois
destes pares que me parece serem mais importantes para a compreensão da noção de tempo
Krahô: Wakmeye e Katamye, metades sazonais, e Khöikateye e Harãkateye, metades de
classes de idades associadas ao leste (nascente) e ao oeste (poente) respectivamente.

Como as demais metades, o par Wakmeye-Katamye não é regulador do matrimônio,


tendo mais uma natureza ritual54 (Melatti, 1973: 01; 1978: 81). A cada uma dessas metades
estão associados vários símbolos, alguns dos quais denotando períodos de tempo. A
metade Wakmeye está associada ao pátio da aldeia, ao fogo, às listas verticais da pintura
corporal, ao vermelho, ao nascente, ao dia, ao sol, à estação seca. A metade Katamye está
ligada à periferia, à agua, às listas horizontais da pintura corporal, ao poente, à noite, à lua,
à estação chuvosa55. Vê-se, então, que Wakmeye e Katamye são conceitos com "quadro
cósmico de referência" (Whorf, 1968: 61). Mas são conceitos cujos sentidos plenos

grupos sociais (cf. pg. 155). Em textos anteriores (1982 [1949]; 1970 [1952]), a ênfase deste conceito recaía
sobre os sistemas de trocas matrimoniais restritas, ou seja, tão-somente a oposição entre grupos sociais -
metades - fundamentada na dicotomia entre primos cruzados e primos paralelos. Como resposta à pergunta
"As organizações dualistas existem?", Maybury-Lewis, numa carta-circular enviada aos participantes do
Projeto Havard-Brasil Central, em 1964, propôs que se pensasse, com este conceito, em termos de um
contínuo no qual há, num extremo, sociedades onde boa parte das idéias e instituições são ordenadas de
maneira dual e, no outro, sociedades onde as "antíteses simbólicas" não têm peso algum (cf. Melatti, 2002:
183). Os Krahô seriam, pois, exemplo de uma sociedade localizada próximo ao primeiro extremo, como
defendeu Melatti (1973, 1976).
54 Além desse par e do par Khöikateye e Harãkateye, os Krahô têm ainda outros: Khöirumpekëtxë e
Harãrumpekëtxë, cujo direito de pertencimento está ligado ao nome e dos quais as mulheres estão excluídas,
e que atuam nos ritos do Khetwaye e do Pempkahök; as metades Hëk e Krókrók, que atuam no ritos
Pempkahök, Khöigayu e Piegré; e o par Tép e Teré, que participa da "festa da lontra e do peixe", Tépyarkwa
(Melatti, 1978: 88-92). Somente as metades sazonais e as metades Khöirumpekëtxë e Harãrumpekëtxë
possuem um repertório de nomes pessoais associados. Cf. Lave (1977) para uma análise do relacionamento
entre os pares de metade dos Timbira Orientais, pautado nos Canela-Ramkokamekrá.
55 Essas metades correspondem às metades Atukmakra e Kamakra, dos Canela-Ramkokamekra. À primeira
(Atuk ="fundo da casa", periferia), Nimuendajú associa também a batata-doce e o inhame; à segunda (Kë =
pátio), estaria relacionado o milho (1946: 84). Isso faz sentido, já que nos mitos que veremos em seguida o
milho é um elemento masculino, portanto, ligado ao pátio, e a batata-doce e o inhame são alimentos
femininos, logo, associados à periferia (cf. Chiara, 1979: 32, e Lévi-Strauss, 1991: 313).
dependem da sua relação um com o outro e sobre os quais se levanta todo um conjunto de
práticas. Assim, são as metades Wakmeye e Katamye que realizam os ritos do ciclo anual,
ou seja, os ritos que inauguram e encerram as estações seca e chuvosa56. Nas reuniões da
pátio, os membros da metade Wakmeye sentam-se a leste e os membros da metade
Katamye, a oeste (Melatti, 1978: 81).
Como veremos mais abaixo, existem alguns cânticos que são divididos entre essas
metades e cujos ritmos das danças que os acompanham dependem da metade à qual
pertence o cantor. Existem, além disso, alguns gritos que são verdadeiros "ritos orais"
(Mauss, 1968b), haja vista terem o "tempo" certo de serem ecoados estabelecido pela
tradição. Assim, os gritos da metade Wakmeye, ouvidos em certos rituais da estação seca,
são gritos que reproduzem o canto da rola-azul fêmea, que canta durante o dia. Já os gritos
da metade Katamye, ecoados em ritos que ocorrem durante a estação chuvosa, são os
cantos do gavião irerëkateré, que canta antes do sol nascer (Melatti, 1978: 82).
Existe uma série de comportamentos rituais cuja observância deve levar em conta a
quais períodos de tempo as metades dos sujeitos estão associadas. Sobre as metades
correspondentes dos Canela, diz Nimuendajú (1946: 86) que, nos rituais de iniciação, os
noviços de afiliação Atuk (Katamye) podem deixar o campo de reclusão ao anoitecer, "pois
a noite pertence aos atuk", enquanto que os iniciandos Kamakra (Wakmeye) não o deixam
antes do sol raiar, "pois o dia pertence aos Kamakra". Marcel Mauss (1968a [1904-05]:
448-9) apontou, nesse sentido, para o fato de que algumas sociedades fundamentam certas
interdições rituais com base nas suas representações coletivas do tempo. Assim, enquanto
os membros da metade Katamye não podem procurar abrigo quando chove, aos membros
da metade Wakmeye são interditas as sombras nos dias de sol quente (Melatti, idem).
A mudança nas estações sinalizada pelos ritos que essas metades realizam implica
não somente mudança nos ciclos do "tempo ecológico". Há uma conotação estrutural na
mudança do tempo porque o que está envolvido aqui, como entre os Nuer, é uma mudança
nos relacionamentos entre os dois grupos sociais (Evans-Pritchard, 2002: 118). A
alternância do tempo sazonal é a alternância na precedência que um grupo tem à frente da
coordenação das atividades cotidianas da aldeia, de maneira que desta alternância deriva a
noção de ano para os Krahô. Assim, no início da estação seca (março-maio), os homens da
metade Wakmeye escolhem dois indivíduos do sexo masculino para serem “prefeitos”
(Homrén) da aldeia durante essa estação. No começo da estação chuvosa (setembro-
novembro), são os homens da metade Katamye que escolhem os dois “prefeitos” (Melatti,
56 Devo acrescentar que Wakmeye e Katamye são dois conceitos polares que funcionam como operadores
classificatórios de animais e plantas, sobre o que falarei mais à frente.
1978: 83). Os "prefeitos" são incumbidos de orientar os outros, nas reuniões matutinas do
pátio, com relação aos trabalhos com os quais a comunidade ficará envolvida durante o dia.
Portanto, espera-se que ele tenha um certo conhecimento das condições que a estação em
curso, à qual ele é associado, pode propiciar57. A coordenação das atividades do dia pelos
"prefeitos" da estação é como que o reconhecimento de que a sazonalidade penetra o
cotidiano.

ESTAÇÃO SECA ESTAÇÃO CHUVOSA

Mar./Mai Set./Nov. Mar./Mai

Wakemye: Sol, Dia, Listas Verticais Katamye: Lua, Noite, Listas Horizontais

A condição de pertencimento a uma dessas metades é dada pela posse de um nome


pessoal a ela referente. O homem recebe o nome daqueles parentes consangüíneos a que
aplica o termo keti: Im, Imm, Pm, Ipm, PP, IPP. A mulher recebe seu nome pessoal
daquelas parentes consangüíneas que designa pelo termo tëi: iP, fiP, ffiP, mP, imP, mm,
imm58. O nominador passa a chamar ipantu àquele que recebeu seu nome (Melatti, 1973:
01, 06-07; 1976: 142). No rito de transmissão de um nome Wakmeye, que ocorre com a ida
do/a nominador/a à casa do seu/sua ipantu logo após seu nascimento, o líder dessa metade
vai até o pátio e dá seu grito característico de manhã, depois do nascer do sol; no caso do
nome Katamye, o processo é o mesmo, mas o grito da metade deve ser ecoado antes do sol
sair59 (Melatti, 1978: 105). Se o nome é que dá ao sujeito o direito de fazer parte de uma
ou outra das metades sazonais, o mesmo não ocorre com relação às metades de classes de
idade Khöikateye e Harãkateye, dentre as quais os dois "prefeitos" são escolhidos (eles
devem ser da metade da estação em curso, mas devem ser de metades de classes de idade
diferentes).
O rapaz adquire a condição de pertencimento a uma das metades de classes de idade
após ser introduzido numa ou noutra por um padré, mas sua permanência nela não é rígida.

da estação seca (Melatti, 1978: 83). O uso deste termo para designar os "prefeitos", tanto Wakmeye quanto
Katamye, parece confirmar a existência de uma valorização maior do elemento ligado ao sol. Melatti (Idem)
diz que um informante certa feita se referiu aos Katamye como "moles", por isso eles teriam vergonha dos
Wakmeye.
58 I= irmão, i=irmã, P=pai, m=mãe, F=filho, f= filha. Mais à frente, falarei novamente da nominação.
59 Falarei mais sobre os nomes pessoais quando vier a tratar da noção de pessoa.
Além disso, as classes de idade já não atuam como grupos distintos e organizados. Mas,
"as metades que as incluem continuam plenamente atuantes na organização social Krahô"
(Melatti, 1978: 85). Assim, as metades Khöikateye - "povo do nascente" - e Harãkateye -
"povo do poente" - realizam vários ritos cotidianos, como as corridas de toras, nas quais
formam os dois times60. Elas também participam dos ritos de investidura e abdicação dos
wïtï, do Hamaro (Idem: 148-50) e de outros como os ritos ligados às relações entre
parentes (p. ex. o Përtere e o Përekahëk) e o ritual de iniciação Khetwaye. Fora das
situações rituais, essas metades atuam como grupos nos mutirões para ajudar algum
membro na sua roça (Melatti, idem: 88).
Se há uma valorização dos elementos ligados ao sol, os Krahô parecem atribuir
valores diferentes aos dois pontos cardeais marcados pelo seu percurso no céu: Khöi, o
leste, lugar do nascente seria superior; Harã, o oeste, onde o sol se põe, seria inferior. No
ciclo cotidiano, o leste é onde o sol nasce com todo seu vigor, contendo aí maior potencial
de "energia vital", que vai se dissipando até atingir o ponto mínimo no poente. Há o mito
que narra a saga do herói que salvou seu povo da grande escuridão, conduzindo-o para o
Khoikwakhrat, descrito como um lugar de muita claridade onde "ninguém morre mais" (cf.
Schultz, 1950: 159). Assim, vários informantes de Melatti (1978: 87) afirmaram que os
Khöikateye têm mais força, são maiores e mais corajosos e que os Harãkateye são mais
fracos, menores e esquivos. Porém, é interessante observar que, apesar de figurarem no
discurso como simbolicamente desiguais, nos ritos e em outras práticas cotidianas o
comportamento recíproco entre elas é simétrico (Melatti idem: 353; Lave, 1977: 317). Isso
seria uma forma de solucionar uma desigualdade na ordem do cosmos através da conversão
dos seus elementos nos termos de uma igualdade simbólica na ordem da sociedade.
O que é importante destacar aqui é que, em várias reuniões matutinas, o "conselho
masculino" é dividido não nas metades sazonais, mas nas metades Khöikateye e
Harãkateye, ficando a primeira a leste e a segunda, a oeste. Além disso, os dois "prefeitos",
embora pertençam à mesma metade associada à estação em curso, devem ser sempre um
Khöikateye e outro Harãkateye (Melatti, idem: 87). Assim procedendo é como se os Krahô
estivessem afirmando sua experiência do tempo como sendo também marcada pela
alternância cotidiana: nascente - poente, dia - noite. Vimos que aos "prefeitos" compete a
coordenação das atividades cotidianas. Essas duas metades, portanto, estão ligadas a uma

60 Khöi, a mesma raiz da palavra Khoikwakhrat ("pé-do-céu"), quer dizer "leste", "nascente", Harã quer
dizer "oeste", "poente"; o sufixo kateye significa, segundo Azanha (1984: 10), "aquele que tem domínio sobre
alguma coisa, ser ou lugar". Sobre as diferenças de sentido dos sufixos "kateye" (ocupação territorial) e
"kamekrá" (origem), na relação entre os grupos Timbira, cf. Azanha (Idem: 09 ss).
noção de tempo de tipo "estrutural" (Evans-Pritchard, op. cit.: 116), derivada pois da
interação de grupos sociais cujo ritmo é o da oscilação entre pólos contrários e
complementares.

A dualidade alternância - linearidade na mitologia


Se a temporalidade, nas sociedades indígenas, deve ser entendida dentro do
contexto cosmológico expresso na mitologia, como sugere Lévi-Strauss (1968), há que se
atentar para dois ciclos da mitologia Krahô que estabelecem o duplo caráter do tempo,
como alternância (dia-noite, seca-chuva) e como linearidade (Chiara, 1979: 32). Neste
sentido, temos a cotidianidade construída como um tempo alternado e linear expresso num
eixo horizontal (Leste - Oeste da terra), a partir dos mitos das aventuras de Sol (Pud) e Lua
(Pudleré), da obtenção do fogo e da Mulher-Estrela, como vermos abaixo. A este tempo
contrapõem-se o da alternância sazonal, presente no eixo vertical (Céu - Terra) dos mitos
das Plêiades, de Tulkrén e do Khoiré, sendo que este sanciona alternância geral do tempo:
cotidiano e anual61.
No simbolismo astronômico dos mitos, encontramos a explicação para a existência
de uma periodicidade longa (anual, sazonal) e de uma periodicidade curta (a dos dias e das
noites). Segundo Lévi-Strauss (Idem: 13; 91-2), as constelações estão ligadas a uma
periodicidade lenta, visto que sazonal, e estruturada em torno do contraste que ela reforça
entre os gêneros de vida ou as atividades tecno-econômicas. Já os corpos celestes
singulares, como o sol e a lua, definem, em sua alternância diurna e noturna, uma
periodicidade curta, indiferente, em princípio, às mudanças sazonais. A periodicidade curta
contrasta com a lenta, que a engloba: a primeira é monótona, e a segunda, dinâmica.
Assim, nos mitos encontramos uma linguagem que dá a ordenação lógica do movimento do
universo, da sucessão dos seres e das coisas em cadeias nas quais tudo vem a seu tempo.
Vários autores, aliás, já demonstraram que a construção da temporalidade nas sociedades
indígenas é orientada pela mitologia (Ramos, 1990; Overing, 1995; Silva, 1998). Por isso,
apresento os referidos mitos Krahô, pois são eles que embebem de sentido o dualismo que
vamos verificar na noção de tempo desta sociedade62.

61 Assim, ao eixo horizontal do tempo cotidiano estão associados: Leste - Oeste, Nascente - Poente, Dia -
Noite; ao eixo vertical do tempo sazonal, Céu - Terra, Estação Seca - Estação Chuvosa.
62 Antecipo que podemos acrescentar dois círculos de oposição àqueles aos quais Carneiro da Cunha (1986:
22) se refere quando fala em "dualismo timbira". Dizendo respeito à natureza do tempo como alternância,
temos um círculo que opõe a estação seca à estação das chuvas, o dia à noite, e outro círculo referente às suas
A exposição que se segue pode ser um tanto cansativa, mas vale a pena acompanhar
as seqüências mitológicas que muito nos dizem acerca da noção de tempo Krahô.
Comecemos pelo tempo em que ainda não havia seres humanos, quando Sol (Pud) e Lua
(Pudleré) descem à terra, trazendo a alternância dia - noite e a cotidianidade que a torna
humana.

Sol e Lua criam os seres humanos e os seres e coisas que preenchem seu
cotidiano 63
Sol e Lua, dois hõpin (compadres), desceram do céu a um mundo já criado, porém
inabitado por seres humanos64. Quando chegaram, construíram cada qual uma
casa para si, ao término do que resolveram caçar. Pud sugeriu que fizessem toras
para correrem. Foram então até o mato, tiraram as toras e correram, daí, até as
suas casas cantando, "mas à toa mesmo, porque eram só os dois"65. Sugeriu Pud
que voltassem para o mato, a fim de caçarem capivara. Mataram duas. Fizeram
moquém para assar a carne da caça. Pud disse para Pudleré escolher um dos dois
animais abatidos, entre o macho e a fêmea. Pudleré escolheu a fêmea, acreditando
que o animal macho daria menos carne. Pud fez uma mágica que tornou o bicho
escolhido por Pudleré mais magro. Pudleré lamentou ter escolhido a fêmea.
Colocaram então a carne no moquém. Pudleré dormiu e Pud, não.

Pud atirou a gordura quente da capivara na barriga de Pudleré. Este saiu


correndo rumo ao rio de modo a esfriar-se. Pulou na água. Dentro do rio, retirou
uma tartaruga que tampava um buraco do qual saiu tanta água, que provocou uma
enorme enchente que varreu o mundo todo e carregou Pudleré para longe. Pud
arrependeu-se do que havia feito e salvou Pudleré. Então voltaram os dois para
sua pequena aldeia, na qual se dirigiram para o moquém. Após tirarem a carne já
moqueada (assada), Pud disse para tirarem mais toras para correrem. Foram para
o mato, cortaram as toras e voltaram com elas aos ombros, correndo e cantado "à
toa, pois havia só os dois".

Com a vida revelando-se monótona demais, Pudleré sugeriu a existência de


alguma coisa para lhes importunar, "alguma coisa pra espantar na nossa cara, no
nosso corpo"66. Pud então criou os mosquitos. Pudleré aborreceu-se com eles, pois
os muitos mosquitos criados somente picavam a ele. Pud ouviu suas lamúrias,

qualidades mais gerais: alternância vs. linearidade.


63 Trata-se aqui de um resumo feito por mim com base na versão completa e rica em detalhes que
encontramos em Schultz (1950: 55-63).
64 No início dos tempos, a Terra não estava pronta para ser habitada porque estava crua - Pye tam (Pye=
Terra; tam= crua, encharcada). Um evento repentino tornou-a apropriada para receber os demiurgos que
criariam os seres humanos: ela pegou fogo - Pye pôc (Terra ardente). Foi a própria terra que incendiou, e não
o que está em cima dela, como se de crua passasse a cozida (Chiara, 1979: 31).
65 Assim diz Yavu-Boaventura, que narrou este mito a Harald Schultz (1950: 55).
66 Schultz (Idem: 56).
sorriu e resolveu então criar o mutuca, um mosquito ainda maior ao qual ordenou
que ficasse picando o amigo. Pud pediu a Pudleré para ficar em casa, enquanto ele
iria ao "pé-do-céu". Lá, Pud apanhou um enfeite vermelho, um chapéu do pica-pau
da "cabeça vermelha"67. De volta à aldeia, Pudleré pediu a Pud que lhe desse o
enfeite, ao que disse não: "este enfeite eu trouxe de modo a andar com ele; cantar
com ele"68. Voltaram dessa feita os dois ao "pé-do-céu", Pud subiu e Pudleré ficou
embaixo. Pud disse que iria jogar um enfeite para Pudleré, mas que ele deveria ter
firmeza nas mãos para não deixá-lo cair. Apesar das advertências de Pud, Pudleré
não conseguiu segurar o enfeite, porque vinha fogo junto. Ao cair no chão, o fogo
do enfeite vermelho alastrou-se pelo mundo. Pudleré conseguiu escapar porque se
transformou num nhambu e voou para a casa do marimbondo, onde se escondeu.
Pud, com pena do cumpadre, o convidou para retornarem para casa. Já de tarde,
foram caminhando e cantando, "à toa".

Pud ficou aborrecido de viver sozinho e resolveu criar uma mulher. Foi caçar
novamente, correu com toras até a casa, apanhou uma cabaça e foi até o rio. Lá,
mergulhou a cabaça e em seguida a colocou no barranco, dizendo a ela que se
transformasse em mulher. Nascida, ela acompanhou Pud até sua casa. Pudleré
descobriu a novidade e resolveu tê-la para ele. Indo até a casa de Pud, Pudleré
seduziu sua mulher e copulou com ela. Pud a rejeitou e saiu para o mato,
chegando a uma fonte d'água onde havia um pé-de-buriti. Somente Pud sabia da
existência desta árvore que, bastante baixa, dava frutos em abundância. Pud os
comeu e fez fezes vermelhas. Pudleré percebeu, ficou interessado e perguntou a
Pud o que ele estava comendo. Pud o enganou, dizendo que era flor de pau d'arco.
Então Pudleré resolveu espionar o compadre e o viu comendo buriti. Porém, Pud
ordenou aos frutos que não amolecessem quando Pudleré viesse comê-los, a não
ser somente um. Pudleré foi até o chão sob o buritizeiro, apanhou fruto após fruto,
mas todos estavam duros. Por fim apanhou um buriti com a polpa amolecida e o
comeu. Voltou a procurar outros frutos moles, mas nada. Somente encontrando
frutos duros, irritou-se e arremessou um desses no buritizeiro que, com o impacto,
repentinamente ficou alto.

No outro dia, durante uma caçada Pudleré queixou-se a Pud que não havia nada
no mundo que o fizesse chorar. Pud fez então a cobra, que logo picou Pudleré nas
mãos. Pud, com pena, criou o antídoto e curou o compadre. Em seguida, voltaram
do mato correndo com toras. Chegando na aldeia, a mulher de Pudleré o
aguardava, à vista do que Pud resolveu criar uma mulher para si, através do
mesmo processo da cabaça na beira do rio. Após viverem um tempo na aldeia
somente os quatro, Pud e Pudleré resolveram entre os dois, no pátio, que iriam
procriar. Dormiram então com suas respectivas mulheres, que, no dia seguinte, já
estavam prontas para dar à luz. No outro dia seus filhos nasceram.

Pud e Pudleré discutiram a forma do resguardo. Pudleré queria um resguardo de


um mês, no mínimo, mas Pud queria um mais curto e sem interdições alimentares,
e acabou impondo, "só pra aumentar aldeia", um resguardo de um dia. Assim
procedendo tiveram muitos filhos, pois a gravidez de suas mulheres durava
somente um dia: "(...) de noite a mulher fica bochuda. Quando o dia amanhecendo,

67 O pica-pau, lembra Lévi-Strauss (1991: 278), é um pássaro "comedor" de madeira, donde sua associação
com o fogo no pensamento mitológico.
68 Schultz (Op. cit.: 57).
o menino sai fora da barriga da mãe" 69. Além disso, todo processo de crescimento
biológico da pessoa durava somente um dia 70. Como Pud tinha filhos e Pudleré
filhas, resolveram casá-los. Com a aldeia já "feita", Pudleré propôs novamente sua
forma de resguardo: durando meses, com interdições alimentares e sexuais e com
a observância dos pais e dos irmãos do recém-nascido.

Pud não concordou, discutiu, mas por fim cedeu. Ficou estabelecido o resguardo
de três ou quatro meses, como propôs Pudleré, porque assim é que as crianças
ficariam fortes. A aldeia aumentou, ficou grande e acabou por perpetuar-se. O
mundo só não ficou superpovoado porque, antes de ter suas mulheres, Pudleré
havia provocado a morte definitiva, contrariando a vontade de Pud, que era a do
renascimento após a morte71. Com a aldeia estabelecida, Pud e Pudleré
retornaram para o céu. Pud ficou com o dia para si e deixou a noite para
Pudleré72.

E assim, alguns dos primeiros elementos culturais e naturais que animam o


cotidiano dos Krahô são introduzidos na Terra por Sol e Lua. Ficam criados seres, coisas e
práticas que preenchem dias e noites dos seres humanos. Constróem casas, caçam, correm
com toras, fundam a aldeia de seus filhos. Sol e Lua, cada um conformando um partido,
realizam corridas de toras todos os dias após as caçadas, ou por qualquer outro motivo: a
corrida de toras é anterior à própria humanidade! Por um desejo de Lua aparecem os
mosquitos, insetos que, nas aldeias Krahô como alhures, são tão recorrentes como a própria
noite. Também devido a Lua, os buritizeiros crescem tanto. Os frutos desta árvore, bastante
apreciados pelos índios, abundam durante a estação chuvosa, período em que são colhidos
cotidianamente pelas mulheres, não sem algum esforço. O pátio da aldeia aparece como o
lugar que simboliza o público, mas também o masculino, pois é onde Sol e Lua, apartados
de suas mulheres, deliberam acerca da criação dos seres humanos, criação que é biológica e
social.
Pudleré estabelece o tempo linear do desenvolvimento dos seres, um tempo que

69 Idem, pg. 61.


70 O informante de Schultz diz que: "Quando o sol ia saindo, o menino já está puxando a perninha dele, o
corpinho. (...) Quando o sol subiu mais um bocadinho, já estava durinho. Já estava caminhando de joelho.
Quando o sol subiu mais um bocadinho, já estava caminhando. Quando está pra perto do meio dia, já pra
feito rapaz grande, já. Quando sol subiu mais bocadinho pro rumo do meio dia, já está com a barba pretinho,
já saindo" (Idem: 61-2).
71 Pud propôs que seus filhos, quando mortos, fossem colocados sob uma árvore e cobertos de folhas, de
maneira que, à tarde, pudessem voltar para a aldeia renascidos. Foi assim que fez com Pudleré. Este também
quis fazer o ritual funerário e pediu para que Pud morresse, o que aceitou. Pudleré o enterrou no cemitério,
cobrindo seu corpo com folhas e jogando terra em cima, de manhã cedo. À tarde, Pud acordou, desenterrou-
se e foi ter com Pudleré. Este disse que assim é que seria ensinado aos seus filhos (Idem: 63).
72 Na versão que encontramos em Nimuendajú (Idem: 243-5), Pud ostenta brincos vermelhos e Pudleré,
brincos pretos. Pud é associado ao que há de melhor e belo no mundo e Pudleré, ao feio e ao negro, ao
escuro. Nesse sentido, o dia é mais apreciado que a noite, visto que o "Sol assume o dia, deixando a noite
para Lua. Lua insiste em também ter o dia, mas Sol diz a ele que não era da sua alçada escolher, e assim é
como as coisas permaneceram" (Ib. idem: 245).
leva do nascimento à morte, sem retorno (Carneiro da Cunha, 1978: 20). Seus filhos e os
de Pud nascem. Eles discutem o resguardo, sua forma e sua duração. Se Pud tivesse saído
vencedor do embate, o resguardo duraria somente um dia, duração esta que seria a do
crescimento dos seus filhos. Mas como Pudleré convence o amigo, o resguardo que é
ensinado aos seres humanos tem a periodicidade marcada pelos meses, não pelos dias. A
periodicidade de Sol fica evidenciada, sua duração é a dos dias e a de Lua, a dos meses. Sol
é o guardião dos dias. Lua é senhor das noites. Há uma valorização do dia em relação à
noite, pois Sol se assenhora do dia e "deixa" a noite para Lua. É à noite que os mekarõ, as
almas dos mortos, perambulam. A noite é dos mortos, o dia é dos vivos. Talvez por esta
razão o cantador Krahô procura sair de madrugada a cantar: estaria ele apressando a vinda
de Sol, o clarear do dia, a dominância dos vivos. Os mortos, além disso, temem o chocalhar
do seu maracá (Carneiro da Cunha, 1978: 118). Percebe-se, assim, a associação de Pud,
Sol, com o masculino, o vermelho, o claro, os vivos e a de Pudleré com o feminino, o
preto, o escuro, os mortos. Aqui está a primeira bipartição do cosmo. Dias e noites
estabelecem a alternância da cotidianidade, a primeira dualidade temporal.

Da curiosidade de Pudleré (Lua) surge o trabalho 73

Ainda quando andavam sozinhos pelo mundo, Pud falou para Pudleré: "vamos
fazer roça". E foram, cada um para um mato diferente, abrir suas roças. Pud
levou seu facão e seu machado e disse para eles irem fazendo o trabalho. Suas
ferramentas trabalhavam sozinhas. Num dia só, Pud já tinha uma roça bem
grande. Pudleré, cujas ferramentas dependiam das forças de suas mãos para se
movimentarem, demorou várias semanas para aprontar sua roça. Assim, a roça de
Pud ficou pronta para receber o fogo bem antes que a de Pudleré.

Sempre ao pôr-do-sol, o machado de Pud parava de trabalhar, pois seu trabalho


estava feito. As empreitadas de Pudleré sempre duravam semanas, como quando
foi limpar o mato que ainda restava na sua roça. Pud resolveu começar a plantar,
e foi seguido por Pudleré nesta idéia. Começaram a plantar juntos. Mas a enxada
de Pud abria as covas sozinha e o arroz semeava-se a si mesmo, sem necessidade
de esforço. O mesmo acontecia com a mandioca. Tanto o arroz quanto a mandioca
brotaram e cresceram em um só dia. Assim, Pud voltou para casa antes de
Pudleré. Quando se encontraram, Pud disse que havia plantado somente algumas
sementes e cortado algum mato, de maneira a não deixar Pudleré descobrir que as
ferramentas e as sementes se moviam sozinhas.

Resolveram sair para caçar, pois a plantação ainda não havia crescido, dizia Pud.
Após a caçada, correram com toras. Fizeram moquém, comeram a carne e no
outro dia, logo cedo, foram cada um para sua roça. O arroz, já maduro, recebeu
as ordens de Pud para que se colhesse a si mesmo. Quando Pud já colhia, Pudleré

73 A versão completa se encontra em Schultz (Idem: 65-70).


começou a semear de fato. Mas seu arroz demorava mais para crescer e
amadurecer. Quando estava no ponto de ser colhido, Pudleré iniciou o trabalho da
colheita manualmente, sozinho, e com muito esforço. Quando a mandioca de Pud
já estava com as raízes grossas, as de Pudleré ainda cresciam. "Oh! Cumpadre,
parece que você plantou primeiro do que eu. Mandioca já tem muito raiz, e meu
ainda está crescendo"74, disse Pudleré, já desconfiado.

Ele decidiu, então, ir ver como o amigo fazia seu trabalho. No final do verão
seguinte, Pud anunciou o momento de reiniciar o trabalho de derrubada da
vegetação, a fim de fazerem suas roças. Saíram cedo para o mato, cada um para
um lado. Um pouco antes do meio dia, Pudleré foi espionar o trabalho de Pud, que
havia saído. Quando chegou, viu o facão e o machado trabalhando sozinhos; ficou
espantado. Mas as ferramentas quedaram paralisadas. Pud voltou e as viu em
inércia. Indo tirar satisfações com Pudleré, ouviu: "É, eu fui lá. (...) Agora eu vi o
jeito do cumpadre. Por isso planta primeiro do que eu!" 75. Desde então, nunca
mais as ferramentas trabalharam sozinhas76.

É por culpa de Lua que o trabalho manual existe, uma prática que se desenrola no
tempo da cotidianidade, dos movimentos diários do sol. Se não fosse por sua curiosidade,
não haveria necessidade do esforço humano, as ferramentas trabalhariam sozinhas, a
plantação se faria a si mesma - da semeadura à colheita - e tudo seria feito em poucos dias.
Agora, o trabalho de preparar a roça, da derrubada do mato até a colheita, dura semanas,
meses, e com muita labuta, com suor dos corpos dos homens. Por outro lado, Sol anuncia o
momento de começar a fazer a roça, no final da estação seca. O sol é cotidiano como a lua,
mas sazonal como as constelações (Lévi-Strauss, idem: 91). O eixo do seu percurso no céu,
de fato, sofre uma ligeira inclinação ao longo do ano: "eles [os Timbira] sabem
aproximadamente onde o sol nasce e onde se põe durante as estações seca e chuvosa."
(Nimuendajú, 1946: 232). Além disso, no episódio anterior da queda do enfeite
incandescente, o sol também é associado ao movimento sazonal do tempo: do fogo celeste,
que não poderia entrar em contato com a terra, resulta um grande incêndio, "de que a seca é
o pródomo modesto, mas empiricamente verificável" (Lévi-Strauss, 1991: 278).
Contudo, a ênfase, aqui, está na periodicidade curta do dia associada ao herói Sol.
Um só dia era suficiente para que todo seu trabalho de preparação da roça estivesse
concluído, um só dia era o necessário para sua plantação crescer e ser colhida. Além disso,
ele sempre volta antes para casa, ou seja, seus ciclos são mais curtos que os de Lua, que
retorna sempre depois de Sol. Lua é associada a um tempo mais longo, das semanas, dos

74 Schultz (Idem: 68)


75 Idem, pg. 69.
76 O mito de Sol e Lua apresentado por Nimuendajú (1946: 244) também faz referência a este episódio das
ferramentas que trabalhavam sozinhas.
meses. Os movimentos de Sol e Lua são coordenados, apesar de ter cada um sua roça:
começam o preparo da roça e a semeadura juntos, mas o tempo de Sol é mais curto, mais
rápido e o de Lua, mais lento, mais demorado. A vontade de Lua, porém, faz vencer sua
temporalidade do trabalho sobre a do seu amigo celeste: o trabalho nas roças dura meses,
ao término do que muito suor terá sido derramado. A alternância cotidiana é marcada pelo
machado de Pud, que lhe dá o sinal para voltar para casa, ao pôr-do-sol: finda o dia,
principia a noite. O machado simboliza a transição de um período para outro, encarna a
própria alternância. Como veremos, no poente ocorrem os cantos e danças no pátio da
aldeia. O trabalho deve cede lugar às corridas de toras, pois elas o antecedem.

Sol e Lua voltam para o céu, deixando com seus filhos a tarefa de obter a
tecnologia do fogo 77
Sol e Lua voltaram para o céu sem ensinar a tecnologia do fogo aos seus filhos, os
Krahô, que comiam carne assada pelo sol, um "fogo natural". Num certo dia, um
menino saiu para o mato com seu cunhado para pegarem um ninho de arara. O
menino subiu num pau. Chegando lá em cima, seu cunhado derrubou o pau e o
menino ficou preso no ninho. Com o tempo, ficou com fome e fedido, pois as araras
defecavam sobre sua cabeça. Uma onça macho que estava passando por ali salvou
o menino, dizendo que era seu tio (Keti), e o levou para casa, onde o garoto viu o
fogo da onça.

A esposa da onça macho por várias vezes ralhou com o menino. Ao descobrir, a
onça macho disse a ela que iria fazer um arco para o menino flechar sua mão,
caso continuasse a assustá-lo. A onça fêmea não ouviu o marido, e mais uma vez
abriu os dentes e as unhas para o garoto, que a flechou nas mãos e correu, correu
até que alcançou sua aldeia. Lá chegando, ele contou aos mais velhos sobre o fogo
da onça. Foi organizada uma expedição para apanhá-lo, mas aquele que fosse
pegar o fogo teria de ser bom corredor. Os índios aproveitaram-se da saída da
onça macho para entrar na casa (a onça fêmea, "grávida", estava deitada, sentido
as dores da flechada do garoto).

O índio corredor entrou na casa, pegou o fogo e saiu correndo com ele nos
ombros. Quando se cansou, passou para outro, que passou para outro, que passou
para outro, como na corrida de toras. Na aldeia, cada família ficou com um
pedaço de brasa, com o que fizeram fogo. Nunca mais os seres humanos comeram
carne crua. Já a onça, desde então só come carne assim78.

O fogo, elemento de uso cotidiano, aparece associado à relação keti-ipantu (tio-


sobrinho), uma relação dotada de um significado todo especial no sistema social Krahô,
77 Para a versão completa, cf. Schultz (Idem: 72-4).
78 O mito da obtenção do fogo que encontramos em Nimuendajú (Idem: 243) apresenta os mesmos
elementos estruturais.
como veremos abaixo. É com um animal protetor, que se diz seu tio, que o menino aprende
a fazer fogo. O fato de a onça macho não ter ligação consangüínea com ele destaca o
caráter mais social e ritual da relação keti-ipantu, que é estabelecida através dos nomes
pessoais. Tal como o fogo, a relação keti-ipantu deve se manter viva cotidianamente. A
corrida de toras, se precede o trabalho da roça, também antecede "historicamente" o próprio
cozimento dos alimentos: é a técnica corporal da corrida de toras que é utilizada para a
obtenção fogo. Sol e Lua, assim, aparecem novamente relacionados à cotidianidade diurna
e noturna: o fogo, desde sua captura junto à natureza, é utilizado dia após dia no preparo do
alimento que mantém vivos os seres humanos, dando força aos seus corpos; sem ele não
haveriam as fogueiras que iluminam e aquecem aqueles que participam das reuniões
matutinas e noturnas do pátio. Sem o sol e sem o fogo, não haveria vida. De acordo com
Lévi-Strauss (1991: 163; 184), mitos de origem do fogo são também mitos de origem da
culinária: como fogo de cozinha, o fogo terrestre é criador.

Katxerê, a Mulher-Estrela, ensina aos Krahô a agricultura e a culinária 79


Foi no tempo em que os índios já comiam carne cozida, mas não conheciam
alimentos como a mandioca, o inhame, o milho, a batata-doce. Um rapaz estava
dormindo sozinho no pátio 80. Uma estrela o viu, ficou com pena e resolveu descer
do céu para se casar com ele.

Transformou-se em sapo e pulou três vezes sobre seu peito, mas o rapaz a jogava
para longe. Até que ela se transfigurou em uma linda mulher. Ele a aceita, mas ela
pede para ficar escondida dentro de uma cabaça, de maneira que ninguém a veja.
Então, ele a levou para casa, atendendo a seu pedido. Mas a irmã do rapaz,
curiosa, destampou a cumbuca. Katxerê ficou brava com o marido por ter deixado
a irmã descobri-la. À noite, ficaram no terreiro da casa a irmã, a mãe e a própria
Mulher-Estela, ainda dentro da cabaça. O marido chegou, abriu a cumbuca e viu
sua mulher, já calma, sorrindo. Ela pediu a ele que a libertasse. Ela saiu da
cabaça e nos dias seguintes ensinou aos Krahô o plantio e o preparo do milho, que
abundava nas proximidades da aldeia mas que ninguém nunca havia tentado
cultivar, por medo de ser uma planta venenosa. Ensinou-os também a colher a
bacaba, fruto que já conheciam mas não consumiam, também por medo de ser
veneno. A própria Katxerê subiu no pé de bacaba, cortou um cacho e desceu com
ele. Ela lhes ensinou o preparo da bacaba. Também os introduziu no cultivo e no
preparo da mandioca. Seus ensinamentos eram dirigidos primeiramente às suas
parentes afins e só depois disseminado na sua e em outras aldeias.

Num certo dia, ela, que ainda não tinha tido relações sexuais com seu marido, foi
violada por um outro rapaz. Para vingar-se de toda aldeia, preparou uma bebida
venenosa com a qual matou quase todos. Voltou para o céu, mas, com pena dos
que ficaram, desceu novamente trazendo a batata-doce e o inhame81.

A Mulher-Estrela estabelece a ligação do tempo como alternância sazonal com o


tempo cotidiano82. A heroína desce à terra trazendo a prática cultural da agricultura e, logo,
os alimentos que são consumidos no dia-a-dia. Mas é uma prática que acompanha os
ritmos de alternância do "tempo ecológico", ou seja, deve-se observar o momento certo do
ano para lançar as sementes e para colher os frutos. Além disso, traz não somente a
agricultura, como também a culinária: o plantio e a colheita obedecem aos ritmos de um
tempo mais longo, do tempo sazonal; o preparo dos alimentos é uma prática cotidiana, que
se dá no fluir das horas83. Assim como "a mulher está na posição céu e o homem na posição
terra" (Lévi-Strauss, idem: 313), é uma festa associada ao ciclo vital do milho, alimento
oriundo da terra, que marca o final do ciclo da estação seca, enquanto que a festa que
marca o fim do ciclo da batata-doce, espécime vindo do céu, é o ritual que assinala o
término da estação chuvosa84.
O fato de Katxerê ter pedido para ficar escondida na casa de seu marido vai contra a
regra de residência matrilocal dos Krahô. Ela deixa sua casa, no céu, para ir para a casa
das parentes de seu marido, e envergonha-se por ter contrariado uma regra social. Aqui,
como nos outros mitos, o código astronômico fornece um modelo no qual o pensamento
indígena projeta o código moral da sociedade. Katxerê indo coabitar com as parentes do
marido é um exemplo de uma regra que apresenta fluidez no curso do tempo. Katxerê, a
Mulher-Estrela, estabelece a conexão da terra com o céu, do tempo cotidiano com o tempo
sazonal. Outras estrelas surgem no cenário mitológico para sancionar de vez a
temporalidade como alternância anual.

81 No mito da Mulher-Estrela apresentado por Nimundajú (Idem: 245) o rapaz com o qual Katxerê se casa
tem a pele escura e é, por isso, considerado feio. Seu nome é Tukti. Já Katxerê tem sua beleza associada à cor
clara da sua pele e seus longos cabelos. Nesta versão, muito provavelmente de origem Ramcocamecrá,
Katxeré decide voltar para o céu porque Tukti insistia em coabitar com ela. Ele diz a ela que não conseguirá
outra esposa, e lhe pede que o leve com ela. À noite, ela volta ao pátio da aldeia, onde canta até o dia raiar.
De manhã, ela e Tukti tinha desaparecido da terra. Vale acrescentar que entre os Kayapó, sociedade Jê do
Norte que partilha alguns traços culturais com os Timbira, também se nota a presença desta mesma
personagem mitológica (Kanye-kwéi, na sua língua), que teria ajudado a salvar plantas e seres humanos de
uma terrível seca que os castigara nos tempos primevos, trazendo as chuvas (Nimuendajú, 1986: 79; 81). Cf.
Lévi-Strauss (1991: 164-167) para outras versões Jê do mito de origem da agricultura.
82 Segundo Chiara (1979: 32), Katxerê é Vênus, o astro mais brilhante depois do sol e da lua. Sua órbita em
torno do sol leva 225 dias e comporta 5 fases (Boschetti et. al., 1980: 166-7).
83 Cf. Lévi-Strauss (Idem: 164), para quem o tema da origem da agricultura está relacionado ao da culinária.
84 Trata-se do rito Põhïyõkróu, no primeiro caso, e Yótyõpin, no segundo (Melatti, 1978: 169-74; 185-96).
Das Plêiades surge a estação chuvosa 85
O pai de sete filhos saiu para caçar, enquanto a mãe preparava comida em casa. O
filho mais velho sugeriu aos irmãos mais novos que fizessem sexo com a mãe. Os
outros acataram a idéia e ele, o mais velho, foi falar com a mãe. Ela aceitou.
Todos fizeram sexo com a mãe, mas o caçula ficou com vergonha e fugiu para o
mato. O pai, voltando da caçada, encontrou-o no caminho. O garoto narrou-lhe o
ocorrido. O pai voltou para casa e no dia seguinte surrou os meninos. Ainda irado,
fechou-se em casa e a incendiou. Transformou-se num gavião e fugiu. A mulher
também virou um gavião e acompanhou o marido.

Os filhos então saíram pelo mundo. A uma certa altura da caminhada, o caçula
teve sede. Cavaram num brejo seco, até que saiu tanta água que o rio encheu o
suficiente para deixar o irmão mais novo na outra margem, separado dos demais.
Um jacaré, ouvindo as lamentações do rapazinho, colocou-se à disposição para
ajudá-lo a atravessar o rio. Mas, traiçoeiro, pegou o menino e o arrastou para o
fundo do rio. Com a desculpa de apanhar sol, o menino pediu ao jacaré que o
levasse para cima, para o barranco. E assim conseguiu escapar do jacaré. Este
não desistiu e saiu correndo atrás dele. O garoto se escondeu na casa de vários
animais - nhambu, ema e macaco -, mas, ao menor sinal de desistência do jacaré, o
menino o provocava com xingamentos e a perseguição se reiniciava. Até que se
escondeu na casa do gambá, que matou o jacaré com sua secreção mal cheirosa.

O menino e seus irmãos, que estavam hospedados na casa do gambá, resolveram


morar nas margem do grande rio. A disposição das suas casas é aquela que desde
então vemos no céu, quando olhamos para as Plêiades (Krod'ré). Quando os
irmãos mergulham no grande rio, por volta dos meses de junho-julho, ouvem-se os
sons dos trovões. Desaparecem então, reaparecendo do outro lado.

Com a gramática dos sexos ordenando a divisão das tarefas cotidianas estabelecida
(o pai sai para caçar, a mãe fica em casa cozinhando), é sancionado o tempo da alternância
anual. Os meninos-estrela, após peregrinação, mergulham no grande rio, ouvem-se os
trovões: é o sinal de que as chuvas vão começar. O pai e a mãe que estavam nas suas
ocupações cotidianas deixam o mundo, transformados pela ação do fogo; a cotidianidade
masculina e feminina sai voando sob a forma de dois gaviões, pássaro classificado como
Katamye, metade das chuvas. Entra em cena o tempo da dinâmica extra-cotidiana, sazonal.
Assim, as Plêiades são associadas à enchente, à estação chuvosa. Sendo uma das poucas
constelações que os Timbira reconhecem, elas ocupam um lugar de fundamental
importância no seu sistema de conhecimento. Nimuendajú observa que sua visibilidade no
horizonte ocidental, depois do pôr-do-sol, é o sinal de que a estação chuvosa está se
aproximando e que, por isso, é tempo de começar as clareiras no mato para que o início da
semeadura se dê logo nas primeiras chuvas86 (1946: 62; 233).

85 A versão completa está em Chiara (1961-62: 333-339).


86 Julio Cezar Melatti (comunicação pessoal: jan./2004), lembrou-me que as Plêiades são da constelação de
As Plêiades nascem da relação incestuosa dos sete filhos com sua mãe. A conexão
entre a periodicidade "lenta" e relação incestuosa que lhe dá origem talvez se encontre na
quebra de uma regra que, como regra de exogamia, deve ser respeitada, obedecida no
tempo "longo". A observância da regra deve suplantar as vicissitudes do cotidiano, deve se
elevar por sobre o tempo que foge a cada hora, a cada dia, a cada noite - a regra deve
perdurar na sucessão das estações. A conseqüência da falta é a enchente, o retorno
periódico da estação chuvosa e a própria a alternância das estações87. "O retorno de tal ou
qual corpo celeste que se produz a cada ano, a cada mês ou a cada dia permite representar
os valores flutuantes da endogamia e da exogamia por um modelo apropriado"88 (Lévi-
Strauss, idem: 87).

Túlkrén sobe ao céu e de lá retorna trazendo o poder da cura e o rito de


Pempkahók 89

Túlkrén ficou doente. A aldeia mudou-se para o outro lado do ribeirão e a mulher
dele o abandonou pelo irmão. Doente e sozinho, Túlkrén foi visitado por diversas
aves que lhe tiraram do ouvido uma formiga, causadora do seu mal-estar. Depois
da cura, transportaram-no para o céu.

De lá, ele viu que sua mulher o enganava com o irmão. Os urubus lhe levaram
excrementos humanos para comer, mas ele não aceitou. O gavião, grande xamã,
trouxe um papagaio, depenou, mastigou a carne e espalhou-a com o sangue pelo
corpo de Túlkrén, para que ele pudesse comer carne crua também, sem ter dor de
barriga. Fez "feitiço" para que ele enxergasse tão bem quanto o Gavião. Deram
muita caça para ele comer, e fizeram a festa do Pempkahók, "festa do gavião".
Depois da festa, Túlkrén cantou como uma lontra, transformando-se nesse animal

Touro, que fica por trás do Sol no mês de maio. Portanto, navegando pelo céu durante dia, elas ficam visíveis
quando o sol se põe. A utilização das Plêiades como indicadoras da mudança das estações, na América do
Sul, é bastante difundida, como demonstra Lévi-Strauss (1991: 211). Mas esse autor lembra também que os
testemunhos etnográficos são assaz divergentes. Assim, em algumas sociedades, seu aparecimento é
associado à estação seca, enquanto que em outra sociedade localizada na mesma latitude, ele é o presságio do
começo da estação chuvosa. Assim o é num mesmo complexo sociocultural: os Xerente e os Bororo associam
as Plêiades à estação seca, ao passo que para os Timbira Orientais elas são o sinal do começo da estação
chuvosa (cf. Lévi-Strauss, idem: 236, e Nimuendajú, idem). De qualquer modo, cada sociedade escolhe seus
referentes temporais segundo seus critérios próprios, e um mesmo significante pode ter significados diversos.
87 Lévi-Strauss (1968: 87) assinala que as constelações aparecem, nos mitos sul-americanos, como sendo
nascidas de uma falta, da quebra de uma regra, da subversão de uma aliança por um ato de traição. Disto
resulta que elas são mensageiras do retorno periódico, por exemplo, das enchentes, a conseqüência da falta.
88 "(...) Le retour périodique de tel ou tel corps céleste se produit chaque anée, chaque mois ou chaque jour,
il permet de represénter les valeurs fluctuantes de l'endogamie e de l'exogamie par um modèle approprié".
89 Cf. Chiara (Idem: 349-50), para a versão completa.
para descobrir e comer peixes que os pássaros haviam escondido para ver se ele
tinha capacidades de curador. Depois dessa demonstração, Túlkrén resolveu ir
embora. Virou folha seca e caiu do céu.

Chegando na terra foi muito bem recebido por todos, inclusive pela esposa que já
estava grávida. Depois de muita insistência de todos, concordou em receber de
volta a esposa, mas não quis com ela ter relações sexuais, pois estava grávida de
outro. Como ela negasse a gravidez, Túlkrén com auxílio de fumaça e soprando
uma flechinha pequena, fez cair o filho da mulher. A mulher continuou enganando-
o com seu irmão, mas Túlkrén tudo via, transformado em mosca, até que mandou
que o formigão picasse o pênis do irmão. Depois dessa experiência, ele não mais
se animou a ceder aos convites da cunhada. Kwük, índio de outra aldeia, fez um
desafio a Túlkrén. Este venceu a competição, fazendo crescer penas mais bonitas
que a do rival e voando mais, até outra aldeia de onde trouxe um enfeite de
extraordinária beleza. Kwük retirou-se envergonhado.

Há uma inversão face à situação apresenta no mito da Mulher-Estrela. A heroína,


vigorosa e bela, desce do céu e ensina. Aqui, o herói moribundo sobe ao céu para aprender.
Volta de lá, curado e sabendo curar, trazendo o rito de iniciação do Pempkahók e cantos
ligados à caça. Mas só pôde fazê-lo porque antes se despojou da "forma Timbira", ou seja,
deixou de viver segundo os modelos de relações sociais da aldeia (Azanha, 1984: 34). Vai
ao céu e retorna com o poder mágico da cura, do restabelecimento da vida. Numa versão
apresentada por Melatti (1970: 69-70), o herói é conduzido, no céu, à presença de Akrãti, o
Trovão, que lhe demonstra seus poderes fazendo ressoar sua trovoada: sinal das chuvas. O
mito de Túlkrén, assim, corrobora a ligação da terra com o céu, ajuda a estabelecer o tempo
"longo", até mesmo porque o Pempkahók ocorre segundo uma periodicidade lenta, de
ciclos longos. Tulkrén retorna do céu trazendo também a prática do xamanismo - a cura, a
faculdade de ver além e a de entrar em contato com os mekarõ -, uma prática que exige
poderes extra-cotidianos e a capacidade de trânsito entre o mundo dos vivos e o mundo dos
espíritos90. A alternância entre estados parece fornecer, assim, o modelo para a alternância
das estações. Além disso, o xamã tem o poder de "fazer cessar uma chuva para permitir a
realização de alguma tarefa" (Melatti, idem: 66). Some-se a isso que Tulkrén teria
aprendido o rito de Katamti, que marca a duração da estação chuvosa, conforme indica
Melatti (1978: 241). Mas falta, para completar, um mito que trata justamente do ponto de
conexão entre o céu e o terra, o Khoikwakhrat, o "pé-do-céu", donde partem o dia e a noite,
onde a estação seca e a estação chuvosa se encontram.

90 Segundo Melatti (1970: 73), o aprendizado formal e informal para se tornar xamã, entre os Krahô, está
estreitamente relacionado com o reviver este mito por parte do aprendiz.
Khoiré estabelece as alternâncias do tempo 91
A casa do Khoiré é no Khoikwakhrat, o pé-do-céu, isto é, nas alturas do oriente.
De lá ele lança em direção ao mundo, abaixo, milhares de noites tímidas que
foram escutá-lo. Os Krahó chegam ao pé da montanha conduzidos pelo herói
Hartant e, seduzidos pelo canto que ouvem, pedem a Khoiré um de seus filhos; ele
lhes dá seu filho homem, um machado em forma de meia-lua, e fica com a mulher.
O machado ensinará seus cantos aos índios, mas aquele que o possuir deverá ser o
modelo das virtudes Krahó: não deve fazer barulho, deve escutar mais do que
falar, não deve brigar, nem se divorciar, dever dormir pouco, não maldizer e
esperar que todos tenham sido servidos para comer92.

Segundo Leach (1974: 201), mitos que falam da criação de elementos contrários
são, no fundo, mitos de criação do tempo. O mito do Khoiré sanciona, então, o tempo
como alternância, uma alternância que é vivenciada não somente no tempo "lento", anual,
mas também no fluxo cotidiano: dia e noite, estação seca e estação chuvosa. Por outro lado,
o machado khoiré ensina os cantos aos Krahô, mas aquele que os possuir deverá ter as
verdadeiras virtudes humanas93. Assim fica estabelecido que o modelo de humanidade está
associado aos cantos, como fica instituído que o cantor, com sua voz e o Khoiré em mãos,
é o fazedor do tempo. Como bem salienta Seeger (1980: 84), de fato a música é um veículo
privilegiado para a transmissão de valores e de ethos.
O canto do Khoiré, que goza de um prestígio todo especial, era, antigamente,
adquirido após o ritual de iniciação do ikrére, nome dado a qualquer cantor do sexo
masculino (Melatti, 1982: 35). Sua importância cerimonial pode ser deduzida, outrossim,
do fato de que o "dono do Khoiré" recebe seu nome no pátio, enquanto os outros nomes

91 Chiara apud. Carneiro da Cunha (1986: 38).


92 Na versão de Schultz (Idem: 114-8) deste mito, o khoiré é utilizado como uma terrível arma de guerra, nas
lutas entre os Krahô e os Krolkamekrá, grupo vizinho já extinto. O machado, sob domínio dos Krahô, é
tomado durante uma disputa na qual seu dono é morto a flechadas. Aquele que o mata, da tribo estrangeira,
leva o khoiré consigo, mas é indigno de possuí-lo, porque adúltero. Além disso, sem compreender bem os
poderes do khoiré, é displicente com o instrumento, deixando-o dependurado na parede de palha da casa, em
cima do jirau da sua nova esposa. É a esta que o machado vai ensinar suas canções, durante à noite, no pátio
da aldeia. O irmão do seu antigo dono, resolvendo obtê-lo de volta, manda um mensageiro aos Krolkamekrá.
Ele sai ao nascer do sol, passa o dia entre os inimigos e ouve daquele que se apossou do khoiré que somente
o devolverá se for vencido numa corrida. No dia seguinte, o mensageiro retorna, também no nascente,
levando a notícia. Os Krahô decidem então que vão retomar o machado lutando. No dia seguinte, sai um
grupo de índios guerreiros logo ao nascer do sol. Invadem a aldeia inimiga. O usurpador do machado corre
com ele em disparada rumo ao cerrado, seguido de perto por um corredor ligado ao dono legítimo. Aquele
tropeça, cai e é alcançado por este e pelos outros guerreiros Krahô, que readquirem o Khoiré, ainda durante
o dia. Melatti (1974) também apresenta duas versões nas quais o khoiré também é utilizado como arma de
guerra nas disputas entre duas tribos.
93 Lembremos que na versão de Schultz (vide acima) é a mulher que aprende os cantos do Khoiré, porque
seu marido, adúltero e displicente, não se fez digno. Além disso, a mulher é associada à Lua, à noite e a
própria periodicidade está inscrita em seu corpo.
pessoais são dados nas casas, na periferia94 (Melatti, 1978: 105). Somente os melhores
ousavam declarar-se seus possuidores e manuseavam o khoiré como sua insígnia, observa
Carneiro da Cunha (1986: 38). É um canto que, devendo durar a noite toda, contém a
epopéia do herói Hartãt, o relato das aventuras de Sol e Lua e a descrição da primeira
incursão das noites pelo mundo95 (Idem: 38-9). O ponto de partida da epopéia de Hartãt
muda em conformidade com a metade a que pertence o cantor, Wakmeye ou Katmaye. Os
cantores pertencentes à estação seca começam pelo momento em que deixam a aldeia, já os
da estação chuvosa iniciam o relato a partir da chegada ao khoikwakhrat, o "pé-do-céu".
Este, vale dizer, é o ponto de contato entre os três níveis do universo segundo a
visão Krahô. Sua localização é o leste, "nas alturas do oriente", onde o nível celeste toca a
terra e a terra toca o mundo subterrâneo96. Há um outro mito que se refere ao Khoikwakhrat
como uma região de muita luz, para a qual se dirigiram os índios que fugiram de uma
grande escuridão provocada por um eclipse solar97 (Schultz, 1950: 159). Há uma crença
relacionada ao Khoikwakhrat que corrobora sua associação com a alternância dia - noite:
nele mora um pica-pau que fica a perfurá-lo. O pica-pau então tem sede e voa para a água;
quando volta, o "pé-do-céu" já está reconstituído inteiramente, então volta a picá-lo até o
meio (dia), quando novamente tem sede e todo o processo se repete, indefinidamente
(Melatti, 1978: 96).
O "pé-do-céu", portanto, é o ponto para o qual convergem duas dimensões básicas
do universo, o espaço e o tempo: lá se encontram os três níveis do cosmos, para lá se
dirigem o dia e a noite, a estação seca e a estação chuvosa. Sobre a relação do
Khoikwakhrat com o tempo como alternância sazonal, Carneiro da Cunha (Ib. idem: 39)
evoca uma versão do mito do Khoiré segundo a qual Hartãt, saindo de sua aldeia e
conduzindo seu povo até o "pé-do-céu", encontra no caminho de ida mel e caça em
94 A posse de certos nomes pessoais dá o direito de desempenhar certos papéis rituais. Assim, o cantor da
aldeia Manoel Alves chama-se Domingos Khoiré.
95 Nesse sentido, Nimuendajú observa que, além de boa voz e um corpo resistente, o cantor deve ter uma boa
memória (1946: 114).
96 O universo, segundo os Krahô, é composto por três níveis. O nível celeste, habitado por gaviões e urubus,
é de onde a Mulher-Estrela desceu e de onde o herói Túlkrén retirou seus poderes mágicos; é onde as estrelas
(índios que fugiram do grande gavião e da grande coruja) habitam. Este nível celeste é como uma cúpula que
limita o mundo intermediário, uma região de terras e águas, onde habitam atualmente os índios e onde
habitaram outrora, junto ao "pé-do-céu". No nível subterrâneo, conta o mito (Schultz, 1950: 160-1; Chiara,
1961-2: 350-1), habitavam porcos-queixada. Para maiores detalhes sobre a representação Krahô do universo,
cf. Melatti (1978: 94-99).
97 Outros mitos fazem referência ao "pé-do-céu", como aquele que o descreve como sendo a morada do
gavião Hëkti e da coruja Kukëi que perseguiam e matavam os índios nos tempos primordiais e que foram
salvos graças aos heróis Akrei e Kenkunã. Por uma abertura, os heróis conduziram os sobreviventes da terra
para o céu, onde vivem como estrelas (Schultz, idem: 93-114). No mito de Sol e Lua que vimos acima, o "pé-
do-céu" é o lugar onde Sol foi duas vezes: na primeira ganhou um enfeite vermelho de um pica-pau; na
segunda, foi porque Lua, desejoso de ter um igual, pediu a Sol para pegar um para ele também, donde
decorreu um grande incêndio.
abundância mas que sua volta, após ter se apossado do khoiré, se dá pelo caminho da
penúria e da fome. Seu percurso se assemelharia, portanto, ao ciclo das estações: fartura de
alimentos na estação seca e escassez na estação chuvosa98.
Daí, em suma, ser o mito do Khoiré um mito que sanciona a natureza do tempo
como alternância tanto no nível cotidiano - dia e noite - quanto no nível sazonal - estação
seca e estação chuvosa. O uso do khoiré pelo cantor, em determinadas situações rituais,
ilustra bem a observação de Marcel Mauss (1974: 132) de que objetos de importância
cerimonial destacada têm suas propriedades especiais atribuídas pelas convenções dos
mitos. Pondo essas propriedades em movimento num contexto ritual, esses objetos seriam,
eles mesmos, uma forma de rito porque têm força simbólica suficiente para provocar
determinados efeitos sobre o mundo.

Os mitos são, pois, os pilares sobre os quais está edificada a cosmologia de uma
sociedade indígena. Sendo o fundamento da ordenação dos tempos sociais de um grupo,
eles fornecem os referenciais simbólicos em torno dos quais as práticas cotidianas são
organizadas. Como sublinha Lévi-Strauss, associada às mais abstratas especulações do
pensamento mítico está todo um conjunto de condutas bem concretas (1968: 13). Os mitos
se fazem presentes no cotidiano das pessoas, orientando-as em suas práticas sociais. Além
disso, como bem demonstrou Carneiro da Cunha (1986), os mitos não só iluminam as
interpretações que fazem os atores do seu mundo vivido, como também guiam-nos em suas
ações.
Há, evidentemente, muitos outros mitos Krahô além destes que apresentei aqui,
cuja seleção serviu ao propósito de nos ajudar a ver como essa sociedade concebe o tempo.
Agora, cumpre vermos esta noção de tempo em sua realização prática. Já que o tempo ecoa
da voz do cantor, comecemos pelos cantos, primeiramente por aqueles que ocorrem em
momentos específicos do cotidiano, nascente e poente, tendo em mente a advertência de
Seeger (Op. cit.: 103) de que devemos ver a música de uma sociedade inserida no contexto
social e cosmológico mais amplo.
Palavras, gestos humanos e o tempo
O cantor, cuja voz tem a propriedade de anunciar o tempo, goza de prestígio social
entre os Krahô. Cada aldeia tem vários ikrére, mas somente alguns dominam todos os tipos
de cânticos, observa Melatti (1982: 35). Dentre estes poucos, existe um ikrére que se
destaca como diretor dos ritos e recebe o nome de padré99. As cantoras de destaque são
chamadas de hõkrepoi e usam como insígnia o hahĩ, uma faixa confeccionada com algodão
que atravessa seu peito, passando por sobre o ombro direito e sob o braço esquerdo100. Que
o canto é muito apreciado pelos Krahô depreende-se ainda do fato de que quando um
cantor de fora visita uma aldeia, ele é chamado a cantar praticamente todas as noites, pelo
que costuma receber alguns presentes (Melatti, idem). O cantor é envolto numa aura tal que
à integridade e à ordem do seu corpo ou dos objetos que o tocam estão associadas a
integridade e a ordem do mundo. Assim, o quebrar de uma flecha cerimonial ao tocar o
corpo de um cantor, no rito de Põhïprï, foi interpretado como mau presságio e o restante do
rito foi cancelado (Melatti, 1978: 180).
Mas a voz é, de fato, o elemento central da música Krahô, tanto que o uso de
instrumentos limita-se ao acompanhamento do canto, observa Melatti (1982: 30) 101. Esse
autor observou a existência de dois conjuntos de cantos: cantos presentes em rituais e
cantos entoados em situações cotidianas. O primeiro conjunto apresenta diferenças quanto
ao ator que canta - homem, mulher, um indivíduo, um grupo -, quanto ao local onde se
canta - se no pátio da aldeia ou se nos seus caminhos - e quanto às posições do cantor -
que pode se movimentar ou ficar parado. No segundo conjunto pode-se distinguir entre os
que são cantados no pátio e aqueles que o são nos caminhos ou nas casas (Idem: 33).
Além do mito do Khoiré, existem outros mitos que relatam como os cantos foram
apreendidos pelos índios. Nesse sentido, Melatti (Idem: 37-8) observa que os cânticos da
praça teriam tido origem numa festa na qual se fizeram presentes vários bichos102, já

99 Este termo, adaptado do português, deriva da palavra "padre". Antigamente, aquele que tinha o
conhecimento das canções e da forma dos rituais era conhecido pelo termo mekhrãkaireretxó, ou então
ikrerekati (Melatti, idem). O padré é o grande guardião das tradições Krahô, pois conhece as canções e os
ritos, donde deriva alguma influência política (Melatti, 1978: 80). Vale destacar que o maracá é o instrumento
que mais freqüentemente acompanha o cantor. Mas ele não tem menos eficácia simbólica que o Khoiré, pois
seu chocalhar pode tanto manter afastados os mekarõ (alma dos mortos) quanto trazer de volta o sol das
garras da escuridão (cf. Schultz, 1950: 159).
100 Cf. Melatti (1982), pgs. 35-6, sobre os cuidados especiais com a voz e com os ouvidos que os/as
pretendentes a cantores/as têm de ter.
101 Cf. Melatti (Idem) sobre os instrumentos musicais krahô.
102 Cf. Schultz (Op. cit.: 138-143), para uma versão completa deste mito. De fato, os textos das canções de
pátio que Nimuendajú observou entre os Canela fazem referência a animais e seus modos de vida, tal como
aparece no referido mito (1946: 115, §2). Os cantos de pátio são realizados pelo cantor com seu maracá e por
um grupo de mulheres que, dispostas em fila, executam leves movimentos com os joelhos e os antebraços
(Melatti, idem: 34).
aqueles entoados nos caminhos radiais da aldeia seriam de Kupẽti, dos quais um índio
ouviu as cantigas e as ensinou à aldeia, Kupẽkrãya'krore, cantigas do tatu rabo-de-couro e
que são entoadas no pátio, com maracá, ou nos caminhos da aldeia, e Ĩkrérparho'nõre. Há
ainda os cantos Kukôiyarkwa entoados no caminho circular da aldeia, durante o dia, que
foram aprendidos do macaco (Kukôi). É às duas metades cerimoniais que esses cantos
realizados nos caminhos da aldeia, em qualquer ocasião, pertencem. Assim, quando o
cantor é da metade Katamye, ele deve andar devagar; já o cantor da metade Wakmeye deve
dançar de maneira ligeira103 (Melatti, idem: 38; 1978: 84).
É nos caminhos circular e radial da aldeia que o khoiré é utilizado nos cantos,
observa Melatti (Ib. idem: 39). Se nesses espaços da aldeia é que os cantores Katamye e
Wakmeye executam seus cantos, é porque esses são caminhos simbólicos que devem ser
atravessados pela machadinha que é, a um só tempo, a insígnia do cantor e o símbolo maior
da periodicidade. O fato de ocorrerem, aí, os cantos do Khoiré nos diz muito, pois, como
sublinha Seeger , "o local em que um evento musical ocorre revela muito a respeito de seu
significado" (Op. cit.: 84; grifo do autor). Assim, os caminhos estabelecem, no espaço, a
intermediação que os cantos do Khoiré ajudam a sancionar, no tempo, entre domínios
opostos do universo dual dos Timbira, no qual a periferia, a esfera doméstica da aldeia, é
associada ao oeste, ao poente, à noite e o pátio, palco máximo da vida cerimonial, ao leste,
ao nascente, ao dia 104.
Nesse sentido, entre os Krahô, "um período é atribuído aos cantores", sublinha
Carneiro da Cunha (1986: 40). Assim, pelo menos teoricamente, um cantor da metade
Wakmeye deveria cantar de dia, pois sua metade é associada ao sol, ao leste, ao dia; um
cantor da metade Katamye deveria cantar de noite: ele é da metade ligada à lua, ao oeste, à
noite. Essa autora evoca mitos Krahô que relatam que "alguns cantos foram aprendidos
com um homem em cuja cabeça brotava uma flor, e que cantava da aurora até o pôr-do-
sol. Outros provêm de um casal que morava no "pé-do-céu" (khoikwakhrat), e que
cantavam do pôr-do-sol até a meia-noite" (Idem: 40; grifos da autora). Os intervalos entre
o dia e noite são, assim, marcados pelos canto, pois a voz do "pai do khoiré" deve ser a
primeira ao amanhecer e a última ao anoitecer. Ocorrendo nos momentos de transição do
cotidiano, nascente e poente, eles possuem a qualidade de marcadores de tempo (Carneiro

103 Lembremos que a metade Wakmeye é associada à estação seca e ao sol, a metade Katamye, à estação
chuvosa e à lua. Ora, vimos que, em diversos mitos, do Sol deriva uma periodicidade mais rápida e que à Lua
está associado um tempo que passa mais lentamente. Some-se que os Krahô distinguem os cantos de ritmo
lento, designados kapran, dos cantos de ritmo rápido, chamados huphê (Melatti, idem: 34).
104 Esquematicamente, temos: Pátio = homens, sol, dia Û Caminhos radiais = transição, khoiré Û
Periferia = mulheres, lua, noite.
da Cunha, 1986: 37; 41). O nascer e o pôr-do-sol são momentos do dia significativos para a
realização de ritos porque "os dois crepúsculos são especialmente mágicos" (Mauss, 1974:
76).
Assim, entre os Timbira Orientais, o tempo cotidiano é configurado pelos ritos.
Nimuendajú (1946: 114-7) percebeu, junto aos Canela-Ramkokamekrá, a ocorrência de
cantos e danças no nascente e no poente105, que antecedem as reuniões do "conselho
masculino", formado pelos homens considerados maduros, observações estas corroboradas
pelas de Ladeira (1982: 14). Nimuendajú notou que a primeira voz que se ouve na aldeia é
a do cantor: ele é que convoca a todos, por volta das 4 horas da madrugada, para se
levantarem e se reunirem no palco máximo da vida social: o pátio106 (Idem: 115). Assim, é
a voz do cantor que abre o dia, ela é que faz o tempo começar. Mas dela também provém o
sinal de que a noite cai pesada sobre os vivos e de que, por isso, o dia está a findar-se, pois
observa Melatti que, entre os Krahô, "quase todos os dias ao anoitecer, os rapazes saem
cantando pelo caminho circular da aldeia, para convidarem o cantor e as mulheres a irem
ao pátio"107 (1982: 35).
Disto depreende-se que a ida do cantor ao pátio, no nascente e no poente, não tem
outra função senão a de fazer o tempo, como bem salientou Carneiro da Cunha (1986: 37).
Por isso, os cantos Krahô, usando ritualmente certas palavras, produzindo determinados
sons, funcionam como uma "sugestão imperativa" (Mauss, 1968b: 474). Ou seja, têm uma
eficácia que os dota da capacidade de agir sobre a ordem constitutiva do universo, fazendo
com que a ordem natural seja dependente da voz humana, pois ela é que garante a
manutenção dos ritmos temporais: dia e noite, estação seca e estação chuvosa108. Os cantos
diários e sazonais Krahô são como que os pilares da regularidade da natureza. Sem eles,
105 Os cantos e danças que ocorrem no poente recebem o nome de putkammekre (Nimuendajú, idem: 116).
106 Eu mesmo, nos dias em que estive na aldeia Manoel Alves, em setembro de 2003, acordei todos os dias
com os cantos de Secundo Tôh Tôt, bastante respeitado por todos como ótimo cantor apesar de não ser mais o
oficial. Impreterivelmente, Tôh Tôt ia para o pátio por volta das 4 horas, quando dirigia seu canto para as
casas, caminhando em círculo. Após algum tempo, ou melhor, após alguns cânticos, via-se os primeiros fogos
domésticos acessos. Com o sol apontando no horizonte oriental, praticamente todos já estavam acordados:
algumas crianças brincavam no pátio, outras na periferia, as mulheres preparavam o dejejum e os homens
maduros e alguns rapazes se reuniam no pátio, reunião esta coordenada pelos "prefeitos" wakmeye, pois
estávamos na estação seca. Cumpre observar que Tôh Tôt é o nome de um pássaro Katamye, ou seja, um
pássaro que canta na madrugada, antes do sol nascer, anunciando o dia.
107 Os cantos e danças noturnos, embora menos freqüentes, são vistos como tendo influência sobre a caça e
sobre a colheita (Nimuendajú, idem: 117-8). Menos freqüentes ainda são os cantos da madrugada, que,
observa Melatti (1982: 35), "ocorrem geralmente quando a noite está iluminada pela Lua, quando os
habitantes da aldeia estão bem alimentados, sobretudo com carne, ou quando se está realizando uma etapa
importante de algum ritual".
108 Mauss equaciona palavras e gestos, ou seja, cantos e danças, como forças rituais capazes de "fazer todas
as coisas" (1974: 86-7). Nesse sentido, fico com sua concepção de ato ritual como uma linguagem que
veicula uma representação simbólica acerca das leis de funcionamento do universo. O ritual é, assim, visto
como "a tradução de uma idéia" (Idem: 90). Essa abordagem "performática" dos rituais será retomada mais
tarde por autores como Leach (1972, 1983) e Tambiah (cf. Peirano, 2001).
todo o edifício dos ciclos e alternâncias cósmicos desmoronaria. Posey (1982: 93) observa
o papel de assegurar o movimento do tempo desempenhado pelos cantos e danças numa
outra sociedade Jê setentrional. Também entre os Kayapó, "as cerimônias são o que
mantém o equilíbrio da natureza e são essenciais para gerar a energia necessária para a
continuação dos ciclos do tempo ecológico e estrutural".

Mas, o que acontece entre os cantos e danças do nascente e do poente? Como


indiquei acima, após os primeiros cantos do cantor no pátio convocando a todos, já com o
dia clareando, os moradores da aldeia começam a se levantar. Segundo descrição de
Melatti (1993: 99-102), com o sol nascendo, os mais jovens dirigem-se para o riacho mais
próximo para tomar banho; as moças levam consigo cabaças nas quais trazem água para
casa, para beber e cozinhar. Retornando do banho, os homens vão para o pátio onde
discutem as atividades que serão realizadas no dia. As reuniões do "conselho masculino"
são coordenadas por dois "prefeitos" pertencentes à metade associada à estação em curso.
As mulheres permanecem nas casas, preparando o desjejum. A reunião termina por volta
das sete horas, ou seja, quando o sol ainda não está alto e quente. Há corrida de toras
praticamente todas as manhãs, entre o despertar e as reuniões matinais, cujo ponto de
partida e de chegada é a casa de wïtï109.
É comum aos Timbira Orientais, após as corridas de toras e as reuniões do pátio, os
homens casados rumarem não para a casa onde moram, mas para a de suas parentes
consangüíneas, onde comem a sua primeira refeição do dia110 (Nimuendajú, 1946: 126;
Melatti, idem: 100). Como um exemplo da inflexão da temporalidade na trama do
parentesco, que se reflete no espaço das relações e dos trajetos cotidianos, verifica-se o
costume de se visitar os parentes todas as manhãs, após as reuniões matutinas. Com relação
às visitas que as mulheres de um mesmo segmento residencial fazem entre si, Ladeira
(1982: 17-8) observa que "as parentes mais distantes genealogicamente dentro do segmento
residencial são aquelas que residem nas casas mais afastadas". Assim, à distância no tempo
corresponde uma distância no espaço. Além disso, as mulheres que têm suas casas mais
próximas umas das outras fazem suas visitas recíprocas pelos quintais, fundos das casas
vistos como sendo de livre trânsito. Quanto mais distantes as casas, mais esses trajetos
cotidianos são feitos pelo caminho circular - kricapé -, "como se assim procedendo,

109 Sobre as corridas de toras falarei mais à frente.


110 Lembro que a regra de residência entre os Krahô, e demais Timbira Orientais, é uxorilocal (cf.
Nimuendajú, idem: 125-6; Melatti, 1978: 52 ss; Ladeira, 1982).
reconhecessem publicamente a separação entre suas casas, a distância de seu parentesco"111
(Idem).
Findo esse período de convivialidade matinal entre parentes, dá-se início ao
trabalho: os homens geralmente saem para caçar, vão para a roça de alguém para realizar
um trabalho comunal ou vão ajudar a levantar a casa de alguém; as mulheres ficam na
aldeia ocupadas com os trabalhos da casa, cuidando das crianças, vão para a roça ou para o
cerrado coletar frutas. Há que se sublinhar que os trabalhos do dia também estão sujeitos à
inflexão do tempo, do "tempo ecológico" (Evans-Pritchard, op. cit.), pois das estações
depende, por exemplo, o local onde vão caçar: "Durante a estação seca os índios preferem
caçar na mata. Durante a estação chuvosa preferem, porém, o cerrado, pois as florestas, em
tal período, estão cheias de cobras que põem em risco a vida dos caçadores. Além disso, o
cerrado fica mais úmido e passa a ser mais freqüentado pelos animais. A caçada se torna
mais fácil durante a estação chuvosa, pois os rastros dos animais ficam mais nítidos no
chão..."112 (Melatti, 1978: 42). O mesmo se dá com o trabalho feminino, pois as frutas a
serem coletas no cerrado têm uma época certa do ano para aparecer. Segundo Melatti, a
coleta de frutos comestíveis, uma tarefa exclusivamente feminina, rende mais na estação
chuvosa pois "parece que o período mais rico em frutos é aquele que abrange o final e o
princípio do ano" (Idem: 41). Também os trabalhos de plantio e colheita, nos quais as
mulheres têm participação ativa, acompanham os ritmos das estações, sublinha o mesmo
autor (Ib. idem: 46-50)113.
De qualquer modo, com o sol na altura das nove ou dez horas, a aldeia está quieta.
Com o sol a pino, meio-dia, as mulheres já estão nas suas casas, onde preparam alguma
comida para os que ali estão. O que comem depende da diligência de homens e mulheres
em preparar a roça na época certa do ano, de semear as sementes certas e no momento
propício; isto facilita a generosidade da estação. A comida, preparada conjuntamente pelas
mulheres, é repartida pela mais velha entre as famílias elementares presentes, que formam

111 Ladeira ainda observa que o uso do caminho circular e do pátio nos trajetos das visitas cotidianas
expressa simbolicamente a qualidade da relação entre os envolvidos. Ou seja, "a passagem pelo pátio indica
que a relação estabelecida entre as casas é mediada por ele: são relações que devem ser públicas (alianças
matrimoniais, amizade formal, nominação)" (Ladeira, idem: 14).
112 Os Krahô possuem grande conhecimento ecológico do seu ambiente natural. Sabem onde pode ser
encontrada tal ou qual espécie de animal ou planta, em que época do ano abunda e em que período do dia está
mais ativa. Como veremos, associado a esse conhecimento está um complexo sistema de classificação no qual
as espécies naturais são encaixadas em classes cuja definição depende, dentre outros, do eixo tempo.
113 Sobre o trabalho de coleta de frutos silvestres ser da competência exclusiva das mulheres, devemos nos
lembrar que é um personagem mitológico do sexo feminino, Katxerê, quem ensina aos Krahô a coleta e o
preparo dos frutos silvestres, fazendo ela mesma tal trabalho. Já o trabalho da agricultura, plantio e colheita,
ela ensina-os sem distinção de sexo (vide mito da Mulher-Estrela, acima).
pequenos núcleos distintos e separados no interior da casa para o consumo da refeição114
(Melatti, 1978: 52; Ladeira, 1982: 16). Nas casas permanecem, até que, com o sol na altura
das dezesseis horas, é anunciada a chegada dos grupos de corredores com toras após
concluído o trabalho coletivo do dia que consumiu boa parte das suas energias. Caso essa
atividade tenha sido uma caçada, a carne é dividida entre os caçadores-corredores e
conduzida, em seguida, para as casas onde moram. A repartição da carne entre as casas do
segmento residencial acompanha a distância espacial entre elas, pois, como vimos, a
distância no espaço reflete a distância nas relações sociais e, por conseguinte, o quão
imperiosas são as obrigações recíprocas (Ladeira, idem: 18).
Com o sol começando a se pôr, tem início a preparação da última refeição do dia. A
organização social para o seu consumo é a mesma descrita acima. Após comerem, os
membros das casas costumam descansar em esteiras colocadas diante dela, quando então
são surpreendidos por vozes de rapazes a convocar o cantor e as mulheres para irem ao
pátio, a fim de cantarem (Melatti, 1993: 101). Ao pôr-do-sol, assim, ocorrem mais uma vez
cantos e danças. Desta vez, para "encerrar" o dia, pois vimos que palavras e gestos assim
utilizados são atos rituais "eminentemente eficazes, são criadores: fazem" (Mauss, 1974:
48). Como entre os Canela, os cantos e danças Krahô podem anteceder as reuniões
noturnas dos homens. Melatti (1978b: 36) observa que, se estas terminam logo no pôr-do-
sol, os homens se dispersam gritando "muk, muk, muk", gritos do caitutu, animal que foge
depressa à presença do caçador; se terminam no começo da noite, fazem "ka, ka, ka", gritos
da galinha-d'água, que canta a essa hora; se a reunião é concluída logo após o começo da
noite, imitam um bicho que canta a essa hora, o socó, fazendo "põ, põ, põ"; se ela termina
muito tarde, fazem "ie, ie, ie", em referência ao morcego, que freqüenta a aldeia por volta
da meia-noite. Esses são outros exemplos da voz humana marcando o tempo, corroborando
as vozes da natureza.
Por outro lado, os cantos e danças do poente interferem também na gramaticalidade
dos sexos que perpassa os espaços simbólicos da aldeia: no pôr-do-sol, as mulheres são
convidadas para irem ao pátio (Ladeira, idem: 08). No pátio, elas cantam postadas a oeste,
justamente donde partem os últimos raios do sol; no pátio, podem permanecer durante a
noite, enquanto durarem os cantos 115. Quando cessam os cantos, por volta das vinte e uma
114 Cada família elementar tem, no interior da casa, um espaço próprio não só para comer, mas também para
dormir (Cf. Ladeira, idem: 16 ss).
115 Cf. Carneiro da Cunha (1978: 39). Enquanto elas cantam postadas a oeste (poente), os rapazes dançam a
leste do pátio. Entre mulheres e homens, o cantor: ele canta e dança, com seu maracá. Há que se observar
que, se elas podem ir ao pátio a partir do pôr-do-sol, também podem ir antes do sol sair, para os cantos da
madrugada que ocorrem em alguns ritos (cf., p. ex., Melatti, 1978: 186; 352).
horas, a aldeia está pronta para dormir (Melatti, 1993: 102; cf. também Nimuendajú, 1946:
117). A última voz é a do "pai do khoiré", como determina o mito.

O movimento aparente do sol, do nascente ao poente, desenha no céu uma linha


cujos pontos intermediários são percebidos como significativos para se realizar
determinadas atividades. Do percurso cotidiano do astro-rei, derivam, pudemos ver, alguns
usos simbólicos da relação do leste com o oeste. Carneiro da Cunha (1978: 39) observa,
nesse sentido, que, "servindo pois de linguagem universal, ligando domínios diferentes da
realidade, o oriente se opõe ao ocidente como a luz às trevas, o sol à lua, o cima ao baixo, o
dentro ao fora, o pátio da aldeia ao círculo das casas, a aldeia ao território que lhe é
exterior, os vivos aos mortos"116. Por isso, o eixo leste - oeste é o grande ordenador
cosmológico do espaço e do tempo. Sobre ele, são dispostas todas as outras oposições:
homem-mulher, pátio-periferia, vivos-mortos, dia-noite, estação seca-estação chuvosa. Isso
levou Carneiro da Cunha (1986: 43) a afirmar que o sol, entre os Jê em geral, é visto como
o próprio tempo117.
Sendo o sol, em vários mitos, associado ao tempo cotidiano, como aliás vimos
acima, no fluxo das práticas cotidianas ele é central como o referente simbólico de tempo.
Seu movimento, de um ponto a outro no horizonte, é um processo físico regular e contínuo
que fornece uma base relativamente segura para servir de quadro de referência a atividades
sociais que também comportam alguma regularidade. Por isso, o sol é instituído
socialmente como símbolo de tempo e suas posições no céu - em especial o nascente e o
poente, mas também outras - funcionam como indicadores de quando e onde se realizar
determinadas atividades (Elias, 1998: 67; 83-4). A escolha do sol como referencial de
tempo, pelos Krahô, está associada ao seu "projeto" cultural. É uma escolha orientada por
sua cosmologia, por sua representação do universo físico, humano e espiritual, mas que
também leva em conta sua avaliação do que deve ser feito ao longo dos dias para se atingir
a melhor maneira de se viver, agir e interagir no mundo. A temporalidade, em qualquer

116 Leste (Khoikwakhrat, "pé-do-céu", nascente) e oeste (Apármã, "direção do sem pé", poente) são os dois
pontos cardeais segundo o pensamento Krahô. O norte e sul não recebem denominação especial, são "lados":
o norte é assimilado ao oeste e sul, ao leste. Além disso, norte e sul, como os pólos das bordas do céu, são
"escuros" porque o sol não passa por lá (cf. Melatti, 1978: 97; 357-8; Carneiro da Cunha, 1978: 39; Chiara,
1978).
117 Numa conversa que tive com um morador da aldeia Manoel Alves, Dodani PiiKen, em setembro de
2003, ele me dizia que nas corridas de toras não se pode "perder tempo", quando então apontou com o dedo
indicador para o sol, para se referir ao tempo. Mesmo o sol sendo o "tempo", o dualismo não deixa de existir:
sol mais lua e, além deles, dia mais noite, estação seca mais estação chuvosa. Os Timbira, de fato, dão muito
destaque ritual e simbólico ao sol e ao seu movimento do leste ao oeste, porém de maneira articulada ao uso
das fases da lua, dos ciclos das estações e mesmo das Plêiades como referentes temporais importantes
(Nimuendajú, 1946: 232-3).
sociedade, é construída segundo modelos culturais de relação entre as pessoas e entre elas e
seus pontos de referência temporal (Munn, 1992: 102).
CAPÍTULO III
O DUPLO ASPECTO DO TEMPO NOS CICLOS SAZONAIS

Também o "tempo estrutural" deixa suas marcas na orientação das práticas


cotidianas, haja visto que o que homens e mulheres fazem ou deixam de fazer durante o dia
está estreitamente relacionado aos rituais agendados e nos quais participa uma ou outra das
metades nas quais se dividem os Krahô e que envolvem praticamente toda comunidade.
Esses são "dias em que toda a população da aldeia deixa de trabalhar em tarefas que não
estejam diretamente ligadas ao rito que então se realiza" (Melatti, 1978: 305). Tais são, por
exemplo, aqueles dias em que são realizados os rituais de iniciação ou os do ciclo anual.
Cantos e danças ocorrem não somente na alternância dia e noite, mas também nos
momentos em que alternam entre si estação seca e estação chuvosa, dois períodos
diferenciados cerimonialmente e que constituem as duas unidades principais do ano dos
Timbira orientais. Cada uma delas é construída, em datas socialmente instituídas, por
rituais de abertura e encerramento (Carneiro da Cunha, 1986: 37; 42; Melatti, 1978: 154-
196). Cada unidade, cada estação possui uma qualidade própria, oriunda não somente do
clima e das condições materiais de existência, mas também e principalmente pelos tipos de
cantos que se canta, pelo tipo de toras com as quais se corre, pelos rituais que ocorrem e
pela administração das atividades coletivas cotidianas. Após termos visto como as estações
concorrem para a estruturação dos dias, veremos agora como os dias fluem acompanhando
os ventos das estações, que levam e trazem as práticas econômicas nas suas correntes de
alternância. Depois, acompanharemos os cantos e danças que “fazem” os ciclos sazonais.

As “variações sazonais” nas práticas econômicas e no sistema de classificação


Os Krahó habitam uma região de cerrado no norte do Estado do Tocantins118. Seu
território é afetado por um ciclo climático caracterizado pela alternância entre uma estação
seca, que predomina de meados de abril a meados de outubro, e uma estação chuvosa, que

118 Sua população, estimada pelo ISA em aproximadamente 2000 indivíduos em 1999 (cf. Ricardo, 2000),
distribuídos em 17 aldeias, vive num território de aproximadamente 3200 km2 , próximo às cidades de
Goiatins e Itacajá. O uso e gozo dessa área foram concedidos pelo governo do então Estado de Goiás, em
1944, após vários conflitos violentos envolvendo os Krahô e criadores de gado, cujo desfecho foi o massacre
sofrido pelos índios no ano de 1940.
dura de meados de outubro a meados de abril. Os índios, dentre uma quase infinita gama de
possibilidades, selecionaram alguns fenômenos "naturais" como sinais de mudança do
tempo sazonal, segundo seus próprios interesses culturais (Elias, 1998; Munn, 1992). A
chegada da estação seca é percebida quando a haste da espiga do capim atu se quebra, por
volta de maio. Outro sinal de que o tempo dos Wakmeye está a principiar é o aparecimento
da gramínea homrenré (Melatti, 1978: 83).
Várias são as atividades econômicas que seguem o curso da estação seca. A pesca,
que não tem peso significativo no regime alimentar Krahô, é praticada sobretudo nesta
estação, pois os cursos d'água estão baixos e correm devagar, o que favorece o uso de
vegetais tóxicos, tais como o tingui e o timbó; mas outras técnicas também são utilizadas,
como o arco e flecha e a pesca com anzóis (Melatti, 1978: 41-2). Na estação seca, tem-se
os momentos iniciais do ciclo da agricultura, principal fonte de subsistência. Os Krahô
praticam a agricultura de coivara em terras que margeiam os rios do seu território.
Portanto, começam a preparar as roças já no mês de junho com o corte da vegetação baixa,
etapa a que dão o nome sertanejo de "broca". Em julho ocorre o corte das árvores, que são
deixadas a secar. Em agosto, setembro põem fogo nos troncos e galhos, pois esta etapa
deve preceder a queda das primeiras chuvas. Também em agosto e setembro ocorre a
semeadura do milho e da fava; em setembro planta-se o chamado arroz "tardão", assegura
Melatti (1978: 46-48). Este autor lembra ainda (Idem: 356) que o plantio, deste como de
outros gêneros, é cercado por evitações simbólicas - não comer certos alimentos e/ou
determinadas partes de certos animais - cuja não observância tem por conseqüência ou a
perda completa da plantação ou o crescimento inadequado. Assim, os tabus ligados ao
plantio concorrem para a codificação do calendário (Bourdieu, 2002 [1977]: 97-8).
Por volta do começo de outubro, caem as primeiras chuvas, sinal de que a estação
chuvosa está começando. Mas, antes delas, o aparecimento das Plêiades no horizonte
ocidental, depois do pôr-do-sol, sinalizava, em junho, a aproximação da estação das águas
e que, por isso, já era tempo de fazer as clareiras no mato para preparar a roça
(Nimuendajú, 1946: 62; 233). No começo da estação chuvosa, entre outubro e novembro,
planta-se a mandioca, principal gênero alimentício juntamente com o arroz, que costuma
ser semeado em dezembro e janeiro, na sua variedade "ligeiro". Aliás, os Krahô dizem que
o melhor mês para se plantar esse arroz é janeiro, porque, sendo colhido no início da
estação seca, é melhor preservado em virtude da ausência de umidade (Melatti, idem: 48).
Em janeiro colhe-se o milho comum e em março, o arroz "tardão"119. Acrescente-se que na
119 Os Krahô plantam ainda melancia, inhame e batata-doce. Apesar de contribuírem pouco para a dieta
alimentar, existem rituais associados a essas duas últimas espécies. Para maiores detalhes da agricultura
estação chuvosa, principalmente entre dezembro e fevereiro, é quando a coleta de frutos
silvestres dá melhores resultados, com as mulheres voltando do cerrado com seus cestos
abarrotados de mangaba, buriti, piaçava, bacuri e outros (Melatti, idem: 41).
O início da estação chuvosa, setembro-outubro, é um momento crítico não somente
porque marca a chegada das águas e a conseqüente alteração nos afazeres cotidianos, mas
também porque é quando acabam os últimos gêneros alimentícios, a mandioca e o arroz,
segundo dados de Melatti (Ib. idem: 49). Assim, as estações têm seu caráter dual marcado
pela disponibilidade de alimentos e quantidade de trabalho em cada uma delas: na estação
seca trabalha-se menos, mas há fartura de alimentos; na estação chuvosa, a maior
quantidade de trabalho não supera a escassez . "O cultivo se dá num período em que
alimentação é difícil: os gêneros plantados nas roças anteriores já estão esgotados",
compadece-se Melatti (Idem: 51). Isto confere sentido à observação de Jean Lave (1977:
313) com relação aos Canela-Ramkokamekrá que, acredito, pode ser estendida aos Krahô.
Segundo ela, há uma oposição entre um período - a estação chuvosa - no qual as energias
pessoais e coletivas estão concentradas principalmente em atividades produtivas/naturais
baseadas nos laços de família e um período - a estação seca - em que são as atividades
cerimoniais que envolvem a comunidade mais ampla cujos vínculos são estabelecidos
pelos nomes, a estação seca120.
Nem mesmo a caça, que é mais fácil na estação chuvosa, os supre do necessário,
porque, além de pouca, a carne é somente um acompanhante dos gêneros principais. Mas,
ainda assim, falemos da caça, porque nesta prática podemos melhor vislumbrar como as
noções duais de Wakmeye e Katamye funcionam como operadores classificatórios.
Classificadores práticos, veremos, veiculam noções com certo grau de abstração, como a de
tempo, aponta Lévi-Strauss (2002 [1962]: 163). As "representações coletivas" do tempo de
uma sociedade, já sugeria Marcel Mauss (1968a [1904-05]: 448-9), no começo do século
XX, podem fundamentar seu esquema de classificação do mundo natural e social, além de
terem implicações práticas como um arcabouço de informações sobre o que, quando e
onde certas ações podem ser realizadas.
A alternância climática impõe a alternância nos ambientes de caça. Vimos que
durante a estação seca os índios preferem caçar nas matas porque a maior claridade permite
a visualização das presas e porque há menor possibilidade de encontrar cobras. Na estação

Krahô, cf. Melatti (1978: 46-52).


120 Segundo Melatti (1978: 50), as roças são trabalhadas pelas famílias elementares. Este autor lembra que a
transição da estação seca para a chuvosa era, no passado, marcada também por uma expedição de caça e
coleta, realizada logo após o plantio, visando suprir as carências de alimentos que caracterizam este período
(Idem: 200). O mito de origem das metades sazonais faz referência a esta expedição, como veremos abaixo.
chuvosa, preferem as caçadas no cerrado porque, este estando úmido, a percepção das
pegadas dos animais é facilitada. De séculos de observação do ambiente natural, resultou
um conhecimento ecológico que consegue apontar a ligação de certos animais com
determinadas plantas, a época do ano em que as espécies aparecem e o período do dia em
que podem ser encontradas (Melatti, 1978: 42).
Portanto, na base deste conhecimento partilhado, e do qual dependem os caçadores,
está um sistema de classificação onde o par de conceitos de tempo Wakmeye-Katamye
desempenha o papel de "eixo lógico-sincrônico" por meio do qual relações simbólicas
entre os seres e as coisas são construídas121 (Lévi-Strauss, 2002 [1962]: 79-80). Nesse
sentido, Melatti (1978b: 37) argumenta que o sistema de classificação Krahô fundamenta-
se sobremaneira no comportamento das espécies naturais. Animais que vivem no cerrado,
têm atividade diurna e aparecem principalmente na estação seca serão agrupados na
categoria Wakmeye, enquanto que aqueles que vivem na mata, em buracos, em ambientes
aquáticos, aparecem na estação chuvosa ou têm hábitos noturnos serão Katamye122. Isto nos
lembra a constatação de Mauss (1968a: 450) de que as noções de estação podem servir para
definir gêneros de coisas e de seres.
Melatti (Idem: 36) evoca o mito da festa dos bichos como um esboço dessa
classificação. Nele, o que teria definido a classe a que passariam a pertencer os animais
teria sido uma corrida disputada pelos animais dois a dois, no sentido da mata. Os
vencedores passariam a viver no cerrado, os perdedores viveriam na mata123. Os primeiros,
mais corajosos, são Wakmeye; os da mata, medrosos porque se escondem, são Katamye.
Esta convenção mitológica põe em evidência a observação de Lévi-Strauss (2002 [1962]:
109) de que os sistemas de representações simbólicas, muitos dos quais baseados nos
mitos, servem para estabelecer relações de homologia entre as condições naturais e as
condições sociais, ou seja, "leis de equivalência entre contrastes significativos situados em
vários planos", como os geográficos, zoológicos, econômico, social, ritual, filosófico.
Há que se atentar, pois, para o fato de que a noção Wakmeye denota o dia, o claro, a
luz e Katamye, a noite, a escuridão, a cor preta. Segundo Carneiro da Cunha (1978: 116-7),
são justamente as noites (augapôt, que se traduz como "seres que, de dia, se retraem e
121 Este "eixo sincrônico" dita que, p. ex., o campeiro e a ema pertencem a uma mesma categoria porque
ambos andam pelo cerrado, de dia. Sobre outros seis eixos lógicos sobre os quais os sistemas de classificação
podem ser construídos, cf. Lévi-Strauss (Idem). Um outro caso etnográfico em que símbolos temporais são
utilizados como operadores classificatórios pode ser encontrado em Adam (1997: 36). No caso Krahô, como
em outros, operam vários eixos de classificação das coisas e dos seres do universo (Melatti, 1981: 121).
122 Os vegetais são classificados em Wakmeye ou Katamye conforme dêem flores ou frutos numa ou noutra
estação.
123 Cf. Schultz (1950: 138-143) para uma versão rica em detalhes deste mito, que contém outros episódios
além deste da corrida dos animais. Melatti (1978: 313-17) apresenta outra versão.
escondem nos buracos do nariz, por baixo das pedras, nos ocos das árvores, nos lugares
recônditos") e os dias da estação chuvosa os momentos em que os mekarõ (alma dos
mortos) realizam sua andanças pelo mundo. Eles também gostam de lugares escuros, como
as matas e os buracos, onde vivem os animais Katamye. Assim, esses operadores
classificatórios Krahô se utilizam de oposições que organizam grupos sociais para elaborar,
sob "a forma transformada" de um sistema de relações simbólicas, as ferramentas
cognitivas de que se servem as pessoas nos seus propósitos práticos (Bourdieu, 2002
[1977]: 97).
Vê-se que os sistemas de classificação cumprem não somente funções de pura
cognição. Operações práticas de construção do mundo, sublinha Bourdieu (Idem),
demandam sistemas de classificação que organizam a percepção e a apreciação do mundo e
que estruturam a ação. Nesse sentido, o caçador Krahô, querendo matar um veado-
campeiro, só deve comer carne de animais que andam de dia e evitar a carne daqueles que
têm atividades noturnas, pois o campeiro anda durante o dia (Melatti, 1978b: 36). Estas
observâncias rituais se aplicam a qualquer tipo de caça: "o caçador só pode comer animais
cujos hábitos, noturnos ou diurnos, coincidam com o da presa a caçar" (Melatti apud.
Carneiro da Cunha, 1978: 101). Caçando na estação chuvosa ou nas matas, o caçador deve
tomar precauções técnicas e simbólicas para apanhar sua presa, mas também para não ser
apanhado por algum mekarõ, porque são os tempos e lugares dos espíritos dos mortos.
Além disso, a classificação Krahô em seres Wakmeye e seres Katamye estrutura até mesmo
as brincadeiras das crianças, como o "morcego", uma brincadeira que ocorre no pôr-do-sol
e que faz referência direta a este animal de hábitos noturnos (Melatti, 1978: 65-66).
Mas como cada estação tem seu momento próprio para chegar e para se retirar,
deixando que a outra entre em ação, conformando uma espécie de reciprocidade temporal,
também as metades associadas a elas encontraram suas formas de reciprocidade. Nesse
sentido, Nimuendajú (1946: 86) verificou que, entre os Canela, a ascendência ritual dos
Kamakra durante a estação seca implica que os membros desta metade têm direito a mais
carne dos animais abatidos nas caçadas coletivas e que na estação chuvosa a precedência é
dos Atukmakra. Segundo José Aurélio, informante de Melatti nos anos 60, na estação
chuvosa quem parte um animal morto durante uma caçada coletiva são os Wakmeye, e de
uma maneira tão desigual que os Katamye carregam a parte menor. Quando o bicho é
pequeno, como veado ou caititu, os Katamye não carregam nada, só os Wakmeye. Na seca,
ocorre o contrário, ficando o trabalho pesado de carregar a caça com os Katamye. Por outro
lado, na estação seca, quando se coleta mel no cerrado são os Katamye que podem comê-lo
por ali mesmo, sem ter que esperar chegar à aldeia. Na estação chuvosa, esse direito é dos
Wakmeye.

Ritos que fazem os ciclos sazonais


Nimuendajú (1946: 02) foi talvez o primeiro etnólogo a destacar que, entre os
Timbira Orientais, "a aguda divisão em períodos de seca e de chuvas afeta não somente a
economia mas também a vida social". De fato, vimos que um dos principais pares de
metades Krahô, Wakmeye-Katamye, está associado a essa alternância ecológica. Mas, além
disso, esse par é que realiza os ritos do ciclo anual, aqueles que sinalizam as mudanças nas
estações e no comando das atividades diárias da aldeia, realizando, assim, a conversão
simbólica do "tempo ecológico" para o "tempo estrutural" com base na homologia
natureza-sociedade. Lembremos da figura mitológica da velha senhora que, no “mato”,
conheceu a linguagem do tempo através da qual ensinou aos Krahô que a organização
social dos seres humanos deve acompanhar as alternâncias temporias. O movimento de ida
ao mato e retorno à aldeia são a própria expressão dessa alternância: ela sai velha e, quando
chega, rejuvenesce. Com a velha senhora os Krahô aprenderam a se dividir nas metades
ligadas ao movimento alternado do tempo, Wakmeye (nascente, dia, estação seca) e
Katamye (poente, noite, estação chuvosa), e a realizar os rituais que dotam de qualidades
distintas cada estação do ano.

A humanização do tempo não está tão-somente na transformação dos códigos dos


ritmos naturais em códigos de organização social, como assegura o mito e como, de fato,
fazem as metades Wakmeye e Katamye. Não basta a percepção dos sinais "naturais" da
mudança de estação, como o florescimento do capim atu e o aparecimento da gramínea
homrenré para a estação seca ou as Plêiades e as primeiras chuvas para a estação das águas.
Porque mesmo estes fenômenos "naturais" só se tornam sinais, signos do tempo, após
terem sido selecionados por um "olhar" culturalmente orientado. De qualquer modo, é
preciso que uma prática humana sacramente a alternância do tempo. São os rituais, pois,
que operam a transição de uma estação para outra.
O ano dos Timbira Orientais é dividido em dois grandes períodos qualitativamente
diferenciados. São, aqui também, cantos e danças os marcadores simbólicos da alternância
temporal. Cada um desses períodos é aberto e encerrado com rituais, realizados em datas
fixadas socialmente. Esses são rituais que ocorrem, portanto, em momentos de transição no
tempo "longo", anual (Nimuendajú, 1946: 163; Carneiro da Cunha, 1986: 37). Mas eles
não se conformam simplesmente à estrutura do "tempo ecológico", senão que concorrem
para a própria configuração do caráter do tempo em geral: os rituais ajudam a "fazer o
tempo" como alternância (Mauss, 1968b, 1974; Leach, 1974). Já os vimos, aliás,
estruturando o tempo da cotidianidade.
Além de terem dias certos para ocorrer em função da chegada ou do fim das chuvas,
os ritos que marcam o ciclo anual devem acontecer em determinados períodos do ano
porque estão ligados ou ao plantio e crescimento de determinados vegetais ou à sua
colheita, como a batata-doce e o milho (Melatti, 1978: 154). Diferentemente ocorre com os
ritos que expressam a distinção entre parentes consangüíneos e afins, que podem ser
realizados em qualquer época do ano124. De qualquer modo, vale destacar, estes e os demais
ritos que os Krahô ainda realizam ou que outrora realizaram somam algo em torno de
quarenta, segundo Melatti (Idem: 13). Os Krahô são, assim, a mais vívida expressão
etnográfica da afirmação de Roger Caillois de que "os homens vivem na recordação de
uma festa e na expectativa de uma outra" (1988: 97). Suas duas estações são, ademais,
estações cerimoniais porque preenchidas por vários amnikhin ("alegrar-se", festa).
Daí que o que diz Nimuendajú sobre a centralidade da vida cerimonial, entre os
Canela, acredito poder ser aplicado plenamente aos Krahô: a vida cerimonial é da mais alta
importância, "absorvendo grande parte do tempo e da energia das pessoas" (1946: 163).
Mesmo não podendo abordar muitos deles aqui, por razões óbvias, fica assinalado que o
ritual é o que estrutura os tempos sociais, sendo portanto o "tempo dominante" dos Krahô
porque em torno dele se articulam o tempo da família e do grupo doméstico e o tempo das
atividades econômicas (Sue, 1995). Tanto que o seu modelo ideal de sociedade é o de uma
sociedade cerimonial (Carneiro da Cunha, 1986: 36), onde o pátio figura no centro da
aldeia e é associado ao sol, à vida, ao belo. Vejamos pois quais são os amnikhin que
sinalizam a mudança nos períodos sazonais e quais os preenche.

A fim de ajudar na compreensão dos significados imanentes aos ritos do tempo


anual Krahô, ofereço uma descrição sintética dos contextos rituais onde as ações
simbólicas são levadas a efeito. Procuro apresenta a totalidade dos ritos que marcam o

124 Sobre esses ritos, cf. Melatti ( Idem: 129-53). Além de focar os ritos do ciclo anual, tratarei de alguns
ritos ligados ao ciclo de vida, pois a noção de tempo Krahô também perpassa as cerimônias que concorrem
para a construção da pessoa humana.
início e o fim dos ciclos sazonais, lembrando a advertência de Leach de que, para se
apreciar o quanto os rituais servem para ordenar o tempo de uma sociedade, é preciso ver o
sistema como um todo e não apenas rituais particulares isolados (1974: 208). Partamos,
pois, da abertura da estação seca e rumemos no sentido do encerramento da estação
chuvosa, quando então teremos completado todo o ciclo anual.
O rito marca o início da estação seca e, logo, o tempo os Wakmeye é realizado no
nascente, no pátio, entre os meses de abril e maio. Começa com os Katamye postados a
oeste de costas para os Wakmeye, que ficam a leste. Um dos membros da metade Katamye,
voltado para a outra metade mas com o rosto escondido sob um ramo verde, dirige-se ao
pátio, onde um cantor Wakmeye entoa os cânticos típicos da sua metade. O cantor
Wakmeye vai e volta na direção daquele membro da metade Katamye, que havia saído da
sua posição no lado oeste do pátio e ruma no sentido do centro. Quando aí chega, o rito se
encerra (Melatti, 1978: 154-5). Nesse mesmo dia, corre-se a primeira corrida com as toras
Wakmeti ("tora grande"). São as metades Wakmeye e Katamye os times que a disputam,
vindo de fora da aldeia com as toras previamente cortadas pelos homens Wakmeye, de
quem é o privilégio (ou contrapartida do fato de coordenarem as atividades da aldeia
durante a estação seca) de preparar as Wakmeti durante toda a sua estação. Segundo a
descrição de Melatti (Idem: 156), às três da tarde, portanto com o sol alto e quente, os times
entram na aldeia, onde depositam as toras diante da casa de uma menina wïtï.
Esta é somente a primeira de uma série de corridas levadas a cabo com a toras
Wakmeti (Idem: 156). Estas toras têm como características o diâmetro maior que o
comprimento, ornamentação vermelha, listras no sentido do comprimento (: 159). Esses
dois últimos, aliás, são signos gráficos da metade Wakmeye. São, portanto, os signos da
própria estação seca, de maneira que esta estação tem seu colorido próprio, pois estas toras
expressam a duração da estação (Carneiro da Cunha, 1986: 40-41). Tanto o é que as toras
com as quais se corre no começo da estação são maiores do que aquelas com as quais se
corre no final, chamadas Wakmeré, "tora pequena" (Melatti, 1978: 158). A diminuição
progressiva do tamanho das toras Wakmeti é a representação simbólica do escoamento da
estação, expressão da consciência de que o tempo tem também uma natureza linear: no
começo tem-se uma energia vigorosa que vai se esvaindo até que no final é exigida a
renovação. O tempo altera-se, vem outra estação com energias novas125.

125 O rito de Përteré, que os Krahô realizam hoje em dia segundo a maneira aprendida junto aos Canela-
Apaniekrá, no passado era um dos ritos que marcavam a chegada da estação seca. Corriam, então, com as
toras chamadas de Përteré, no amanhecer, as metades Wakmeye e Katamye. Antes da corrida começar, havia
cânticos. Depois da corrida e já no pátio, os homens dividiam-se em Harãkateye e Khöikateye para receber
paparutos das suas parentes consangüíneas. Finda esta refeição corriam com a primeira tora Wakmeti. Essa
No rito que encerra, em meados de setembro, a estação seca ocorre uma caçada
coletiva, tal como descreveu Melatti (156-8). A aldeia toda divide-se em Wakmeye e
Katamye. Os homens membros desta última ficam incumbidos de cortar a carne dos
animais mortos; alguns homens Wakmeye preparam as toras com as quais correm no
retorno da caçada. Cada homem entrega a carne que recebe a uma mulher da metade
oposta, em troca da qual recebe um alimento cozido. Se a mulher for solteira, ela leva a
carne para a casa materna, de onde retira o alimento preparado para levar ao campo no qual
as trocas são realizadas e que fica localizado fora da aldeia. Se a mulher é casada, ela retira
o alimento preparado da casa da sogra pois para lá leva a carne que obteve. Assim, no
mesmo rito que encerra a estação seca está inserido um rito no qual é expressada a
distinção entre parentes consangüíneos e parentes afins, pois as mulheres solteiras dirigem-
se para a casa dos seus consangüíneos, onde ainda moram, e as casadas vão até outro
segmento residencial, onde estão seus parentes afins. Assim, fica realçada também a
ligação entre segmentos residenciais da aldeia que é estabelecida através do casamento126.
Mas o que sacramenta de fato o final da estação seca é a "morte" do Wakmeti. Um
dos líderes dos Katamye vai até a praça, onde canta o recitativo da sua metade voltando-se
para as casas de membros da metade Wakmeye e batendo no chão com um pedaço de pau
(Idem: 158). Isto ocorre no primeiro dia da estação chuvosa, que sucede o dia em que se
corre com o último Wakmeti, morto para que então nasça o período em que se corre com o
Katamti. É o cantor Katamye, portanto, que anuncia com sua voz a chegada da estação
chuvosa. É ele que, com sua voz e gestos, finaliza o tempo dos Wakmeye "matando" a
expressão maior da sua duração, os Wakmeti. O fim deste período impõe a descontinuidade
no tempo, que vinha fluindo linearmente, e a inversão dos opostos (Leach, 1974: 195; 206).
Após o primeiro Katamti, volta o tempo a fluir linearmente.
Quando caem as primeiras chuvas, e esta é a condição primeira para sua realização,
é realizado o ritual chamado Apïnuré-Hokhi'yere, que a um tempo abre a estação chuvosa e

era a maneira Krahô de realizar o Përtere. Melatti (Idem: 180-82) diz que, das vezes em que assistiu ao
Përteré, teve a impressão de haver uma incidência da sua realização na estação chuvosa. Mas eu tive a
oportunidade de assisti-lo no final da estação seca, nos dias 07 e 08 de setembro de 2003. Foi realizado da
mesma maneira de que nos fala esse autor, mas com um detalhe bastante interessante: era um "Përteré das
mulheres". Disseram-me que de uns anos para cá têm-no feito, vez ou outra, invertendo os papéis de homens
e mulheres. Assim, naquela ocasião, as mulheres é que deveriam entregar a carne para os seus parentes
consangüíneos preparem o paparuto. Contudo, como elas não dominam nem as técnicas da caça nem as da
pesca, seus maridos é que foram caçar e pescar, a fim de propiciar às suas mulheres a carne a ser trocada pelo
alimento preparado pelos seus parentes masculinos. A inversão só não foi uma paródia completa - os parentes
das mulheres não deixaram de lhes solicitar auxílio na elaboração do bolo, pois eles, por sua vez, não
dominam as técnicas da cozinha - porque foram as mulheres que se dirigiram ao pátio para comer o paparuto
e lá se postaram não a oeste, mas a leste.
126 Este rito das trocas de alimentos pode ocorrer em outros momentos da estação seca, p. ex., no seu
começo.
põe em relevo as relações entre consangüíneos. Dois dias antes da sua realização, os
homens saem para caçar e a carne obtida é entregue a uma parente consangüínea, que
retribui com um paparuto. No dia em que a troca é efetivada, há cantos e danças no pátio,
no nascer do sol, com os homens voltados para o oeste. Depois de cantarem e dançarem, se
dirigem até a casa das suas parentes, onde recebem o paparuto. Daí retornam para o pátio,
onde, divididos nas metades de idade, repartem entre si os bolos recebidos (Melatti, 1978:
159-61).
No mesmo dia da realização do Apïnuré-Hokhi'yere, corre-se com as primeiras
toras Katamti, as toras com as quais correrão as metades Wakmeye e Katamye durante toda
a estação chuvosa. O rito do primeiro Katamti assinala, em conjunção com o rito anterior, a
abertura da estação chuvosa. As toras Katamti não são feitas somente de buriti, podendo
ser confeccionadas também com talos de bananeira ou outro material que julgarem
apropriado. O importante é que elas tenham o comprimento maior que o diâmetro. Outra
característica é que recebem desenhos pretos, cujos padrões gráficos são, segundo os
índios, "enfeites da sucuriju", pois o Katamti é a sucuriju (Idem: 162-3), animal das águas,
símbolo da estação chuvosa. Assim, se o Wakmeti é a expressão da duração da estação
seca, o Kamtati é a da estação chuvosa. A forma destas duas toras, os desenhos que
recebem e suas cores dizem que são, pois, durações contrárias mas complementares (: 163).
Juntamente com o Apïnuré-Hokhi'yere, ou poucos dias depois, corre-se com as
toras Ro?ti. Estas são as próprias sucuriju: são troncos finos e compridos, um pouco tortos,
cuja base representa a cabeça e a extremidade, a cauda. Antes do nascer do sol tem início a
corrida entre Wakmeye e Katamye, que partem de um ponto localizado fora da aldeia. Ao
chegarem ao pátio, os Katamye deixam sua "sucuriju" cair na borda, enquanto a dos
Wakmeye é conduzida até o centro. Assim, a sucuriju é trazida de fora para dentro da
aldeia, uma representação simbólica da chegada das águas que passam a influenciar o
cotidiano de todos durante toda uma estação127 (: 164-5). Contudo, o rito no qual a
administração das atividades cotidianas da aldeia é passada dos Wakmeye para o Katamye é
o Põhïyõkróu ("tora de milho"), realizado alguns dias após o Apïnuré-Hokhi'yere. Ele está
associado ao ciclo de desenvolvimento do milho, mais especificamente seu plantio e
crescimento, tanto que o tamanho das toras com as quais se corre depende do tamanho que

127 Dentre os ritos da estação chuvosa, há ainda o rito Rópyõpi, no qual o caçador entrega carne obtida à sua
esposa. Ela prepara um paparuto para seu marido, que o troca com os companheiros num dos caminhos
radiais da aldeia. Segundo Melatti (Idem: 166), este é o rito em que são acentuadas as relações dentro da
família elementar ou do grupo doméstico, pois pedaços do paparuto também são dados ao cachorro do
caçador. Outros ritos que os Krahô não realizam mais são o Apïnuré (: 167-8) e o Penhok (:175-6). De
qualquer modo, Melatti não nos assegura estarem eles relacionados ao ciclo anual.
os pés de milho tenham alcançado (: 169).
Antes do sol nascer, a primeira voz que se ouve é a do cantor, que, no pátio, é
acompanhado pelas mulheres na tarefa de "anunciar o tempo" dos Katamye (: 170).
Cantando, faz com que todos acordem, "faz" o dia começar. De manhã cedo, ao nascer do
sol, os membros da metade Katamye entregam ritualmente o machado (de ferro, com cabo)
aos Wakmeye, que cortam as toras Põhïyõkróu. Segundo Melatti (Idem: 170), a entrega do
machado aos Wakmeye é uma forma de empréstimo, pois o machado está com os Katamye
porque o rito ocorre após a estação chuvosa já ter começado. É uma entrega simbólica.
Depois de entregue o machado, ocorre a corrida com as toras Põhïyõkróu, que são trazidas
de fora para dentro da aldeia. No pátio, o cantor e a hõkrepoi (cantora) cantam em torno
das toras, enquanto que os homens dançam em volta delas, no sentido anti-horário (: 171).
O propósito destes cantos e danças seria o de fazer o milho crescer? Acredito que sim, pois
a tora do milho (Põhïyõkróu) é o próprio milho e os ritos, como venho argumentando, são
uma "força" capaz de provocar efeitos sobre o mundo físico (Mauss, 1968b, 1974; Leach,
1983 [1958]).
À tarde, petecas de palha de milho confeccionadas pelos Katamye são atiradas e
rebatidas no pátio por pessoas que cumprem estes papéis rituais em virtude de seus nomes
pessoais. Os atiradores e rebatedores Katamye são adornados com penas de gavião coladas
aos seus corpos em linhas horizontais, enquanto que os Wakmeye recebem penas de
papagaio no sentido vertical. Isto, porque o gavião é classificado como Katamye e o
papagaio, Wakmeye (Melatti, 1978: 172-3). Depois de rebaterem as petecas, é realizada a
corrida com as toras Hodré, pequenas, menores que as Ro?ti. Os Wakmeye conduzem sua
tora até o centro, os Katamye levam a sua somente até a periferia, o círculo das casas.
Depois desta corrida, os Wakmeye conduzem os Katamye até o pátio, onde lhes
entregam oficialmente a administração da aldeia. Melatti (Ib. idem: 174) observa que, da
periferia ao pátio, caminham lentamente através de um dos caminhos radiais. Isto não
somente para que pudesse um dos antigos prefeitos dar conselhos aos Katamye que estão
assumindo, mas principalmente para que dê tempo de escurecer completamente, pois o dia
é dos Wakmeye e a noite, dos Katamye. "A administração da aldeia passa de uma metade
para outra metade do mesmo modo que a noite sucede o dia" (Melatti, 1978: 174).
Assim, no rito do Põhïyõkróu também temos expressa a equivalência entre as
alternâncias cotidiana e sazonal. Além disso, é a afirmação simbólica da ordem dos lugares
e dos tempos de cada metade: as toras dos Wakmeye são depositadas no centro da aldeia e
as dos Katamye, na periferia; a administração deve ser repassada para os Katamye à noite,
após o sol ter ido embora, num ritual, aliás, que começou antes de ele sair, com cantos e
danças. Vemos, assim, que os ritos do ciclo anual são a representação simbólica da noção
Krahô segundo a qual o tempo é feito da alternância seca e chuva, dia e noite, mas também
da linearidade que se faz presente tanto no interior de cada ciclo que alterna quanto no
desenvolvimento dos seres, pois "construtos cosmológicos estão inseridos nos ritos, e os
ritos, a seu turno, ordenam e encarnam concepções cosmológicas" (Tambiah apud. Peirano,
2001: 26).

Além do Põhïyõkróu, existem mais dois ritos associados ao ciclo do milho que
ocorrem durante a estação chuvosa. O Põhïpré, que não acontece todos os anos, segundo
Melatti (Idem: 176), é realizado durante a colheita desse grão, quando já está pronto para
ser consumido. É este rito que aparece no mito da origem das metades sazonais, no qual
também notamos uma referência à expedição de caça e coleta que os Krahô faziam
antigamente. Melatti argumenta que estas expedições eram cercadas de suspense porque,
sendo realizadas logo após o plantio do milho e de outros vegetais, as roças ficavam à
mercê de ataques estrangeiros (Idem: 200). É, pois, interessante observar que neste rito são
encenados ataques às roças. Assim, os Katamye vão às roças da metade oposta roubar
alguns víveres, mas sem estragá-las muito. Num local exterior à aldeia, eles compõem
cestos contendo abóbora, batatas e milho, que são em seguida enviados aos Wakmeye.
Estes recebem os cestos no pátio, onde assam os gêneros recebidos; aí comem e dormem.
Os Katamye dormem fora da aldeia.
De manhã cedo, há uma corrida com feixes de víveres que os Katamye havia feito
com aqueles retirados das roças dos Wakmeye. Estes feixes são os Põhïpré. A corrida vai
de um ponto da periferia para o centro, onde os feixes são depositados pelos corredores.
Em seguida, são recolhidos por uma pessoa que desempenha o papel de Põhïprépupumkate
("catador de feixes") vinculado a seu nome. Há cantos em torno dos feixes. Mais tarde,
ocorre a inversão: os Wakmeye vão roubar nas roças dos Katamye; os gêneros são divididos
entre as duas metades no pátio, onde ambas dormem; os Wakmeye é que fazem os feixes
com os quais somente dois corredores, um de cada metade, correm no dia seguinte. Esta
corrida com os feixes, que vem de fora para dentro da aldeia, é sucedida por uma outra
realizada com pequenos troncos de buriti (: 176-7). Este rito termina no pátio, onde o
cantor e a hõkrepoi entoam cânticos e os rapazes dançam. As mulheres, que aí estão
presentes, atiram feixes de milho seco nos homens (: 177-8).
Já o Põhïprï é realizado quando o milho está seco. Este é o nome das flechas
produzidas com varas de canajuba, em cuja extremidade uma peteca de palha de milho lhe
envolve a ponta. O rito é iniciado com a retirada dos homens para o mato a fim de caçarem.
A carne que obtêm é levada às suas parentes consangüíneas, de quem esperam receber
paparuto em troca. No pôr-do-sol ocorre um cântico cuja letra faz referência ao Põhïprï, a
"flecha sem ponta". À noite, divididos em Khöikateye e Harãkateye, os homens atiram as
tais flechas uns nos outros. Este jogo pode durar a noite toda. Pela manhã, o padré recolhe
as flechas de maneira solene, quando então encerra o rito (: 178-9).
Outro rito que ocorre durante a estação chuvosa também está ligado às atividades
agrícolas. Trata-se do ritual Txëikhré, que é realizado logo após o plantio da batata-doce.
Este é o nome das toras com as quais correm os homens divididos em metades de idade.
Antes da corrida, eles saem para caçar. A carne é entregue a uma parente consangüínea,
que prepara para eles um paparuto. No mesmo dia da caçada, no pôr-do-sol, o cantor entoa
cantos, no pátio, juntamente com os rapazes; todos ficam voltados para a direção onde já
estão cortadas as toras, fora da aldeia. No outro dia, de manhã cedo, os Khöikateye e os
Harãkateye fazem a corrida, vindo de fora para dentro da aldeia. Quando as toras são
depositadas no centro do pátio, ocorrem novamente cânticos e os homens dançam em torno
das toras. Imagino que o propósito destes cantos e danças seja o mesmo daqueles que se
fazem em torno das toras Põhïyõkhróu, qual seja, fazer o vegetal crescer. As mulheres
assistem no lado oeste do pátio. Depois disso, os homens buscam o paparuto na casa da
parente a quem deram carne e de lá voltam para o pátio, onde se dividem em classes de
idade para comer os bolos. Feito isto, cantam o canto de Hamaro, canto matinal que deve
ser entoado por uma das metades de idade (: 150; 183-5).
O Përti-Yótyõpi é outro rito ligado à batata-doce, mas à sua colheita, sendo o mês
de abril considerado o mais apropriado para sua realização (: 185). É um rito, portanto, que
marca o fim da estação chuvosa e o começo da estação seca, juntamente com o Txëikhré.
Em torno de quatro ou cinco dias antes, alguns homens saem para caçar. Ao entardecer do
dia anterior ao da realização do rito, o cantor entoa cantos no pátio, acompanhado por
outros homens. Eles ficam voltados para a direção das toras com as quais correrão no dia
seguinte e que jazem fora da aldeia. O rito se inicia com a vozes do cantor e das mulheres
cantando no pátio, de madrugada, juntamente com a dança dos homens. Logo de manhã
cedo, tem-se a corrida entre as metades de idade, que vêm de fora da aldeia até o pátio,
onde depositam suas toras. Quando estas chegam, há troca de paparutos entre as casas
maternas de rapazes e moças cujo casamento estivesse combinado ou já efetivado, mas
ainda não consumado pelo nascimento do primeiro filho. Esta troca de paparutos é
reconhecimento público de que o casal está estabelecendo a relação de marido e esposa (:
187). Aliás, desde o "noivado" as casas dos rapazes e moças, mesmo que eles já estejam
vivendo juntos, vêm trocando paparutos todas as vezes que este rito é realizado e só
deixam de fazê-lo quando nasce o primeiro filho (Melatti, idem: 105).
Enquanto ocorrem as trocas de paparuto, entram em cena certos personagens rituais,
ligados aos nomes pessoais dos seus atores, a desfilar pelos caminhos radiais da aldeia (::
187-9). Após os desfiles dos personagens e a troca de paparuto, as metades Khöikateye e
Harãkateye defrontam-se de maneira simbólica no centro do pátio: "dando gritos agudos,
vão se aproximando uma da outra, ameaçando-se mutuamente, até se juntarem no meio do
pátio, dispersando-se" (: 189). No final da tarde, no caminho circular, passa o cortejo no
qual é conduzido um cesto com batatas que são atiradas em pessoas que se colocam diante
dele; o cortejo, puxado por dois cantores com seus maracás, termina no pátio, com o sol se
pondo. No poente, o cantor e a hõkrepoi cantam. Fogueiras são acendidas no pátio, uma no
centro ou a leste. À noite, ainda com cantos, os rapazes e moças que tenham trocado
paparuto pela manhã devem dar as mãos e caminhar em torno da fogueira. À noite também
atuam personagens rituais no pátio, após o que as moças cantam. De manhã bem cedo, no
nascer do sol, o cantor e a hõkrepoi cantam no pátio; são as primeiras vozes da aldeia. Ele
caminha em torno do lugar onde arderam as fogueiras. Diante de suas cinzas, cessa o canto.
Termina o rito (Melatti, idem: 188-92).
Mas, para que a estação chuvosa se dê por encerrada, é preciso "matar o Katamti".
Assim, um homem pertencente à metade Wakmeye vai e volta no caminho que leva do
pátio para a casa da wïtï associada aos homens adultos, entoando os cânticos próprios dos
Wakmeye. Como Melatti (Idem: 162) não se refere ao ato de bater no chão com uma vara,
imagino que o Katamti, ou seja, a duração da estação chuvosa, é "morto" unicamente com
os "ritos orais" (Mauss, 1968b), os cantos da metade que passa a assumir a coordenação
das atividades diárias da aldeia. A morte, sabemos, é o desfecho final do fluir linear do
tempo, cujo ponto de partida é o nascimento do ser. O pensamento Krahô articula essa
linearidade do tempo à alternância, de maneira que o Katamti "morre" para que nasça o
Wakmeti, fazendo com que a duração da estação chuvosa entre em latência para que a
estação seca surja em sua potência. E assim, o ciclo de "vida" e "morte" das toras Wakmeti
e Katamti configura a noção do tempo como uma "seqüência de oscilações polares"
(Leach, 1974: 195), ou seja, como alternância entre vida e morte, dia e noite, estação seca e
chuvosa, subjacente à qual está a experiência do tempo fluindo linearmente do nascimento
de um período à sua morte. Este é o momento da transição.
No passado, segundo Melatti (Idem: 200-01), os marcadores do início da estação
seca eram os rituais do Përteré e do Txëikhré, aquele sendo realizado depois deste. No
período de transição para a estação seca, dá-se o plantio da batata-doce, uma prática que é
levada a cabo coletivamente. Estes ritos abrem, além disso, a estação em que acontecem
atividades que exigem a solidariedade e cooperação nos grupos domésticos e nas metades
de idade, como a "broca", a derrubada e a queimada. Lembra, nesse sentido, que estes ritos
são justamente aqueles que enfatizam as relações entre os consangüíneos (as parentes
consangüíneas fazem paparutos para os homens) e entre os membros das metades de
classes de idade (há, nos ritos, momentos de comensalidade entre Khöikateye e
Harãkateye).
Por outro lado, isso contrasta com o tipo de relação que é destacada nos dois
últimos terços da estação chuvosa. Assim, nos ritos Põhïpré, Põhïprï e Përti-Yótyõpi há
episódios de agressão, seja entre afins (maridos e esposas), seja entre os membros das
metades de classes de idade. Para Melatti (Ib. idem: 200), isso se explica porque a colheita,
evento que estes ritos assinalam, é um momento que guarda um certo perigo, pois é quando
a inveja e a cobiça dos que não plantaram leva-os a fazer constantes pedidos aos mais
precavidos ou mesmo a assaltar as suas roças. Teríamos, então, uma oscilação no padrão de
relações sociais entre o final da estação chuvosa e a estação seca que se refletiria nos
ritos128.
Assim, os ritos do ciclo anual expressam também relações de parentesco. Melatti
(Idem: 201-02) identifica três tipos de relações: solidariedade entre consangüíneos,
presente nos ritos Apïnuré-Hokhi'yere (abertura da estação chuvosa), Põhïprï (final da
estação chuvosa), Përteré (antigamente, no início da estação seca), Txëikhré (transição da
chuvosa para a seca); entre afins efetivos e afins potenciais, cuja distinção é ressaltada nos
ritos Përti-Yótyõpi (final da estação chuvosa, início da seca), Wakmeti (início da estação
seca) e Rópyõpi (estação chuvosa). Apesar de não haver vínculo estreito entre os tipos de
relação de parentesco e a oscilação estação seca-estação chuvosa, vale ressaltar que estes
ritos, que têm datas fixas nos ciclos sazonais Krahô, servem de oportunidade para
expressar simbolicamente normas de conduta e de relacionamento que encontram (ou
devem encontrar) sua realização no fluxo do dia-a-dia, o que não deixa de ser mais uma

128 Sobre o Põhïprï ter tanto troca de carne por paparutos entre parentes consangüíneos quanto agressões
rituais entre os membros das metades de classes de idade, Melatti lembra que este rito é realizado quando o
milho comum não é mais consumido e que, portanto, ocupa uma posição intermediária entre a colheita e o
início da estação seca (1978: 201).
mostra de que o pensamento Krahô articula a temporalidade anual com a temporalidade do
cotidiano e que os rituais são "momentos de intensificação do que é usual" (Peirano, 2001:
27).

Mas, como o que quero enfatizar são os rituais, os amnikhin, como a forma que os
Krahô encontraram para marcar mudanças no tempo, não só dizendo que ele mudou, mas
"fazendo" com que mude, devemos "gastar" algum tempo na análise do que Melatti
chamou de "ano minúsculo" Krahô. Lembremos, de saída, que Leach, seguindo a vereda
aberta por Mauss, argumenta que o comportamento simbólico do ritual não somente "diz"
alguma coisa, mas também "faz" coisas (1983 [1958]: 140; 147).
Observa Melatti (1978: 197-8) que os Krahô reproduzem todo o ciclo anual no
curto período que compreende os ritos Apïnuré-Hokhi'yere e o Põhïyõkróu, nos primeiros
dias da estação chuvosa. A corrida com as toras Ro?ti ocorre antes da cerimônia de
transferência da administração da aldeia para os Katamye, e a corrida com as toras Hodré
(no âmbito do Põhïyõkróu) se dá depois desta cerimônia. Melatti destaca ainda algumas
oposições complementares entre estes dois ritos: Ro?ti são toras compridas que se arrastam
pelo chão conduzidas numa corrida que ocorre ao nascer do sol, logo no início da estação
chuvosa, enquanto que as toras Hodré são bem pequenas e sua corrida é realizada dias
depois da primeira, à tarde. "É como se um estivesse na estação seca [Ro?ti] e outro na
estação chuvosa [Hodré], muito embora, na realidade, ambos já estejam na chuvosa" (Ib.
idem: 197). Caillois (1988: 110), nesse sentido, observa que muitas cerimônias que
assinalam mudança de ciclos procuram representar simbolicamente, num período reduzido
de poucos dias, a totalidade dos ciclos que se encadeiam no tempo129. Esta compressão do
tempo anual em poucos dias lembra a temporalidade rápida de Sol que aparece em diversos
mitos. Parece, assim, que o tempo deve ser compremido para depois se expandir
novamente segundo um ritmo mais lento, mais demorado, próprio de Lua. A pressa de Sol
e a demora de Lua seriam, pois, caracteres estruturais do tempo, segundo a perspectiva
Krahô.
A hipótese de Melatti para a existência deste "ano minúsculo", logo no início da
estação chuvosa, corrobora meu argumento de que são os rituais que "fazem o tempo"
Krahô. Para ele (Idem: 198), a administração da aldeia só é oficialmente repassada aos
Katamye no Põhïyõkróu, e não no Apïnuré-Hokhi'yere, para que eles não fiquem mais
129 Esse "ano minúsculo" que os Krahô vivem nos primeiros dias da estação chuvosa, Melatti não nos diz se
também é vivenciado no início da estação seca (Idem: 198).
tempo no comando das atividades cotidianas do que os Wakmeye. Se os Katamye
tomassem a administração no começo do mês de outubro, quando então ocorre o Apïnuré-
Hokhi'yere, nas primeiras chuvas, ficariam um mês a mais com a "prefeitura" da aldeia.
"Fazendo-se a entrega da administração aos Katamye no rito de Põhïyõkróu, que ocorre
quase um mês depois do Apïnuré-Hokhi'yere, essa diferença é corrigida ou, pelo menos
diminuída" (Idem; grifos meus). Com isto, vemos a centralidade das práticas rituais no
ordenamento dos tempos sociais Krahô. Além de ocuparem a maior parte da energia das
pessoas, são os rituais que "fazem seu tempo" com os cantos e danças. Em todos o ritos do
ciclo anual notamos a presença de cantos e danças, marcando ora o início de um período,
ora o seu fim. Em muitos, o ideal expresso no mito do Khoiré se realiza: a voz do "pai do
Khoiré" inaugura e encerra o dia. São as vozes dos cantores Wakmeye e Katamye que
abrem as suas respectivas estações. Anunciando ao povo a mudança, as suas vozes ecoam o
próprio tempo130.
Por fim, vale observar que o rito de transmissão da responsabilidade administrativa
da aldeia para os Wakmeye é realizado de manhã, após o nascer do sol, enquanto que o rito
de transferência aos Katamye é realizado depois do pôr-do-sol. Se o dia é dos Wakmeye
assim como a estação seca, e a noite e a estação chuvosa são dos Katamye, então estamos
diante de um daqueles tipos de pensamento que Leach chamou de "economical thinking"
(1972 [1966]: 337). Ou seja, através destes dois conceitos polares, os Krahô bipartem todo
o conjunto dos cosmos, aplicando o mesmo conceito a grupos sociais, períodos de tempo,
corpos celestes, plantas, animais e seres metafísicos. Este procedimento intelectual, vimos,
é condensado de maneira simbólica nos ritos do ciclo anual. Eles são, assim, não somente a
linguagem que "faz" o tempo, mas também aquela que comunica e transmite as
informações e o conhecimento acerca da "natureza" e da sociedade (Idem: 336).
Informações e conhecimento estes que demandaram séculos de observação e experiência
por parte dos Krahô para que chegassem a viver segundo os princípios do Wakmeye e do
Katamye, que pressupõem o equilíbrio das forças que fazem o movimento do universo
tanto quanto daquelas que fazem o movimento da sociedade humana.

130 Sobre o papel dos cantos e danças como mecanismos simbólicos de manutenção dos ritmos cósmicos e
sociais, em dois contextos etnográficos distintos, cf. Mauss (1968a: 446, e 1968b: 475). Elias (1998: 45;
152-3) sublinha que a prática de "anunciar" o tempo através da voz humana é tão antiga e disseminada quanto
as próprias sociedades humanas e que ela compete a atores de importância simbólica, como reis, sacerdotes,
astrólogos-mor, e cantores, acrescento. Nesse sentido, ele lembra que a palavra "calendário" vem do termo
calendae, cuja raiz é o verbo latim calare. Na Roma Antiga, era um sacerdote que saía às ruas anunciando ao
povo que a lua nova fora avistada e que, portanto, havia começado um novo mês. Sem a voz do sacerdote,
não haveria mudança no tempo. Assim, "calendae" (calendário) nada mais é que "dias a serem proclamados".
Notemos que, se o tempo é um assunto que interessa a todos, o cantor Krahô "anuncia" o tempo no pátio da
aldeia e o sacerdote pelas ruas da cidade porque estes são lugares públicos.
Carregando o tempo nos ombros: considerações sobre as corridas de toras
Minha intenção, nas linhas que se seguem, é relacionar algumas corridas de toras
com a noção de tempo Krahô. Ressaltando o caráter simbólico das toras, pretendo
demonstrar que as corridas, como rituais que são, concorrem para a construção de uma
temporalidade concebida e vivida como alternância e linearidade. Melatti (1978: 360)
sublinha que as toras podem ser consideradas sob vários pontos de vista, pois os Krahô
fazem várias associações com elas. Assim, o que proponho aqui é uma interpretação muito
particular, baseada nas corridas de toras realizadas no âmbito dos ritos dos ciclos sazonais.

As corridas de toras são uma das mais tradicionais e conhecidas instituições dos Jê
Setentrionais (Nimuendajú, 1946: 136; Melatti, 1978b: 38). Os primeiros cronistas
acreditavam tratar-se de uma prova matrimonial; hoje, há um certo consenso entre os
antropólogos de que estas corridas são um misto de esporte e de ritual. Nimuendajú, já nos
anos 40, enfatizava sua estreita relação com a estrutura social dessas sociedades bem como
o caráter simbólico das toras (Idem: 136-45). Entre os Krahô, a corrida é sempre disputa
entre dois times: Wakmeye-Katamye, Khöikateye-Harãkateye, ou outro par de metades131.
Os times que realizam a corrida, as toras e o percurso dependem do rito que engloba a
corrida.
As corridas de toras estão inseridas na estrutura do cotidiano Krahô, não
passivamente, mas como um mecanismo de "temporalização" (Munn, 1992: 116), como
uma prática que ajuda a construir o tempo como um processo simbólico. Nesse sentido,
dois são os tipos de corrida. Uma vem de fora para dentro da aldeia e é realizada
normalmente no final da tarde, após uma atividade coletiva (caçada, mutirão na roça),
utilizando toras novas que são depositadas no centro da aldeia, o pátio, ou na periferia, na
casa de um dos wïtï, que também é uma forma de pátio, com vimos acima. A outra ocorre
pela manhã quando os moradores da aldeia se preparam para começar as atividades
cotidianas, cujo ponto de partida está localizado dentro da própria aldeia e cujo percurso é
sempre no sentido anti-horário pelo caminho circular (Melatti, 1976b: 38-41). Assim, as
corridas de toras se interpõem entre os cantos e danças no pátio e as reuniões do "conselho
masculino".
131 Sobre os pares de metade que podem realizar as corridas de toras, bem como sobre as outras corridas que
os Krahô praticam, além da corrida de toras, cf. Melatti (1976b: 41).
O fato de haver duas toras implica a existência da reciprocidade entre os dois times
que as disputam. A ocorrência dos dois times com duas toras não é aleatória, mas se deve
ao fato de ser um jogo ritual realizado no contexto de uma sociedade cuja organização está
assentada sobre o princípio dualista. Uma das características das organizações sociais
pautadas no dualismo é justamente a reciprocidade, que faz com que as corridas de toras
apresentem tanto aspectos de rivalidade quanto de solidariedade entre os times (Lévi-
Strauss, 1982 [1949]). Nesse sentido, alguns autores apontam para o duplo caráter de jogo
e de ritual das corridas de toras Krahô (Melatti, 1976b: 42-4; Carneiro da Cunha, 1986:
41). Isto, porque as condições não são sempre as mesmas para os dois times: um pode ter
mais participantes que o outro, ou algumas corridas podem começar com um time à frente
do outro. Por outro lado, há corridas em que os times trocam as toras, em determinado
ponto do percurso, de maneira a eliminar qualquer vantagem que um possa ter sobre o
outro, pois espera-se que não haja distância muito grande entre os dois grupos de
corredores. Por outro lado, quando um corredor vê que o oponente que vem atrás é seu
hõpin (amigo formal), ele diminui o passo para que seu amigo não se canse. Apesar de
haver uma diferença final, pois um time quase sempre chega na frente do outro, a vitória
não é festejada: o ideal não é vencer, mas simplesmente correr bem. Os bons corredores,
contudo, são tidos pelos Krahô em alto preço.

Os mitos asseguram que as corridas de toras sempre existiram, desde antes do


surgimento dos seres humanos. Vimos que Sol e Lua, quando descem à terra, já corriam
com toras. Foi graças à técnica corporal da corrida de toras que os seres humanos
conquistaram o fogo junto ao casal de onças. Foi também uma corrida que estabeleceu a
divisão dos animais em Wakmeye e Katamye: bichos da mata, da noite, da estação chuvosa
vs. bichos do cerrado, do dia, da estação seca. O próprio circuito das corridas matinais,
quase todos os dias e cujo ponto de chegada é a casa de um wïtï, está fundamento num
mito. Assim, segundo Melatti (1978: 359-60), o sentido anti-horário destas corridas
realizadas no caminho circular da aldeia estaria relacionado com atualização do mito do
mundo subterrâneo, sendo as várias voltas deste percurso, portanto, a representação da
subida do mundo subterrâneo para o patamar terrestre132. Some-se que o Khoiré, insígnia
do cantor e símbolo da periodicidade, somente seria entregue àquele que vencesse uma
corrida, conforme a versão do mito tomada por Harald Schultz (1950: 114-18).
Vemos então que as corridas de toras, além de estarem estreitamente vinculadas

132 Sobre este mito do mundo subterrâneo, cf. Chiara, 1961-2: 350-1.
com a estrutura social Krahô, têm um lugar central na cosmologia desta sociedade. Melatti
observa que, de modo geral, "as toras representam a assimilação pela aldeia dos elementos
do mundo externo" (1978: 360). Podemos ver esta assimilação como uma transformação
cultural de elementos localizados originariamente no domínio da natureza. As toras que os
corredores vão buscar no cerrado são, pois, a representação simbólica dos itens que há
muito, asseguram os mitos, sua cultura conquistou. Tanto isto é verdade que as corridas
nunca são realizadas do interior para o exterior da aldeia, enfatiza Melatti (1976b: 38). Os
corredores, podemos dizer, encarnam os heróis civilizadores de outrora. Este autor assevera
ainda que "tudo que faz parte de sua cultura os Krahô consideram como de origem externa"
(1978: 360), desde o fogo, a agricultura até os cantos e os ritos. Eu acrescentaria também o
tempo.
Neste sentido, é conveniente lembrarmos do mito das metades. A Noite e o Dia
moram no "mato", ou seja, na natureza, que é justamente de onde os seres humanos
retiram, através da velha senhora, todo seu conhecimento sobre o tempo e sobre a
organização em metades associadas a ele. Assim, sugiro que algumas toras estão
relacionadas a símbolos de tempo, principalmente aquelas com as quais correm os pares
Wakmeye-Katamye e Khöikateye-Harãkateye durante os ciclos sazonais: Wakmeti (a tora
da estação seca), Katamti (a tora da estação chuvosa), Ro?ti, Põhïyõkróu e Hodré (toras da
chegada da estação chuvosa), Txëikhré e Yótyõpin (toras do final da estação chuvosa,
começo da seca). Vistas em conjunto, estas toras condensam a concepção Krahô do tempo
como alternância e como linearidade.
Com base no mito do Khoiré, numa versão apresentada por Vilma Chiara, Carneiro
da Cunha (1986: 40-1) defende a tese de que as corridas de toras seriam expressão da
duração, ou da "alternância na duração", e os cantos e danças seriam os marcadores dos
seus limites. Assim, as corridas seriam a representação da alternância harmoniosa dos
grupos dominantes, o que exprimiria, outrossim, o "tempo estrutural" da alternância
Katamye e Wakmeye. Isto é verdade em se tratando das toras Katamti e Wakmeti, cada qual
cortada pela metade associada à estação em curso e da qual saem os dois "prefeitos" da
aldeia. De fato, a alternância entre períodos em que se corre com a toras Wakmeti e
Katamti fazem com que os Krahô vivam dois ciclos de atividades sociais e cerimoniais. Na
duração da estação seca, Wakmeye, corre-se com as toras Wakmeti, de diâmetro maior que
o comprimento e com desenhos vermelhos; na estação chuvosa, Katamye, corre-se com as
toras Katamti, cujo comprimento é maior que o diâmetro e decorada em preto (Melatti,
1978: 197). Mas estas mesmas toras prestam-se à função de marcadoras de tempo,
sinalizando o começo e o fim de períodos, como é o caso da primeira corrida com o
Wakmeti ou a primeira Katamti.
Isto deriva do fato de que as corridas, além de terem momentos certos do dia para
acontecerem, têm data certa do tempo anual para serem realizadas, pelo menos aquelas dos
ciclos sazonais. Assim, outra tora que representa o começo de um ciclo sazonal é a Ro?ti
(Melatti: 1976b: 42; 1978: 164-5). Carregando a "sucuriju", símbolo da estação chuvosa,
para dentro da aldeia, os corredores estão como que levando as primeiras chuvas para o
seio da comunidade. É uma representação ritual do início de um período do ano diferente
daquele que está acabando e que muda a vida cotidiana de todos. Por outro lado, no
passado, o começo da estação seca era também marcado por uma corrida de toras, o
Përteré (Melatti, 1978: 180). Se as corridas de tora podem assinalar o começo e o fim de
períodos, elas são, outrossim, expressão do tempo linear. De fato, Wakmeti vai diminuindo
de tamanho conforme a estação seca vai fluindo até que, no fim, o cantor Katamye o
"mata". Também o Katamti deve nascer e morrer, como nasce e morre a estação chuvosa.
O tamanho da tora do milho, Põhïyõkróu, depende do tamanho dos pés de milho quando da
realização deste rito, que marca a passagem da administração da aldeia para os Katamye.
Em suma, acredito poder afirmar que algumas corridas de toras são a representação
simbólica do tempo segundo o esquema cosmológico Krahô, pois são ritos que se dão na
alternância dos ciclos sazonais, marcando não somente a oscilação dos períodos de tempo,
mas também a sua duração. São exemplos de como, nesta sociedade, os rituais são de vital
importância para a manutenção dos ritmos cósmicos e sociais. Elas são a expressão de que
são determinadas práticas humanas dotadas de significados especiais que "fazem" a
regularidade da natureza. Nestas corridas de toras, os corredores carregam o tempo sobre
seus ombros. O revezamento entre eles na tarefa de conduzir as "toras do tempo" de fora
para dentro da aldeia é a afirmação ritual de que é dever da coletividade humana trabalhar
no sentido do equilíbrio dos elementos do universo, dentre os quais figura o tempo.

Devo acrescentar, seguindo Vilma Chiara (1978: 55-59), que as corridas de toras
são uma forma de conectar a sociedade com o Leste, o "pé-do-céu", a fonte da "energia
vital" que alimenta todos os seres, onde tudo é movimento: de lá vem o vento, a água
corrente, de lá vieram os cantos do Khoiré que enchem de beleza os ouvidos humanos133. O
Leste, não custa lembrar, é associado ao claro, ao belo, ao forte, ao movimento, em

133 Melatti (1978: 357) lembra que os rios do território Krahô têm suas cabeceiras localizadas na direção sul,
que é identificado com o Leste. Suas águas são vistas, assim, como vindo do "pé-do-céu" e correndo para o
Oeste, a "direção do sem pé".
contraposição ao Oeste, lugar do escuro, do mole, da inércia, onde está assentada a "aldeia
dos mortos". Correndo com toras, os Krahô estão, portanto, afirmando a superioridade do
movimento sobre a inércia, do que corre sobre o que fica parado. As corridas que ocorrem
de manhã bem cedo não têm outro propósito se não o de "acordar" as pessoas, pô-las de pé,
colocar a aldeia em movimento (Melatti, 1976b: 39).
CAPÍTULO IV
O DUALISMO DO TEMPO NA NOÇÃO DA PESSOA

A questão da visão que as sociedades Jê têm do corpo e da pessoa pode ser uma
via de acesso à compreensão da sua organização social e cosmologia. Se o corpo, nestas
sociedades, é uma "matriz de símbolos e um objeto de pensamento", como querem Seeger,
DaMatta e Viveiros de Castro (1979: 11), então proponho, neste capítulo, que na
construção da pessoa que fazem os Krahô podemos entrever a forma como eles pensam o
tempo, no que estarei caminhando pelas veredas abertas por Leach (1974: 195; 206) e
Geertz (1989: 225-77). Fazendo isto, sigo a sugestão de Melatti (1976) de que a concepção
que esta sociedade tem da pessoa humana está baseada em dois pólos semânticos
contrários e complementares: corpo vs. personagem. Veremos, porém, que as tradicionais
dicotomias dualistas não se sustentam se vistas como categorias estanques, pois isto
contradiz a dinâmica que insiste em se fazer presente na vida Krahô134. Na sua visão da
pessoa, o simbolismo da alternância temporal combina-se com cuidados com o corpo físico
que demandam uma temporalidade de tipo linear cujo ritmo é o do herói Lua (Pudleré), ou
seja, um tempo mais lento, mais ponderado face ao tempo precipitado de Sol (Pud).
Alternância e linearidade são aspectos complementares do tempo que permeiam a vida da
pessoa.

Cuidados com o corpo e a linearidade do tempo


A pessoa humana figura no pensamento Krahô como sendo composta por um
aspecto interno, onde se localizam as substâncias que promovem a reprodução biológica, e
por um aspecto externo, uma "pele social" formada pelas relações definidas pelo nome
pessoal e pelos papéis cerimoniais a ele associados. Existe uma ligação entre os fluidos
internos dos corpos que leva à formação de uma "unidade de substância" (Melatti, 1976:
142) entre o indivíduo gerado, seus genitores e co-gerados. Em contraposição, este
indivíduo estabelece uma relação de natureza ritual com aquele de quem recebeu o nome,
de quem nasceu para a vida cerimonial. Assim, estes dois tipos de relacionamentos -
biológico vs. social - guardam em si todo um conjunto de comportamentos que revelam a

134 O próprio Melatti (1978: 126) diz que a noção de pessoa, entre os Krahô, não pode ser reduzida à
simples dicotomia corpo – personagem.
sua qualidade enquanto relacionamentos opostos mas, sobretudo, complementares.
Para o primeiro tipo de relacionamento acho adequada a definição de "grupo de
descendência corporal", um grupo no qual um indivíduo é criado como membro em “sua
própria carne, sangue e ossos” (Seeger, op. cit.: 130). Em torno deste grupo pesa um
conjunto de tabus, tanto mais pesados quanto esteja ele passando por um momento crítico:
nascimento de um novo membro, quando alguém é picado por cobra ou sofre de alguma
doença grave. A razão para as relações no interior deste grupo serem tão estreitas e
delicadas reside no fato de que as substâncias corporais dos genitores (intxu: P, IP, FiP;
intxe: m) são partilhadas com o indivíduo gerado (ikhra) desde a sua gestação até o
momento em que atinge a maturidade135. Segundo Melatti (1976: 141), os Krahô acreditam
que tanto o homem quanto a mulher contribuem para a formação da constituição interna do
novo organismo através da transferência das suas próprias substâncias: o homem contribui
com o sêmen e a mulher com o sangue, mas também com os alimentos que passam para o
corpo do feto e, mais tarde, com a amamentação136.
Os tabus, alimentares em sua maioria, que perfazem o resguardo que os
genitores devem observar em virtude do nascimento de um filho têm por objetivo evitar
que alguma doença o afete, deixando-o defeituoso ou mesmo levando-o à morte; mesmo o
corpo do genitor pode ser afetado em caso de não observância das proibições (Melatti,
idem: 141-2). Estas se dão numa gradação inversa ao fluxo linear do desenvolvimento
corporal da criança, de maneira que à medida que ela cresce e fica forte, "durinha", o peso
das interdições diminui. Isto tem a ver com os cuidados com a "força vital" presente no
sangue, pois, observa Melatti (1978: 56), as restrições somente afrouxam quando a
parturiente deixa de sangrar. A displicência com o sangue que ainda pode sair do corpo da
mãe pode ter por conseqüência o enfraquecimento do sangue que começa a circular
naquele que ela gerou através do seu próprio fluido vital. O resguardo, assegura Carneiro
da Cunha (1978: 104-11), tem por objetivo restabelecer as fronteiras do "indivíduo
biológico" comprometidas por algum evento que leva o sangue à exterioridade e ao
contanto entre os corpos.
Assim, logo após o nascimento, os pais estão proibidos de comer carne, fumar, ter
relações sexuais, fazer serviço pesado, falar em voz alta, só podendo comer inhame, batata-
doce, milho branco, coco-macaúba. Passados alguns meses, outros vegetais e certas carnes

135 Sobre a terminologia de parentesco Krahô, cf. Melatti (1973: 06-10).


136 Um indivíduo pode ter somente uma genitora, mas pode ter vários genitores, pois aqueles que
mantiveram relações sexuais com sua mãe são vistos como tendo contribuído para a formação do seu
organismo (Melatti, idem; 1978: 55).
de determinados animais já são permitidos: anta, tamanduá-bandeira e mambira, boi,
porque são tidos como "animais fortes" (Melatti, 1978: 56). A essa altura as relações
sexuais são liberadas, pelo menos para o pai, pois a mãe continua proibida de tê-las até a
criança começar a andar. Quando ela atinge os sete anos, é suspensa a última proibição, a
de matar cobras137. Mesmo quando adulto, o filho afetado por alguma doença faz com que
seu(s) pai(s) e sua mãe fiquem de resguardo para que ele se recupere mais rapidamente; os
filhos adultos, a seu turno, devem fazer resguardo por seu(s) pai(s) e por sua mãe. Mas
estas observâncias se dão também entre siblings: o irmão deve fazer resguardo por aquele
com quem partilha pelo menos um genitor (Melatti, 1973: 10).
Tudo indica que, na base nas proibições de se comer certas carnes, também está
operando a concepção Timbira segundo a qual um indivíduo pode se transformar num
outro ser, ou ficar parecido come ele, caso se aproprie de suas qualidades substanciais, de
que nos fala Azanha (1984: 42). Portanto, parece haver uma contigüidade de corpos inter-
espécies que faz com que se coma, por exemplo, carne de boi ou de tamanduá porque são
animais fortes e, sendo assim, deixará fortes pais e filhos, como o próprio animal. O
consumo da carne de tamanduá pode ter também outro propósito. Segundo Nimuendajú,
quando as restrições pelo nascimento de um filho estão prestes a acabar, o pai sai em
viagem de caça a fim de matar uma espécie de tamanduá que, diz-se, "cuida de seus filhos
como um ser humano faz, carregando-o consigo em suas costas onde quer que vá" (1946:
108). Comendo a carne deste tamanduá, então, os pais terão excelência nos cuidados dos
seus filhos.
A relação entre genitores e gerados tem outros aspectos positivos relacionados ao
desenvolvimento corporal destes últimos que revelam uma verdadeira “ciência do
concreto” (Lévi-Strauss, 2002 [1962]). Além de os genitores serem os responsáveis por
suprir o alimento dos filhos, devem também cobrir seus corpos com certos amuletos que os
protejam de perigos decorrentes da quebra de resguardo e que propiciem um crescimento
saudável e vigoroso. Assim é que são usados ossos de papa-mel e de rabo de quati para
proteger os ossos da criança, caso ela caia; omoplata de jabuti, para não sentir sede com
facilidade; osso de asa de morcego, para poder correr à noite com toras e não tropeçar em
tocos no caminho; unha de tatu-canastra, para correr muito sem sentir dor no estômago; um
pedaço de galho de sucupira, para a criança não adoecer com facilidade (Melatti, 1978: 58).
A sucupira, aliás, parece ser um símbolo de vitalidade para os Timbira, pois Nimuendajú
(1946: 107) observa que, entre os Ramkokamekrá, a mãe guarda o cordão umbilical do
137 Estas proibições não se aplicam a pais, mães e filhos classificatórios (Melatti, 1973: 10). Para um
conjunto de proibições rituais envolvendo genitores e gerados, cf. Melatti (1978: 56-60).
filho numa cestinha com sementes de urucum; aos quatro anos a criança recebe tal cestinha
como presente e enterra o cordão no pé da sucupira, pois assim será forte e bela como esta
árvore.
Do que foi dito, vemos que há uma identificação biológica do indivíduo com seus
genitores que inclui os vínculos sociais (Melatti, 1973: 16; 1976: 143). Todos os cuidados
sobre os quais falamos acima têm a ver com uma preocupação com o crescimento corporal
e com o bem-estar físico da pessoa. É um conjunto de cuidados socialmente instituídos e
empreendidos para fazer com que o percurso linear do tempo, no indivíduo, não se
interrompa, de maneira que ele possa nascer, crescer forte, belo e saudável e seguir para a
velhice. Tanto é que a ligação biológica do indivíduo com aqueles que o geraram vai desde
o nascimento até a idade adulta. O tempo como linearidade está demonstrado na fala de
vários informantes de Melatti (1978: 57), segundo os quais a quebra no resguardo traz por
conseqüência o branqueamento precoce dos cabelos dos pais. O corpo que sofre tais
restrições rituais é o do indivíduo, mas numa tal trama que faz com que o fluxo linear do
tempo, que preside ao crescimento biológico do organismo, seja um “assunto” social de
domínio do “grupo de descendência”.
Os cuidados com as substâncias físicas não têm outro lugar para acontecer se não
no interior das casas, na periferia, portanto. É na casa que o indivíduo nasce, e é lá que seus
pais observaram a semântica proibitiva da alimentação cuja duração é medida pelos meses.
A esta altura é interessante lembrar que foi Lua (Pudleré) que impôs o resguardo
prolongado em meses, com proibições alimentares e sexuais, ao contrário da vontade de
Sol (Pud). No mito, recordemos, subjacente ao embate entre os dois heróis estava em jogo
um tempo que flui mais rápido (o de Sol) e um que se escoa mais lentamente (o de Lua).
Lua venceu, e os resguardos que foram ensinados aos seres humanos seriam mais sofridos,
porque mais prolongados. Lua ainda criou a morte e, com ela, a impossibilidade de
renascimento, o tempo como alternância como era o desejo de Sol. Desde então, todos os
seres humanos seguem o mesmo destino fatal, o mesmo trajeto temporal previsível que vai
do nascimento à morte. Mas a linearidade do tempo de Lua também é criativa, também é
vida. Os cuidados mais demorados envolvendo pai(s), filhos e mãe têm por objetivo
assegurar que as pessoas cresçam fortes e saudáveis; são cuidados que demandam a
paciência que somente pode ser posta em exercício no círculo da periferia, o lugar dos
ritmos lentos da vida real que não reconhecem fronteiras rígidas entre corpo e personagem,
natureza e cultura.
Nomes, vida cerimonial e alternâncias do tempo
As relações cujos elos são os nomes pessoais marcam o contraponto da construção
da pessoa. Através destas relações de caráter ritual, os indivíduos figuram como
personagens que atuam em grupos sociais opostos e complementares permeados do
simbolismo do tempo como alternância: nascente–poente, dia-noite, seca-chuva. Através
do nome pessoal, o indivíduo herda certas prerrogativas rituais e passa a pertencer a uma
rede de relações sociais e cerimoniais mais vasta: o nome veste o indivíduo com a roupa
social da pessoa. Além dos grupos aos quais tem acesso pelo nome pessoal, a pessoa do
sexo masculino é inserida numa das metades de classes de idade quando atinge a
puberdade. De qualquer maneira, fazendo parte das classes de idade, a pessoa também atua
como personagem ritual (Melatti, 1978: 358) em grupos sociais ligados à alternância
nascente - poente.
Quando passa a fazer parte efetiva das metades cerimoniais, o homem passa a
freqüentar o pátio. Os momentos de alternância, nascente e poente, são particularmente
masculinos, porque neles é que os homens vão para pátio a fim de realizarem as reuniões
do "conselho masculino". Melatti (1973: 23) afirma que a transmissão dos nomes
masculinos é mais importante que a dos nomes femininos porque ela implica no
preenchimento de papéis rituais e na afiliação a certos grupos rituais que atuam em
cerimônias nas quais os homens têm maior participação. Mas tanto homens quanto
mulheres são nomeados, de maneira que, com o nome, a pessoa passa a fazer parte da
complexa trama de relações sociais e cerimoniais que constituem a sociedade Krahô. De
fato, o nome dá o direito a homens e mulheres de pertencer às metades Wakmeye e
Katamye, e aos homens o direito de integrar um dos oito grupos da praça divididos nas
metades Khöirumpekëtxë e Harãrumpekëtxë, a primeira associada ao leste e a segunda, ao
oeste. Este último par atua nos ritos de iniciação Khetwaye e Pempkahok (Melatti, 1973:
01-02; 1978: 88-90). O nominado passa a manejar os mesmos termos de parentesco do seu
nominador, exceção feita aos consangüíneos mais próximos (Melatti, 1978: 60). Com o
nome, ele herda também certos papéis rituais, como aqueles que vimos em ação em alguns
ritos do ciclo anual. Neste sentido, há, por exemplo, os atiradores e rebatedores de petecas
de palha de milho, no rito de Põhïyõkróu, o que corta mechas de cabelos dos que cantam, o
que escolhe os homens que devem quebrar a casa de maribondos no rito Pembkahëk
(Melatti, 1976: 141-2; cf. também Nimuendajú, 1946: 137; 158). Os nomes masculinos e
os femininos também transferem as relações de "amizade formal", relações estas de
extremo respeito e evitação (cf. Melatti, 1978: 63-4; Carneiro da Cunha, 1979).
Dentre aqueles parentes consangüíneos que podem dar nome ao indivíduo do sexo
masculino estão o Im, Imm, Pm, IPm, PP, IPP, sendo que a preferência está com o
primeiro, o irmão da mãe. Com relação ao nome feminino, podem transmiti-lo: iP, fiP,
ffiP, mP, imP, mm, imm. Neste caso, a irmã do pai é a nominadora preferencial. O
nominador, Keti, e a nominadora, Tëi, chamam aquele/a a quem deram nome pelo termo
Ipantu (Melatti, 1973: 10; 1976: 142). Assim, temos dois conjuntos de termos de
parentesco que permitem distinguir os dois grupos com relações distintas. O primeiro
forma uma "unidade de substância" por aqueles que partilham fluidos internos e cuja esfera
de atuação é a periferia; o segundo, é formado por aqueles ligados através do nome e que
têm no pátio o seu lugar de manifestação. Em síntese, os que produzem o corpo de Ego não
podem lhe transmitir o nome138 (Melatti, 1973: 15; 1976: 142-3). A relação entre
nominador/a e nominado/a é, antes de tudo, ritual. O Keti costuma dar um arco e flechas ao
seu Ipantu, e a Tëi dá um cinto (ipré) feito de várias voltas de tucum à sua Ipantu quando
ela atinge a puberdade (Melatti, 1973: 11), numa afirmação simbólica de que os
nominadores/as são os que fazem os indivíduos nominados nascerem para a vida social.
Os nomes pessoais Krahô são séries que podem ir de duas a sete termos. Embora
façam referência a seres do mundo "natural", como plantas, animais, rochas e estrelas, na
maior parte dos casos, conexões semânticas entre os termos estão ausentes, o que parece
ser, aliás, uma característica Timbira (Melatti, 1976: 142; Lave, 1979: 19). Além disso, os
nomes Krahô configuram mais um simbolismo social que cosmológico, pois tal sistema
funciona como um código que indica às pessoas a quais grupos cerimonias elas fazem
parte, quais papéis rituais elas devem desempenhar e como devem estabelecer tal ou qual
tipo especial de relação (Ladeira, 1982: 16-17). Neste sentido, a onomástica Krahô seria
um "sistema dialético" de nominação, porque baseada na própria sociedade (Gonçalves,
1993: 14). Ou seja, os nomes Krahô designam relações sociais, definem grupos e
identidades coletivas, ao contrário de um "sistema exonímico", no qual os nomes vêm de
fora da sociedade: deuses, mortos, animais. Se o nome "veste" a pessoa com os padrões de
pintura corporal da sua metade sazonal ou do grupo da praça aos quais pertence, como
indica Melatti (1973: 16), vamos encontrar então uma correspondência entre os códigos
onomástico e gráfico.
Pois bem, sendo o grafismo uma linguagem que exprime a concepção da pessoa

138 Como Melatti faz questão de lembrar, os Krahô reconhecem laços sociais entre genitores e gerados, e
vínculos biológicos entre nominadores e nominados (1976: 143). O que fazem, porém, é enfatizar a diferença
nos tipos de vínculos.
humana (Vidal e Silva, 2000), os padrões gráficos corporais entre os Krahô são de uma
natureza tal que emitem mensagens que permitem aos sujeitos identificar seu portador com
um determinado grupo, bem como o comportamento que se espera daquele que vê a pintura
e daquele que a ostenta. As marcas visuais do corpo "identificam indivíduos e grupos,
expressando seu lugar e estabelecendo as bases para suas relações recíprocas" (Idem: 287).
Mas as pinturas corporais das metades Wakmeye e Katamye, a "pele social" que a pessoa
usa em virtude de seu nome, não se prestam somente à expressão da relações entre grupos
sociais. As listas verticais em tons vermelhos (Wakmeye) e as horizontais cujos tons mais
fortes são em preto (Katamye) são também uma linguagem através da qual estes conceitos,
que têm um "quadro cósmico de referência" (Whorf, 1968), ganham suporte visual que
permite definir as pessoas por sua identificação com tais ou quais períodos alternados de
tempo: nascente ou poente, dia ou noite, estação seca ou estação chuvosa. A pintura
corporal é mais um exemplo de que corpo e personagem, ou natural e social, não podem
ser vistos como noções estanques. Além disso, os Krahô se valem do corpo para despertar
e desenvolver sua sensibilidade estética que, como lembra Geertz (2002: 149), é
“essencialmente uma formação coletiva”.

Alternância e linearidade: duas forças criativas do tempo


Podemos ver, do que foi discutido até aqui, que os nomes servem para perpetuar a
sociedade naquilo que ela julga ser sua razão de ser, a vida ritual, cuja continuidade é
assegurada pelo sistema de nominação. É neste ponto que vemos como os nomes pessoais,
entre os Krahô, correspondem à noção de personagem. A seguinte afirmação de Melatti é
um excelente indicativo do ponto ao qual quero chegar:

"Cada nome pessoal seria como que o nome de um personagem. A sociedade Krahô
seria constituída por um conjunto de personagens que, tais como os do teatro,
seriam eternos, fadados a repetirem sempre os mesmos atos. Os atos e relações
desses personagens seriam somente aqueles transmitidos junto com os nomes
pessoas. Embora eternos, tais personagens seriam encarnados por atores diversos,
que se sucederiam no tempo" 139 (Melatti, 1976: 144; grifos meus).

Ora, além de estar implicado no simbolismo da alternância temporal das metades


139 Segundo este autor (1973: 16), os nomes pessoais têm implicações em outras situações além daquelas da
vida ritual. O nome pode, por exemplo, fazer com que um indivíduo pode não se casar com outro ou evite
matar outra pessoa, em caso de litígio.
sazonais, o sistema de nominação faz com que haja uma alternância mesmo na transmissão
dos nomes: numa geração o sujeito é Ipantu, na seguinte será Keti. Nesse sentido, DaMatta
diz que, entre os Jê do Norte, essas substituições ao longo do tempo têm relação com "uma
idéia nítida de dualidade" (DaMatta apud. Carneiro da Cunha, 1978: 141). Eu diria que
essas substituições entre consangüíneos expressam uma certa alternância, pois deve haver
uma diferença no tempo, entre nominador e nominado, de pelo menos uma geração
(Ladeira, 1982: 23). A transmissão do corpo segue uma linha tal que permanece nos limites
estreitos de um grupo doméstico, ou de "descendência corporal". Ao contrário, a
transmissão dos nomes e dos personagens se realiza através da alternância entre grupos
domésticos.
Essa alternância, por certo, faz com que a nominação garanta a "continuidade de um
sociedade igual a si mesma", como também sublinha Carneiro da Cunha (Idem: 121).
Assim, o que diz Melatti sobre a característica dos nomes pessoais Krahô de concorrerem
para a definição da persona do indivíduo e para a perpetuidade, a continuidade da
sociedade definida como um repertório de papéis rituais, leva-me a ver nos personagens a
eles vinculados a noção de reencarnação e a de tempo cíclico ou alternado que ela implica,
pois, como observa Leach (1974: 195), à noção de tempo como alternância entre opostos
corresponde o sujeito que alterna. Vanessa Lea também percebeu que, entre os Kayapó-
Mebengokre, os nomes têm a ver com uma noção do tempo como alternância. Segundo ela,
"os nomes ajudam a regenerar a sociedade através do processo cíclico de reavivamento
perene dos seus personagens" (1992: 130). A existência dos personagens rituais põe em
evidência, pois, a roupagem social do corpo que se usa no pátio, onde as pessoas
desempenham seus papéis rituais enquanto membros das metades sazonais, das metades
dos "grupos da praça" (Melatti, 1981), ou da metade de classes de idade: grupos sociais
permeados do simbolismo da alternância.
Aqui, devemos atentar para o seguinte ponto. Embora existam algumas instituições
que associam o homem ao movimento e à vida, como as danças no pátio (Melatti, 1978:
352) e a regra da matrilocalidade, que faz com que o homem circule entre os segmentos
residenciais, há, por outro lado, instituições que reforçam a mulher como elemento do
movimento: são os nomes femininos que circulam pela aldeia (Melatti, 1973: 23). Segundo
este autor, há uma tendência dos nomes masculinos a se concentrarem em certas casas ou
segmentos residenciais, onde o homem deixa "uma imagem sua na pessoa do filho da
irmã", enquanto que os nomes femininos tenderiam a se espalhar por toda a aldeia Os
nomes pessoais, nesse sentido, podem servir também como mecanismos de aliança entre
segmentos residenciais.
Ladeira (1982: 18) lembra que a relação de nominação é estabelecida desde criança
entre dois irmãos de sexo oposto que se comprometem a trocar nomes: o irmão dará seu
nome para o filho da irmã, que passa então a ser chamada de ipantumetxi ("mãe do meu
ipantu"), e a irmã compromete-se a dar seu nome à filha do irmão, seu ipantuhum ("pai do
meu ipantu"). A tese de Ladeira, vale dizer, é que troca de nomes e troca de cônjuges
“caminham juntos”. Ou seja, se o nome do filho de sexo oposto ao de Ego é determinado
desde a infância pela relação ipantumetxi-ipantuhum, o nome do filho do mesmo sexo só
será conhecido quando do casamento do próprio Ego: no caso do filho de Ego masculino,
seu nome virá do irmão da esposa, e no caso da filha de Ego feminino, seu nome será dado
pela irmã do marido (Idem: 24). Isso introduz uma nuance que põe em relevo o fato de que
o dualismo Timbira não é tão rígido, pois os nomes pessoais são também assunto da
periferia e das mulheres e não somente do domínio masculino cuja efetivação se dá no
pátio, o que é confirmado pelo mito das metades sazonais, segundo o qual o saber ligado ao
funcionamento do sistema de nominação é transmitido pelas mulheres.
É certo que nas casas os atores crescem e lá devem morrer. Assim, a linearidade
temporal que preside o desenvolvimento dos seres está vinculada à periferia, pois, como
argumenta Geertz (1989: 255), a concepção de tempo de um grupo humano está
estreitamente relacionada à maneira como vê o envelhecimento biológico. Esse caráter do
tempo impõe a descontinuidade irrevogável criada por Lua através da morte. Mas a
temporalidade lenta de Lua é também responsável pelo movimento da vida. Foi ele,
Pudleré, que instaurou o tempo da paciência que deve ser dispensada àqueles que passam
por momentos delicados nos quais suas vidas estão em risco. Dele deriva o ritmo
cadenciado do crescimento dos animais, das plantas e dos seres humanos que, se
pacientemente cuidados, na época apropriada “nascerão” para a vida cerimonial. Ademais,
sem a periferia e sem mulheres, elementos ligados a Lua, não haveria atores para vestir as
fantasias dos personagens rituais.
A alternância também instaura a descontinuidade, mas com um qualificativo tal que
pressupõe a volta do elemento complementar. Assim, o Sol é associado ao ritmo mais
acelerado próprio das práticas rituais, ao renascimento dos personagens, que não morrem e
sim oscilam entre Keti e Ipantu, numa alternância que garante, a seu turno, a continuidade
da vida cerimonial. Alternância e linearidade são dois modos complementares do
movimento criativo do tempo. Não nos esqueçamos que quem transimitu o conhecimento
do tempo como alternância foi uma personagem que sentiu no próprio corpo os efeitos do
seu fluir e refluir linear: a velha senhora.

Sol, energia vital e a pessoa


Neste ponto, é interessante evocar outras equivalências. Já vimos que o Leste é
associado aos vivos, ao sol, ao pátio, ao alto e o Oeste, aos mortos, à lua, à periferia e ao
baixo. Pois bem. Na casa fica a cama onde o homem repousa seu corpo na imobilidade do
sono. Quando jovens, ele e sua mulher têm a cama junto ao teto da casa; na maturidade, ela
está a uma altura relativamente baixa. "A altura da cama vai diminuindo com o tempo", diz
Melatti (1978: 358). Quando um deles morre, são retiradas as forquilhas de sustentação de
maneira que a cama receba o corpo sem alma junto ao chão. Depois, este corpo é levado
para o cemitério, localizado a Oeste. Não é outro senão o tempo linear que faz a pessoa, do
vigor da juventude, "descer" à decrepitude da velhice. Os velhos, aliás, que passam a maior
parte do seu tempo dentro de casa, estão no limiar entre o mundo dos vivos e a "aldeia dos
mortos", tanto que os tabus alimentares sobre eles praticamente deixam de existir, inclusive
aqueles referentes à comida que é oferecida às almas dos mortos (Melatti, idem: 73). Se,
enquanto corpo, a pessoa se desloca para baixo, para o Oeste, como personagem ritual cujo
palco maior é o pátio, o deslocamento é para cima, no sentido do Leste. Nesse sentido, diz
Melatti (Idem: 358) que, "como membro de uma classe de idade, ele é um personagem
ritual que se desloca sempre para o sul, que equivale a se dirigir para cima".
Como personagens das metades de classes de idade ligadas à alternância nascente -
poente, as pessoas vão se dirigindo no sentido do "pé-do-céu", o Leste. Sobre esta região
do cosmos, sobre a qual já falei algo, diz o mito que

...os índios vinha morrendo de um a um dos bichos ferozes que pegavam os índios
que estavam procurando o dia, durante as viagens. (...) E dando direção que rumo
podia viajar, na direção que o morcego guiava. Até que saiu na claridade do dia. E
quando ele voltava [o herói homem-morcego], algum perguntava: 'Que tal, achou
o dia por aí?' E ele dizia que ainda não alcançava. Até que foi na última viagem
que ele foi, ele saiu no dia. E voltou-se e disseram po povo que ia acompanhando
ele: 'Ah! meu amigo, nóis estamos na claridade, aqui ninguém morre mais' (...) 140

Dirigindo-se para a claridade do Leste, onde o sol nasce a cada dia para renovar as energias
vitais do conjunto de seres que habitam o mundo, os personagens rituais não morrem: dão
continuidade à sociedade dos vivos, tornando-a eterna através dos movimentos de

140 Mito da Grande Escuridão, conforme transcrição de Schultz (1950: 159).


alternância do tempo. Lembremos que de Leste vem o vento, alimento primeiro da vida e
do movimento, pois, como lembra Carneiro da Cunha (1978: 10), para os Krahô, "respirar
é por excelência o ato vital. O vento (Khwôk) invade a garganta, chega ao coração (Itotok)
e torna a sair: este sopro vital (...) controla todos os movimentos, os sentidos e o
pensamento"141.
O ciclo de vida de uma pessoa, do nascimento à morte, se assemelha ao ciclo
cotidiano do Sol, onde "o Leste é a fonte do fluxo vital que percorre a terra e que se
arrefece ao chegar ao país dos mortos [Oeste]" (Chiara, 1978: 53). Essa divisão do cosmos
inscreve-se no corpo humano, fazendo com que a parte acima da cintura seja identificada
com o Leste e a parte de baixo, com o Oeste (Chiara, idem: 54). O morto, contrariamente
ao que poderia se pensar, deve ser enterrado com a cabeça voltada para o oriente, para que
seu karõ (alma) caminhe corretamente até a aldeia dos mortos onde viverá durante algum
tempo entre os consangüíneos já idos. Os jiraus onde dormem os vivos, pelo menos em
teoria, também devem estar voltados com a cabeça para o Leste, o nascente, pois Pud, Sol,
é que alimenta a sabedoria (Chiara, 1978: 54; Carneiro da Cunha, 1978: 25). Diz um
informante de Manuela Carneiro da Cunha que a cabeça deve estar voltada para o Leste
"pra alma ficar sabida, pra subir e atravessar na água. Se dormir com cabeça para oeste,
fica doente e morre" (Idem). No mito das metades, a velha heroína conseguiu encontrar o
caminho de volta para a aldeia graças à orientação do Dia, em estado nascente (vide
acima). Assim, parece haver uma conexão entre a linha que leva dos pesados resguardos
que cercam o recém-nascido ao afrouxamento quase total das proibições alimentares na
velhice e a linha que vai da plenitude de energias do nascente ao seu arrefecimento
praticamente completo no poente. Lembrando mais uma vez Carneiro da Cunha (Idem: 26),
o corpo é o protótipo do macrocosmos.

Os ritos também “fazem” a pessoa


Os ritos de iniciação, sabemos, concorrem para a construção da pessoa. Eles
promovem a transformação dos jovens imaturos em adultos plenos, traduzindo a
maturidade biológica como a maturidade social. Contudo, não poderei entrar, neste
trabalho, na discussão dos ritos de iniciação Krahô. Nem tanto porque eles não são mais,
hoje em dia, realizados numa determinada ordem de maneira a formarem um ciclo
(Melatti, 1978: 203), ao contrário do que ocorre entre os Canela-Ramkokamekrá

141 Cf. mito de Hartãt, em anexo.


(Nimuendajú, 1946: 170 ss; Lave, 1979), e sim porque são, cada um, de uma extrema
complexidade: vários são os pares de metades que tomam parte, vários são os personagens
rituais ligados a nomes pessoais e várias são as referências aos níveis cósmicos da visão
Krahô do universo. Um só rito seria tema de toda uma dissertação! Contento-me, aqui, a
sublinhar que os ritos de iniciação Krahô são mais uma maneira que a sociedade encontrou
para construir a temporalidade, desta feita sobre a pessoa humana. Em todos os ritos de
iniciação, cantos e danças são componentes imprescindíveis, ocorrendo nos momentos de
transição, nascente e poente; em alguns eles são realizados também à noite e de madrugada
(Melatti, 1978: 210-46). Além disso, vale lembrar, estes rituais ocorrem em momentos de
transição no ciclo de vida da pessoa, quando ela está entre a condição de jovem e de
adulto. Os jovens só deixam a reclusão - marginalização espacial que reflete a
marginalização social - quando nasce seu primeiro filho, quando então entra num novo
estágio de idade e está definitivamente pronto para assumir sua condição de personagem no
palco da vida ritual (Melatti, 1978: 203).
Construir a pessoa, por meio dos rituais de iniciação, por vezes demanda uma
interferência direta sobre o fluxo linear do tempo, de maneira a fazê-lo "correr" mais
depressa. Isso é evidente do rito de Ikhréré e no Khetwaye, onde os reclusos são
constantemente alimentados e banhados por suas parentas consangüíneas para crescerem
mais rápido142 (Melatti, idem: 204-10; 274-302). A água é o elemento que, para os Timbira,
acelera o crescimento, que faz amadurecer rapidamente, ao contrário do fogo que opera
separações irreversíveis, como aponta Carneiro da Cunha (1986: 33-4). Esta autora, aliás,
demonstrou a existência desse uso ritual da água, no contexto do movimento messiânico
Canela. Contudo, as mulheres mais velhas aqui, cumprindo o papel de fazer o tempo correr
mais rápido, põem em movimento uma competência ligada à temporalidade de Sol. Assim,
através dos rituais de iniciação, a comunidade interfere na linearidade do tempo linear para
fazer os futuros homens aprenderem mais rapidademente que o mundo é feito de
alternâncias, de dualismos. Tanto é verdade que a principal característica destes ritos,
conforme sugere Melatti (Ib. idem: 298; 357), é que eles representam a ida dos iniciandos
aos domínios celeste, subterrâneo ou aquático e seu retorno ao plano onde habita
comunidade dos vivos. Ida e retorno, como fazem Sol e Lua em seu eterno movimento.

*******

142 O rito de Ikhréré não é mais realizado.


Vemos, no que foi dito, que os personagens rituais expressam uma luta contra a
fuga linear do tempo, contra sua passagem: eles são a afirmação da perenidade do social
contra o biológico que evanesce. Aqui, então, vislumbramos o dualismo na noção de tempo
sobre o qual falávamos nos outros capítulos: um tempo visto e experimentado como
alternância que produz continuidade da vida cerimonial através das metades e dos
personagens a elas vinculados que nascem e renascem nos rituais contra um tempo visto e
vivido como linearidade, como um fluxo que traz os atores mas que os leva para sempre.
Este é o dualismo de que nos fala Lévi-Strauss (1970 [1956]: 170-71) entre "continuidade"
e "descontinuidade": os personagens e a sociedade “ritual” continuam através do nome,
enquanto que entre os atores a morte introduz-se como elemento de descontinuidade. Mas
continuidade e descontinuidade, estando ligados à categoria de tempo, não devem ser vistas
com rigidez, pois a continuidade das atividades rituais depende das casas, das “unidades
biológicas” pois delas é que saem os atores.
.
CONCLUSÃO

Antes de mais nada, deve ser dito que pretendo realizar no doutorado uma
etnografia de fôlego que me permita superar algumas das limitações desta dissertação. A
falta de uma longa experiência de campo entre os Krahô impossibilitou-me dar
informações mais detalhadas e mais vívidas. Isto se percebe, por exemplo, quando discuto
os cantos para o quais Anthony Seeger (1980: 86) sugere uma "etnografia da execução
musical". Nesse sentido, pretendo pesquisar mais sobre as canções Krahô, que são tão
importantes na cosmologia e na vida ritual. Outra questão que continua me intrigando é a
correspondência entre a noção de “força vital” de que nos fala Carneiro da Cunha (1978:
104-11) e a de “fluxo vital” que aparece em Chiara (1978: 53). O sangue é a força que
sustenta os corpos dos vivos e que, portanto, diminui com a idade; e “o Leste é a fonte do
fluxo vital que percorre a terra e que arrefece ao chegar ao país dos mortos [Oeste]"
(Chiara, 1978: 53). Como correlacionar estas duas observações, creio que somente uma
etnografia de "primeira mão" poderá responder. Ademais, por que tantos tabus alimentares
envolvendo o nascimento (início da vida) e por que os velhos (fim da vida) estão livres
deles? Esta é uma das muitas perguntas que me acompanharão, após a conclusão deste
trabalho, para a qual buscarei respostas.

Ao redigir esta dissertação, procurei enfatizar a “especificidade complexa" (Geertz,


1989: 34) da temporalidade Krahô como uma forma outra de se conceber e vivenciar o que
chamamos tempo, como sua noção implica num complexo sistema de classificação e
conhecimento dos mundos “natural” e social e como isto orienta as práticas sociais. Se sua
concepção de tempo guarda alguma distância da nossa, isto se deve antes de tudo ao fato de
ela estar ancorada num outro universo simbólico. Ademais, como sustentei desde o início,
a temporalidade é um importante índice de diferenciação sociocultural. Busquei, nesse
sentido, realçar a importância tanto das alternâncias quanto da linearidade do tempo no
pensamento Krahô. Por isto foi que apresentei primeiro os ciclos míticos nos quais
podemos perceber o dualismo na noção de tempo desta sociedade. Há um primeiro
dualismo referente à natureza do tempo em geral: alternância versus linearidade; e outro,
mais particular, diz respeito à própria alternância: nascente vs. poente, dia vs. noite, estação
seca vs. chuvosa. Dos mitos, partimos para ver como este dualismo complementar permeia
desde as práticas que “fazem” o ciclo cotidiano àquelas do ciclo anual e da noção de
pessoa, observando, ao longo do caminho, o quão centrais são os rituais nesta configuração
concebida e vivenciada do tempo.

*******

Esta “etnografia indireta” me permitiu tirar algumas conclusões.


A representação dominante do tempo é elaborada no interior das sociedades por
grupos sociais específicos na condição de dominantes na produção simbólica, como sugere
Roger Sue (1995: 125). O simbolismo temporal não é, pois, totalmente aleatório. A
primazia de uma prática eminentemente masculina, a dos rituais, enquanto pivô dos tempos
sociais dos Krahô, produz uma concepção da sociedade humana como sendo antes de tudo
uma sociedade cerimonial. Isto não diminui a força das práticas rituais como "fazedoras"
do tempo. São elas, com seus cantos e danças, que configuram a temporalidade Krahô; são
eles que assinalam as alternâncias nos ciclos diário e anual e nos ciclos vitais da pessoa,
para os quais não bastam as mudanças no clima, na temperatura ou na biologia.
Como bem demonstrou Norbert Elias (1995), as noções de “tempo” e de “natureza”
de uma sociedade estão interligadas. Assim, os conceitos Wakmeye e Katamye servem ao
propósito da bipartição tanto da natureza quanto do tempo na cosmologia dos índios
Krahô. Se todos os seres e coisas do universo podem ser agrupados em duas grandes
categorias, então o aspecto principal do tempo é visto como sendo o da oscilação, da
alternância entre dois períodos com qualidades distintas. Mas vimos o quão importante é a
linearidade na concepção Krahô do tempo, pois é ela que opera nos ciclos vitais de todos
os seres. É justamente o duplo movimento da alternância e do escoar que faz a dinâmica
complexa da vida. Se não fosse assim, por que então figuraria no mito uma mulher velha
como sendo a mestra da temporalidade?

A ideologia e a práxis Krahô parecem viver um paradoxo. A afirmação de que a


sociedade se faz pelas, e para as, atividades preponderantemente masculinas do
cerimonialismo contrasta com o fato de que as mulheres são reconhecidas como parceiras
ativas no processo de criação dos novos membros, dos “atores”, da sociedade. Contrasta,
além disso, com o fato de que são elas que protagonizam a trama que envolve as escolhas
de nomes pessoais e de nominadores, uma prova, aliás, de que a vida social é bastante rica
também na periferia. Não é somente no ritual que as pessoas põem em prática a capacidade
humana da sociabilidade. No caminho circular que passa diante das casas, o Krïkapé, são
realizados diversas procissões rituais além de cantos e danças; na periferia estão plantadas
as casas de wïtï, uma instituição central no sistema social Krahô.
Em suma, na periferia o movimento da vida também acontece, da vida também feita
de cuidados com o corpo e de afetividades que cercam os núcleos domésticos; na periferia
a mulher prepara os alimentos manejando o fogo que, na sua cozinha, é um “fogo criador”
como já disse Lévi-Strauss (1991: 184). O movimento da vida social que tem lugar no
círculo das casas é mais lento, mais refletido e mais maduro, como é próprio da
temporalidade de Lua, astro-herói associado às mulheres. As mulheres e a vida social que
gira em torno delas oferece o contraponto temporal ao ritmo acelerado das atividades
masculinas do ritual. A temporalidade apressada, a rapidez de Sol (Pud), que faz os seres
crescerem mais rapidamente como asseguram os mitos, é aquela da qual as práticas rituais
procuram se aproximar. Os ritmos de Pud, por outro lado, se afastam do que podem os
seres humanos nos seus afazeres cotidianos. Tanto assim que é Lua (Pudleré), insistindo
em seus ritmos mais dilatados, que dota o mundo criado pelos dois astros-heróis de uma
temporalidade mais humana. Mas isto ainda não explica o por que da velha senhora.
Talvez cheguemos perto de uma resposta se lembrarmos dos mitos que vimos
acima, nos quais a mulher aparece como elemento dinamizador. No mito de Túlkrén, o
homem sai da terra e vai ao céu para aprender; ele parte de uma condição original que é a
ignorância. Nos mitos em que a personagem central é feminina, dá-se o inverso. Assim, os
Krahô devem tudo que sabem acerca da agricultura e da culinária a uma mulher, Katxerê,
que desceu do céu para ensinar. Também devem tudo o que conhecem acerca das metades
sazonais e do tempo à velha senhora, que foi ao “mato” e de lá voltou para transmitir tudo
o que aprendeu. Katxerê e a velha senhora são heroínas que põem em questão a associação
das mulheres com a “natureza” e os homems com a “cultura”, pois todo e qualquer saber é
patrimônio da cultura.
Voltando ao ponto que interessa, ou seja, o da velha senhora como dona do saber
acerca do tempo, o primeiro dado a ser considerado é que, nesta altura da vida, a mulher
está desincumbida das atividades ligadas à procriação e, assim, não está presa à casa. Por
isso, ela pôde ir ao mato, onde se encontrou com o Dia e a Noite. Além disso, nesta idade a
pessoa sente em seu próprio corpo a experiência do longo fluir do tempo: somente quem já
viveu tanto pode ter algo a ensinar sobre as qualidades do tempo. Ademais, se o tempo é
criativo, é uma velha senhora, com suas palavras e gestos, que ajuda a criá-lo. A mulher
tem na periferia o seu domínio da atuação. O círculo das casas vive segundo o tempo de
Lua, um tempo mais dilatado, mais ponderado. Na esfera das casas a vida é cuidada com
atenção, com paciência; frutos, ações e idéias amadurecem conforme um movimento
temporal mais demorado. Somente uma termporalidade mais lenta favorece a reflexão e a
maturidade, permitindo o aprendizado dos ritmos sociais e “naturais” de alternância e de
linearidade.
Neste ponto, sugiro uma mudança algo ousada de perspectiva no que se refere à
constante reiteração do dualismo Jê-Timbira entre “pátio” e “periferia”. Se tomarmos o
conceito de “abrangência dos contrários” de Dumont (apud. Ramos, 1990: 162), veremos
que, de fato, a “periferia” passa a ser o círculo abrangente que engloba o pátio . A
associação do pátio como centro da vida social deve ser posta em suspenso ante tudo o que
foi dito da “periferia” como o lugar de inclusão vital, sem o qual o palco das práticas rituais
perderia todo seu movimento. Das casas saem os homens para as reuniões do pátio, para
elas retornando; nas casas os corpos das pessoas emergem para a vida, nelas são cuidados e
a elas retornam quando alcançam o ponto final. No círculo das casas se dão os embates
acerca da escolha dos nomes e nominadores, senhas de acesso ao mundo ritual. Em suma,
talvez as noções de “centro” e “periferia” não sejam as mais produtivas para dar conta da
dinâmica social Krahô.
Assim, vemos que a figura da velha senhora apresenta nuances críticas do dualismo
Krahô. Ela é que teria lhes ensinado a organização em metades sazonais e o simbolismo de
alternância associado a elas: dia-noite, seca-chuva. Maybury-Lewis (1979: 237) aponta
como solução Timbira para as ambigüidades da organização dualista a oposição da
formalidade da vida ritual do pátio contra a informalidade dos laços de parentesco que se
tecem no círculo das casas. Porém, isto só faz as ambigüidades ficarem mais fortes. Apesar
de o pátio ser o lugar da vida ritual, dos grupos duais e do homem, é uma mulher velha que
aparece no mito como sendo a mestra do dualismo. Ambigüidades e paradoxos aparecem
ainda no rito de iniciação do Ikhréré. Nele, são as mulheres velhas as responsáveis por
“fazer” o tempo correr mais rápido por meio de um ato ritual. Além de corroborar a
hipótese de que as mulheres são como que guardiãs do conhecimento acerca dos
movimentos do tempo, traz o paradoxo da inversão das equivalências. Ou seja, neste rito,
as mulheres aparecem associadas à compressão do tempo, à pressa teatral, própria de Sol, e
não ao fluir demorado da temporalidade de Lua.
Contudo, somente uma pesquisa de campo seguindo a temporalidade demorada de
Lua e com a luz sábia de Sol poderei chegar a um entendimento do dualismo Krahô que
equacione estas ambigüidades e paradoxos.

Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro (Op. cit.: 14) afirmam que a corporalidade e
a construção da pessoa foram as formas encontradas pelas sociedades indígenas das Terras
Baixas de "negar o tempo", o tempo que encadeia gerações e estabelece vínculos de
continuidade entre vivos e mortos. Para mim, a negação da morte e a conseqüente
afirmação da vida e dos vivos estão, pelo menos entre os Krahô, na ênfase ritual e
cosmológica que eles põem sobre a natureza dinâmica do tempo como alternância e como
linearidade porque são estas duas forças juntas que produzem a vida no sentido pleno da
palavra: a vida que não vê fronteiras entre “natureza” e cultura. Foi o que procurei
demonstrar.
ANEXO

Hartãt e o machado Khoiré 143

Hartãt convidou os rapazes para caçar lá no lugar em que ele nasceu. Mandou as
mulheres fazerem a comida. Passaram três dias trabalhando na comida. Fizeram
puba seca, enxugando a massa. Mandou a rapaziada por a comida bem adiante,
cerca de três léguas. Fizeram três caminhadas com a comida. Então saíram todos, só
os homens, ficando as mulheres. Arrancharam lá onde tinham posto a comida e
dormiram lá. De manhã foram por a comida mais adiante: três viagens novamente.
Foram outra vez e arrancharam.

Era o lugar onde iam matar muito rato, naqueles locos (buracos) de pau (árvore):
pequizeiro, puçá etc. Hartãt mandou-os dar uma caçada. Saíram todos para a caçada
e voltaram com os cofos cheios de ratos, porque era muito povo e só num loco de pau
se tirava duzentos ratos. Fizeram um monte de ratos. Chegaram todos. Hartãt falou
aos rapazes: "Agora, não presta assar no moquém; vocês vão fazer um grande
borralho para assar." Cada um fez a sua fogueira, a sua cinza. Tiraram os ratos do
borralho. Todos estavam comendo rato. E um dizia para o outro: "É, é verdade, seu
sogro diz a verdade, só num dia caçamos muito rato." Secaram os ratos no fogo,
puseram em cofos e colocaram numa árvore.

Caminharam de novo. A uma légua arrancharam. Hartãt falou à rapaziada: "Agora


vocês vão tirar abelha; aqui é lugar de abelha, não sei se já foram embora, mas aqui
é lugar de abelha." Eles foram. Só tiraram abelhas nos cupins (Rorhahakti). Tiraram
mel de toda abelha: tiúba, tubi manso, tubi brabo, mandaçaia (tataíra não, porque é
fogo). Chegaram com muito mel. Comeram. Esse não deu jeito para guardar.
Quando saíram, derramaram tudo.

De manhã, sairam de novo. Caminharam cerca de uma légua e arrancharam. Hartãt


falou: "Agora, aqui é que eu estava contando; aí vocês vão matar paca, este é que é o
ribeirão, lugar de paca, podem caçar, não sei se ainda estão aí, não sei se foram
embora." Quando foi de tarde, cada um chegou com um feixe de pacas: cinco pacas,
dez pacas. Cada um fez moquém. Assaram as pacas. Quando estavam assadas,
tiraram as pacas do moquém. Hartãt não queria pacas velhas, só queria comer
novinhas. Arranjou umas três pacas novinhas, molinhas e comeu. De manhã secaram
as pacas como tinham secado os ratos: em jirau. Passaram um dia nesse lugar.
Quando acabaram de secar, arrumaram e guardaram as pacas.

Saíram. Caminharam uma légua. Aí estavam duas serras (dois morros). Hartãt falou:
"Agora vocês vão lá naquele loco de pedra; aí é lugar de morcego, não sei se ainda
estão lá. Quebraram palha. Encheram o loco de pedra e puseram fogo. Os morcegos,
muitos, cairam. Era um monte de morcegos. Todos encheram os cofos e voltaram
para o rancho. Fizeram outra vez cinza. Assaram os morcegos. Tiraram e comeram.
De manhã arrumaram e guardaram.

143 Narrado por Pedro Penõ, em 17-11-63, a Julio Cezar Melatti, que me autorizou publicá-lo em 03 de
fevereiro de 2004.
Caminharam uma légua e arrancharam outra vez. Estava lá uma carreira de porco.
Um dos rapazes falou: "Oh meu tio, vamos matar estes mesmo!" "Não, vocês não
conhecem; se vocês acharem um que corta mesmo, vocês morrem, porco é valente!"
Hartãt foi reparar: "Não, não é este não." Depois reparou outro e disse: "É este
mesmo." E avisou: "Aqueles acolá são mesmo porcos." E a rapaziada foi no rumo
dos porcos. Mataram um bocado. Chegaram com os porcos. Hartãt disse: "É desses
que estou falando, desses que estou contando; vocês não vão matar muitos para
destruir não, porque um dia viremos outra vez aqui." Então fizeram moquém outra
vez. Assaram. Quando deu hora, tiraram do moquém e todos comeram. Hartãt só
comia fígado de porco. Passaram um dia lá naquele lugar, secando porcos.
Arrumaram outra vez, guardaram no lugar. Saíram.

Caminharam uma légua e encontraram uma mata. Arrancharam. Hartãt disse:


"Agora, aqui é lugar de anta, bandeira, caititu. Podem ir caçar por aí. Não sei se
ainda acham. Quando dá fé, já foram embora." Deram nas antas e mataram umas
cinco antas naquele mato mesmo. Levaram para o rancho e fizeram moquém.
Moquearam. Quando estavam assadas, tiraram do moquém. Comeram. Depois
secaram. Passaram uns dois dias lá e aí saíram.

Cerca de uma légua arrancharam outra vez. Hartãt disse: "Aqui é lugar de canastra,
lugar de tatu, de peba; não sei se saíram; quando dá fé, foram embora." Acharam
tatu, canastra, quati, peba. Caçaram dois dias naquele lugar e saíram outra vez.

Arrancharam outra vez, distante uma légua. Hartãt disse: "Agora aqui é outro lugar.
É lugar de onça, capivara, suçuapara, veado. Podem caçar por aqui. Não sei se esses
bichos já foram embora." Foram caçar. Mataram duas onças, dez capivaras - em
uma lagoa -, três suçuaparas e quatro veados do campo. Chegaram ao rancho.
Fizeram moquém e moquearam. Assaram veado, suçuapara, onça - diz-se que
comiam onça -, capivara ... Tiraram do moquém e comeram. Hartãt pegou uma
"mão" de onça e com a unha triscava (tocava, arranhava) nos braços da rapaziada,
rasgando só um pouquinho, passando a cinza, não sei de que, porque os antigos,
quando matavam onça, faziam assim pr'o mó de criar coragem ao lutar com o
inimigo.

Saíram de novo. Caminharam uma légua e já chegaram a um barro que grudava os


bichos. Hartãt mostrou ao genro dele: "Oh, está aqui. Isso é que eu estou contando.
Se este barro pegar você, se você não escapar, eu volto daqui mesmo, porque eu estou
na lembrança da velha (esposa), não vou demorar mais." Khwök, genro de Hartãt,
virou passarinhozinho, voou, foi com aquelas cantiguinhas e devagarzinho pousou,
andou devagarzinho, deu a volta em torno da lagoa e voou. E foi ficar no seco e virou
gente de novo e falou ao sogro: "Eh, meu sogro, é só os bichos esta coisa pega; eu
acho que vou voltar e ainda ver sua filha com esta cara!" O sogro só escutou, sem
responder.

Saíram e foram ao Krouapok (pé de buriti seco, furado por dentro). O pé de buriti
estava com fogo dentro, do qual só aparecia uma pontinha. Quando algum bicho de
asa ia pousar nele, o fogo sapecava a asa. Já havia muito bicho de asa debaixo desse
pé de buriti. Hartãt falou: "Agora vai acabar com vocês, eu quero voltar daqui
mesmo, que eu já estou na lembrança de minha velha." O genro não disse nada.
Virou arara verde. Ficou no olho de uma árvore. Depois foi gritando com grito de
arara e pousou no pé de buriti, mas só fez bater nele e voltar. O fogo saiu danado,
mas tornou a ir abaixando, até afundar, só ficando mesmo a pontinha de fora. E ele,
de volta outra vez, e só fez bater na beirada e virou para acolá, indo assentar no
chão. E disse: "Oh meu sogro, acho que eu não vou me acabar por aqui não, acho
que ainda vou aparecer com esta cara para ver sua filha." Hartãt só fez escutar.

Viajaram de novo. Chegaram à beira de um rio. Lá estava um jacaré com a boca


aberta na praia. Hartãt falou ao genro: "Este vai engolir você, eu quero voltar daqui
mesmo, sobre este é que eu estava contando." O genro não falou nada. Foi ficar [não,
palavra evidentemente a mais] longe e virou Iunré (beija-flor). O jacaré pegava todos
os bichos de asa, fechando apenas a boca. Foi no rumo do jacaré. Chegou perto da
boca do jacaré, e passou de raspão, e o jacaré bateu o queixo. Mas Khwök ficou lá
no galho da árvore. Voltou outra vez, ficou perto dele e saiu e pousou no seco. E
disse: "Eh meu sogro, acho que não me vou acabar aqui não; ainda vou aparecer
para ver sua filha com esta cara."

Viajaram outra vez. Chegaram a uma aranha. A aranha estava de boca aberta. Hartãt
disse: "Está aqui, esta é que eu estou contando, se esta pegar você, eu volto daqui
mesmo; eu já estou com saudade." Khwök virou Iunré, foi chegando devargazinho e
passou de raspão. Voltou e passou outra vez.

Caminharam outra vez. Chegaram à porta do vento. A casa do vento é uma casa boa,
bem tapada e a boca é a porta. E o vento vai devagarzinho e o lugar por onde sai o
vento forte já é um caminho liso. O filho de Hartãt, cunhado de Khwök, pediu a este
para espantar o vento também. Khwök respondeu: "Não, cunhado, você não vai não;
vou apenas eu mesmo." "Eu vou." "Não cunhado, você não vai não; porque este vento
arriba você e atira longe." O cunhado teimou. Khwök respondeu: "Está bem, se você
vai morrer com seu gosto, não tem nada, eu não estou mandando; é você mesmo que
quer." O cunhado dele ficou no limpo do vento e gritou para o vento. O vento zoou
mesmo e quase o derrubava, mas, assim mesmo ele conseguiu sair. "Eh, você vai
morrer mesmo", disse Khïok e acrescentou: "Cunhado, espere aí, você vai fazer
assim: eu vou para você ver, para pegar meu jeito, senão você morre! Khwök gritou
uma vez e saiu. O vento forte saiu, mas só mexeu com os cabelos dele. Khwök disse:
"Olhe, é assim; não fique no limpo não; fique na beirada." Mas o cunhado não se
importou e gritou para o vento lá no meio do limpo. E o vento veio e arribou. O
cunhado de Khwök sumiu e não apareceu mais. Khwök ficou pensando, com
saudade do cunhado dele. Hartãt falou: "Meu filho morreu por gosto dele mesmo;
não é nada, pois não fui eu quem mandou, nem o cunhado dele mandou. Agora nós
vamos chegar lá perto da porta do vento para você ver." Subiram ao alto e viram o
Karõ ("alma") daquele que o vento tinha levado, lá na porta do vento. Chamaram-no,
sacudiam a mão, mas ele não se importava, pois Karõ não se importa mais. Disse
Hartãt àqueles que queriam chamar seu filho: "Não, aquele não vem mais não; é
Karõ, não está mais se importando não. Vamos embora."

Já iam de volta. Mas não retornaram pelo caminho por onde vieram. Entraram em
outro rumo. Chegaram primeiro ao lugar de uma cobra muito grande, da grossura de
uma casa, com cem metros de comprimento. O pessoal rodou em torno da cobra,
quando ela estava dormindo. A cobra acordou e batia com o rabo. Era noite. Aqueles
que não sabem e passam pela cabeça da cobra, ela engole todos de uma vez. Hartãt
[acordo, ilegível] e disse: "Olhe, pessoal, acendam fogo; por onde ela está batendo
nós vamos sair." Vieram todos acompanhando Hartãt, que escutava o rumo onde
estava batendo. E saíram todos. Nenhum morreu.

Caminharam um pedação, três léguas mais ou menos, de noite e dormiram lá.


Caminharam de novo. Chegaram a uma casa de Khëiré (machado de pedra). Um
rapaz que sabia cantar disse que queria ganhar um. Ficaram aí até o anoitecer.
Hartãt disse: "Bem, agora eu vou falar com Khëiré; talvez ele dê um! Ele pediu e o
Khëiré disse que dava, mas só de madrugada. Hartãt voltou para a rapaziada e
contou. Deitaram. Khëiré cantou muito, até de madrugada. Quando o dia já vinha
clareando, Hartãt caminhou para lá. Chegou lá; ele lhe entregou o Khëiré e pediu a
Hartãt: "Oh, vou recomendar a você: este não é para dormir calado, não é para
aquietar, é para cantar dia e noite, porque esse não é para guardar quieto não; ele
quer refrescar o couro." Hartãt voltou com o Khëiré. Chegou e deu-o para o rapaz. O
rapaz disse: "Sou eu quem vai ficar com ele." Ele deu.

Quando o sol saiu caminharam o dia inteiro e arrancharam para dormir. Na boca da
noite o rapaz queria cantar logo com o Khëiré. Começou a cantar e o guariba gritou
alto: "Você não sabe cantar, você não escuta a cantiga!" Hartãt falou: "Está
escutando? Eu estava bem dizendo que você não cantasse logo com esse Khëiré; só
quando chegar lá na aldeia. O lugar aqui é outro. Todos os bichos respondem como
gente mesmo." O rapaz aquietou e não cantou mais.

Quando amanheceu, caminharam outra vez. Passaram o dia todinho caminhando e


dormiram. Com três dias a fome já estava apertando o pessoal. Chegaram a um mato
onde havia muito inhame do mato. Inhame bom e inhame ruim misturados. Dois não
esperaram por Hartãt Hartãt falou: "Vocês esperem, porque está misturado; há um
inhame que, se vocês comerem, virarão mulher." Mas dois não se importaram:
acenderam fogo, arrancaram inhame, assaram e comeram. E os que esperaram
Hartãt foram arrancar inhame bom, assaram e comeram. Escureceu. Fizeram cama.
Todos deitaram, dormiram. Os dois que não esperaram por Hartãt estavam
dormindo. Ù meia-noite, quiseram urinar, levantaram-se. E já tinham peito; e tudo o
que mulher tem eles já tinham. Viraram mulher. Quando amanheceu, todos os viram,
olhando mesmo: "Vocês não tiveram paciência; e agora, quando chegarem, como
vão fazer com as mulheres? Vão morar duas mulheres numa casa?"

De manhã saíram todos, inclusive as duas mulheres. Depois de três dias chegaram
perto da aldeia. Mandaram portador para avisar as mulheres para fazer comida. A
mulher que soube que o marido tinha voltado fêmea não achou bom. Fizeram tora,
correram, chegaram à aldeia. Os dois que viraram mulher, vieram devagar, com
vergonha. As mulheres despacharam os dois.

[No final o narrador assegura que Hartãt era de outra aldeia, mas era Krahô, e a
aldeia em que estava também era Krahô].
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