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288 Sexta parte - As escolas filoséficas da era helenistica IIL. A ética da antiga Estod * Todos os seres vivos so dotados de um principio de conservacao (chamado oikéiosis), que instintivamente os leva a evitar aquilo que os prejudica e a buscar ‘aquilo que os beneficia, que acresce seu ser: em uma palavra, 0 O principio bem de um ser é aquilo que Ihe € benéfico, e o mal é 0 que dacikéiosis — ganifica. 0 Por conseguinte, todo ser vivo pode e deve viver segundo a natureza, segundo a sua natureza. Ora, a natureza do ho- mem é racional ea sua esséncia é a razdo. Assim, para o homem atuar o principio de conservacéo deve buscar as coisas e apenas as coisas que incrementam sua razdo e fugit das que o prejudicam. © As realidades que correspondem a estas caracteristicas sdo a virtude e 0. vicio: portanto, apenas a virtude é “bem” e so 0 vicio é “mal”. E todas as outras condig6es que concernem a natureza fisica do homem (por Bens, males exemplo: a satide, a doenca, a riqueza, a fama, a morte etc), e“indiferentes” como devero ser julgadas? Conforme as premissas, a conclu- +52 80 que dai deriva € a sequinte: nao so nem bens nem males, mas moralmente “indiferentes”. « Esta solugo era demasiadamente rigorosa e drastica e, portanto, pouco praticdvel. Por tal motivo, foi posteriormente mitigada. Os Estdicos chegaram a admitir que também para a componente fisica devia existir uma oikéiosis especifica, que permitiria distinguir as coisas que pre- pa eiaee judicam 0 corpo das que o beneficiam, atribuindo as primeiras cr gjeitados” © Carter de “indiferentes que devem ser rejeitadas” e as se- 0s “preferiveis” —gundas de “indiferentes preferiveis”. Todavia, enquanto os bens So € 0s males tém valor absoluto, os preferiveis séo preferiv apenas em relagSo aos rejeitaveis e vice-versa: a satide é prefe- rivel 4 doenca, mas nem por isso & em si um bem em sentido absoluto. 0s indiferentes * Os Est6icos elaboraram também um quadro das acbes, distinguindo as “aces retas” (ou moralmente perfeitas) e as “acdes convenientes” ou “deveres”. A dife- renca entre os dois tipos depende nao da natureza da acao (uma mesma acdo pode ser tanto dever como acdo correta), mas so- “petals” bretudo da intencao de quem a realiza: se quem a realiza esta ceideveres em sintonia com'o fogos e, portanto, é um sébio, suas acdes aa serao sempre ages cortetas fe, 0 contro, age em era cons cléncia, suas aces, embora formalmente conformes a nature- za, s80 deveres. Disso derivam duas conseqéncias significativas: de um lado, que ‘quem nao ¢ sabio, faca 0 que fizer, jamais realizaré uma acao correta; do outro, que quem é sabio, qualquer coisa queira ou faca, realizar sempre aces corretas, Justamente porque sua vontade quer aquilo qué o logos quer. * 0s Estéicos consideravam que a oikéiosis nao era um fato © homem apenas individual, mas devia estender-se a familia e a toda a como “animal humanidade, de modo a definir 0 homem “animal comunité- comunitério” rio" (isto 6, participante da comunidade humana), e nao mais, 7556 como queria Aristoteles, “animal politico” (isto é, inserido na Polis). Capitulo décimo primetro - © Estoiiemo 289 Esta mudanca de perspectiva favoreceu a difusdo de ideais de igualitarismo e de aversao a escravidao (todos os homens participam do logos e, portanto, todos 95 homens so iguais, € ninguém é por natureza escravo). + Nao se deve pensar que o sabio prove um “sentimento” de simpatia ou solidariedade com os outros homens: com efeito, os sentimentos de miseric6r ipagao humana, de amor séo entendidos de pa ja, 10 “paixdes" e, portanto, como vicios da alma. 0 ideal do sabio é a “impassibilidade” (apatia), pela qual nao se trata apenas de moderar as paixdes, mas de elimina-las inteiramente, nem mesmo senti-las. E isso se compreende bem, se considerarmos que as paixGes sio a fonte do mal e do vicio e se configuram como erros do logos. E As paixoes ea apatia do sabio 287 claro, portanto, que os erros nao podem ser moderados ou ate- nuados, mas devem ser cancelados. tthe O viver segundo a natureza A parte mais significativa € mais viva da filosofia do Pértico, contudo, nao é sua original e audac fisica, © sim a ética: com efeito, foi com sua mensagem ética que os Estoicos, durante meio milénio, souberam dizer aos homens uma palavra verdadeira- mente eficaz, que foi sentida como particu- larmente iluminadora acerea do sentido da vida. Também para os Est6icos, como para 0 Epicuristas, 0 escopo do viver € a obten- io da felicidade. E a felicidade se persegue vivendo “segundo a natureza” Se observarmos o ser vivente, em geral cconstatamos que cle se caracteriza pela cons- tante tendéncia de conservar a simesmo, de “apropriar-se” do proprio ser e de tudo quanto € capaz de conservé-lo, de evitar aquilo que the & contrério e de “conciliar- se” consigo mesmo e com as coisas que sio conformes & propria esséncia. Essa caracte- ristica fundamental dos seres € indicada pe Jos Est6icos com o termo oikéiosis (= apro- priagao, atragao = conciliatio). Da oikeiosis € que se deve deduzir o principio da ética. 'Nas plantas e nos vegetais em geral essa tendéncia é inconsciente; nos animais, con- signa-se a um preciso instinto ou impulso primigénio; j4 no homem esse impulso € espe- Cificado ulreriormente e sustentado pela inter- vyengao da razdo. Viver “conforme a nature- 12” significa, pois, viver realizando plenamente essa apropriacio ou conciliagio do proprio sere daquilo que o conserva e ativa. Em parti- cular, posto que o homem nao é simplesmen teser vivente mas ser racional, 0 viver segun- doa natureza ser um viver “conciliando-s com o proprio ser racional, conservando-o ¢ atualizando-o plenamente, ty Conceitos de bem ede mal O fundamento da ética epicurista, desse modo, marcado por tais conceitos da oi- kéiosis e do instinto originario: com efeito, considerados & luz destes novos parémetros, prazer e dor tornam-se ndo um prits (prio- ridade) mas um posterius (elemento secun- dario), isto 6, algo que vem depois e como conseqiiéncia, quando a natureza jd buscou eencontrou aquilo que a conserva e realiza. E posto que o instinto de conservacdo e a tendéncia ao incremento do ser sao primei- 10s € originarios, entao “hem” é aquilo que conserva € incrementa nosso ser €, ao con- trério, “mal” & aquilo que 0 danifica e 0 diminui, Ao primero instinto esta pois es- truturalmente ligada a tendéncia a avaliar, no sentido de que todas as coisas sao regu ladas pelo instinto primeiro: & medida que se mostrem benévolas ou malévolas, as coi- sas sero consideradas “bem” ou “mal”. O bem é, portanto, 0 vantajoso e 0 itil; mal é © nocivo. Mas atengio: como os Estéicos insistem em diferenciar 0 homem de todos (8 outros seres, mostrando que ele esti de- terminado nao s6 pela sua natureza pura- mente animal, mas sobretudo pela natureza racional, isto é, pelo privilegiado manifes- tarse do logos nele, entao o principio da valorizacio acima estabelecido assume duas valéncias diferentes, conforme se refira a 290 Sexta parte - As excoles flo: physis racional ou biolégica; uma coisa, de Fato, € 0 que promove a conservacio © 0 incremento da vida animal; outra é 0 que promove a conservagao e 0 incremento da Vida da razio ¢ do logos. Pois bem, segundo os Estéicos, 0 bem moral é exatamente aquilo que incrementa o logos, ¢0 mal é aquilo que the causa dano. O verdadeiro bem, para o homem, é somen- tea virtude; 0 verdadeiro mal é s6 0 vicio, wi O85 “indiferentes” Como considerar entao aquilo que € til a0 corpo e A nossa natureza biologica? E como denominaremos © contririo disso? A tendéncia de fundo do Estoicismo & de ne- gar a todas estas coisas 0 qualificativo de “bem” ede “mal”, exatamente porque, como se viu, bem e mal’sio somente aquilo que & tile aquilo que é nocivo ao logos, portanto, 56.0 bem e o mal morais. Por isso, todas as coisas que sio relativas ao corpo, quer sejam nocivas, quer nao, so consideradas “indife- rentes” (adidphora) ou, mais exatamente, “moralmente indiferentes”. Entre as coisas moralmente indiferentes colocam-se conse- gtientemente quer as coisas fisica e biologi camente positivas, como vida, satide, beleza, riqueza etc., quer as fisica e biologicamente negativas, como morte, doenga, brutalidade, pobreza, ser escravo on imperador etc. Esta nitida separacao, operada entre bens e males, por um lado, ¢ indiferentes, por outro, é indubitavelmente um dos tragos mais caracteristicos da ética estéica, que ja nna antiguidade foi objeto de enorme espan- to e de vivazes concordancias e discordin- cias, suscitando miltiplas discussdes entre 0s adversérios ¢ as vezes entre os proprios seguidores da filosofia do Portico. Com efei- 10, com essa radical cisao os Estéicos podiant por ohomem ao abrigo dos males da época ‘em que viviamt: todos os males derivados do desmoronamento da antiga poise todos os perigos, insegurancas e adversidades prove- niientes das convulsoes politica e sociais, que se seguiram a tal desmoronamento, eram simplesmente negados como males e conf los entre os “indiferentes”. Esse era um modo bastante audaz de dar nova seguranga ao homem, ensinando- Ihe que bens e males derivam sempre e s6 do interior do proprio eu eno do exterior, con- 12a da eva heleniatica vencendo-o, assim, de que a felicidade podia ser perfeitamente conseguida de modo absolu- tamente independente dos eventos externos, ce que se podia ser feliz até em meio aos tor ‘mentos fisicos, como também Epicuro dizia. Alli geral da oikéiosis, ou seja, 0 prin- cipio da conservagao de si mesmo, implica- va que se devia reconhecer como positive tudo o que conserva ¢ inerementa o proprio sex, mesmo em simples nivel fisico ¢ biol6- ico. Assim, ndo 6 para os animais, mas fambém para os homens, se devia reconhe- cer como positivo tudo o que est em con- formidade com a natureza fisica e que ga- rante, conserva ¢ incrementa a vida, como, por exemplo, a satide, a forea, 0 vigor do cor- po ¢ dos membros, ¢ assim por diante. Os Estdicos chamaram esse positivg segundo a natureza de “valor” ou “estima” enquanto © oposto negativo foi chamado de “falta de valor” ou “falta de estima”. Portanto, os “intermedidrios” que es do entre os bens € males deixam de ser de todo “indiferentes”, ou melhor, embora per- manecendo moralmente indijerentes, tor nam-se, do ponto de vista fisico, “valores” e“desvalores”. Dai decorre, em conseqilén- cia, que, da parte da nossa natureza animal, 08 primeiros serio objeto de “preferéncia”; os segundos, ao contratio, serao objeto de “aversao”. E nasce assim uma segunda dis- tingao, estreitamente dependente da primei- ra: os indiferentes speedos” © 0s indife- rentes “nao preferidos” ou “recusados' Essas distingdes correspondiam nao s6 ‘uma exigéncia de atenuar realisticamente a demasiado nitida dicoromia entre “bens ¢ males” ¢ “indiferentes”, em si paradoxal, mas encontravam nos pressupostos do sistema uma justificativa ainda maior que a referida dis tomia, pelas razdes ja ilustradas. Por isso, & compreensivel que a tentativa de Aristo ¢ de Erilo, de defender a absoluta adiaphoria ou “indiferenga” das coisas que nfo sio nem bens nem males, tenha encontrado tao nitida oposigao em Crisipo, que defendeu a posi- go de Zenio e a consagrou definitivamente. they As “aces perfeitas” eos “deveres” ‘As agdes humanas cumpridas em tudo © por tudo segundo o logos chamam-se “ages moralmente perfeitas”; as contrarias Capitulo décimo primeira ~ © Esteicismo io “ages viciosas ou erros morais”. Mas, en- tre as primeiras ¢ as segundas ha todo um feixe de agdes relacionadas com os “indife- rentes”. Quando essas ages forem cumpri- das “conforme 4 natureza”, ou seja, de modo racionalmente correto, terao plena justifica~ ‘cao moral, chamando-se assim “ages conve- nientes” ou “deveres”. A maior parte dos ho- mens, que é incapaz de agbes “moralmente perfeitas” (porque, para cumpri-las, € neces- sério adquirir a ciéncia perfeita do filésofo, j@ que a virtude, como aperfeigoamento da racionalidade humana, s6 pode ser ciéncia, ‘como queria Sécrates), é, no entanto, capaz de “agGes convenientes”, ou seja, € capaz de cumprir “deveres”. © que as ieis man- dam (as quais, para os Fstdicos, longe de serem convencdes, so expressoes da Lei eterna que provém do Logos eterno) sto “deveres” que, no sibio, gracas a perfeita disposigao de seu espitito, tornam-se verda- deiras e exatas agdes morais perfeitas, en- quanto que, no homem comum, permane- ‘cem s6 no plano de “ages convenientes”. Esse conceito de kathékon é substan- cialmente criagio estéica. Os romanos, que 0 traduziram pelo termo “officium”, com sua sensibilidade pratico-juridica, contribui ram para talhar mais nitidamente os contor- nos desta nogo moral que nds, modernos, chamamos de “dever”. Mas 0 certo € que Zenio ea Estos, com a elaboragao do con- ceito de kathékon, deram & histéria espiri- tual do Ocidente uma contribuigao de gran- de relevo: com efeito, embora modulado de varias maneiras, 0 conceito de “dever” se manteve como verdadeira e propria catego- ria do pensamento moral ocidental. Mas os Estéicos também apresentaram novidades no que diz respeito a interpretagao do viver social. sig © homem como “animal comunitario” © homem é impulsionado pela naru- reza a conservar proprio ser e amar a si mesmo. Mas esse instinto primordial nao ‘esti orientado somente para a conservagio do individuo: 0 homem estende imediata- mente a oikéiosis a seus filhos e parentes e ‘mediatamente a todos 0s seus semelhantes.. Em suma: € a natureza que, como impSe 0 amar a si mesmo, impde também amar aos 291 Rola eon rvivo deve buscar aqullo que. eons ee eevee salle throbs ledibch engi ‘que geramos ¢ aqueles que nos gerarams ¢ é a natureza que impulsiona o individuo a unir- se aos outros e também a ser itil aos outros. De ser que vive encerrado em sua indi- vidualidade, como queria Fpicuro, o homem torna-se “animal comunitério”. E a nova formula demonstra que nao se trata de sim- ples retomada do pensamento aristorélico, ue definia © homem como “animal po co”: 0 homem, mais ainda do que se feito pa- ra associar-se em uma Polis — de onde de- iva justamente o termo “politico” — € feito para consorciar-se com todos os homens. Nessa base, 0s Est6icos $6 podiam ser fato- res de um ideal fortemente cosmopolita. thm Superacae do conceito de escravidao ‘Com base em seu conceito de physis ¢ de logos, os Estéicos, mais do que os outros fildsofos, também souberam por em crise mitos antigos da nobreza de sangue € da superioridade da raga, bem como a institu 40 da escravidao. A nobreza é chamada ci nicamente de “escéria e raspa da igualda- de”; todos os povos sao declarados capazes de alcancar a virtude; 0 homem é procla- mado estruturalmente livre: com efeito, “ne- nhum homem é, por natureza, escravo”. Os novos conceitos de nobreza, de liberdade e de escravidio ligam-se a sabedoria e a igno- 292 rancia: 0 verdadeiro homem livre é 0 sabio, 0 verdadeiro escravo é 0 tolo. Dessa forma, os pressupostos da poli- tica aristotélica sao completamente quebra- dos: pelo menos no plano do pensamento, 0 logos restabelecen a igualdade fundamen tal e estrutural entre os homens. wha A concepeao estdica da ‘apatia” Um tiltimo ponto a considerar: a céle- bre doutrina da “apatia”. As paixdes, das quais depende a infelicidade do homem, sao, para os Est6icos, erros da razao ou, de qual quer modo, conseqiiéncias deles. Enquanto tais, ou seja, enquanto erros do logos, écla- ro que nao tem sentido, para os Est6icos, “moderar” ou “circunserever” as paixd como ja dizia Zendo, elas devem ser des- truidas, extirpadas e erradicadas totalmen- te. Cuidando do seu logos e fazendo-o ser 0 mais possivel reto, o sibio nao deixar se~ quer nascerem as paixdes em seu cora ou as aniquilara ao nascerem. Essa € a céle bre “apatia” estdica, ou seja, 0 tolhimento ea auséncia de toda paixao, que sempre e 6 perturbagao do espirito. felicidade, pois, € apatia, impassibilidade, ‘A apatia que envolve 0 estdico é ex- trema, acabando por se tornar verdadeira- Sexta parte - Ax excolas flosificas da era helenistica mente enregelante e até desumana. Com efeito, considerando que piedade, compai- xo e misericdrdia so paixdes, 0 Estoico deve extiepa-las de si, como se Ié neste tes- temunho: “A misericérdia é parte dos de- feitos ¢ vicios da alma: misericordioso € 0 homem estulto ¢ leviano, (..) © sibio nao se comove em favor de quem quer que sejas nao condena ninguém por uma culpa co- metida. Nao ¢ proprio do homem forte dei- xar-se vencer pelas imprecacGes e afastar- se da justa severidade.” ‘A ajuda que 0 estdico dara aos outros homens nao poder, assim, revestir-se de compaixio, mas ser asséptica, longe de qualquer *simpatia” humana, exatamente como 0 frio logos esta distante do calor do sentimento, Assim, 0 sabio mover-se-A en- tre os seus semelhantes em atitude de total distanciamento, seja quando fizer politica, seja quando se casar, seja quando cuidar dos filhos, seja quando contrair amizades, aca bando assim por tornar-se estranho & pré pria vida; com efeito, 0 estdico no é um entusiasta da vida, nem um amante dela, como 0 epicurista Enquanto Epicuro apreciava até os il- timos instantes da vida € os gozava, feliz, embora entre os tormentos da doenga, Ze- nfo, numa atitude paradigmatica, apés uma queda na qual divisou um sinal do Destino, atirou-se, quase feliz. por terminar a vida, aos bragos da morte, gritando: “Venho, por que me chamas?” ave74 2103

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