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Numa carta de 1955, ao amigo Theodor ‘Adorno, Walter Benjamin resumia sua impressio dese grande romance do surrealismo:“0 Camponés de Pars, ivro do qual cu no podia ler mais do que diuas ou trés paginas & nofte, na cama, meu coracilo batendo to forte que me favia detxéio de lad Exatamente setenta snos depois da primeira ediglo, O Camponés de Paris Fessurge, hoje, como tum dos romances do nosso tompo. F tm tratado Inesque evel sobre a cidade — a cidade como centro das mitologias modeznas ¢ a cl- dade como imagem da consciéneia, ou inconseiéneia, Bserita e topologia se en- tecruzam nessas passagens parisienses de Aragon (1897-1982), espagos limitre- fes, onde a razio resistee cede, a0 mes ino tempo, to discurso sagrado ou poético, ea imagem se transforma hhuma verdadeira via inicitica da sensi- bilidade, ‘Traduzido pela primeira vez em nossa 1ingua por Flavia Nascimento — autora também de uma esclarecedora Apresen tagio, onde situa o romance no contexto dias obras de Aragon, em particular dos Surveatistas, em geral, contra o pano de fundo conturbado da Europa do entre- guerras — O Camponts de Paris convoca f absorve a literatura ce Latwtréarmont, ‘Apoliinaire ¢ Gérard de Nerval, num estilo exuberante, que é também uma parédia das meditagBes cartesianas. 'A desericio detalhaca de uma galeria ou de um jardim parisiense, aqui, seré também @ histéria de uma consciéncia, exacerbada pelo efémero, pelo frisson, pelas vertigens do comum. “Iuminogées profanas” se stcedom imprevisivelmen- te mum livro sem género definide e que COLECAO LAZULI O Camponés de Paris Louis Aragon O CAMPONES DE PARIS Apresentagiio, tradugio e notas: FLAVIA NASCIMENTO Postécio: JEANNE MARIE GAGNEBIN Imago Coppi © Eins alas 1975 Th ina le gaee de Pte " Reson ts te. anuna gare ee ape se epee or dpi izing, ose ioncice osetia f 1m jeri ese to, ane ‘evn ara AANDRE MASSON (PSs Casbyetenr ons Scie ds Eres Lvs, BL As7ee se. to. E7142 ‘anges ce Pas / Lis pepe, rae aa, fla Naeneow: psi, ere Mae Ggtia Fade wie: eae €, 986. ae (Coto uaa ‘tects dL psn de Pit ‘sau asvaasre7 1 flonoe farts | ase, Ra, Ti, Sie 5160 0-0 av aba 1396 ac oO TDA z aa Sins Rags. 701A Este ‘TU2E0831 a wie AL Tol (01 2831082 _ Fa (21) 1265, logs mB Pine in Ba SUMARIO Apresentagio — Flavia Nascimento Obras de Louis Aragon © CAMPONES DE PARIS Prefaicio para uma Mitologia Moderna APassagem da Opera O Sentimento da Natureza no Parque Buttes Chaw ‘mont © Sonho do Camponés Notas da Tradiugao Posticio Jeanne Marie Gagnebin uw 3 37 45 139 215 251 par APRESENTAGAO Fldvia Nascimento Grande ensaista, poeta e romancista de personali- dade fascinante, Louis Aragon produziv, ao longo de seus 85 anos de vida, uma dessas extensas obras em que © literério e 0 histérico tecem uma trama de tal forma densa que nao se pode pensé1a sem levar-se em consi- deragao todas as grandes reviravoltas pelas quais pas- saram nosso século. Embora no seja o momento, aqui, de abordé-la em toda a sua complexidade, nao poderia- mos apresentar ao leitor brasileiro esta traductio sem Ihe fornecer, antes, alguns poucos elementos biogréti- cos que possibfiitem avaliar a riqueza de uma obra que nao se limita ao perfodo surrealista, ao qual pertence 0 Camponés de Paris. Em seguida, porém, ao que, fare- mos alguns comentarios sobre este livro e sobre algu mas das dificuldades impostas por sua traducao. Sobre o Autor Aragon nasceu em Paris, no dia 3 ée outubro de 1897"Pilho de bastardo, ele jamais foi reconhecido pelo pai, Louis Andrieux, homem casado, pai de trés filhos + e figura de projeciio, tendo sido procurador da Repuabli- ca em Lyon, préfet de police em Paris e embaixador da Franca na Espanha. A mie, Marguerite ToucesMassil- Jon, tampouco o reconheceu: o menino foi criado em sua companhia, mas passava por seu irmaozinho, pois u quem assumiu a maternidade perante a sociedade foi a mie de Marguerite. O sobrenome Aragon fot inteire- mente inventado pelo pai, que fazia o papel de seu padrinho: assim, Louis Aragon ganhava as iniciais ci fradas de Louis Andrieux. © jovem Louis, entio estudante de medicina, 36 conheceu o segredo de seu nascimento em 1917, aos vinte anos, as vésperas de sua partida para o front, convocado gue foi enquanto médico-auxiliar. Com mais de 70 anos, Aragon revelou que o pai obrigara sua mfe/irmi a Ihe dizer a verdade para que ele no mor- resse na guerra ignorando o fato de que ele era uma marea de sua virilidade.’ Data desta época sua amizade com André Breton, também mobilizado no mesino hospital como estudante-médico-auxiliar. Deste encontro capital, nascia uma amizade que engendraria 0 movi- mento estético-cultural mais importante da Franca da primeira metade do século xx: 0 Surrealismo. No dia 11 de novembro de 1918, com a declaragéo do anmisticio, findava a primeira grande guerra, deixando atrés de si um saldo de sete milhdes de mortos. Aragon permaneceu mobilizado, por conta da ocupacio francesa Go Sarre (regio sudoeste da Alemanha). Breton, de volta a Paris, encontrou Philippe Soupault, com quem escre- veu e publicou em 1919 Les Champs Magnétique, texto reputado como fundador do movimento surrealista, ¢ fruto das primeiras experiénciascom a escrita automatic. © método da escrita automatica, bem como sua denomi nagio, foram tomados de empréstimo a psicanatise, pela qualos ovens autores se interessavarn, Soupaulte Breton buscavam através da livre associagio, 0 “puro ditado do pensamento”, como diria Breton mais tarde, no primeiro Manifesto surrealista. Seu objetivo era desembaracar 0 ri Matisse, roman (Paris: Gallimard, 1971). a2 espirito de toda e qualquer pressio, critica e dos velhos habitos escolares (es corregdes, por exemplo, eram proi bidas}, a fim de explorar um universo de imagens até entio desconhecido, mergulhando diretamente nas fon tes inesgotéveis do inconsciente. Retornando pouco mais tarde a Paris, Aragon jun: tose a Soupault e Breton e, neste mesmo ano de 1919, os trés jovens criaram e passaram ¢ dirigir a revista Littérature. titulo era evidentemente provocatério, pois o objetivo da revista era a busca de formas de expressiio totalmente novas, sem nenhum compromis- s0 com o bom gosto ¢ a tradigao literdria. Tal busca refletia o estado de animo desses jovens para os quais, ap6s a carnificina da primeira guerra mundial, a poesia se tornara impossivel — pois segundo eles nenhuma forma de arte poderia ter sobrevivido a tamanho hor ror. Seu espfrito de revolta encontrou entéo uma forte ressonéincia nos propésitos violentamente iconoclastas do dadaiste Tristan Tzara, que se transferiu de Zurique para Paris, juntandose aos surrealistas. Aamizade com ‘Tzara inaugurou uma fase profundamente niilista das atividades do grupo, repleta de manifestagdes ptiblicas ruidosas e provocadoras, que iria durar até 1924. Neste ano, aparece 0 segundo texto te6rico surrea- lista, obra de Aragon, que o escreveu entusiasmado com 05 resultados obtidos por seus amigos nos experi- mentos com a escrita automatica ¢ 0 sono hipnético. ‘Tratase de Une vague de réves, publicada no outono de 1924 na revista Commerce, dirigide entre outros por PaulValéry. Esse texto, muitas vezes negligenciaco pelos historiadores do movimento, constitui na verda- dea primeira tentativa de definigéa de um vocabulério da teoria surrealista. Alias, uma primeiraconceituaco, ainda que muito geral, dos substantivos surrealidade e surrealismo aparecia ali pela primeira vez, bem como a preocupacio com o estabelecimento de certas nocdes 35 que se revelaram posteriormente de grande fecundida- de para o surrealismo, como as nogies de acaso ¢ de fantdstico. Dois meses depois, Breton publicava 0 pri- meiro Manifesto contendo a famosa defini¢ao da pale- vra “surrealismo” em forma de verbete de dicionsrio,” Este texto determinow a ruptura com o grupo dadé, pois nele os surrealistas nomeavam seus antecessores, entre outros, Sade, Swift, Baudelaire, Nerval, Poe, Rim- baud, Mallarmé. Tal atitude equivalia a uma aquiescén- cia em relacdo a literatura, a uma autoinsereao do movimento surrealista na tradic&o literéria, sendo, por- tanto, inaceitavel aos olhos de Tzara. ano seguinte — 1925 — viria marcar 0 inicio de uma guinada no interior do movimento, que jé se expandira, hé tempos, com grande niimero de adesdes, contando com gente como Paul fluard, Jacques Baron, Roger Vitrac, Benjamin Péret, Robert Desnos, René Crevel, Antonin Artaud e muitos outros. Neste ano, a luta pela independéncia do Marrocos, conhecida como ‘guerra do Rif”, colocou os intelectuais franceses, entre 095 quais nossos jovens surrealistas, diante da necessi- 2 O nome surrealismo fora adotado pelo grupo em ho- menagem a Guillaume Apollinaire. Ele empregou 0 adjetivo pela primeira vez em 1917, para reterir-se & sua pega teatral Les Mamelles de Tirésias como um “drama surreatista”. A definigfo de Breton € a se- guinte: “SURREALISMO. S. m. Automatismo psiquico puro, pelo qual se propée expresso verbal, escrita, ou por qualquer outro meio, o funcionamento real do Pensamento. Ditado do pensamento em auséneia de todo e qualquer controle exercido pela razio, e fora de toda e qualquer preocupagio estética ¢ moral”. Ver Manifestes du surréalisme (Paris: Gallimard, 1994), u dade de uma tomada de posi¢ao. Em junho, L’Humanité publicava uma declaracéo intitulada “Apelo aos traba- Thadores intelectuais”. Sim ou nao: vocés condenam a guerra? A discusséo estava lancada e os surrealistas alinharam-se com os comunistas, praticamente os tini- cos a condenarem a guerra colonial, qe contava na verdade com o apoio de grande ntimero de importantes intelectuais franceses, O passo seguinte e inevitével dos surrealistas foi o questionamento sobre a necessidade de se engajar ou nfo na luta do proletariado. Efetiva: mente, no segundo Manifesto Surrealista, publicado por Breton em 1929, o grupo tomou posi¢io favoravel & revolugéo proletiria, acrescentando a necessidade de mudar a vida (expressa no primeiro manifesto de acor- do com a formula de Rimbaud), a urgéncia de “trans- formar o mundo" (segundo a divisa de Marx). A opgéo pelo materialismo dialético tornava'se desta forma cla- ra, impondo a questo seguinte: os surreelistas deve- riam ou nio aderir ao Partido Comunista? ‘Tal questiio provocou mais de um cisma no grupo surrealista. André Breton e Paul £luard aderiram ao PCF em 1927, mas sua permanéneia nele nio durou mais do que algumas poucas semanas. Aragon aderiu na mesma 6poca, mas, ao contrario dos dois amigos, mor reria comunista. Sua adeséo desencadearia a rupture com o grupo. Vejamos a seqiiéncia dos fatos. Em 1928, Louis Aragon encontrou Maiakovski, que estava de passagem por Paris em companhia da cunhada, a jo- vem escritora etradutora russa Elsa Trio.et (irmé de Lili Brill, com quem Aragon logo passow a viver (unio que durou de 1929 até a morte de Elsa, em 1970). Sua primeira viagem & ex-URSS, tendo Elsa como acompa- nhante, data de 1950, Em Karkov, na Ucrania, Aragon participou da If Conferéncia Internacional dos Escritores Revolucionérios e, em seguida, escreveu o poema Front rouge (1951), em louvor & revolugdo de 1917. © poema 15 Ihe valou uma perseguigéo judicial na Franca por “ex- citagio de militares 4 desobediéncia e provocagio de assassinato com objetivo de propaganda anerquista”. Os surrealistas, liderados por Breton, tomaram adefesa de Aragon apesar de jé nfo compartilharem inteire- mente de suas posigies politicas.” Assim é que Breton escreveu Misire de la poésie (1952), solidarizando-se com o poeta de Front rouge. Mas sua solidariedade se afirmava af através de um deslocamento da importén- ia do plano politico do poema para o plano da liberda- de eserita © da poesia enquanto atividade auténoma, Além do que, Breton inclui em seu panfleto o relato dos propésitos trocados numa reunigo partidéria entre os Girigentes do pcr ¢ os quatro surrealistas comunistas: Aragon, Georges Sadoul, Pierre Unik e Maxime Alexan- dre." Foi este o fator determinante da ruptura definiti va, pois, para Aragon, a revelago publica de uma ses- sio do Partido era inadmissivel. Com o desencadear de todos esses fatos: 0 encontro de Bsa, a viagem & ex-URSs, a publicagto de Front rouge, chega ao fim a pré-histéria de Aragon, como diz Pierre Daix em sua recente biografia do escritor, abrindose 3 Lemibremos que Breton continuou a favor da adesio 20s principios do materialismo dialético, mesmo apés a ‘sua répida passagem pelo PCF, em 1927. Todavia, era contra sua politica partidéria. 4 Tal revelacio era concermente ao affaire Dulita, Dulita @ heroina de onze anos de um texto de Salvador Dali, Publicado pela revista Le Surréalisme au Service de la Ré- vohution. Os surrealistas foram acusados, na referida reunifio, de “freudismo ¢ pornografia” por causa deste texto. Breton quis tomar péblica estas “indigéncias do pensamento” (Misére de la poésie) no interior do Parti- do, o que fez explodir a ruptura com Aragon. 16 para o escritor uma passagem ao real.” Chega ao fim também o periodo do maravilhoso, do surrealismo, a0 qual pertence O Camponés de Paris. Mas o mundo de entio passava por transformagées desagradavelmente surpreendentes: apés a quebre da bolsa de Nova York, na famosa quinta-feira negra de outubro de 1929, uma crise econémica sem precedentes ganhou o mundo ocidental. A inflag&o atingiu indices vertiginosos por toda a parte, sobretudo na Alemania, que abriria as portas do poder a Hitler, que em 1932 triunfou como chanceler alemio, O fascismo tornara-se uma realidade mais do que tangivel. Em 1934, Aragon partiu nove: mente com Elsa rumo @ uRss, onde deveria assistir a0 1° Congreso da Unido dos Escritores Sovieticos, que con- tava com a participagio de diversos outros convidados de prestigio, entre eles André Malraux, Era o tempo da divisa de [danov, segundo a qual o eseritor revolucio nério deveria se converter em “engenheiro de almas”. Ociima era de euforia eo realismo socialista tornouse entiio a profissio de {6 de escritores progressistas do mundo inteiro. O comunismo ganhava em foreas, apa- recendo para muitos como alternativa tinica frente ao impasse criad6 pelo fascismo e pela crise econdmica.’ Sabese como os acontecimentos se precipitaram depois, acelerando o curso da histéria: em 1935 Musso: Uni atacou a Eti6pia; em 1936, manifestagdes de extre- 5” Aragon, une vie @ changer (Paris: Flammarion, 1994). 6 Sabe-se hoje que este congresso encobrie, na verdad, a intstauracio de uma policia politica para o controle da produgio literarie, Mas os convidados, em sua maioria, ignoravam o fato, Pierre Daix (obra citada acima) afir ma que Aragon viveu até os anos sessenta com a ilustio de que nesta ocasitio realmente ocorrera a uniio geral e livre dos escritores do regime soviético. ay ma direita sacudiram a Franca, onde uma coligagio de forcas de esquerda (a Frente Popular) acabou por obter a vit6ria nas eleigdes do mesmo ano, enquanto na vizinha Espaniha eclodia a guerra civil, na qual o poeta Federico Garcia Lorea perderia a vida. Enfim, em 1939 recomecava 0 pesadelo de uma Segunda Guerra Mun- dial, Aragon ganharia novamente as trincheiras em 1940, para ser desmobilizado no ano seguinte, quando passou a viver na clandestinidade, integrando a Resis tencia. Durante a guerra, Aragon vislumbrou na poesia uma fecunda estratégia de resisténcia: resgatando a concepeiio do trobar clus do poeta provencal Arnaut Danfel, passou a fazer a defesa de uma arte poética secreta, de contrabando, como forma de luta contra 0 nazismo.’ Um fortalecimento da ligagdo entre o politico 0 escrito é evidente na produgio de Aragon posterior a 1945. Mas a relagio do escritor eo politico torna- va-se pouco a pouco contraditéria. Prova disso sio os documentos revelados pelos arquivos do escritor so- viético Constantin Simonoy, que elucidaram certas posigdes de Aragon e Bisa em face do Pc: pressionados a se exprimir c abstrata francesas, mais precisa mente contra Picasso € Matisse, entio criticados pelo Pravda (), ambos recuse- ram-se peremptoriamente. E em 1955, com a morte de Stélin, a contradigao tornowse mais Sbvia: Aragon pu- bblicou na revista Lettres Frangaises o retrato do dirigen- mitra a pintura impressionista e a arte 7 “‘Reagon desenvolveu esta concepgao no ensaio “La Le- gon de Ribérac ou l'Europe Frangaise”, publicado pela revista Fontaine (Argel, 1941). Para maores pre- elsdes, ver o livro de Valére Stareselski, Aragon, la tat son délibéré (Paris: L'Harmattan, 1995). 18 ‘te soviético feito por Picasso, como homenagem péstu- ma. ‘Mas aceleremos ainda o curso do tempo, a fim de ‘conhecermos tm pouco de um outro Aragon. O iiltimo Aragon, 0 que completa o circulo —e 0 ciclo — de toda uma vida, unindo uma ponta a outra, a maturidade e finalmente a velhice, & juventude, o realismo ao surrea- lismo, através de um impressionante trabalho tecido @ partir da rememorizacdo e da reflexio. Este jé se insinua ‘em 1956, com 0 volume de poemas Le Roman. inachevé, que ele mesmo qualificou como “a tinica autobiografia” que escreveu.” A partir dai, 0 posta e romancista passou a se distanciar paulatinamente da utopia stalinista. Em seu tiltimo romance, Théatre/Roman (1974), ele afirmava: “Minha vida é escrever. Nao parao teatro, isto é, um lugar que existia fora de mim. Mas sim para um teatro que é meu e esté em mim, Onde eu sou tudo, « autor, 0 ator, 0 paleo, onde no vendo nada a ninguém e sou meu pro: prio e tnico interlocutor. Seria necessério reler tudo (0 que escrevs) deste ponto de vista”.® Louis Aragon morreu num dia de outono de 1982. Grande parte de sua obra posterior ao periodo surrea. lista (com exeegio da produgo poétiea em geral e, sobretudo, a do periodo de Resisténcia) ¢ pouco conhe cida, mesmo na Frange, sem dtivida em raziio de um Preconceito que justifica a catalogagio de Aragon como I” Gitado por V. Staraselak, A autora cita também os ver 08 seguintes, que traduzo livremente e nos quais se vé tima referéncia explicita aos companheiros surreclistas da juventude: “Apesar de tudo 0 que velo nos sepa rar/O meus amigos de entio, vocés é que revejo/ E em tinha meméria témula/ Vooes guardam seus othos de outrora” (em Le Roman inachevé). 9 Citado por V. Staraslsk 19 ‘mero escritor oficial do Fc. O que é no minimo muito simplista, como de resto todas as catalogacdes. Anexas, ‘esta tradugao 0 leitor encontraré algumas sugestbes ibliogréficas sobre o autor do Camponés, bem como ‘uma lista de obras de Aragon, e mesmno uma indicacéo discogrética. Mas, por ora, voltemos ao tenipo em que era uma vez o surrealismo, para dizer algumas palavras, sobre O Camponés de Paris. O Camponés de Paris 0 Camponés de Paris, uma das realizagées mais origi- nais da prosa surrealista — ao lado de Nadja (1928), de Breton ede Les derniéres nuits de Paris (1928), deSoupault herdeiro desses textos que se inserem na tradicio do mito literéirio de Paris, segundo a qual a capital francesa 6 representada mais como uma personage extraordina- ria, dotada de corpo e alma, do que propriamente como um cenério. A génese deste mito remonta ao final do século xvilt, que produziu obras como Les nutts de Paris, de Restif de la Bretonne e Tableau de Paris, de Sébastien Mercier. O século xrx, por sua vez, sé fez enriquecer esta tradigo, sobretudo com Baudelaire, cuja obra se engen- drou a partir do profundo traumatismo sofrido pela cidade e seus habitantes com as transformagées urbants- ticas de embelezamento e saneamento impostas pelo bardo Haussmann, administrador da regidoparisiensede 1855 a 1870. Este, que se auto qualificava como “artista demolidor”, substituiu a fisionomia ainda medieval de Paris, repleta de ruelas sombrias e fétidas, pelo que ela é hoje, dotando-a de grandes eixos de ligagio (os boulevards) teste-oeste e norte-sul, No século xx, os surreelistas cultus- riam a grande cidade como espaco privilegiado para a experiéncia de um certo tipo de “iiuminacao” resultante da observagio de seus intimeros aspectos cambiantes, de 20 4 seu cariter efémero e mesmo da precariedade de todas as suas intimeras formas de vida. Afinal, Baudelaire jé constatara, antes deles, que a forma de uma cidade muda mais rapidamente que o cora¢do de um mortal, o que faz com que tudo se transmude incessantemente em amon- toados de ruinas, em alegorias.’° ‘Os quatro capitulos que compdem 9 Camponés de Paris foram reunidos em livro em 1926. Os capitulos “A Pascagem da Opera” e “O Sentimento da Natureza no Parque Buttes-Chaumont” jéchaviam sido publicados em fothetim pela Revue Buropéenne (em 1924 © 1925, respectivamente), dirigida entio por Philippe Sou- pault. A narrativa se estrutura em torno de dois movi- mentos. Do primeiro resultam o preficio e o tltimo capitulo, que abrem e fechem o texto com um mesmo tom manifestario muito ao gosto das vanguardas do infeio do século. Trate-se de um discurso propondo ‘uma pragmitica, uma ret6rica ou postica, que se carac- teriza por uma logica binéria, pots, ao irtroduzir novas e ideais proposi¢des, nege a validade dos procedimen- ‘tos anteriormente empregacios. Funciona assim como, uum embaixador das novas que pretende instaurar a partir da ruptura que anuncia (o que explica 8 razio pela qual as projetos e manifestos das vanguardas fre- qiientemente antecedem a propria obra). No caso do “Prefiicio” de Aragon, trata-se de denunciar as mazelas 10 Refiro‘me ao poema “Le Cygne”, de Baudelaire: “Le viewx Paris n'est plus (la forme d'une vitle / Change plus alte, hélas! que te coeur d'un mortel)”. E mais adiante o poema diz: “Paris change! mais rien dans ma melanco- lie / N'a bougé! palais new/s, échafaudages, blocs, / View: faubourgs, tout pour moi devient allégorie, / Et mes chars souvenirs sont plus lourds que des rocs” (Tableaux Parisiens, em Les Fleurs du Mal). 21 do “tolo racionalismo humano”, apontado como he- ranga nociva do cartesianismo que fundamenta hé sé- culos os esquemas légicos do pensemento ocidental, ‘contra a qual tanto se bateu 0 surrealismo, sobretudo nos anos vinte, Esta dentmcia se acompanha da inten- ‘eGo de preservar “o sentimento do maravilhoso cotidia- no", condic&o basica para a pragmética surrealista sob a 6tica de Aragon. O iiltimo capitulo, “O Sonho do Camponés", funciona como fecho de reforco neste sen- tido. Ble se inicia com um tom de ensaio filoséfico, que 0s poucos vai se diluindo até assumir completamente a forma do manifesto, com frases curtas disparadas & queimaroupa. O texto se fecha assim declarando a instauragio de ura tempo da vida poética, j6 que é para “a poesia que tende o homem”. © outro movimento da narrativa se tece a partir da deambulacio pela cidade, com os capitulos "A Passa- gem da Opera” e “O Sentimento da Natureza no Par que Buttes Chaumont”. Ambos 08 espacos, como vere- mos, sio uma reférencia a este periodo de decadéncia gue foi o final do Segundo Império, do qual o baréo Haussmann é a figura emblemética por exceléncia, Alguns de seus projets de desventramento de Paris néo foram realizados durante a sua gesto, como foi 0 caso mesmo da demoligio desta passagem parisiense, posta abaixo pelas picaretas da haussmanizaco em 1924, para que mais uma grande artéria, o boulevard Haussmann, pudesse ser aberta. Suas duas galerias (do Bardmetroe do Term6metro) haviam sido Inauguradas em 1821 e ganharam este nome poraue, tendo sido coneebidas como parte integrante da Academia Real de Misica, (nome provisério do teatro da Opera de Paris), serviem de passagem a atrizes e freqiientadores. Em 1878, prédio da Academia foi destrufdo por um incén- dio, 0 que motivo a construgdo do atual teatro da Opera projetado por Garnier e inaugurado em 1878. A 22 passagem sobreviveu ao fogo, mas seu intenso movi- mento comercial fol pouco a pouco diminuindo, até que o lugar se tornasse completamente decadente. Em 1880, o célebre anarquista Auguste Blanqui instalou ali a sede de seu jornal, pelo que se fez expulso, em raziio de todas as idas e vindas dos partidérios da revolucdo. Na década de 20, dadaistas e surrealistas fizeram tam- bém do bar Certa, situado no interior da passagem, a sede de suas turbulentas reunides. Som falar de todas as celebridades que freqiientavam 0 saléo do barbeiro GéisGaubert, responsével pelas cabeleiras de nada mais, nada menos que Balzac e Breton, entre outros. Aragon conheceu a passagem, portanto, no auge de sua decadéneia, quando ela jé era uma espécie de rina do que fora outrora, tendo se transformado assim num lugar insélito, num “‘santuério do culto do efémero”, numa “paisagem fantasmética dos prazeres e das pro fissGes malditas” tornados obsoletos com o avango ine- xordvel do tempo e as mudangas econdmicas e sociais que ele impde, € condenados a se eclipsarem para sempre, soterrados como novas Pompéies. Jé dissemos que este capitulo foi publicado em 1924, mesmo ano em que a passagem da Opera foi demolida. Ele 6, destarte, uma espécie de escrita-obituéria pela qual a morte da propria passagem entra em cena, legando-nos uma deseri¢ao testamentaria minuciosa do lugar, um inventério metédico das lojas, seus objetos, dos fatos que af se passavam e dos hébitos da estranba fauna humana que o animava ainda, em via de desaparicao. Paravisto, langa m&o da colagem, empregando abun- dantemente a reproducao de placas de comércio e ins- crigdes de todo tipo. Mas tal artificio nao visa a propi- ciar uma intromisséo do real na prosa; ao contrévio, Aragon serve-se dele como de um trampctim que passa levar & subversio do sentido ordinario de cenas e obje- tos aparentemente corriqueiros, a fim de Ihes atribuix 28 ‘uma fungio poética e, desta forma, desencadear o aces- so ao “maravilhoso cotidiano”. A colagem cria aqui uma espécie de fenda na leitura, eonduzindo a passa- gem que transportara o leitor do real ao onfrico, do banal ao magico, da reslidade A poesia. Como diz, 0 proprio narrador: da passagem da Opera a passagem da Opera onfrica, O titulo da narrativa cria uma ambi- guidade reveladora: 0 camponés de Paris no vé a cidade como 0 citadino ou o burgués — estes sim seus habitantes nativos — e por esta razio seu olhar é reve lador do insélito: ele entretém com o grande corpo urbano uma ligagio tio visceral quanto a do rastico camponés com a terra, mas este vineulo é acrescido de um estranhamento permanente, do qual dé conta a posigio entre 0s vocsbulos Camponés e Paris. A deambulagio solitéria pela passagem sucede- ré a expedicio a trés (Aragon, Breton e Marcel Noll) rumo ao parque Buttes-Chaumont, Quanto a este, monumental construgio com rochedos artificiais, situado ao leste da cidade, foi obra realizada por Haussmann em vida, que dotou assim a capital de um. de seus pulindes verdes (0 terreno, antigamente pt- trido, servia de depésito de 1ixo). Assim, 0 desloca- mento do narrador pela cidade também apresenta uma estrutura bindria que opde dois espacos diame- tralmente opostos: primeiramente, como vimos, @ pas- sagem da Opera, lugar fechado, quase poderfamos dizer subterréneo, que se localizava num bairro cen- tral da cidade; e depois o grande jardim, devassado, alto, de periferia, Este lugar aninha, segundo Aragon, “g inconsciente da cidade” ¢ assume na narrativa os ares de labirinto inicidtico dos surrealistas. A descrigao minuciosa de todos os aspectos geotopograficos do jardim, feita através de perfodos extremamente longos, chega a saturar a leitura. A intenciio ndo é nada ino- cente e, cxiando uma espécie de desnorteamento, 26 i vem reforcar a idéia do labirinto. Errar pelo jardim em plena noite funciona como técnica alucinégena, cujo objetivo 6 fazer aflorar o que ha de mais primi- tivo no homem; e percorrer esta topogratia eauivale a percorrer 03 caminhos sinuosos do inconsciente. Assim, a minicia deseritiva que pareceria num pri- meiro momento convidar o leitor a verificar a auten- ticidade da narrative, revelase mais uma vez como um trampolim do imaginario: a precisio excessiva de detalhe acaba por criar um efeito de contornos vagos. ‘Aragon limita a cidade a dois lugares: passagem ¢ Jardim, Mas cada um deles é um ponto de encontro de varios outros, de forma que o espago, n’ 0 Camponés de Paris, desdobra-se em intimeras dimensbes, como se pode ver pela quantidade de mfcrocosmos evocados ‘por Aragon através desses dois lugares eleitos e no- meados. Sua cidade 6, portanto, a projegio de um universo postico que se traduz pela mais intensa Ins- tabilidade. Podemos nos servir aqui das palavras de Marie Claire Bancquart, que observou que a Paris dos surrealistas 6 uma cidade ndo-sociol6gica, sem densi- dade humana, que se volta inteiramente para a busca de uma intersecedo entre o real e o imaginério, uma Paris que é transferéncia e projeciio.'’ Sem diivida esta dimensiio da narrativa de Aragon 6 irreiutavel. Se nos perguntarmos, porém, que charme irresistivel ema- nou destas paginas para Walter Benjamin — que en- controu nelas a inspiracdo para sua obra inacabada Paris, capital do século XIX"* (aliés, livro conhecido 11 Em Le Paris des surréalistes (Paris: Seghers, 1972). 12 Numa carta famosa a Adorno, Benjamin dizia: “No comego (do projeto da referida obra) hé Aragon, O Camponés de Paris, livro do qual eu nao podie ler mais do que duas ou trés paginas noite, na cama, 25 como “Trabalho das Passagens”) — poderemos com. preender que o interesse da Paris surrealista de Aragon. vai além da esfera da interseceiio entre real e imagina. rio, sem entretanto negé-la. Para Benjamin, as passagens parasienses, primeira realizagio da arguitetura em ferro que atingiu seu apo- geu durante o Segundo Império, eram um dos elementos que compunbam 0 “universo das fantasmagorias” dos século XIX, do quel ele esboca um denso quadro na obra que citamos. Quanto a Haussmann, seria “o campedo da fantasmagoria da prépria civilizacio”. Nao caberia no Ambito desta Apresentagéo uma discuss aprofundada sobre a nogio benjeminiana de “fantasmagoria”. Que o leitor nos perdioe, mas vamos reduzila a um de seus aspectos essenciais, que consiste neste caréter “ os comerciantes " lesspropriades to vitimas deum as cabagas dos jorados por um | gar eecemo casosja anti, tmultidgo exasperada. O juiz,en- | rar proveitos néo a cidade, mas louuecido,apelou para os gen- Sociedade concesionria. darmes, E desde exe dia,osde- | ete, coperagies de desapropriago das Tecadores do iltimo lote do bow: levord Haussmann, ““Dundidos! LadrSes! Vendidos!” Tais exam as menores amenidades dirigides © porta-voz oficial dos que protestara é uma folha quinzenal que se intitula: 59 LA CHAUSSE D‘ANTIN Seto de Det de est a Eons de Bare A venda entre os dias 18, 5, 15 ¢ 20 de cada mes Chefe de redapao: Jen Gzorces Bern Ninguém duvida de que o chefe de redagio, filho de um antigo deputado de Paris, se prepare para receber a iluséria heranca moral de seu pai. Ele atende todas as segundas e sextasfeiras, das 17 as 19 horas em sua residéncia, na rue de la Victoire n? 93, que é também a sede do jornal. f em nome da Reptiplica que ele lanca um apelo aos pequenos comerciantes. Vejam como se meia as opinides em seu jornal, a fim de organizar a resisténcla, Lé-se na terceira pagina: Pissosconenes, ssejomal éseu 6rat0, ‘seu apoio. O que vords esperar pata sustenté-lo também, conflando the por sua ver tum pouco de pubicidade? Lembrem-se de que tarifas especiats thes so concedidas ¢ que esse jornaljamals ace tard propaganda das grandes lias E na quarta pagina, abaixo das “Casas recomenda- das do bairro”: APELO Fazemnos um insistente apelo junto.a nossos amigos ea todos aqueles que nos aprovam, no sentido de que venham aderir sem demora ao Comité Repu- blicano de Defesa dos interesses do Bairro, cuja 60 a i a aca ea ficha de adesio encontrar8o logo abaino, Basta precricher os dados e enviéla pelo correo ao jornal O terror do La Chaussé d’Antin é 0 senhor Oudin, vereador da cidade. A ele se atribuem todas as faltas cometidas, ele 6 0 homem do Banco Bauer, Marchal e Cia,, acusam-no de inéreia, se ele néo é capaz de defen- der os interesses do bairro, que peca dem:ssio. Precisa- mos de um trabalhador, de um defensor. Nés 0 tere mos”, diz um artigo. E 0 senhor Oudin nem sequer ‘mora mais no bairro. ‘Abandono um pouco meu microse6pio, Por mais que se diga, escrever com 08 olhos postos sobre a lente objetiva, mesmo com o auxflio de uma cémara branca, esgota realmente vista. Meus dois olhos, desabituados de olhar juntos, deixam hesitar ligeiramente suas sen- sages, para depois novamente se emparelharem. Uma espiral inteira se completa as cegas sob minha fronte, para depois recolocar'se no lugar: 0 menor objeto que percebo parece me de proporgdes gigantescas, uma gar rafa ¢ um tinteiro lembram-me Notre-Dame ¢ 0 prédio da Morgue. Creio ver muito préxima minha mio que escreve, e minha pena é um encedeamento de névoas, ‘Tenho dificuldade, como pela manhé, com um sonho desvanecido, & medida que os objetos readquirem seu tamanho em relacdo a mim, em rememorar 0 micros c6pio que ainda ha pouco eu iluminava com meus espelhos, que eu fazia passar pelo pequeno diafragma da atengio. Magnificos dramas bacteriais, é de se espe rar que, seguindo a inelinagio natural do corago quan- do nos abandonamos as suas interpretagées delirantes, - imaginemos para vocés causas passionais & imagem dos verdadeiros pesares de nossa vida. O amor, eis 0 nico sentimento de grandeza sufi ciente para que o emprestemos aos infinitamente pe- guenos. Mas concebamos uma vez suas lutas de interes- 61 ses, micrébios, pensemos em suas firias domésticas. Que errs de contabilidade, que fraudes na escritura- cdo comercial, que extorsées municipais presidem, & margem do fendmeno fisico, as observaveis fagocito- ses? Agitem-se, agitem-se desesperadamente, vibrides tragicos arrastados numa aventura complexa em que 0 observador nao pereebe nada além do jogo satistatério ¢ razofivel das imutaveis leis da biologial O que vocés inscrevem em meu campo ético com essa tormenta de enigmas, 6 cartazes luminosos da aflicdo, pequenos pequeninos? B suas migragGes feito a danga dos colsi- des, o que significa seu cinema? Tento ler nessa répida escritura ea tnica palavra que creio distinguir em meio a esses caracteres cuneiformes incessantemente trans- formados niio é Justi¢a, é Morte. © Morte, encantadora erianga um pouco poeirenta, eis um pequeno palécio para teus galanteios. Aproxima-te suavemente com teus caleanhares torneados, desamassa o tafetd de teu vestido edanga. Todos os subterftigios do mundo, todos os artificios que estendem o poder de meus sentidos, lunetas astrondmicas € lupas de todos os tipos, estupe- facientes semelhantes as vigosas flores dos prados, 4l- coois e seus martelos-mecdnicos, surrealismos, reve- lam-me por toda parte sua presenca. Morte, redonda como meu olho. Eu te esquecia jé, Passeava sem pensar que seria necessério voltar para casa, minha boadomés- tica, para casa, onde a sopa jé esfria no prato, onde tu, esperando-me, trincas rabanetes negligentemente com os dentes, ¢ tuas falanges descarnadas brincam com as bordas da toalha. Olha, no sejas impaciente, eu te darei também amendoins e todo um bairro de bowle- ‘vards para que tu amoles teus graciosos dentes, Néo me importunes: jé vou. ‘Mas eu esquecia de dizer que a Passagem da Ope- ra 6 um grande atatide de vidro e, como a mesma brancura endeusada desde os tempos em que a ado- 62 ravam nos subtirbios romanos, preside sempre 0 du- plo jogo do amor e da morte a Libido que, nos dias de hoje, elegeu coma templo os livros de medicina vagueia agora seguida pelo seu céozinho Sigmund Freud, véemse nas galerias de seus mutéveis clardes que véo da claridade do sepulcro & sombra da volipia, deliciosas jovens servindo a um ¢ outro culto com provocantes movimentos dos quadris ¢ um penetran- te sorriso empavonado. Em cena, senhoritas, em cena, e dispam-se um pouco. “O individuo vivo”, diz Hegel, “apresentase em sua primeira evolugao como sujeito e como nogiio, ena segunda ele incorpora 0 objeto e por af se atribui uma determinago real, ¢ ele é em si o género, a universali- dade substancial. Arelagio de um sujeito com um outro sujelto do mesmo género constitui a particularizagdo do género eo julgamento exprime a relagio do género com os individuos assim determinados.Bisaf a diferen- «60 dos sexos.” Encontro,nessas palavras 2 significagdo verdadetra da historia de Péris. Ninguém duvida de que somente ‘Venus, entre suas rivais, parecie-Ihe mulher, entio ele Ihe jogou 2 mag. Mas como ele agiria aqui? Na Passa- gem da Opera, tantas passantes diverses se submetem, ao julgamento hegeliano, mulheres de idade e beleza varidveis, freqiientemente vulgares e de alguma forma jédepreciadas, porém mulheres, mulheres verdadeira- mente, e sensivelmente mulheres, isso i custa de todas, ‘a5 outras qualidades de seus corpos e almas; tantas passantes nessas galerias — suas ctimplices — conten tam-se unicamente em ser mulheres, que o homem. ainda indeciso e solitério com sua idSia do amor, 0 homem que ainda nao cré na phuralidade das mulhe 63 res, a crianga que busca uma imagem do absoluto para suas noites nada tem a fazer nessas paragens. E como da pena ver os colegiais vermelhos, cutucandose uns 08 outros, encaminharem-se rumo ao Teatro Moder- no: como poderiam escolher alguém 14? Nao parece ser um cuidado estranho as caricias o que arrasta para tal reino toda esse multidao instével de mulheres que concede a voltipia um direito perpé. tuo sobre seus vaivéns, Multiplicidade encantadora dos aspectos e das provocagées, Nao hé uma que roce © ar como outra. O que deixam atras delas, seus vestigios de sensualidade, jamais é 0 mesmo lamento, ‘o mesmo perfume. E se hé algumas que fazem aflorar suavemente em mim o riso, devido & desproporcao que reina entre seu fisico mediocre ou burlesco ¢ 0 gosto infinito que elas tém de agradar, também clas Participam dessa atmosfera da lascividade que como o sussurro das folhas verdes. Velhas putas, con- feitos, mtimias mecénicas, gosto que vocés figurem na decoragio habitual, pois vocés séo ainda clardes vivos pelo prego das mies de famflia que encontramos nos passeios puiblicos. ‘Algumas fazem desse lugar seu quartel general: um amante, um trabalho, talveza esperanga de prender em sua armadilha uma caca que nio é exatamente a dos boulevards, enfim: alguma coisa que tem 0 sotaque do destino fixou-as nesses limites, Outras freqientam a Passagem apenas pela possibilidade do encontro: 0 écio, a curiosidade, 0 acaso... ou entio é um rapaz timido que teme ser visto com elas em pleno dia, ou ainda um devasso que tem aqui suas facilidades e vem examiner sua presa nesse canto trangiiilo, Com fre- qiiéneia, as mulheres com que cruzamos aqui vém pela primeira vez a esses reftigios cOmodos: entretanto no so provincianas, sentar-se a cada dia nos terragos vizinhos. Porém, adentrando essas abdbodas de vidro, 64 ganham a nogao de uma existéncia ¢ de todo um mun- do ¢ lé esto elas pouco a vontade. Falam entre si em voz baixa, riem um pouco alto e examinam cada coisa. No custam @ descobrir particularidades que as exci- tam e chocam. Geralmente andam em duas: isso torna a vida mais fécil, As novatas, somente, se equivocam em relagao a seus pares; mas as outras subem convidé: las sem erro para algum drinque que permita o arranjo de conhecimentos. Séo conversagées delicadas em que a presenca de uma outra mulher introduz um sentido de sociabilidade e polidez, até que a interessada mostre 0s dentes brilhantes ¢ fale com sorrisos a respeito de sua agenda e de suas mais secretas ciéncias. Ha ligacdes antigas que elegeram para seus encontros 0 Cera ou 0 Petit Grillon, Reconhecemos esses casos habituais: a mulher que espera tem um ar de reserva que néo engana, Chega depois ohomem, atarefado. Ele transpi- ra ainda sua vida social, ele tem uma posicao, uma pasta de documentos, a Légion d’honneur, ele se assegu: Ta, com a mio, de que sua barba esté penteada. As vezes ‘4 uma crianga com a mulher. Quanto aela, ndo perde por um instante sequer o sentido do mistério. Mas minha predilegio recai sobre as verdadeiras treqitentadoras. Podemos vélas sempre. Reencontra molas. Néo é necessério aproximarse delas. Com 0 tempo fazemos uma idéiade cada uma. Deum ano para outro quase nio mudam. Seguimos nelas a marcha das estagdes, a moda. Variam insensivelmente com o céu, como essas marionetes dos barémetros da Floresta Ne- gra que pdem um vestido arroxeado nos dias de chuva, A Gria que elas cantarolam muda também: nés a conhe- cemos sempre € mesmo a reconhecemos. Algumes se dispersam, outras envelhecem, A cada primavera reno: va-se um pouco seu contingente. 4s primeiras a chegar, de infcio temerosas ou ruidosas, acabam por se render a disciplina do mefotermo. Tapecaria humana e mével, 65 que se desfia ¢ refaz, Elas trazem ao mesmo tempo os mesmos chapéus ¢ as mesmas idéias, mas nio se furta. riam jamais, pelo modo de andar, de um sentido inde finivel de seus corpos, a no ser por alguns trejeitos canalhas que indicam, mais seguramente que tudo, a convivénciae a camaradagem com inferiores, um certo aviltamento aprazivel que me sobe imediatamente & imaginagio e me aquece o coragao. Em tudo aquilo que é baixo hé algo de maravilhoso que me dispde ao pra- zer. A essas damas, junta-se um certo gosto do perigo: seus olhos, cuja maquilagem fixou de uma vez por todas as olheiras e divinizou a fadiga, essas mfos que tudo, abominavelmente, revela espertas, um ar ine- briante da facilidade, uma zombaria atroz no tom, uma voz geralmente devassa, banelidades particuleres que conta a historia temerdria de uma vida, sinais traido- res de seus acidentes pressentidos, tudo nolas permite recear os perigos ignominiosos do amor, tudo nelas a0 mesmo tempo mostra-me o abismo e cause-me verti: gem, mas eu as perdoarla, com certeza, agora mesmo, por me consumirem. Sou como 0 vendedor de tecidos das Mil e Uma Noites: ele desposara uma jovem do paldcio ¢ depois de ter sido agoitado porque no lavava as mios antes de acericié-1a, sua propria mulher cortou Ihe os quatro polegares com uma navalha; mas ele considerou que isso era pouco ¢ jurowdhe lavar sempre as miios cento e vinte vezes, com dicali, cinza de Alcali esabao; depois comprou uma casa ¢ nela morou duran- te um ano com sua esposa. Um cabeleireiro e um barbeiro, um atrés do outro, seguem-se ao vendedor de selos: o primeiro, cabeleirei- ro para senhoras; 0 segundo, Saido para homens, Cabe- leireiros para os dois sexos, suas especializagdes sfio 66 saborosas. As leis do mundo inserevemse em letras brancas em suas vitrines. Bis af seus clientes: as feras, das florestas virgens, elas procuram suss poltronas fim de se preparar para o prazer e a propagac&o da espécie. Vocés estimulam os cabelos ¢ as faces, aparem as gartas ¢ afiam os rostos para a grande selecdo natu- ral. Rouxinéis roucos foram vistos em suas mortalhas ‘midas: antes de sentar, jogavam na pequena escarra- deira de areia seu charuto ornado de estrelas da noite, depois abandonavam-se as tescuras eantoras e a0 vapo- rizador magico. Quem o teria reconhecido, melodioso passaro, nesse paciente que Ié com negligencia as ecos de La Vie Parisienne?" Bu gostaria de saber que nostalgias, que cristaliza- Ges posticas, que castelos de areia, que construgdes de Iangor e esperancase arquitetam na cabegs do aprendiz no momento em que, no inicio da carreira, ele se cesti- naa ser cabeleireiro de mulheres, ¢ comega por cuider das mios. Invejével sorte vulgar, cle agora em diante ele desenlacaré ao longo de todo 0 dia 0 arcoiris do pudor das mulheres, as cabeleiras ligeiras, as cabeleirasva- por, essas cortinas encantadorasda alcova. Viverd nessa bruma do amor, os dedos fundidos a0 mais sutil da mulher, ao mais sutil aparelho de carfeias que ela traz sobre si com um completo ar de ignorélo. Haveré cabeleireiros que tenham imaginado, como mineiros na hulha, servir unicamente as morenas, outros lancar- se no louro? Teriam eles pensado decifrar essa rede que guardava, ainda agora, um pouco da desordem do sono? Sempre me detive no limiar dessas lojas proibi das.acshomense videsenrolarem:seos cabelosem suas, grutas. Serpentes, serpentes, vocés me fascinam sem- “pre. Assim, eu contemplava um dia na Passagem da Opera os caracéis lentos e puros de uma piton!’ de lourice. E bruscemente, pela primetra vez em minha vida, fui surpreendido pela idéia de que os homens er encontraram apenas um termo de comparagio para aquilo que 6 louro: como 0 trigo, e acreditam ter dito tudo. O trigo, seus infelizes, mas vocés nunca olharam para as samambaias? Durante um ano inteiro, mordi cabelos de samambaia. Conheci cabelos de resina, ca- belos de topazio, cabelos de histeria. Louro como a histeria, louro como o céu, louro como a fadige, louro como 0 beljo. Sobre a palhete das lourices, incluiret a elegincia dos automéveis, o odor dos sanfenos, o silén- cio das manhis, as perplexidades da espera, os destro cos das rogaduras, Como € louro o barulho da chuva, como é louro 0 canto dos espelhos! Do perfume das uvas a0 grito da coruja, das batidas do coragdo do assassino a florfémea™’ dos citisos, da mordida a can- Go, quantas lourices, quantas palpebras: lourice dos tetos, lourice dos ventos, lourice das mesas, ou das folhas de palmeira, ha dias inteiros de lourice, grandes magazines de Louro, gelerias para 0 desejo, arsenais de pé cordelaranja, Louro por toda parte: entrego-me a esse bosque de pinhos dos sentidos, a esse conceito da Iourice que nfo a prépria cor, mas uma espécie de espirito de cor, inteiramente casado com as nuances do amor. Do branco ao vermelho, pasando pelo amarelo, o louro nfo entrega seu mistério, O louro assemelhase 20 balbuciar da volipia, as piratarias dos labios, aos estremecimentos das Aguas limpidas. Olouraescapa ao que define, por uma espécie de caminho caprichosoem que encontro as flores ¢ as conchas. uma espécie de reflexo da mulher sobre as pedras, uma sombra para- doxal das caricias no ar, um sopro de derrote da razio, Louros como 0 reino do abrago, os cabelos se dissol- -viem, pois, na Loja da Pessagem, e eu me deixava mor- rer ha aproximadamente quinze minutos. Pareciame que teria podido passar minha vida no muito longe desse enxame de vespas, nfo longe desse rio de clardes Nesse lugar submarino, como no pensar naquelas 68 herofnas de cinema que, em busca de um anel perdido, encerram num escafandro toda sua América nacarada? Essa cabeleira estendida possuia a palider elétrica das tempestades, o desbotado de uma respiragio sobre 0 metal. Uma espécie de fera enfastiada que cochila no automével. Era espantoso que éla fizesse tanto barulho quanto pés desealgos sobre um tapete. O que ha de mais louro que a espuma? Sempre acreditei ver champanhe sobre o solo das florestas. Eos cogumelos! As orongas!"* As lebres que fogem! A meie-lua das unhas! A cor da madeira! A cor rosat O sangue das plantas! Os othos das corcas! A meméria: a meméria é verdadeiramente lou- ra, Nos seus confins, onde a lembranca s2 casa com @ mentira, 0s formosos cachos de claridade! A eabeleira morta teve de repente um reflexo de vinho do Porto: 0 cabeleireiro comecava as ondulacdes Marcel. Em liberdade na loja, grandes feras modernas es- preitavam a fémea do homem aprisionada pelo ferri- nho de frisar: 0 secador mecanico com seu pescoco de serpente, 0 tubo de raios violeta cujos clhos sio tao doces, o fumigador com halito de verdo, todos os ins- trumentos sorrateiros e prontos para morder, todos os escravos de ago que se revoltario um belo dia. Os simulacros da vitrine, nao direi mais nada’ a respeito dessas ceras que a moda despiu e marcou na carne da pulsacdo dos polegares. Mas onde, diabos, eu tinha encontrado essa mulher que agora passava as mios sobre seu penteado reformado? Por um instante avistei suas espfduas: uma teia de aranha ocultou-as. Depois foi a vez de os cabelos desaparecerem sob um grande _inseto marrom. Uma libélula voava buscando seu ali- ‘mento" um pouco abaixo da cintura, as -nios brinca- ‘vam com Iuvas de areia ¢ uma bolsa de mica acinzen- ¥ Ver Anicet ow te panorama, romance (nota de 1966). 69 a tada. Ela caminhava como se ri e, quando aleangou a porta, viseu pé preso numa armadilha de folhagem esua perna dourada, e pergunteime navamente: Mas quem poderia ser essa esponja? Entio a encantadora lourice, inclinandose para mim, disse: “Pois entéo voc8 j4 esqueceu, entretanto foi ontem mesmo: as folhagens nio murcharam, os lustres no percieram seu esplendor nem os cubsculos seu sombrio rubor. Quando apareci em meio as gargalhadas, era otempo do equinécio, tive apenas que me balangar um pouco ¢ a vaga de sombra subiu sobre os semblantes, e um mar dos bracos masculinos estendew-se em direcdo a Nand." — Nani exelamei, mas como voeé est na moda! — Sou, disse ela, a propria moda, e por mim tudo respira. Voc8 conhece os reirios da mode? Eles esto tio repletos de mim, que nao se pode canté-los, mas apenas murmurélos. Tudo o que vive de reflexos, tudo o que cintila, tudo 0 que perece a meus passos se apega. Sou Nané, a idéia de tempo. Voeé jé amou uma avalanche, meu caro? Apenas olhe minha pele. Embora imortal, tenho o ar de um desjejum de sol. Um fogo de palha que se quer tocar, Mas sobre essa pira perpétua, 6 0 incendiério que arde. O sol 6 meu cozinho. Ele me segue, como voc? pode ver”. Ela se distanciou em direcao & rue Chauchat e eu permanecila, pasmo, pois em lugar da sombra ela deixou ‘um xale de luz que a escoltava sobre o lajendo. Desapare- ceu no zumzum longinquo do Hotel des Ventes."° (© Hotel des Ventes deixa filtrar um pouco de suas paixdes no crivo da Passagern da Opera. Mas a obsessio esse lugar transforma os que escapam dela e é apenas entrando em tal antro que esses jogadores inquietos, esses perscrutadores fervorosos conservam sobre seus semblantes 0 reflexo flamejante dos lances de leildo: avancando por essas galerias encantadas eles se entregam as magias do lugar e tornam-se, por sua vez, homens. No 70 segundo cabeleireiro, porém, alguns dentre eles fazem, uma parada para melhor se livrar do tremor que os faria reconheciyeis. Com suas cabegas embebidas na logéo de Portugal,!’ suas faces entregues as lamins de Sheffield, ‘em que pensam nesse rol de madeira sombria? Os vidros foscos da vitrine enganam um pouco sobre a qualidade desse Salo, bastante severo, com o teto alto, mas menos moderno do que se espera. Nao é o barbeiro francés tradicional, que guarda a lembranga dos anos brilhantes do século passado sob as espécies de ornamentos intiteis, como aquele que encontraremos na outra galeria; tam- bém nfo € o barbeiro a americana que se estabeleceu em Paris ha menos de dez anos como um decalque do origi- nal, com todos os aperfeigoamentos bérbaros de uma cirungia erética; nem sequer é, ainda que o diga a placa, vestigio cle uma civilizago de nossa inféncia, 0 Peluque- ro, tal como é encontrado perto da igreja da Trinité, vindo para a Franga com o maxixe e 0 tango; € muito mais 0 sobrevivente dessa anglomania fora de moda que man- dava clarear sua roupa intima em Londres, 0 Lavatory de aspecto protestante que nao nos parece mais inglés, hoje, do que nos parecia chinesa certa poreelara de Sévres do século xvitt, Que contraste com a loja vizirhal Aqui, nada de cortinadios de veludo azul, nada de caixa enigmética. Bm lugardeostenter, como aprecedente, um aventureiro nome de Opera, Norma, que é como uma varanda sobre vinhas, a casa recomenda-se a si mesma com os patréni- mos de sete cabeleireiros: ‘VINCENT PIERRE HAMBI. ERNEST ADRIEN AMEDEE (CHARLES nm Barbeiros corretos e pouco voluptuosos. S40 como sua loja de madeira sombria e vidros. Barbeiam bem. Cortam os cabelos e pronto. Isso é tudo por hoje. £ que eles so de uma escola em que se tomava o barbeiro por uma ferramenta de preciséo: nao entra nenhuma hu- manidade em seus métodos. Num pafs em que se de- clara abominavel 0 ensaboamento das faces com as maos, tal como se pratica na Alemanha, para preferir a ele a manobra antiga do pincel de barbs, é claro que tais barbeiros puritanos, mesmo a dois passos dos san- ‘tudrios da sensualidade, cheguem a manter uma tradi- gio de secura anglo-sax6nica. Foi sobretudo nos peque- nos barbeiros dos bairros periféricos, em Auteil, e mesmo em Ternes, que encontrei os praticos sentimen- tais, capazes de atribuir aos cuidados da barba e dos cabelos uma espécie de paixéo néo profissional e de revelar, através de repentinas delicadezas inesperadas, uma ciéncia anatémica instintiva que me explica ver- dadeiramente a expresso artista capilar, que hoje tem somente aplicagées irénicas. & para mim motivo de surpresa sempre renovada ver com que desdém, com que indiferengs pelos pré- prios prazeres os homens negligenciam & possibilidade de estender seus dominios. Eles me causam a impres- sio dessas pessoas que lavam as maos e os rostos, acreditando dever limitar em si préprios as zonas da voliipia. Se alguns deles experimentam os encantos do caso, néo os vemos preocupando-se em reproduzi-los. Nenhum sistema, nenhuma tentativa de codificagio do prazer. Nao dé para compreender como eles ainda so suscetivels, de tempos em tempos, aquilo que chamam tdo singularmente de vicios. Nao tratam de seu couro cabeludo e seus barbetros perdem negligentemente a ocasiao de proporcionar a esses ignorantes prazeres ‘ue Ihes seria to ffcil conceder. Néo creio que jamais se tenha ensinado essa geografia do prazer que seria, R na vida, uma singular resposta contra o tédio, Ninguém se ocupou com estabelecer os limites do frisson, os dominios da caricia, a prética da volipia. Localizacdes grosseiras, efs tudo o que o homem tirow da experiéncia individual. Talvez.um dia os sébios partilhario entre si © corpo humano para nele estudar os mneandros do prazer: achardo esse estudo to digno quento qualquer outro de absorver a atividade de um homem. Publica- rio seu atlas, cuja leitura atenta seré preciso recomen- dar aos jovens cabeleireiros. Af eles aprenderioa deixar vagar seus dedos sobre os crénios: aprenderao a fazé-los demorar na altura do lambda," onde o prazer atinge seu pice, ¢ a retirélos de repente em diregdo as esce mas, onde reinos nervosos, sob a influéncia da massa gem, iniciam bruscamente uma danca, enviando curio- sos impulsos rumo as orelhas e as regides vizinhas do pescoco. Sem falar do rosto: que eles aprendam apenas a fazer tremer os miisculos das asas do nariz.e jé pode- rio passar por massageadores sutis. A psicologia, essa velhinha gag,” que nos barbeiros quase que s6 se trai pelos nomes dos perfumes, pelas tinturas e pelo romantismo dos penteados (conhego, na ‘rue du Débareadére, um desses comerciantes que pro- pBe 0 penteado Alberto 1 rei dos Belgas, o penteado Joffre, etc.), hé muito tempo jé nfo tem segredos para 6s alfaiates. Assim é que no fim da galeria do Terméme- tro encontramos Vodable, que atrai os clientes intitu- landose: Alfaiate mundano. Ele vende também malase, como diz: All travelling requisities. Nao posso deixar de pensar que era aqui que Landru,"® experimentador sensivel, se fazia vestir, provando seus temos em meio “as bagagens expostas, bem como tantos outros simbo- Jos misterlosos de seu destino. Desse homem euja cabe- ‘Variante de mexeriqueira, 8 a foi cortada, sei que ele tinha em casa a mascara de Beethoven e as obras de Alfred de Musset, que ele oferecia a suas amigas de encontro um biscoito e um dedinho de Madeira, que ele portava as condecoracies académicas. Curiosa confluéneia de todo um mundo. Parece.-me que esse ponto preciso da galeria em que me encontro tem parentesco, exatamente, com esse ho- mem e seus acess6rios. E penso com pesar que ndo existe no supremo tribunal de justica um programa em. que se possa escrever em itélico: Na corte, como na cidade sr, LANDRU 6 vestido pelo ALFAIATE MUNDANO Mas palavra que, para cada Landru morto, af esto ez desconhecidos encontrados. Séo os clientes do al- faiate: vejo-os desfilarem como se eu fosse um desses aparelhos registradores em marcha lenta que fotogra fam 0 gracioso desenvolvimento das plantas. Nao s30 todos Dons Juans de Paris, mas uma espécie de vinculo que Ihes advém dos ternos revel neles um mistério comum. Aventureiros sentimentais, trapaceiros sonha- dores, no mfnimo prestidigitadores de sonhos, eles vém buscar aqui os elementos de sua ilusio natural. ‘Nada revelaré essas atividades paradoxais que eles p seguem. mais por gosto que por necessidade, ou sem diivida, por gosto e necessidade misturados. Por muito tempo, talvex sempre, exercerdo suas faculdades ima- ginativas nas vias empfricas, por ocasiio de fatos parti- culares ¢ pitorescos. Um acidente, um dia, pode entre- gé:los. Porém mais freaiientemente eu 05 suponho adentrando pouco a pouco numa velhice equfvoca, com a pilhagem das lembrangas. Estranhas vidas insus. peitas que guardam para si mesmas mil relatos cheios de sabor. Hoje o homem nfo vaga mais As margens dos ™ piintanos com seus cies e seu arco: ha outras solidées que se abriram para seu instinto de liberdade. Terrenos baldios intelectuais em que o individuo escapa as sujei- des socials. La vive um povo igmorado, que pouco se preocupa com suas lendas. Vejo suas casas de campo, seus laboratérios de prazer, suas bagagens deméo, suas ruas, suas armadilhas, seus divertimentos. No nivel da grafica que faz cartes de visita ins tantaneos, bem abaixo da escadinha que desce para a rue Chauchat, nesse extremo ponto do mistério em direcdo ao setentrido, 14 onde a gruta se abre no fundo de uma abertura agitada pelas idas @ vindas dos carregadores e entregadores, no limite das duas luzes que opéem a realidade exterior ao subjetivismo da Passagem, como um homem que se sustenta na beira de seus abismos, solicitado igualmente pelas corren- tes dos objetos e pelos turbilhies de si mesmo, nessa zona estranha em que tudo é lapso, lapso da atengdo e da desatengfo, paremos um pouco para experimen- tar essa vertigem. A dtibia flusdo que nos mantém aqui confronta-se com nosso desejo de conhecimento absoluto. Aqui os dois grandes movimentos do espi- rito se equivalem e as interpretagSes do mundo per- dem seu poder sobre mim. Dois universos se desco- lorem em seu ponto de encontro; como uma mulher adornada com todas as magias do amor quando a madrugada, tendo levantado sua saa de cortina, pe- netra docemente no quarto, Por um instante, a balan- ca pende para o golfo heteréclito das aparéncias. Extravagante atrativo dessas disposicdes arbitrérias: eis alguém que atravessa a rua ¢ 0 espago em volta dele € sélido, ha um piano sobre a caleada e carros sentados sob os cocheiros. Desigualdade do tamanho dos passantes, desigualdade do humor da matéria, tudo muda segundo as leis da divergéncia e surpreen- do-me grandemente com a imaginago de Deus: ima- 6 ginagio afeita a variacdes infimas e discordantes, como se o grande negécio fosse aproximar, um dia, uma laranja e um barbante, uma parede e um olher, Dirfamos que para Deus 0 mundo no passa da oca- sido de alguns rabiscos de naturezas mortas. Hé dois ou trés pequenos truques que ele n&o cansa de em- pregar: 0 absurdo, a balbirdia, 0 banal ... ndo hé meios de livré-lo disso. Se desvio alternativamente os olhos dessa encru- zilhada sentimental para a regiéo de desordem ¢ a grande galeria iluminada por meus instintos, a vista de uma ow outra dessas pinturas prestidigitadoras, nao experimento o menor esboco de esperanga. Sinto estremecer 0 solo ¢ encontro-me de repente como um merinheiro a bordo de um castelo em rufnas. Tudo significa destrogo. Tudo se destréi sob minha contem- plagio. O sentimento da inutilidade ests agachado meu lado sobre o primeiro degrau. Esté vestido como eu, mas com mais nobreza. Nao carrega lenco. Ble tem ume expresso de infinito sobre o rosto ¢ nas méos um acordedo azul aberto que jamais toca, e no qual se 18: PESSIMISMO. Passe-me esse pedaco de azul, meu caro Sentimento do intitil: sua cangao agradaria meus ouvidos. Quando junto os foles, véem-se apenas as consoantes: PssMsM Bu os separo e eis 0s Pssinisi € as outras vogais: PessinisMO 6 Ea coisa geme da esquerda para a direita: BSSIMISMO ~— PSSIMISMO — PESSINISMO — PESSIMISMO — PESSMISMO — PESSIIISMO — PESSIMSMO — PESSIMIMO ~ PESSIMISO — PESSIMISM — PESSIMISMO PESSIMISMO ‘A onda atinge a praia com um estrondo birbaro. retoma o caminho de volta PESSIMISMO — PESSIMISM — PESSINS PESSIMI — PESSIM ~ PESSI PESS ~ Pes —PE—P~p..., mais nada A menos que esteja balancando pré li e pré cé com © pé nas mfios, um pouco teatral e vulgar, o cachimbo caido e a boina cobrindo a orelha, ele esta cantando, creio: Ah, se vocés conhecessem a vida dos earamujos da Borgonha... bem no alto dos degraus, em meio a poeira © pontas de cigarro, esse encantador mocinho, o Senti- mento do inttil Voltomme sobre meus passos: a luz novamente se decompée através do prisma da imaginacio, resigno- me com esse universo colorido pelas cores do arco‘ris O que voeé ia fazer, meu amigo, nos confins da realida- de? Bis af seu reino de sal f6ssil, suas estrelas-do-mer e suas famosas Jazidas. Voc bem sabe, gracejo anédino, * que vocé é o Aladim do Mundo Ocidental. Nao sairé Jamais dessa grande nédoa de cor que vocé arrasta no fundo das retinas. Que debate ridfculo, uma chama no fogo. Vocé niio deixard seu navio de iluses, sua casa de 7 praia de papoulas com formoso teto de plumas. Seus carcereiros de othos passam e passam de novo agitando feixes de reflexos. f em vao que, cavando ha vintee seis anos com wm pedago de taziio quebrada, um subterra- neo que parte de seu colehdo de palha, vocé acredita chegar a> bordas do mar. Sua meméria se bre para uma masmorra eterna. LA vocé encontraré sempre as mesmas flores, as mesmas florestas de cabelos, os mes- mos desastres de caricias. Em sua Tebaida, os ledes deitados so clardes de amnésia e 05 fantasmas! os fantasmas nacarados tém o ar de rezar e apagamse. Escravo de um frisson, apaixonado por um murmtitio, niio cessei de decair nesse crepiisculo da sensualidade, ‘Um pouco mais impalpével, um pouco menos apreen- sivel.. a cada dia perco mais meus proprios contornos e enfim desejo tao pouco que me compreendam, e no compreendo mais nem o vento nem o céu nem as menores cangSes nem a bondade nem os olhares. assim, Bee’s polish © aptérix,”” que deslizo, gracas a minha desatengiio, ao longo da vitrine do engraxate, do outro lado da escada de safda pera a rue Chauchat e, voltando em diregio aos boulevards, atravesso a minha direita a abertura do primeiro corredor que retine 0 fundo das duas galerias da Passagem, sem desaparecer nesses negros vernizes que levam ao Teatro Moderno. Diante do alfaiate e dos sales dos cabeleireiros, apenas uum andar de gala que pertence ao restaurante Arrigont, com garrafas italianas de longos pescocos, corseletes de palha, quadro colorido de um banquete memorével em lugar de honra, separa desse corredor o estabelecimen- to de Banhos cor de queijo branco. Hé uma ligacdo bem forte, no espirito dos homens, entre os Banhos ¢ a voliipia: essa idéia antiga contribui para o mistério desses estabelecimentos pttblicos em que muitos nao se arriscariam, de tal forma é grande a superstigao das enfermidades contagiosas e generaliza- 78 daa crenca de que as banheiras, aqui prostituidas, so perigosas sereias para o visitante que se entrega a seu esmalte leproso, a sua folha-de-flandres maculada. As- sim esses templos de um culto equivoco tem um ar de bordel e de lugares de magia. Nada permite ao passante inexperiente assegurar-se, por algum detalhe de arqui- tetura, da desconfianga que ele tem da irregularidade de um tal edificio, Banrios— diz simplesmentea fachada ~ e essa palavra oculta uma gama indefinida de indi cios veridicos, todos os prazeres ¢ todas as maldicées do corpo mas, quem sabe? Palvez em seu abrigo encon: tre-se apenas a agua prometida, clara e murmurante. Ha uma grande tentacao no desconhecido e, no perigo, uma maior ainda. A sociedade moderne leva pouco em conta os instintos do individuo: ela eré suprimir um e outro € sem diivida o desconhecido nio existe mais nesse clima, a no ser para aqueles cujo coracio facil- mente se inebria. Quanto ao perigo, vejam como tudo, acada dia, se torna inofensivo, Hé, entretento, no amor, em todo amor, seja ele firia fisica, ou espectro, ou genio de diamante que me murmura um nome semelhante a0 vigor, hé, entretanto, no amor um prinefpio fora da lei, um sentidg irreprimivel do delito, o desprezo da proibicdo e 0 gosto da pilhagem. Vocé pode querer estabelecer sempre para essa paixiio de cem cabecas os limites de sua morada, ou simular palécios para ela: enttio ela pretenderd surgir em outro luger, sempre em, outro lugar, onde nada fazia com que « esperassem, onde seu esplendor 6 uma fiiria, Que ela cresga onde ningyém a semeou, como a vulgaridade Ihe causa con- vulsdes! Ela tem bruscos sobressaltos de ignominia. Ha possuidos dominados pela Obsesso da rua: somente nela experimentam o poder de sua natureza, Vocés ja devem ter encontrado esses homens sombrios no cora- G0 das multid6es, essas mulheres loucas na primeira classe da Norte-Sul, por volta das einco horas. Quantas 0 ‘vezes perceberam uma alianca no dedo da viajante? Entretanto nada, ela no buscava nada além desse desregramento passageiro. O céu humano tem seus relfimpagos, que ndo podemos seguir. Compensacdes ouvertigens, o que se trama assim nessas extravagantes cleptomantacas da volipia? Eu as aprovo, esposas que imagino aparentemente felizes, por ter a alma altiva o bastante para nfo se contentar com sua sorte. A cami- niho, em busca do infinito! La estéo elas no cinema, completamente extraviadas na sombra, ou entéo nos séis giratérios dos carrosséis das quermesses, o vestido levantado como um desafio. Estéo em busca de si mes- mas, na cruzada do desejo: sera que entregarfo esse témulo, seu coragio? Aqui esté o que o caréter errante da incerteza forgosamente provoca: no instantede uma manobra, um passante pode alternadamente crerse enfim escothido ou, ainda, ser enganado pela imagina- cdo, Outra se compraz, sem prestar muita atencio, em cobicar um homem que néo a vé, em se enganar com uma esperanga croscente, até o cumprimento polido, que tem 0 gosto das magis verdes, quando ent&o ela gritaria. Outra conduz a caga com uma resolucio negra ede repente uma grande tempestade cresce entre cla e sua vitima, nada pode deter essa tormenta adoravel, tudo precipita esse duplo furor. f ent&o que, rogando quase de alto a baixo o corpo que ela atrai, com uma exaltagio selvagem, por um suicidio desumano, com ‘uma tinica retragio ela se recusa e torase una pedra, uma pedra. E além disso uma pedra tdo ria, impassivel diante de todas as solicitages, seu ser inteiro se aban- dona, mas nada trairia que ela se dé conta disso. Nada, nem sequer um labiotrémulo. Depois ela partecom um passo mecfnico, Era provavelmente uma morta, meu caro. ‘Nos Banhos, uma derivacdo bem diferente de hu- mor inclina aos devaneios perigosos. Um duplo senti- 80 mento mitico que nada exprime e que se produz: ini- cialmente, a intimidade no corac&o de um lugar pitbli- co, contraste poderoso para quem o tenhasentido uma verse esse gosto de confusdo que é proprio dossentidos, que 08 leva a desviar cada objeto de seu uso, a perver- to, como se diz, Nao é fécil desenredar a trama que ‘omega aqui: que vontade arrebata primeiro o cliente dos estabelecimentos hidroterapicos? Despir-se, sob qualquer pretexto, pode ser um ato-sintoma, Ou uma simples imprudéncia. Parece que um homem habitua- do a se ver sempre de terno e gravata, ao contemplar seu corpo em pleno dia, expde-se ao risco diferentemen- te aprecidvel de néo poder resistir a inclineco de exer- cité-lo no prazer. Os Banhos aparecem, assim, como o lugar eleito dos comércios fisicos e, mais ainda, da aventura improvéivel de um verdadeiro amor. Como essa ultima hipétese ¢ absurdal Entretantoela me intri- ga. O amor & primeira vista numa banheira: vocés podem rir, mas no sabem do qué. Toda a lasctvia do mundo se esvai assim totalmente, seguindo o assincro- nismo dos desejos. Possibilidade de encontro atroz- mente limitada é quando estou sé em meu quarto, quando durmo, quando corro com toda velocidade, que uma aparicgo deveria se impor para todo meu ser. Oh minha liberdade, como me aprisionam em teu nome. Enfim, tais lugares sio to calmos, dirfamos um outro pafs, alguma civilizacdo longinqua, ah, nfio me falem das viagens. £ preciso nao ter nenhuma inclina- Go a0 frenesi para entrar nos Banhos sem de repente persuadirse de que se entra em pleno enigma! Mas ha no mundo tlio pouca fé nas aspiragdes humanas, so $40 bem conhecidos os limites de toda depravacio, 0 medo universal de se comprometer, a resignagio ma- quinal a felicidade, a rotina (tinica mulher que hoje usa espartilho) que — para meu grande pesar, contesso, perguntome se eu néo faria melhor esgueirando-me ar para uma regido mais de acordo com a mobilidade de minha netureza. Sonho com um povo terno € cruel, com tim povo gato apaixonado por suas garras e sem pre pronto a fazer revirar seus olhos e seus escrdpulos, sonbo com um povo mutével como a ondulagio dos chamalotes e sempre excitado pelo amor — mas nin- guém mais quer propor para nosso écio avido os diver- timentos que ele nfio ousa requerer. Dai esse escdndalo: em Paris diversos estabelecimentos de banhos nao se intitulam assim por eufemismo, Lavam-se neles, como comem em outro lugar. F tal é a decadéncia dos costu- mes nessa cidade, tendo a sensualidadenela se tornado tho indolente, o sentimento do absoluto tio estranha- mente igual para a maioria dos homens, que quase unicamente os pederastas, ainda aturdidos pela tole- réncia nova que encontram e rotineiramente acostu- mados A asticia ea tirania, aproveitam hoje o equivoco dos Banhos. Podem-se contar nos dedos as casas de encontros balnedrios que Ihes escapam complemente. ‘Os gerentes reclamam, a clientela néo vern. Que que rem eles, se esses senhores ¢ senhoras negligenciam um pouco seus desejos? Até os vinte anos, tudo bem. Depois, esta acabado: a curiosidade, o mistério, a tenta cdo, a vertigem, a aventura, tudo acabado, acabado... Eles fazem gindstica para permanecer magros, nfio se ‘pode pedirhes que facam algo para conservar a cor da vida e 0 rubor das faces: exercicios de amor, apés os -vinte anos, nem pensar. Bles aprenderam sua ocupacéo de uma vez por todas. Tém uma técnica e nao a deixa- ro: vocé pega a mulher em seus bracos e Ihe diz... enti, ela cai sobre 0 sofé e exclama: Oh, Charles! Basta ver isso nos filmes bem feitos. Por acaso mostrase neles, alguma vez, uma mulher que acaba de perceber, muda, alguém andando diretamente para ela, com os olhos provocadores, levando de repente a mio as calgas do homem? Tais filmes néo teriam nenhum sucesso, 82 eles dependeriam demais da ficgao. E aquilo que recla- mamos com grande algazarra 6, nfilo duvidem, reslida- des, REALIDADES: As Realidades Fanuta Era uma vez wna reatidade Com seus carneiros de 1a reat CO fitho do rei veio para passar Os carneiros balem que ela é bela A reaa rea areatidade Fra uma vez numa noite Uma realidade que ndo conseguia dermir Entto a fada sua madrinha Tomou-a realmente pela mao A rea.area.arealidade Era uma vez sobre seu trono Um vetho rei que se entediava Seu manto pela noite escorregava Entio deram-the por rainka Areaa rea. realidade CODA: Idade idade a rea Idade idade a vealidade . Areaarea Dade dade A rea Li Dade A realidade Era uma vez 4 REALIDADE”! 5 ‘Mas entremos nos Banhos da Passagem da Opera com um espirito positive. B uma pequena Kodak. £ contrario verossimilhanca imaginar que esse lugar sirva para outra coisa além dos cuidados da higiene. Ele & pouco freqiientado, mas honoravelmente. A loja é inteiramente ocupada pelos primeiros degraus de uma escadaria de madeira marrom que se embrenha pelo subsolo. £m cima da escada, diante do corredor, hé urn magnifico quadro de flores e sobre o lado direito um retrato de mulher do mesmo pintor que tem, em cada um dos lados, duas gravuras roménticas: uma, a0 fun- do, representando um homem que conduz tréscavalos;, outra, em diregio a porta, representando Mazeppa per- seguidio pelos lobos. C4 entre nés, os olhos dos lobos so bem brilhantes e se eu insistisse, perceberia af algum simbolo. A escada, depois de um patamar imponente, choga a um subsolo constituido por dues grandes pe- as; a primeira é mais larga, a segunda, de onde sai um Iongo corredor em direc&o aos boulevards, fica abaixo do restaurante Sauinier. Sobre 0 primeiro e o segundo cOmodos, abrem-se algumas cabines de benhos que parecem as mais luxuosas, com canapé e mesa de toa- Jete, Um grande ntimero de armérios nas paredes com- plotam a decoragio. Esse lugar, repleto de portas ¢ revestimentos de madeira, que s6 vé a claridade devido a0 teto de vidro fosco, & bastante empocirado ¢ solene. Mediocremente iluminado, ele me levaria ao devaneio se eu nao tivesse tomado sébias resolugées. & sem comentarios que assinalarei 0 fato de que todas as cabines do lado direito do corredor, ao contréio desse, tém uma porta que sé fecha por dentro, dando sobre uma Gnica e imensa sala em que dormem diversos aparethos de duchas. Conseqiientemente.,.. se imagi- narmos dois clientes deixando suas banheiras para se refrescar nessa morada de sombra, cles se encontrario sem que ninguém saiba. Nao ha nada de mais misterio- 84 0 af que esses estranhos pequenos postigos que fazem comunicar, acima das banheiras, duas cabines viai- nhas, em muitos estabelecimentos parisienses (rue Fon: taine, rue Cardinet, rue Cambacérés, etc.). Nao se pode dizer que o arquiteto tenha previsto 0 uso que deveriam tazer de sua obra: sera que 0 engenheiro que erguett os planos da ponte Solférino podia suspeitar da libertina- gem que seus arcos abrigariam um dia? NZohénenhuma perversidade no coracdo ingénuo dos arquitetos. Aligs, vejo para que serve esse subsolo, na verdade: 6 um laborat6rio de calorimetria, Os empregados, casal de distintos fisicos, disfargados, mergulham os sujeitos benévolos em seus calorimetros ¢ entregam-se a céleu- los intrigantes sobre a degradacio da energia. Eles esperam surpreender, um belo dia, 0 prircipio de Car- not numa felha. Enquanto esperam, ele permanece boquiaberto, ele 1é romances policiais. LUis! JA vou, ja vou! quem me chama? Lé fora o vaivém prossegue. Ninguém de meu conhecimento... eh, sim, 0 desejo de ver meu nome, tio pouco empregado pelos que me cercam, impresso em letras capitais de alguma importaneia, Diante de mim se estende um grande espago desértico, uma espécie de prado repousante, palavra de honra que € o restaurante Saulnier. Ele vai, incluindo o térreo e a sobreloja, dos Banhos até o corre- dor transversal que desemboca defronte 4 porta do ‘meublé. Verdadeira bencio do céu, esse restaurante. Nao tenho absolutamente nenhuma critica efazer dele, mesmo tendo jantado cem vezes|é. Ali é que as grandes querelas do movimento Dada — vocés conhecem 0 movimento Dada? — faziam relativa trégua para permi- 85 tir aos combatentes que hé duas horas defendiam sua reputagdo no Certa, encontrar num sortimento de frios* um testemunho de alta moralidade, haute coutu- ‘re, como diz. o Antifilésofo dentre eles. Havia entao um tribunal de Salvac&o Dadé e nada deixava prever que, 20 Terror, sucederia um dia 0 Diretério, com seus jogos, seus incroyables” e suas casacas com fendas laterais. £ uma gentalha que vern comer af. Por onde devem entrar, por onde devem sair, o destino de cada um é indicado por flechas e mos apontando o caminho. Boa sorte, criancast ‘Um certo café Biard, que faz face a livraria Rey, bene- ficia da claridede que o atinge por trés fontes de luz diferentes: a galeria do Termometro, o boulevard dos Italia- nos e, finalmente, 0 corredor de que ja falei. Sala co alco, sala posterior, com suas portas miiltiplas, seus vidros quelamentam serapreo café de dois tostées, 0 golpe do americano™ das épocas desaparecidas, com suas pi- lastras e seus espelhos, voeés constituem um formoso palicio de reflexos que se assemelha a tudo 0 que sabe- mos, sonhadores da Europa, sobre a América longingua ce suas sangrentas epopéias. Voc8s so o cenario do crime que se oculta, do atentado projetado, da perseguicioe da armadilha, & em suas perspectivas rompidas que se de- senlagaré todo 0 ridfeulo de uma vida, o grande segredo desses inadaptados Ifricos que fazem nervosamente rir a burguesia na sombra. Eo amor, 0 amor nesse café, que comodidade estranha ele teria afl nesse café em que tudo esté arranjado para os olhares. Falso dia etimplice das exaltagdes verdadeiras: nesse local aventureiro, ainda um conflito de luzes. Oh Deus do inferno, por queos guindas- tes ociosos acariciam assim, cantarolando, 0 mérmore rachado das mesas? 86 Agaleria do Barémetro, como um buraco de toupei- ram meio ao terrao rejeitado, desembocano boulevard dos Htalianos ao pé da vitrine da livraria Flammarion, a alguma distancia do terraco da Taverna Pousset, Umm palhago mantém-se ai batendo perpetuamente com a bengala sobre um cartaz do Teatro Moderno, Baforadas de shimmy" misturam-se a seu discurso, atraindo os olhares em direeio ao comerciante de miisica que se percebe a esquerda, todo atapetado de edicdes Salabert. Os curiosos gostam de se deter aqui, divididos entre as palavras desse senhor elegante e entendiado que pro- mete mundos e fundos para o segundo ato e essa loja em que se vé uma mulher loura encetar ao piano a moda e suas cangées. ‘Como agrada ao homem manter-se no limiar das portas da imaginagdo! Esse prisioneiro sinda gostaria tanto de se evadir, mas hesita no portal das possibilida- des, tem medo de ja conhecer esse corredor que recon- duz a sua casamata, Ensinaram-lhe o mecanismo do encadeamento das idéias e o infeliz, acreditou ter suas idéias encadeadas. Para sua razdo, para seu delirio, ele dé razées delirantes. Meditou o sofisma de Kant: Se 0 cindbrio fosse ora vermelho, ora negro, orwieve, ora pesa- do; se 0 homem se transformasse ora num animal, ora ‘outro; se num longo dia a terra fosse coberta ora de frutos, ora de gelo eneve, minha imaginacde emptrica ndo ‘encontraria a ocasido de recever, no pensamento, o pesado cindbrio com a representagéo da cor vermeiha; ou se wma certa palavra fosse airibuida ora auma.coisa ora a outra, ‘owainda sea mesma coisa.fosse chamada oradeum nome, ora de outro, sem que Rouvesse nenhuma regra & qual os fendmenos fossem jé submetides por simesmos, nenkuma sintese empirica da imaginagdo poderia acontecer. E 0 homem duvida, pois néo gosta das petigées de princt- pios, e vé onde o pequeno Emmanuel quer chegar com suas palavras encantadas, e percebe a falha dessa em- 87 preitada intelectual e diz a si mesmo que querem enga: nélo com as mulheres nuas do harém no segundo ato prometido, com essa miisiea sentimental e vulgar e, ‘quanto Adama, antes de mais nada, seus belos cabelos sio tingidos, Mosquito, saia! Vocé toma os pantanos por terra firme, Portanto vocé jamais se enterraré ne arcia movedigal & que vocd néo conhece a forga infinita do irreal. Sua imaginac&o, meu caro, vale mais do que voce imagina. (0 HOMEM CONVERSA. COM SUAS FACULDADES Sainete A SENSIBILIDADE, ao homem — Seu rosto esté bem entristecido hoje, vocé teria tido algum encontro desa- gradavel no vale? Ou teria sido um ursinho maldoso que marcou encontro com voe8 para essa noite? AVONTADE, levantando uma garrafa de champanhe ~ Nunca mais ele iré de noite 4 montanha (com wm ar rresoluto), Se ele for, vou com ele. AINTRLIGENCIA, endtreltando-se de repente — Mas © eu? Também vou, vocé sabe muito bem que fico com a tropa enquanto o homem caca camureas e ursos. © HOMEM, sorrindo com wm ar melancélico — Ora vamos, para acabar com esse debate, nao sairei durante © dia. O conhecimento, pobre aflito! Desde que néo 0 amo mais ele nao detra seu leito e talvez tivesse mesmo Geixado de viver, nao fossem os cuidados e prescri¢des Gesse bravo ¢ digno médico estrangeiro que mora na casa isolada, A SBNSIDIMIDADE — Ah sim, aquela casa nas alturas, que foi construida com as letras de uma frase antiga, longa demais para minha memaéria. AINTBLIGANCIA— “Voc? nao sabe que acontece aos amantes quando eles véer uma lira, uma roupa, ou 88 algum outro objeto do qual seus amores tém o costume de se servir? £ reconhecendo essa lira que eles recolo- cam no pensamento a imagem da pessoa a quem ela pertencou ... como quando vendo Simias, lembramo- nos de Cebes" ‘A SENSIBILIDADE ~ f precisamente isso. AVONTADE — Nao gosto desse seu médico; a cada vez que vem aqui, causa-me medo. AINTELIGENCIA — E também para que servem seus grandes bigodes, seu barrete de pele, seu rosto magro @ pouco amével e sua grande sobrecasaca forrada? Nun- ca vi ninguém vestido assim, © Hoem — £ um estrangeiro. AVONTADE — Quanto & mim, descontio dos estran- geiros. Dizem que eles comem ou carregam crianci nhas A SBNSIBILIDADE — Imbecill E todos aqueles que to: mam 0 homem por guia, sob as cascatas, sobre as geleiras, ao longo das torrentes? O Amor, a Mentira, 0 Sonho, algumn desses belos estrangeiros mascarados € ricamente vestidos alguma vex. jé comeu ou carregou. seu guia? AVONTADE—~Ora, no 6a mesme coisa! Conhecemos os paises desses af. Mas esse senhor 6 um estrangeiro de outra espécie: IMAGINAGAO, isso nfo é um nome cristo? 0 HomEM — Néo € 0 nome que inquieta vacés. Esse novo habitante s6 nos faz o bem. E quando se tem 0 bem, por que se perguntar de onde ele vem? ASENSIBILIDADE — Ignoramos sua profiss&o, é verda- de. Entretanto, desde que o conhecimento est doente, vele é quem cuida dele, fornece todas as droges e ainda no pediu nada. A INTELIGENCIA — Que malicial Ele espera que o homem tenha matado um bom urso para contar suas memérias, 89 AVONTADE — Ora, devem ser formosas, suas memé- rias! Vio nos amedrontar tanto quanto sua cara. E depois ele diz que néo gosta dos menininhos, que eles tagarelam muito ¢ também que ele 56 esté contente quando se acha 56. OWOMEM — Maledicéncia, maledieéncia. A imagine- ¢40 6 um excelente senhor, benfeitor e humano, A SENSIBILIDADE — Voc# est certo disso, mas esse estrangeiro chegou do vale numa noite de tempestade eninguém 0 conhecia. AVONTADE — Sim, ele caiu entre nés como uma pipa perdida. oO Homes — Falatério imttil AINTELIGENCIA — Jé escutei outros como esse! OHOMEM ~ Vejamos. AINTELIGENCIA — Esse senhor. ASENSIBILIDADE — Talvez seja um grande criminoso que se refugiou em nosso vale para melhor se esconder. (OHOMEM — Um criminoso! Muito bem, mas 0 que é um criminoso? O que voc8 pensa do relampago, 6 minha cara sensibilidade, 0 que vocé pensa dessa flor selvagem e brilhante com que as montanhas ornam as vezes seus cabelos? O relampago é um criminoso ou uma divindade benfeitora? Digame ainda vocé, inteli géncia, o que pensa da imaginacéo. AINTELIGENCIA — No gosto da incerteza. Nesse instante aparece A IMAGINAGAO, tal como a inte ligéncia a descrevera ~ é um velho alto e magro, com seus bigodes & Habsbourg, uma longa sobrecasaca forrada e ‘um barrete de pele. Seu rosto é animado por tiques nervo sos; quando fala, faz 0 gesto de segurar os adornos imagi- nérios de um interlocutor invisivel; traz sob 0 braco Au 125, Boulevard Saint-Germain, de Benjamin Péret. Uma inica coisa parece verdadeiramente extravagant nele: é que ania com um patim de rodinhas no pé esquerdo, 90 colocando 0 direito diretamente na terra, Ad‘anta-se em direcdo ao homeme the diz: DISCURSO DA IMAGINACAO, Guerra é guerra, Vooés todos, com esse costume de resignarse a propria sorte, vocés nfo me levaram em. conta. De uma ilusio a outra, vooés recsem incessante mente a mercé da iluséo Realidade. Entretanto fui eu que Ihes dei tudo: a cor azul do céu, as Pirdmides, os automéveis. Por que voces perdem a esperanca em minha lanterna magica? Eu lhes reservo uma infinida- de de surpresas infinitas. Do poder do espirito — como eu disse em 1819 aos estudantes da Alemanha — tudo se pode esperar. Vejam como puras criagées quiméricas Jé 0s tornaram mestres de si préprios. Eu inventei a meméria, a escritura, o célculo infinitesimal. Hé ainda descobertas primeiras de que nem sequer suspeitam, que fardo o homem diferente de sua imagem, como a fala o distingue em sua grande embriaguez das criatu- ras mudas que o rodeiam. Por que vocés resmungam tanto? Nao se trata aqui de progresso. Eu nfo passo de um vendedor de coco, ¢ minha neve para vocés é mana celeste; reconhhecam nela, passando da lembranca a0 método experimental, a excitagio da mirage.” Tudo depende da imaginac&o e a imaginacéo tedo revela. Parece que o telefone é itil. Ndo creiam nisso. Antes vejam o homem em seus aparelhos de escuta que cau- sam convulsées, o homem que grita Al6! O que é ele, além de um toxicdmano do som, um bébado-morto do espago vencido e da voz transmitida? Meus venenos so ‘05 seus: eis o amor, a force, a velocidade. Voots querem as dores, a morte, ou as cancies? 91 Hoje thes trago um estupefaciente vindo dos limites da consciéncia, das fronteiras do abismo. © que vocés tem procurado até agora nas drogas a nao ser um sentimento de poder, uma megalomania mentirosa ¢ 0 livre exercicio de suas faculdades no vazio? O produto que tenho a honra de Ihes apresentar proporciona tudo isso, proporciona também imensas vantagens inespe- radas, ultrapassa seus desejos, suscita-os, faz com que tenham acesso a desejos novos, insensatos. Nao du dem, séo os inimigos da ordem que pdem em circule: ‘edo esse filtro do absohuto. Eles o passam secretamente sob os olhos dos guardides, sob a forma de livros, de poemas, O pretexto anédino da literatura permiteThes oferecer, por um preco que desafia qualquer concorrén- cia, esse fermento mortal, cujo uso ja é bem tempo de generalizar. & 0 génio em garrafa, a poesia em barra, Comprem, comprem a danagio de suas almas, vocés iro enfim se perder, els aqui a maquina de revirar 0 espirito. Anuncio a0 mundo esse acontecimento de primeira grandeza: um novo vicio acaba de nascer, uma vertigem a mais é dada ao homem: 0 Surrealismo, tilho do frenesi e da sombra. Entrem, entrem, é aqui que comecam os reinos do instanténeo. ‘0 que vocés, fumadores modernos de haxixe, in- vejaro dos adormecidos acordados das mil e uma noites, dos miraculados e convulsionarios,”” quando puderem invocar — sem nenhum instrumento espe- cifico —o conjunto até entéo incompleto dos prazeres maravilbados, quando assegurarem para si mesmos um tal poder visionario sobre o mundo, da invencio & materializagio glauca das claridades escorregadias do estado de alerta, que nem a razio nem o instinto de conservagao, apesar de suas belas mios brancas, poderiio impedi-los de usé-los sem medida, enfeitiga- dos por si mesmos até que, cravando a maneira de um alfinete uma imagem tio bela na encruzilhada 92 | mortal de seu coragfo, voeds se tornaro enfim pare- cidos ao homem que uma tinica mulher para sempre fixou e que nfo passa de uma borboleta fincada nessa cortiga adoravel? O vicio chamado Surrealismo é 0 emprego desregrado ¢ passional do estupefaciente imagem, ou melhor, de provocagio sem controle da imagem por ela mesma e por aquilo que ela traz consigo no dominio da representacao de perturbago- es imprevisiveis e de metamorfoses. Pois cada ima- gem a cada lance forga-os a reviser todo 0 Universo. E hé para cada homem uma imagem a encontrar que aniquila todo 0 Universo. Vocés que entrevéem os clardes alaranjados desse abismo, apressem-se, apro- ximem seus lébios desse célice fresco ¢ fervente. Mui- to em breve, amanhi, 0 obscuro desejo de seguranga que une os homens entre si vai lhes ditar leis selva- gens, proibitivas. Os propagadores de surrealismo sero supliciados na roda e enforcados. Os bebedores de imagens serio encerrados em cmaras de espe- Thos. Entio os surrealistas perseguicos traficario, ao abrigo dos cafés com missica ao vivo,”* seu contagio de imagens. Mediante atitudes, mediante reflexos, mediante repentinas traigGes do nervosismo, a poli- cia suspeitard de surrealismo por parte dos consumi dores vigiados. Vejo daqui seus agentes provocado- res, suas artimanhes, suas armadilhas. Mais uma vez 0 direito dos individuos de dispor de si mesmos ser restringido e contestado. O perigo ptiblico sera invo- cado, o interesse geral, « conservacaio da humanidade inteira, Uma grande indignagéo tomaré conta das pessoas honestas contra essa atividade indefensavel, essa anarquia epidémica que tende a arrancar cada um da sorte comum para criarIhe um paraiso indivi- dual, esse desvio dos pensamentos que nifo tardarao em nomear de malthusianismo intelectual, Destro- 0s espléndidos: 0 prinefpio de utilidade vai se tornar 98 estranho para todos os que praticarem esse vicio superior. O espirito para eles deixard, enfim, de ser aplicado. Eles verao recuar seus limites, farao parti- Thar desse inebriamento tudo 0 que hé na terra de ardente e insatisfeito. Os jovens vio se dedicar perdi- damente a esse jogo sério e estéril. Ele desnaturaré suas vidas. As faculdades ficaréo desertas. Fecharao 08 laboratérios. Nao haveré mais exéreito possivel, nem famflia, nem profiss6es. Entdo, diante desse esvaziamento crescente da vida social, uma grande conjuracéo de todas as forcas dogmiticas e realistas do mundo se formaré contra o fantasma das ilusses. Bles vencerdo, esses poderes coligados do por-que- nfo e do viver-assim-mesmo. Seré a titima cruzada do espirito. Para essa batalha perdida de antemio eu os convoco hoje, coragdes aventureiros e graves, pou- co preocupados com a vitéria, que buscam na noite um abismo em que se langar. Vamos, 0 papel esté vago. Passem no guiché, que € aqui mesmo. O que a imaginagdo designa assim com o indicador transliicido é a casinha de madeira em que se vendem os lugares para 0 Teatro Moderno. Ela fica ao lado duma paligada cinza que se reveste na hora do poente de tons de sabié, e na qual se abre uma porta da livraria Flam- marion. A cada vex que atravessamos seu campo dtico, uma vendedora salmodia detrés de seu guiché o preco das poltronas’¢ @ natureza dos atratives da casa, dos quais trés ou quatro fotografia pregadas a casinhe dio uma idéia simples e suficiente. Esses seios, essas pernas resumem claramente a intengao dos autores, como nas portas dos cinemas as imagens com revolver apontado, arco arrastado pelas torrentes, cowboy pendurado pe- los pés. E no custa quase nada: TEATRO MODERHO PREGO DOS LUGARES. Todos 0 imposts taxa incues O Hotel Monte Carlo estendese, além da palicada, até o corredor que o atravessa. Ble ultrapassa os limites Gos andares e corta transversalmente a geleria na en- trada da Passagem, invocando invencivelmente para mim, nesse nivel, a imagem da Ponte dos Suspiros, tal como g conheco segundo os cartdes postais. No térreo, © Hotel Monte Carlo deixa perceber, através de uma fachada envidracada, de pequenas barras brancas esti io Lufs xvt, um grande hall largo e baixo, inteiramente melancélico, em que se congelam de tanto esperar, sob um lustre de cristal com pingentes, folhagens e viajan: tes. Esses, em suas poltronas de vime, léem os jornais 95 ex6ticos que $6 so encontrados, em Paris, nos boule- vards, Mundo cosmopolita bastante particular ¢ parti- cularmente calmo, freqiientemente pitoresco ¢ quase sempre exausto, Esses jogadores cansados s6 encalham aqui apés belas experiéncias, mas antes, como rodaram mundo com seus passos retardatérios! Alguns sentam- se na galeria como num terraco. Eles tém o ar de quem espera. O qué? Essa felicidade desejada jamais chegaré. ‘Vooés podem ir embora, Diante do hotel, 0 cubfculo do guardiéo vigia uma espécie de pequeno corredor pelo qual se tem acesso a um patiozinho. Ao lado do eubfculo com suas encanta- doras cortinas de croché, poderemos fazer uma breve parada: é 0 engraxate, isso custa apenas doze tostées € poderemos sair de 14 com séis nos pés. So, como se diz, Jojas modernas bastante belas, as dos engraxates. Que espirito decorative nas caixas de brilho, apesar de seu americanismo e da pouca engenhosidade conferida & vitrine. E depois, vejam vocés, os engraxates, que gente ‘esquisital Tém toda a polidez do mundo e uma forma de nos fazer esperar um tempo infinito enquanto esfre- gam inexplicadamente sapatos jé ofuscantes de refle- xos, levados sem dttvida pela paixiio de sua arte, Arte menor, concordo, mas arte arte arte. Podemos sem dtivida lamentar a auséncia de qualquer metafisica na arte do engraxate. Talvez ela fosse um pouco menos contestével se levasse mais em conta as recentes aqui- sigdes do espirito, Podemos lamentar também que, numa civilizago como a nossa, os engraxates quase nfo tenham feito progressos técnicos em relacdo a seus predecessores romanticos. £ mais na decoragio de suas lojas que eles tém exercido até aqui suas faculdades inventivas. A grande descoberta, nesse campo, foi adas poltronas elevadas, cuja idéia dizem ter sido de um engraxate novaiorquino ou, segundo outros autores, de um engrexate italiano que debutou muito jovem nos 96 bares, meditando, assim, sobre a comodidade dos altos banquinhos de baleiio para 0 exercfeio da profissio. Esses estrados em cujos pés o artista engraxate volun- tariamente se humilha so extremamente propicios 20 devanelo. Se os sébios se fizessem engraxar os sapatos, que magnificas macuinas, que concepgdes grandiosas do universo sairiam dos bracos das poltronas dos en- graxates! Mas eis ai a infelicidade: os sébios conservam 05 calgados sujos, e as unhas duvidosas, Nao siio, pois, sébios, esses passageiros dum navio imével, esses pas- santes que vérn aqui se despojar da lama e da poeira para terem acesso & meditacio e que sem diivida temo coracdo inteiramente ocupado por um grende amor. Poetas? Quem sabe, oficiais da reserva, trapaceiros, vendedores de bolsas, corretores, representantes co- merciais, cantores, dancarinos, dementes precoces, perseguidos, jamais sacerdotes, mas sim coragées ele- giacos, camelds milionérios, espides, conspiradores, politicos pervertidos pelos conselhos administrativos, policiais paisana, garcons de café em dia de folga, jomnalistas e protestantes, estrangeiros, assassinos, em- pregados no ministério das Colénias, cafetdes, book-ma- hers ¢ fantasmas. Se fosse fantasma, é pare c4 que eu viria. Daria mous sapatos para lustrar e, espectralmen- te, ei me conservaria num desses tronos do acaso como uma estétua da obsesso. Q Comendador, tal como imagino, é precisamente numa cabine de engraxate gue ele vem se sentar a0 lado de Dom Juan. Esse jé estaria, nessa altura, perdendo-se em quimeras, fuman- do. Hoje Dom Juan fuma. Estaria se preparando para uma nova aventura, Precisaria de sapatos limpos. Bo: njtos sapatos de pespontos. Pespontos de fundo creme, sobre couro preto e marrom, recortado por couro bran- co, Arlequim de pé. Com palmilhase saltos de borracha dividida em laminas. Sapatos para 0 adultério e para a praia, Uma espécie de ferrolho de seguranga dos pas. 97 508, garantido, silencioso. Dom Juan tomou gosto por cesses calgados caramelo ¢ chantili vendo um filme de Los Angeles. Rodou Paris inteira para encontréslos e, finalmente,foi num bazar de quinguilharias do bairro Saint-Georges que desencavou esse par que um negro ‘tinha encomendado num momento de esplendor, an- tes que 0 oficial de justiga, a cocafna e a indoléncia 0 fizessem passar sem ele. Quase nfo pensa nisso, Dom Juan, depois o negro esté a cem léguas de 16, num dancing do interior, entre ura cadeira de palhinha e um matedorrio pede Tommyserte, Dom Juan cochila @ se embalaj os pés a tona da agio do engraxate. Dom Juan.seiabandona e se perde num desenho rosa de camnisa de passamanaria, Ble uve negligentemente a conversagio-do engraxate com seu vizinho. B.aiquarta ver.do.dia.que esse cliente volta, cinco vezes ao todo, Explica que.airue Grange-Batelitre 6 particularmente pocirenta, que a:gente se suja:terrivelmente na rue Réaumter.Mais um louco, entretanto conheco essa voz, Levanntando a cabeca, Dom Juan reconhece o Comenda- dor. O destino, destino maniaco, eis ai vocé téo perto demim. O Comendador esté condecorado como Cristo de Portugal, isso macaqueia a Légion d’honneur. Caro Senhor, eu tinha hesitado entre:esse engraxate, o:do nximero 12 da mesma Passagem (rue Chauchat);e oda Passage. Verdeau. De resto, & a mesma casa; Brondex. Finalmente entrel aqui e encontreiio senhor: portanto; ey nig estava enganado: Com licenga, posse engraxar meus.sapatos? Tenho um-encontro, ¢ aipartesuperion Go.Jeita:é.adornada por! motivos: ovaladbsirepre- sentando as estagées ¢ os trabelhos deHéreules, incmus: trados no bordado inglés, O senhor néo vé queja precit pitagdo.Jaria, pousar af sapatos maculados?."Queira aceitaresse.chamto, disse 0 Comendadori seu cigérro: se apaga’. Momento precioso: Dom Juan toma o chart» to.quesihe estende o.espectro, Esse espetacule’é insu 98 portével. Troco 0 engraxate pelo vendedor de selos postais. 6 filatelia, filatelia: tu és uma deusa bem estre- nha, uma fada um tanto louca, és tu quem pegas pela mifo a crianga que sai da floresta encantada em que finalmente adormeceram, lado a lado, o Pequeno Polegar, 0 Péssaro Azul, Chapeuzinho Vermetho e 0 Lobo, tu és quem ilustras, entZo, Jilio Verne, e trans- portas para além dos mares, com tuas borboletas mul- ticor, os corages menos preparados para a viagem. Aqueles que, como eu, fizeram idéia do Sedo diante de um pequeno retingulo debruado de carmim em que caminha sobre fundo bistre um branco albornoz montado num dromedério das Arabias, aqueles que se tornaram familiares do imperador do Brasil prisio- neiro de sua moldura oval, das girafas da Niassaléndia, dos cisnes australianos, de Cristévéio Colombo desco- brindo a América em violeta, esses, com uma meia pala- vra me compreendem! Porém niio silo mais essas cole- ges de precos diversos, nossas conhecidas, que adomam de reflexos fatigantes toda a prateleira da loja em que estamos. Eduardo vi jé tem oar deum monarca antigo. Grandes aventuras subverteram esses nossos companheiros de infancia, os selos, que mil ames de mistério atam & hist6ria universal. Af esto os re cém-chegados que dio conta de uma recente e in compreensivel reparti¢ao do globo. Ai estio os selos das derrotas, os selos das revolugées. Obliterados, novos, que me importa! Jamais compreenderel coisa alguma em toda essa hist6ria e geografia, Sobrecargas, sobretaxas, seus negros enigmas horrorizamme: elas me furtam um soberano desconhecido, um massacre, incéndios de palacios, e a cangio de uma multidao que marcha em direcdo a um trono com seus cartazes ereivindicagées. 99 Nao hé surpresa, o preco esta sobre a porta, acima da porta na arandela azul e branca que se acende durante a noite. Quero felar livremente dos gabinetes que separam o café Certa da loja de selos. Nao sei que desfavor primério foi lancado sobre esses estabelect mentos. Isso supée, da parte dos homens, repre- sentagSes vulgares e ber pouca forga nostilgica, Da galeria, olhem, entretanto, o lavabo entreaberto onde uma mulher encantadora se pinta e compreendam 0 que é esse lugar, em que a beleza se recompoe apés uma crise natural e o cumprimento de uma necessidade que tem sua grandeza. A toalete, seus detalhes infinitos, sempre prezei seu espetéculo, Outrora, o pretexto de vagos estudos médicos pelos quais me deixei levar quando crianga e algumas relagdes recomendéveis, ti nham-me dado o privilégio de permanecer no lavabo das damas, num grande café em que eu tinha hébitos cotidianos. Eu gostava de ficarlé, ocioso e complacente com uma outra, surpreendendo essas transformagées adoraveis das mulheres, que a natureza vem desfazer ‘um pouco e que sua arte restitui para a sedugio.” As variacdes infinitas de sua postura, suas maneiras as- sombrosas de se comportar, seus pudores e impudores que chegam as raias de grosseria, que elas acreditavan entio serihes permitida, sua dignidade as vezes, € mesmo sua majestade. Eu nao me cansava de ficar nesse hugar de transiclio em que se desenredava 0 espi- rito da luxtiria. Nascia um curioso ardor da diversidade das atitudes. Freqiientemente as viajantes desse trem fugaz tomavam-se ai de um gosto miituo e isso aproxl- mava mos ou labios. Gesto da boca que se volta para © rouge, nuvem de pé-de-arroz, vocts, lilases artificiais que desabrocham diante de mim, sob 0s othos. Eis que atinjoa soleira do Certa, café célebre do qual niio terminei de falar. Uma divisa me acolhe sobre a porta acima de um escudo que agrupa estandartes: 100 AMON NOS AUTES Foinesse lugar que, por volta do fim de 1919, numa tarde, André Breton e eu decidimos reunir deli por diante nossos amigos, por édio de Montparnasse e de ‘Montmartre, também pelo gosto do equivoro das Passa- gens e seduzidos, sem diivida, por uma decoragio ina- bitual que deveria tornar-se‘para nés tZo familiar. Esse lugar € que foi a sede principal das sessées de Dad, quer essa formidével associagio conspiresse uma de suas manifestagées irris6rias e legendarias que fizeram sua grandeza e sua podridao, quer ela af se reunisse por lassido, por 6cio, por tédio, quer ela se agregasse sob © impacto de uma daquelas crises violentas que a sacu- diam as vezes, quando a acusagio de mocerentismo™ era dirigida contra um de seus membros. bem preciso que eu adicione, ao falar disso, um sentimentalismo incerto. De resto, delicioso canto em que reina uma luz de suavidade e a calma, a fresca paz, por detras da tela das, cortinas amarelas méveis que, alternadamente, vedam ou desvendam para o consumidor sentado préximo as grandes vidragas que descem até o cho, que desven- dam e vedam alternadamente a vista da Passagem, conforme a méo enervada da espera feche ou estique sua seda plissada. A decoraciio é marram como a ma- deira ea madeira é prédiga por toda a parte. Um grande balcdo ocupa a maior parte do fundo do café. Ele se encontra desaprumado devido a tongis de grande por te, com suas torneiras. A direita, no fundo, a porta da cabine telefSnica ¢ do lavabo. A esquerda, um pequeno yetiro ao qual ainda retornarei, abrese para a parte intermediéria da sala. Quanto a essa, o essencial de sua mobflia é que as mesas nao so mesas, mas tonéis. H4 na grande sala duas mesas, uma pequena, outra gran- de, e onze tonéis. Em volta dos tonéis estdo agrupados 101 tamboretes de palhinha e poltronas de palha: vinte ¢ quatro de cada tipo, aproximadamente. Ainda é preciso observar: quase todas as poltronas de palha so diferen- tes de suas vizinhas. No mais, confortaveis sempre, ainda que cada uma a sua maneira. Prefiro as mais baixas, que tém uma parte de treliga no alto do espal- dar. £ possivel sentarse muito bem no Certa, vale a pena sublinhar. Quando entramos, vernos & esquerda um biombo de madeira, e 4 direita um porta-casacos. Depois desse, um tonel e seus assentos. Encostados & parede da direita, quatro tonéis e seus assentos. Depois, em diregdo ao lavabo, um novo biombo de madeira. Entre esse ¢ 0 baledo, um aquecedor, 0 mével em que se acham as listas telefénicas, a grande mesa e seus assentos. Diente do baledo e até a entrada do retiro de que falei, na parte intermediéria da parede da esquer- da, trés tonéis e seus assentos. No meio, dois tonéis € seus bancos. Na entrada do retiro, uma mesinha e uma poltrona. Enfim, entre o retiro e a porta da Passagem, 20 abrigo do movimento gragas a um biombo de ma- deira; um Gltimo tonel e seus assentos. No retiro, en- contramos trés mesas encostadas em fileira, com um tinico banco ao fundo, revestido de tecido imitando couro e que ocupa quase toda a largura do aposento, depois cadeiras defronte ao banco e, no canto direito distai,” um pequeno aquecedor mével a gés, muito apreciado no inverno. Juntem a isso folhagens ao lado do balcio, e acima dessas prateleiras de garrafas, acaixa na extremidade esquerda, préxima a uma porta fecha- da por um cortinado, geralmente levantado. Finalmen- te, na caixa, ou sentada na mesa do fundo por momen. tos, detxando correr o tempo, uma senhora que é amével e bonita, e cuja voz é tio suave que, confesso, antes eu telefonava sempre ao Louvre 54-49 pelo prazer tinico de ouvir dizer: “Nao, senhor, ninguém o proc: rou”, ou entéo, “Nao hé ninguém dos Dada, senhor”. 102 £ que aqui a palavra “dada” 6 ouvida de forma um. pouco diferente do que em outra parte, ¢ com mais simplicidade. Bla nfo designa nem a enarquia, nem a anti-arte, nem nada daquilo que fazia tanto medo aos jornalistas,’ que cles preferiam designar esse movi- mento pelo nome de Cheval d’enfant.” Ser dadé nfo 6 uma desonra, Designa, ¢ 6 tudo, um grupo de freqiten- tadores, jovens um pouco barulhentos as v2zes, talvez, mas simpéticos. Dizem: um dad, como dizem: 0 se- nhor louro. Um sinal distintivo vale um outro. E até mesmo vai tfo bem nos costumes, que dadé ¢ aqui o nome de um coquetel. Quero consagrar um longo parégrafo em reconhe cimento as bebidas desse café. B antes de mais nada a * "Hu teria passado por esse mundo, com alguns que so 0 que vocés jamais perceberam de mais puro no céu numa noite de verdo (André Breton, por exem- plo), em meio ao desprezo, aos insultos, sob os,escar- ros. Mas se um dia minhas palavras se,tornarem sagradas e elas j4 so, entio que me ougam ao longe, rindo, Elas nfo servirdo para seus fins miserveis, ho- mens que eréem ridicularizarnos, crépulas. E quando digo jomnalista, digo sempre filho-da-puta. Deixemsse re- preender vigorosamente no Intran, no Comoedia, no Oeuvre, no Nowvelles Littéraires,»® etc., esttipides, ca- nathas, fezes, poreos. Nao hi exceco, nem para esse, nem para aquele: percevejos imberbes e piolhos bar Dudes, vocts nao hilo de se atocaiar impunemente nas"revistas, nas publicagées equivocas. Tudo isso fede, A tinta, Barata esmagada. A imundicie. A morte + voeés todos, que vivem da vida dos outros, do que eles amam e de seu tédio. A morte aqueles cuja mao esta atravessada por uma pluma, & morte aqueles que parafraseiam 0 que eu digo. 108 seu vinho do Porto. O vinho do Porto Certa é tomado quente ou frio, hé diversas variedades dele, que 05 amantes apreciario. Mas 0 Porto vermelho comum, que custa dois francos e cingiienta, jé é to recomendé vel que eu temeria causarIhe algun dano falando dos outros. Causa-me pesar dizer que o bom Porto tornase mais e mais raro em Paris. £ preciso ir ao Certa para bebélo. O proprietério assegurame que nao ¢ sem sacrificio que ele consegue fornecé-lo a sua clientela, Existem vinhos do Porto cujo gosto néio é mau, mas que so de alguma forma débeis. O paladar no os retém. Eles somem. Nenhuma lembranga permanece, Néo ¢0 caso do Porto do Certa: quente, firme, seguro, ¢ verda- deiramente de bom timbre. E o Porto nfo é a timica especialidade daqui, Hé poucos lugares na Franca em que se possui uma gama semethante de cervejas ingle 5as, stout e ales,” que vao do preto ao vermelho, passan- do pelo acaju, com todas as varlacGes do amargor e da violéncia, Eu recomendo — nfio é esse o sentimento da maioria de meus amigos (com excegio de Max Morise) — que no experimentem, como eu, a strong ale de dois francos e cinquenta: 6 uma bebida desconcertante. Re- comendaria ainda a Mousse Moka, sempre leve e bem firme, 0 Théatra Flip e 0 Théatra Cocktail, para usos diversos, esses tiltimos esquecidos no quadro seguinte: 104 Martini Pesfect, Row Brandy ‘Cherpaene Gin Gets St James Derby Omnium Max Waller's Manhattan Oxcae Dads ‘Sherry Champagse Pore Cafe Gace “CERTA” BEBIDAS PRECOS Cokeit Ponto Foe || Bean : sterey : | Fao Now [ee : sours » 8 : ck me Hup : Kis me Quick . Fonte Cafe . ele Wel Mss : Gsiton Cup ‘ Jo Cots in . Brom AP | clover cise cotter Mowse Moke 1.50 | Foro 105 3°50 250 350 3°50 | | | Quadro situade na pequena sala, acima do qual figurava o cartaz-propaganda de uma bebida cujo nome me escapa, pintado por um dos antigos garcons, ‘bem a0 gosto dos quadros mecdnicos de Francis Pica- bia, eque desapareceu hé algum tempo. Um dos encan- tos dos cafés esta nos pequenos cartazes pregados quase por toda parte assim, e que no Certa existem em profu- so, louvando 0 Martini, o Bouril, © Source Carola ou a W. M. Youngers Scotch Ale. As vezes eles se sucedem em ceascata’ | FUIPS._3F. 50 pene eee eee HE ROYAL FLIP 4 f. IMPERIAL FLIP 4 f. Lieores.. 6... + Grandes Mareas +2 B50 ROYAL ........--3 750 IMPERIAL.........5F PORTO CERTA . . - 106 | Alids tudo isso & excelente, sem reprovacii voeé tiver vontade de um caldo, peca um Bovril:® ele seré servido com sal de aipo, experimente depois vocé ‘me conta, e deve ser empregado sem moderacio. Mas, que niio me acusem de parcialidace em relagiio a0 Certa: vou finalmente fazer uma queixa dele, a tmica que vejo. Nao gosto muito da forma como servern If 0 café filtrado: para retirar o filtro, que ¢ um pote de metal, sem se queimar, € preciso servirse de duas colherzinhas cruzadas colocadas no cabo e isso no se faz sem dificuldade. Além do mais 0 fregués solitério nao tem possibilidade de fazé-lo, Em seguida, onde colocar o filtro que continua sempre a pingar um pou- co? Quase que s6 temos & disposicao 0 pires de vidro trabalhado no qual se encontravam os torres de agti- car, mas se gostamos de café adogado moderadamente, deixamos nele um torrdo. Entéo, ou sujamos a mesa, ‘ou estragamos um torrfio. B tudo o que :enho para reclamar do Certa, Pois néo ¢ tudo perfeito lé, a no ser isso? Nunca faz muito frio, a casa é bem aquecida; nunca muito calor, no verdo 6 como uma gruta e 0 ventiladores so bons. Salvo no ssbado & noite, esse lugar quase nao é invadido. L4 sia complecentes, até mesmo indulgentes. B ainda que durante cinco anos eu tenha visto passar tantos garcons por ld, quase todos cram a propria polidez € discric&o, faziam bem os coquetéis, eram mais ou menos artistas emcstravam-se finos 20 receberem as gorjetas. O garcom atual, René, esta nessa tradigio. Ele desenha projetos de cartazes, hhumoristicos contra as desapropriagoes, trabalhados a maneira das caricaturas panfletérias contra a Inglater- rae as pantalones a pont,” tais como eram apreciados no tempo do Diretério. E tempo de dizer também que hhomem cheio de reserva e tato é o proprietario dessa casa. Jé 0 vi sair-se bem diante de fregueses de humor impertinente ou de conduta dificilmente apreciével, 107 com um espirite que o honra, Ele merece uma sorte melhor do que a que Ihe reserva uma administragio municipal inconsciente, que se preocupa mais em alar- gar as ruas da cidade do que em preservar e encorajar uma urbanidade tao rara e dons de cortesia que vemos desaparecendo, mais e mais, dos lugares pttblicos pari- sienses. Desejo que o proprietario do Certa, quando os domolidores 0 tiverem expulsado, abra em outra parte ‘um café ou um bar, do qual terei prazer de ser cliente. Ele é agradavel, ¢ reconfortante sentir em volta dele, gragas A sua discreta inteligéncia, uma atmosfera de cordialidade e suavidade como a que se mantém cuida- dosamente no Certa. Gostaria que se retivesse um exemplo parecido, como de um Vatel ou de um Montagné. Ndoé habitual dirigir 0 espirito critico para o papel dos proprietarios de bar. Sfio pessoas que tém um lugar efetivo na manu- tengo da verdadeira civilizacio. E é nessa paz invejavel que o devaneio é fécil. Eque ele cresce a partir de si mesmo. f aqui que o surrealis- mo retoma todos os seus direitos. Diohe um tinteiro de vidro que se fecha com ume rolha de champanhe e pronto, lé esta vocé em aco. Imagens, desgam como confetes. Imagens, imagens, por toda parte imagens. Notelo, Na pall das poltronas. Nas palhas das bebidas. No quadro da central telef6nica. No ar brilhante. Nas arandelas de ferro que iluminam a sala, Podem nevar, imagens, é Natal. Podem nevar sobre os tonéis ¢ sobre 08 coragdes crédulos. Podem nevar nos cabelos ¢ sobre ‘as maos das pessoas. Mas se, tomado dessa fraca agita- ‘do da espera — pois alguém vai chegar e penteei-me “Onde est4 meu corpo? A noite jé caiu. O Certa se en- contra hoje na rue de l'sly, no lugar do antigo London Bar. E eu, onde estou? 108 trés vezes pensando nisso — levanto as cortinas das vidracas, eis-me novamente entregue ao espetéculo da Passagem, suas idas e vindas, seus passantes. Estranha contra-danga de pensamentos que ignoto, mas que no entanto 0 movimento manifesta. O que querem eles assim, esses que se volta sobre seus passos? Frontes preocupadas e frontes ligeiras. Ha tantos modos de andar quanto nuvens no céu, entretanto alguma coisa me inquieta: 0 que significam as mfmicas desses senho res de meia-idade? Eles se viram, desaparecem e depois, ressurgem, Bruscamente minha desconfianga é desper- tada e meu olhar dirigese de repente para a loja da vendedora de lengos. ‘Aloje de lenos dé para a galeria do Bardmetro por intermédio de duas vitrines que emolduram uma porta , sobre o corredor que se embrenha por detrés do Hotel ‘Monte Carlo, por meio de um conjunto de vidracas ¢ uma porta, separada da parte intermediéria do restau- rante Saulnier somente pela negra extremidade de uma escada que leva aos andares superiores onde se encontram, vestigios de uma agitagio esquecida, os escritérios do L’Evénenement politique et littéraire, Todo o corredor se afunda na sombre ea luz mesquinha que vem do café Biard quase nao ilumina a cavidade em que os garcons empilham algumes cadeiras de reforco nas vizinhancas do hotel. Por que essa viela que quase néo pode ser vista da Passagem abriga, quase sernpre, um passante que se detém? Como as pessoas se tornam af sonhadoras e desapegacias. Tudo em seu aspecto revela pelo menos que estilo Ié por acaso, um puro acaso. No final do conjunto de vidragas obscurecido pelas cortini- nhas de tela, a porta esté fechade. Homens, senhores que para mim tinham 0 ar apressado, que sempre tém, cruzam pela terceira, quarta vez o ponto de parada, Olhe, 1é esté um agente de policia: mas ele, ele se esconde. Beberd de um s6 gole a cerveja leve que, 108 furtivamente, um amigo Ihe traz do Petit Grillon. Pobres sargentos de policia, com que olhos devoram o éden proibido dos cafés. O agente se vai. Os senhores passam novamente, Alguns tém bengalas, outros nao. Alguns tém bigodes. Outros nao. Nas vitrines da galeria, os Jengos simetricamente expostos formam triéngulos suspensos acima de anéguas de cor sombria que impe- dem os olhares de revistar a loja & vontade. Estranhos lengos, na verdade, que néo correspondem a moda alguma, de cambraia vermelha, ou verde, ou azul, mas de um gosto impossivel, com pequenos desenhos, pe- quenos bordados sem luxo, bainhas pretas. Nao é veros- simil que eles possam algum dia tentar alguém. E as anaguas... mas ento existem mulheres que vestem essas anéguas cor de ameixa, de longas riscas tom sobre tom? Dificilmente se percebe o interior da loja se nfo se colar a testa aos vidros: quase que s6 se vé um cesto de costura e uma costura abandonada perto de uma cadeira vazia. Prontamente, a vendedora reaparece no fundo, reconduzindo um cliente que mal vi, mas em todo caso um hornem de idade, venerdvel, ao qual vocé cederia, meu caro, com sua graciosa educacio, um lugar no metr6, Ele vai em diregdo ao corredor. A porta permanece aberta. O velho passa por mim apressada- mente: olhe, ele comprou um lencinho de bolso verme- Iho, ah no, é a Légion d'honneur. A vendedora voltow para sua costura, Pessoa madura, cujo porte, inteiro, cheira & dignidade comercial. Mas ainda uma vez a perturbam. Porém é o solitdrio do corredor, ereio. Con- versam tm pouco, ela Ihe indica a loja de trés e segue-o apenas puxando a porta do corredor, que nfo tem ferrolho na fechadura, Nese momento, um passante que avancava detém-se, um pouco desconcertado. De- pois comega a andar pra lé e pré ed. Sempre observei, do Certa, que a vendedora trata assim sua freguesia, Apenas um penetra por vez, demora dez, quinze minu- 110 tos, a porta traneada, depois sai e a porta se abre até a chegada de um novo visitante, Coqueteria, enfermida. de? As pessoas devem se assoar com freqiiéneia quando nfo so mais jovens. A porta no se entreabre jamais por um longo tempo e se quisermos entrar 6 preciso espreitar o instante propfcio. Vi algumas vezes a vende- dora falar com uma amiga que ela tem, que permanece na parte mais dissimulada da loja e com quem ela roseia um pouco, sem que se possam ver scus tracos. ‘Mas nfo passa de uma amiga e geralmente « comercian- te estd s6 na casa, A espera dos negécios. Aproximo-me na soleira, como é de praxe. Tiro o chapéu e olho a vendedora. Alto ld, infeliz! Quantos raios apressam-se a fazer acima de sua cabeca os barulhos dos bastidores da Grande Opera, Com suas palavras, sua tagarelice, voce indispés seriamente os comerciantes da galeria do Ter- mémetro e aqueles de toda uma parte da galeria do Bardmetro, vocé deu as costas aqueles de que no falou ainda e que temem sua mania de escrever. Essa gente esta perturbada. Leram, sem compreender muito bem, ‘essas paginas em que vocé escrevinha inexplicavelmen- te, encarnicando-se por um designio que sé pode pare- cer burlesco, em descrever esses meandros acocorado: diante da ameaca de uma picareta leventada. Eles nao podem distinguir entre aquilo que vem de vocé e o que voce tira deles. Esto enfermos como criangas diante de um espelho defgrmador. Acautele-se, eles vio chorarou dar pontapés, Jamais teriarm.acreditado que numa so- cidade policiada tivessem 0 direito de dizer a verdade sem rodeios. A palavra meublé parecialhes uma garan- tia contra a expressio casa de tolerdncia, etc. Agora lé estio eles se descabelando, pois acreditam ter sua repu- taco perdida, de repente, Voeé os projudica: 0 que seré de seus direitos na grande luta contra.a Imobiliéria do boulevard Haussmann? Se por infelicidade os homens un da lei lessem esse tecido de invengdes ¢ realidades, o que pensariam? “Bis af pessoas muito pouco dignas de interesse”, é 0 que pensariam. E cada um de seus epitetos poderie diminuir na mesma proporgio o montante das, indenizagées. As solteironas que vendem bengalas na galeria do Termémetro acreditaram morrer de vergo- nha diante da leitura da deserigéo de sua vitrine, Uma alema em seus cachimbos de espuma-do-mar! Por me- nos que isso entramos em conselho de guerra. Outro dia tina uma reunigo dos notéveis da Passagem: um, deles havia trazido os ntimeros 16 17 da Revue Buro- péenne. Discutiram-nos rispidamente. Quem teria dado a vocé as informacées? Suspeitaram de que um agente de negécios bem inocente, que até entio servia aos interesses da Passagem, fazia um jogo duplo e ‘tramava misteriosas intrigas. O pobre homem 0 procu- ra para se desculpar. Veio ao Certa ver se voce estava. ‘Outras de suas vitimas também vieram clamar justica, Bles queriam conhecélo, esse inimigo encarnicado, essa maquiavélica personagem e o que The ditiam en- tio? O que diriam as abelhas do Baedecker™” das col- méias? Num dos tiitimos miimeros do La chaussé d’An- tin, nfo € sem amargura que citam vocé longamente, pois, ao que parece, vocé exerceu sua ironia a custa esse érgio de defesa dos interesses do bairro, precisa: mente porque ele tomava em mios a causa dos peque- nos tubarées contra os grandes. De fato, vocé nao ama muito a vitiva e o 6rffo, Mas suas revelagdes, cuja responsabilidade Ihe é atribuida, assombram esses se- nhores: de onde vacé tira esses niimeros ¢, como dizer eles, seré possivel? = Onde O Camponés de Paris era publicado em folhe- tim, Assim é que nos anos 20 declinavam na Franca 0 nivel dos costumes ¢ 0 dos romances. 112 Brava gente que me escuta, tiro minhas informacSes do céu. Os segredos de cada um, como os dalinguagem € os do amor, revelam-se para mim a cada noite e ha noites em pleno dia. Voces passam pormim, suas vestes esvoagam, seus livros de contabilidade se abrem na pagina das dissimulagdes e das fraudes, sua alcova 6 desvendada e seu coragéo! Seu corac&o como uma bor: doleta esfinge sob 0 sol, seu coragio como uma biissola enlouquecida por um pedacinho de chumbo, como um varal de roupas que seca ao vento, como o chamado dos cavalos, como 0 farelo jogado aos passaros, como um, jomal da noite que acabamos de ler! Seu coragdo é uma charada que todo mundo conhece. Portanto niio te: mam nada de mim quanto a sua reputago, nem que cu entre na vendedora de lengos. Essa dama volta para mim uma cabeca que nao deixa de ter certa majestade. Os tracos um pouco gran- des, o nariz.dos Bourbon, a pele que jé nao deve mais ter aquela elasticidade para a beliscadura propria da Juventude, a grossura do pescogo que entretanto nao impede a magreza do rosto, cilios louros raros e a otho um pouco vermelho atribuindo algum carater noturno ao conjunto, nerhum rouge e pé-de-arroz suficiente para sugerir uma dame de companhia ou uma gover- nanta, 0s cabelos.., 05 cabelos mereceriam um pardgra- fo, com seu jeito de néo se submeter & moda, de ser tingidos discretamente, de nao se erigirem to altos. como 0s das mogas de caixa, de néo se aplainarem tio baixos como 05 das enfermeiras, a vendedora detxa suaveménte sua costura e avanca em diregio # mim, Saboreio ent&o seu modo de se vestir. A saia é larga ¢ mais curta do que as que fazem hoje, ao gosto de 1917 mais ou menos, cortada em forma de cintura arredon- ada. Toda a roupa é de um meio tom gritante (arran- Jemsse para entender o que quero dizer): é uma espécie de ameixa vermetha, um tom de vinagre que dé a idéia 113 dacor viva, coors lantejoulas dos artistas de circo dio idéia dos diamantes. Aquilo puxa para a groselha ago. nizante, para a cereja bieada, assemelhe-se aquelas fitas das condecoragées académicas que viram écido na cla- ridade... ah sim, achei, ovestido é tomassol” puxando Jevernente para a urina. O decote do corpete desobstrui simplesmente a nuca, onde os cabelos perecem penu- gem, ena frente ele apenas descobrea forquilhaem que se salientam graciosamente os tendées convergentes do pescoso. Mas a maravilha des maravilhas é 0 corpe- te, obra-prima da aplicagdio num género desaparecido. ‘Nao se usa mais bolero em nossos dias, o que lamento: mas 0 que dizer entio do falso bolero, que nfo é solto como 0 verdadeiro, mas sim costurado ao vestido preso por pespontos aparentes que constituem um desenho? E imaginem que todo o corpete € paciente- mente enfeitado com fita e passamanaria de um verde um pouco mais vivo que améndoa, um pouco mais apagado que folhas de couve-flor: que a fita forma um pequeno pregueado om toda a largura, disposta em motivos que lembram invencivelmente 0 caramujo ea decoragiio das prefeituras suburbanas. Adicionem a isso que mesmo to vivo, esse Gainsborough, esse Win- terhalter™ quase nfo € mestre da voltipia: seu corpo deformou-se honestamente e, nfo fosse 0 hébito de uma certa inquietude de coruja, uma espécie de con. quista do olhar, essa pessoa, meu caro, poderia ser sua mie ou sua faxineira, Eu sel: umas das principais critieas que podem me fazer, que me fazem, é esse dom de observacéio que gostam tanto de constatar em mim, e pelo qual néo me perdoam. Eu nfo me diria um observador, na verdade. Gosto de me deixar atravessar pelos ventos e pela chu- va. O acaso, eis toda minha experiéncia. Que o mundo me seja daclo, nfo é meu sentimento, Essa vendedora de lengos, esse pequeno acueareiro que vou descrever, aa leis, de minhas maneiras de pensar e quero ser enfar- Ser erereertetm eer ote € que o senhor Oudin venha colocar sua placa : Se PASSAGE | | be LVOPERA ONIRIQUE © estrangeiro que 1¢ meu pequeno guia levanta 0 nariz ¢ diza si mesmo: 6 aqui. Depois dirige-se mecani- camente em diregio ao ponto em que acabo de deixé-lo pelo prazer de meu cartaz e, dirigindo-se com delicade- za & vendedora framboeza e pistache, pergunte-Ihe apés ium grande esforco de imaginacio qual 6, exata- mente, sua tarifa. O preco Ihe parece bastante médico *€, como 0 fotégrafo, a dama nio entrega a ninguém o cuidado delicado de exercer seu oficio, Mas o que mer. gulha o visitante num precipicio conjetural é que o reco nao ¢ tinico, ha trés classes, como nas ferrovias. Ele sonha eam um completo, como no barbeiro, ¢ a0 118 mesmo tempo sobressalta-se. Pensa na idéia que faz do amor; revé num suspiro toda sua vida e sua infancia ingénua, sua jover irmi e seus pais no canto da lareira, uma pintura sobre seda cinza representando Paulo ¢ Virginia fugindo da tempestade, um coragéo perfurado por uma flecha, dois ou trés quartos mobiliados. Enttio ele se resigna ao simulacro menos caro. Seré que li bem nos seus olhos? Essa repentina degradacio de um res peito até entiio de tal forma ardoroso, essa vil procura do efémero sem ilustio de duracdo, essa auséncia de pretexto ¢ até mesmo o anonimato, 0 isolamento no prazer, tudo isso o excita no mais alto grau ¢ ele esté ‘um pouco apressado para desaparecer na sombra em que ja percedo mos enfastiadas que se mexem. Siga bravemente seu gosto, estrangeiro, Bu 0 aprovo e isso asta, creiame. Ele se empertiga. Se torce. Oh! Esse nao demorou muito Qual é 0 murmério sentimental que se levanta? As poltronas da platéia poderiam ser tomades por musi- cos? Faco a apologia de todas as inclinagées do homem ¢, por exemplo, a apologia do gosto do efémero. O efémero é uma divindade polimorfa, bem como seu nome, Sobre esse tripé que soa como uma lenda povos- da de olhos verdes e duendes, meu amigo Robert Des- nos, incomum sébio moderno que tem navios estranhos em cada prega dos miolos, debrugou-se longamente, bus- cando pela escala da seda filolégica o sentido dessa palavra fértil em miragens: us EFEMERO EMR (loucura - morte - devaneio) Os fatos erram por mim OS FARDOS, MAES Fernanda ama Roberto O EF&MERo o EFEMEROS Ha palavras que sio espethos, lagos éticos em diregiio dos quais es mios se estendem em vio. Silabas proféti- cas: meu caro Desnos, tome euidado com as mulheres cujos nomes forem Faénzette ou Frangoise, tome cui dado com esses fogos de palha que poderiam tornarse fogueiras, essas mulheres efemeramente amadas, esas Florenees, essas Ferminas, que um nada inflama & TORNA MAES. Desnos, abstenha-se das Fanchettes Enquanto que A sua esquerda feita de malas, male tas, caixotes, caixas, caixas de chapéus, caixas de prata Tia, frasqueiras, valises, malascabide, sacolas, bolsas, cestos © toda o feitigo das viagens, Vodable, que jé encontramos na outra galeria, ocupa ao lado do Certa a@ ealgada do ntimero 17, os mimeros 16 e 14 8 sua direita dividem-se, depois da vendedora de lencos, en- 417 tre uma loja preta que é a sede social do Journal des Chambres de Commerce ¢ uma loja colorida, Henriette, modas, cujos chapéus se elevam apenas até o nivel da cortina moderna que os esconde. E cuidado com os Jovens que, tomados pelos mistérios do lugar, erguern- ‘se sobre as pontes dos pés na esperanca de alguma irregularidade inebriante. Em seguida as honestas mo- distas sairdo, imprecatérias, atestando o céu da pureza de seu coragio e reprovando, no modo Iirico, 0 comér- cio vergonhoso da vizinhanga, que lanca uma dtivida mitica sobre os gestos harmoniosos do trabalho ¢ da probidade, O conjunto 6 sobrepujado por algo como um frontdo do L’Bvénenement politique et Uttéraire. Avancemos, avancemos, aplainando cuidadosamente daqui e dali, os enigmes do terreno, ou fazendoos surgir quando isso nos convém ou arrebata, A esquer- da, a porta do 17 e sua escada de trevas cercadas de tabuletas, entre as quais me perco. Aido Comércio 1 Andar @ Dire Agfa ticle 1 ander ELEVADOR ue Deménio das suposigbes, febre de fantasmagoria, Passe em seus cabelos de estopa os dedcs sulfurosos enacarados e responda. Quem ¢ Prato, eno primeiro andar, com seu elevador paradoxal, o que é essa agéncia que, por espirito de sistema, s6 posso acredi- tar que seja uma vasta organizacéo para o tréfico de escravas brancas? Voltem-se e, bem em frente, vejam © pequeno restaurante em que encontro durante nos- sa caminhada para as profundezas da imaginagao, os lltimos tragos do movimento Dada. Quando Saulnier nos parecia muito ‘caro, era 1d que outrora, numa atmosfera sufocante e vulgar, saciévamos mal nossos apetites inoportunos com uma cozinha gordurenta de banha de coco e um vinho acido e decepcionante. Mediocres lugares em que se come, quanto de deva- neio e desgosto se arrasta por entre eles. Ai o homem sente a mesa na carne que mastiga e se irrita com convivas comuns e ruidosos, jovens feias e estiipidas, com 0 senhor que pie a vista seu ridiculo inconscien- tee toda a balburdia sem exaltagio de sualament4vel existéncia. Ai o homem muda de lugar os pés mal nivelados de sua cadeira e volta contra o péndulo transtornado sua impaciéncia e seus rancores. Duas salas: uma de aperitivos, com um paleo e a porta aberta dando para uma cozinha baixa e enfumagada, uma outra como restaurante, que se prolonga ao fundo por um diverticulo onde hé lugar para uma mesa, um banco e trés cadeiras, exatamente, e que é um patiozinho coberto para abrigar seis clientes a mais. As figurantes do Teatro Moderno, seus aman- tes, seus cies, seus filhos, esse € 0 pessoal costumeiro dos bancos, além de alguns viajantes de comércio. O conjunto, muros engordurados, gente e comida tri- viais, assemelhe-se a um respingo de vela, ‘Mas entre o armeiro ¢ 0 cabeleireiro, quem é esse velho gordo e desagradével, que brinca com um arco ug de madeira? Sou o inico a espantar-me com ele. Estranho arco pintado de varias cores e de cenas que se encadeiam A mancira das estagdes da via crucis Primeira estagdo: © mar, trés conchas, uma floresta ¢ 0 PuywteDome, Segunda Bstagdo: Uma semente, Tercetra estacdo: A onda, 0 fogo, uma folhagem; uma figura do egoismo, espécie de deus nu e mosquendo, espécie de bizio brandindo uma formula telegrafica, na qual se inscreve: Sou eu, sou eu! e que esquece de mencionar onome 0 enderego do rematente. Quarta estagéio: Uma mulher que escarra flores. 0 Amor, penteado com um arbusto de espinheiro-alvar, debruge-se ao longe sobre a calma das montanhas, Titulo: Esque¢o, Quinta estacao: A semente, Sexta estacite: Sopros sobre a porta do siléncio esperar escravo que nao volta, Setima estagdo: O véu, rasgando-se, deixa poreeber 0 dese. Jo sob a forma de um flamingo. Oltava estacdo: 0 flamingo voa. ‘Nona estacdo: © flamingo perde suas penas ao ar livre, Décima estagdo: O vento. Décima-primeira estagiio: A semente ao vento. Décima-segunda estacdo: O egoismo e o amor, portando as armas de um pais imaginario, enredam seus cabelos enquan- to 0 sol bate meio-dia acima do Puy-deDome, Oestranho velho se distancia em direcio aos boule- vards, empurrando com uma varinha magica 0 arco coberto de iluminuras. Pergunto ao barbeiro que est na, soleira da porta se ele conhece essa pavorosa aparigao: 10 — Ecomo, caro senhor, responde-me o afiivel artis. ta, 8 um freqtientador de meu salio, ur. certo Sch... que passa a vida a brincar com aquilo que ele chama de aroda do devir. Queira entrar, por favor. Gélis- Gaubert, o barbeiro, que ocupa os nximeros 19 €21 da Passagem, foi mil vezes descrito, Néo hé em toda esse Passagem, nfio ha quase em toda a Paris uma loja gue tenha constituido para os jornalistas um assunto mais agradavel e mais fécil para reportagem do género pitoresco e sentimental. O Barbeiro dos Grandes Ho- mens, a cada trés meses alguém 0 descobre ¢ tira seu retrato, com seus bigodes magnificos que contém areia, pimenta e€ algoddéo — pélvora."’ Ao primeiro olhar, compreendemos pelas vitrines que esse barbeiro no & da nova escola, que inventou mil maneires de viver A custa dos clientes. Ble ainda 6 do tempo da barba por cinco tostées, quando sé se pagava para recuperar a juventude e o vigor dos homens, por usar seu tempo ¢ seus perfumes, pelo sabonete, que € tudo o que um barbeiro fornece, pela pedra que € como um lago gela. do, pelo taleo, tudo para recolher apenas um ou dois tostdes de gorjeta. Mais teria valido a pena se fazer de indigente, ou pelo menos ladrio, ou varredor de rua. ‘Também um dia a corporagio se encheu, expandiuse © uso das fricgées mais caras, das massagens, dos aque cimentos, das fumigagdes e de suas modalidades inu- meréveis, a conta crescen e a gorjeta atingiu os trés francos. Se um velho barbeiro, agora retirado dos negé: clos, vem se barbear num confrade que usaos métodos novos,-sua alma se compraz grandements quando o empregado anuncia a caixa a despesa que acaba de fazer, em suas maos, esse cliente que ele ivra doavental € escova com crinas de seda. Mas em Gélis-Gaubert, tudo permaneceu fiel ds feigdes do passado: na vitrine, vemos todos os objetos que até o inicio do século era preciso persuadir habilmente o cliente de comprar a2 para viver barbeandose e penteandose, caso a mania dessa arte, sua vocagao irresistivel o arrebatasse quan- do ele fosse ainda muito jovem para se dar conta de sua loucura: estojos de navalhe e frascos de vidro, frascos para viagem e frascos sedentérios, uns em sua cobertu- ra de madeira, outros com sua sentimentalidade nos ornamentos, com a estrela esculpida no fundo, que faz seu preco para os verdadeiros amadores — es maos de roupa branca, os pentes dobraveis ou inquebréveis, 0 celuldide e 0 casco de tartaruga, combustiveis de ma neira desigual, o chifre e o metal; as lixas e tudo o que faz do cuidado das maos uma branca magia, e as ma- quilagens, os filtros de espanto; os sabonetes, verdes, roses, amarelos, ou desse negro de melaco, transliicido, que lembra as voliipias de meados de agosto, quandoo sol se retirou ¢ sobre o assoalho os juncos de palha esgueiraram-se de través sob os pés crispados e fatiga- dos; e as escovas de dente, os dentifricios, os sais para dor de cabega e 0s vapores, as éguas para os olhos, as pomadas de milagres. De um e outro lado da porta, as vitrines apresentam em sua parte superior dois raios simétricos, o primeiro povoado por garrafas de velouté naturel, o segundo de Glykis. Nao tenho experiéncia com essa ultima especialidade da casa, loco para a pele que deve esse nome de nereida & sua bela cor de esme- ralda. Quanto a outra, que 6 um Hquido dulciticante que se emprega apés 0 barbear, puseram-me dela aqui, e declaro que é uma maravilha. Tomillho e lavanda, 0 proprio odor des montanhas, no dessas montanhas arrogantes que s6 tém gelo e plantas venenosas, mas aquelas que sao resina e mirtilo, onde vemos chalés ornamentarem-se melancolicamente de queijos azuis, tudo no velouté naturel € parecido com uma paisagem da manhé, antes que as arvores jé tenham sacudido completamente a noite, uma paisagem para as faces que, sob esse afresco tétil, abendonam-se a vertigem 322 dos passeios florestais de automével: no esquegam de buzinar! curva perigosa. E 0 que dizer da vitrine de esponjas que completa essa loja, nascida durante o fim do romantismo, quando Os Burgraves" eram vaiados € 08 castelos assombrados deixados ao abandono? Es- Ponjas de bocal, esponjas livres, de textura mais varié- vel que 0 vento, de textura mais varidvel que a da pele das mulheres, fina-fina como um guardanapo ninho de abelha, ou porosa como as grutas sonores do mar em que se espreguicam sempre os tritées penteados de algas verdes, esponjas que incham sob os desgostos da gua. Conheci um homem que emava as esponjas. Nao tenho ohabito de empregar esse verbo no sentido fraco. Esse homem amava, portanto, as esponjas. Ele as tinha de todos os tamanhos, de todos os celibres. Rosas, acé froadas, purpurinas, Ele as tingia. Possufa algumas to tenras, que no podia se impedir de mordé-las. As mais ‘elas ele as vezes rasgava em seu delirio, depois chore- va verdadeiramente sobre seus esplendores esparra- mados, Algumas, lambia. Algumas, nio teria ousado tocar, eram rainhas, pessoas tidas em altaconsideragao, Outras ele comia simplesmente. Tenho também um ‘amigo que fazia amor em sonhos com esponjas. Mas para isso, limitava-se a tomélas em suas palmas e fe. ché-les: vejam voces como é fécil, O interior da loja se compée de uma primeira sala onde se vende perfuraria, em que se encontra 0 caixa, edeuma segunda que as penteadeiras dividem, por sua vez, em duas. Para essa nao pouparam espaco,sob aluz que the chega dos alpendres de vidro: uma espécie de espirito de grandeza, que perdemos um pouzo com a alta. dos valores dos aluguéis, reina ld como se vivésse- mos sempre em palécios. Toda uma parte dessa imensa sala é reservada para a espera dos clientes, que entre- tanto nfo passam de um ou dois. Eles podem permane- cer em volta dos que estdo sendo barbeados, ou distan- 128 ciarse, escolher seu canto para ler, ou somente vagar, ou como gosto de fazer, caminhar de um lado para outro. Ha uma eseada que os diverte com sua voluta. As paredes, enim, so decoradas por mil lembrangas. Foi ‘por aqui que passaram todos os que uma falsa gloria, ou talvez uma giéria verdadeira, reteve no curso de meio século nessas paragens dos freqtientadores dos boulevards de Paris, em que o renome se faz e se destaz com seu rufdo de trombeta: Grévin, Meilhac, Granval, © préprio Morny e os Goncourt, cem caras de bunda, com grotescos, cem ambiciosos, cem cantores, cem dan- carinos, cem escritores, cem folgazdes do mundo, com suas barbas, sous bigodes, suas sufcas e seus cabelos. ‘Tudo isso esbanjava fotografia e assinatura, E hé mes- ‘mo muita gente que s6 é eterna para as paredes daqui. ‘Mas alguns, que eram pobres, pagavam obarbeiro asua maneira: foi assim que um ou dois deram um pequeno Horace Vernet, creio, e que um tal Gustave Courbet, que tinha propésitos anarquistas, e que partfu um dia para o Cairo, saldou sua conta com um quadro de sua autoria, 16 adiante, a direita. Arrigoni, restaurante italiano, ocupa, em seguida ao saldio de Gélis-Gaubert, os ntimeros 25, 25, 27 € 29. Sabe- mos como sfio nese bairro os restaurantes italianos: comese muito bem nesse, mas a um prego bastante elevado; e o servico é um pouco empertigado, em relacdo a0 nivel dos pratos. No armeiro que Ihe faz. face, o estran- geiro que chega a Paris com a cabeca repleta de um mundo galante e gracioso, 0 estrangeiro que procura Montmartre e que bem freqiientemente deu tratos & bola em seu escrit6rio diante de uma fotografia do Moulinde- la-Galette, encontraré talvez um estranho alimento, pre- ferivel aos raviélis ¢ 20 minestrone, um alimento que nfo esperava para sua imaginagio voraz e langorosa: fuzis € suas culatras. Imagine que ele poder contemplar aqui ‘uma peca tinica: uma carabina raiada com um projétiLar- 124 ilo para a caga A baleial Nao serd ele surpreendide por ‘essas arapucas de espelhos para atrair cotovias? Por essas ‘armadilhas para lobo? Ele se perguntaré comoeu, ecomo cu nio saber responder, o que é esse aparelho insélito sobrepujado por um disco de borracha. Ter4 vontade de pegar nos chumbos arrumados nos armérios de acordo com seu miimero, sendo os ntimeros menores para os chumbos mais grossos. Admirard, sobre um alvo espe tado nas costas de uma velha lista telef6nica, essa inseri &o explicativa, acompanhada da bala nova deum lado, deformada de outro, edo buraco que elaé capaz de fazer Bssa bala arada uma lista telténica atravessa mals de mil piginas Bla se deforma om proporgies tae qe qualquer animal atngido 6 demubado imodiatamente, Bla pode ser usada ‘com um fuzil double-choke om qualquer tipo de pélvora, rmesino com a pélvora 7, DEFORMAGAO DA BALA ATIRADA NUMA LISTA TELEFONICA Enfim, o que ele acharé desse encantador recorte de propaganda representando um efo dizendo bom dia a.um outro cio, com essa inserigao: 125 BOM DIA, CARO AMIGO! Ja comeu seus biscoitos MOLASSINE? € esses comentarios: MOLASSINE font dogs & puppies Depois do armeiro vem o fornecedor de champanhe de S.AR,, 0 duque de Orleans. Ele poseul quatro vitrines, que seguiremos dos boulevards, no fundo da Passagem: a primeira contém Chianti, Lacrima Christ e Matvoisie, a segunda contéin Chianti, Lacrima Christi e Asti; a terceira contém aquecedores elétricos de cobre vermelho. A quar 4a, do outro lado da porta, contém apenas champanhe com as armas dos reis de Franca. Na vitrine dos aquece- dores, ha planos e desenhos de casas de campo situaclas em Domront-en-Champagne (no Sarthe), 2trés minutos da estagdo de trem, sobre a grande linha de Paris a Mans. Enfim um cartaz anuncia ao amador: UMA RARIDADE: CALVADOS 1893 Engarrafado APOS DEZOITO ANOS DE TONEL! Ai estamos no canto do segundo corredor, cuja extremidade da no fundo da galeria do Termémetro. 128 Esse Angulo, assim como também do outro lado do corredor o fundo da galeria, 6 ocupado por um ortopedis. ta especialista em hérnias quennfio tem artigos demais em suas lojas para tio heteréclito comércio. Ao lado do ven- dedor,de champanhe, observem como ele expde belas miios articuladas de madeira e outras de uma 56 peca. E bengalas, muletas, ventosas, bastonetes antf-enxaqueca. E depois, que alguém me explique esse crime passional, Guas mios cortadas numa bacia. Ataduras herniérias para todas as variedades de hérnias, simples ou duplas, com seu tampio sustentado por uma cinta metélica elas. tica, ataduras herniérias para adultes, ataduras hernia. rias para criangas, Na loja do fundo do corredor, todos ‘e552 elementos se encontram com muitos outros: meias elésticas, melas para varizes, cuecas, recipientes para aplicar injegdes, alguns decorados com flores, cintas para mulheres, rosas, vermelhas, brancas, de 3orracha, de seda, de linho ou algodio, irrigadores, clisoborbas, clis- teres, fumigadores, pipos de seringas, seringes, bolsas de gua quente, aparadores de madeira para aquecedores de ‘cama, bacias para banharos olhos, sondas e vidos de gra, ttubos de ensaio, etc, e um reclame para o Conservatorio Renée Maubel. Um cartaz trilingtie anuncia também: PRESERVATIVOS Contra diversas ENFERMIDADES HIGIENIC PRESERVATIVE Against various MALADIES 2 PRESERVATIFS Contre diverses maladies 17 Um curioso orgulho, um luxo insensato nos é re pentinamente revelado: ai esto as ataduras herniérias para os domingos. No nivel do disco compressor a arte intervém: sfo os motivos ornamentais ¢ até mesmo uma cabega de gladiador em ouro e prata, sobre fundo de cobre vermelho. O hernioso nao deve resistir ao prazer de mostrar de tempos em tempos essa jéia inti- ma e barbara, Um pequeno esqueleto de ouro, consti- tufdo unicamente por pecas que a indiistria humana pode substituir & obra divina sem destruir sua econo- mia, esté pendurado nesse bazar de esquisitices; ele & quase completo, esse gnomo metélico e brilhante, esse esquema de nés mesmos. B a seu lado, como modernizaram os deuses antigos: duas pequenas estatuetas pintadas, com a carne résea, os cabelos € 05 pelos negros, figuram Apolo ¢ Vulcano. Mas um no braco, outro na perna, aquele na cabeca, esse no ventre, eles sio completados por ataduras e pecas articuladas que arrematam os gestos classicos do Belve- dere e do Etna. Assim chegamos, portanto, a esse ponto extremo em que, orgulhoso de suas ilusdes, vaidoso como seu riso, 0 homem das mamas de granate no conhece mais limites para seus sentidos e seu espirito. Ele se substitui a eles eleva na extremidade de uma Passagen equivoca, no proprio né das correntes de ar, onde a fuga é favorecida pela sombra e pela arquitetu- ra, templos paradoxais para seus erros e enigmas. Aqui o homem finalmente se compraz com uma espécie de onicofagia intelectual: alimenta-se de uma iguaria arse- niosa que é sua prépria substancia e seu proprio vene- no. Que ele lance um tiltimo olhar sobre o corredor que ilumina mal a janela encardida que separa o especialis- ta de hérnias do engraxate, bem diante das duas esca- das das quais uma conduz ao bar do Teatro Moderno, um tiltimo olhar sobre a cozinha do restaurante Arrigo. ni que recebe a luminosidade da Passagem nesse mes. 18. mo Angulo e, mestre-escravo de suas vertigens, que ele 08 leve agora para o nimero 29 c, cuja porta, entre a cozinha ¢ a entrada do teatro, ornamenta-se de um lacénico apelo: MASSAGEM 2° andar Sombria escada, é vocé quem leva ao desabrochar do mundo. No segundo, a esquerda, lemos: MADAME JEHANE MAFSAGEM Abrem ao som da campainha. A sub-gerente loura © amarrotada apressa-nos a entrar. Sao dez francos e © que voc® quiser da mulherzinha. Atrevessada a ante-cdmara em que permanecem dois no maximo, vocé estuta ruidos de voz a direita, mas é 4 esquerda que o levam em direcdo a um desfiladeiro abscuro, atengdo, tem um degrau, e 14 estamos no quarto, Vamos, meninas. Vém apenas duas mulheres vesti- das, vocé escolhe a menor, uma loura, de cabelos cortados encaracolados, com um dente de auro bem visivel do lado, As outras somem, Bla simplesmente 129 abraca vocé e diz: Espere, vou tirar minha schapsha™ © j€ volto, e desaparece. O quarto é sujo, e daf? A cama, no meio, larga e baixa, mobilia quase inteiramente 0 aposento, onde alguns assentos pouco aprumedos, empoeirados, com suas velhas franjas, ainda podem servir de auxiliares para as partes acessbrias do deba- te. Hé uma lareira muito plana, com uma cobertura de veludo. Um cortinado atrés do canapé que fica entre a janela ea lareira, Entre ajenelaea cama, uma porta condenada que se fecha mal. Vé-se a luz por baixo dela, Pequenas estatuetas fora de moda, alguns quadros: dois, sobretudo, se impéem, acima da cama, no fundo do aposento. Sio duas gravuras, bastante castas pensando bem, sem dtivida dois suplementos do Soleil du Dimanehe, de hé muito tempo. Parecem feitas pelo mesmo autor. Uma representa um casal, num campo, que esté a direita em trajes romanticos, a Romeu e Julieta, e que parece experimentar algum langor bem natural: pois todo o campo, em que habi- tualmente borboletas executam grandes escorregade- las multicores, é agora perpassado por Cupidos ala. dos na maior desordem, uns no ar, outros dando cambalhotas na relva, outros maliciosos, que se ager- ram aos culotes do Jovem, muito reservado, ou cochi- cham aos ouvidos de sua bela. A segunda gravara, em preto como a precedente, representa uma alcova cujo cortinado esté negligentemente amarrotado, em que uma bela joven dorme sem acautelar-se com o lengol que escorregou — faz muito calor — e com um seio pudico que Jé se mostra e logo vai estar descoberto. Ela sonha. E so os mesmos amores que a visitam, como uma pé cheia de pélen, que fazem diabruras nas cortinas, no piso do quarto, ¢ até na sombra adoravel de seus cabelos desfeitos. Um segredo no comedimento dessas gravuras torna-as preferiveis para decorar esse lugar, por um instinto irrefletido, 130 em relacio a essas imagens licenciosas que encontra. mos nas paredes das casas de prego mais elevado, Uma espécie de espirito postico. Mas onde encontrei essa verdadeira poesia? Essa sensualidade conheci- da? Esse oficio? No instante em que seu rome me ven aos labios, penetro numa verdade fundamental: hoje a sombra de Théodore de Banville que reina em Paris sobre a mais baixa prostituigao. Sorte invejével para um poeta, antes de mais nada, ade ter assim legado a sua alma aos pequenos socadores clandesti- nos. Isso vale tanto quanto ter conseguido fazer os colegiais aprenderem um poema em que o louro fala na primeira pessoa. A porta se abre e, vestida somen- te com suas meias, a que eu escolhi avanga, dengosa Estou nu, ¢ ela ri porque vé que me agrada. Vern queridinho que eu lavo vocé. $é tenho agua fria, tudo bem? f assim, aqui. Encanto dos seios impuros puri- ficando meu sexo, ela tem seios pequenos e alegres, e jd sua boca se faz muito familiar. Agradavel vulge- ridade, o prepitcio se desdobra com seus cuidados, ¢ esses preparativos proporcionam um contentamento infantil. Acusam-me bastante naturalmente de exaltar a prostitui¢o e &té mesmo de favorecer seus camninhos, pois outorgam-me as vezes um curioso poder sobre 0 mundo. E ainda por cima suspeitam da idéia que, no fundo, eu poderia fazer do amor. Mas entio nio é preciso que eu tenha dessa paixio um gosto e um respeito tio grandes, que acredito tinicos, para que nenhuma repugnincia possa me deseartar de seus mais humildes, de seus menos dignos altares? Pois ndo seria desconhecer sua natureza o fato de consideréla incompativel com esse aviltamento, essa absolute ne gacdo da aventura que entretanto 6 uma aventura de mim mesmo, 0 homem que se lanea a 4gua, com essa rentincia a toda impostura, 0 que tem um sabor ine 181 briante para quem ama verdadeiramente? Denuncio aqui uma mentira, uma hipocrisia que aquele que uma vex tenha tido 0 espirito inteiramente possuide por uma mulher jamais deveria reforgar com seu consent: mento: serd que suas ligagées, suas aventuras tio tolas, ‘Wo banais, cujo andamento vocés nao pensam em in- ‘terromper nem mesmo quando uma vertigem maior se apodera de sua inquietude, seré que esses miseraveis expedientes com suas virtuosas tolices, o pudor ¢ 0 caréter de eternidade sio algo de diferente daquilo que encontro no bordel quando, tendo por uma parte do dia rodado pelas ruas com uma preocupacio crescente, conduzo-me enfim para a porta de minbe liberdade? Que as pessoas felizes me atirem a primeira pedra: elas niio tém necessidade dessa atmosfera em que me vejo mais jovem, em meio aos transtornos que incessante- mente despovoaram minha existéncia, com a lembran- ¢a dos hébitos antigos, cujos tragos, cujos rastos so ainda muito poderosos sobre meu coragio. O que pode me garantir que um homem, orgulhoso por ter conse- guido habituar-se a um s6 corpo, tenha esse prazer que eu encontro aqui de tempos em tempos, quando passei, por exemplo, diversos dias sem dinheiro € ap6s 0 paga- mento uma espécie de sentimento popular lance-me brutalmente em direcio as putas, o que pode me garan tir que um homem obtenha esse prazer por uma espé- cie de masturbacao? Minhas masturbagdes valem a dele. Ha nesse lugar uma atragdo que nao se define, que se experimenta: acredito falar uma lingua estrangeira se for preciso explicar a alguém o que me traz aqui, sem que ele tenha experimentado a mesma coisa, ou se para ele esse lugar ndo passa de algum musichall especial para vir em bando depois de beber e, curvandose a ‘uma lenda do Palais-Royai, para a farra. Ainda hoje no ésem uma emocdo colegial que atravesso as soleiras da excitabilidade particular. Nao concebo — a licenciosida- 152 de nao esta em meu coracéo — que se possa entrar de outra forma no bordel a nao ser sozinho, e grave, Persigo o grande desejo abstrato que as vezes se des- prende de algumas figuras que jamais amei. Um fervor se manifesta, Num instante sequer penso no lado social esses lugares: a expresso casa de tolerdncia no pode ser pronunciada seriamente. Ao contrario, ¢ nesses retiros que me sinto liberto de ume convengio: em plena anarquia como se diz em pleno sol. Oésis. Nada mais me serve, entiio, dessa linguagem, desses conhe- cimentos, e mesmo dessa educacio pelos quais me ensinaram a exercitarme no coragdo do mundo. Mira- gem ou espetho, um grande encantamento luz nessa sombra que se apdia nos batentes dos des:rocos com a pose cléssica da morte que acaba de deixar cair seu suddrio. O minha imagem de ossos, aqui estou: que tudo se decomponha enfim no paldcio das ilusées e do silencio. A mulher consagra-se inteiramente a minhas vontades, antecipase a elas e, despersonalizando re- pentinamente meus instintos, indica com simplicidade meu caralhoe me pede com simplicidade aquilo de que ela gosta, : ‘Tocaram a campanhia, Um outro visitante é intro- duzidoe nao perco uma palavra enquantoo levam para uum quarto vizinho, Brineadeiras pesadas, alustes 20 que ele vern fazer: é um freqtientador, sem dtivida. Ea mesma voz que tepete: Vamos, meninas. Como a luz sob a porta, 05 suspitos passam através do papelio das, paredes. Enquanto me visto, minha parceira, levantan- do 0 cortinade acima do canapé, investiga um vazio embaixo dele, Ela se perturba. Ah! Nao passa de um armario de parede. Essa frase é o bastante para desper- tar minhas suspeitas, Bem, talvez me tenham espiado: relembro velhas historias de voyeurs. Nao farei nada para descobrir. (0 28d 60 Teatro Moderno. Por essa escada estreita que contorna um guiché envidragado temos acesso 20 patamar do primeiro andar, cuja safda vimos sobre 0 corredor e, no mesmo nivel, ao escritério do diretor situado a direita do camarim, além de uma espécie de recepgiio em eujo fundo se encontram os gabinetes, mesquinhos e sujos. O bar, onde é preciso consumir algo, a maioria dos espectadores olha pobremente da entrada, £ um lugar alaranjado, onde se danga ao som. de um piano, com um cantinho para beber. Reencon- tramos ai as mulheres da peca e seus homens. O con- junto tingido pela esperanga insensata de encontrar 0 ‘americano ou ovelho extorquivel. Acreditariamos estar no interior da Alemanha: uma imitagéo deteriorada, sem decoragéo expressionista, do Scala de Berlim. Al guns degraus acima, entramos numa sale. Ser que 0 Teatro Moderno jamais teve sua época de lustro e grandeza? Vendo ai trinta espectadores nos dias de afluéncia, pomo-nos a pensar na sorte desses pequenos teatros, dos quais dizem com razio que sio verdadeiras caixas de bombons. Mocinhos de quinze anos, alguns homens balofos ¢ pessoas ao acaso de: zam por entre as poltronas mais distanciadas, que so as menos caras, enquanto alguns confeitos réseos, pro- fissionais ou atrizes de folga entre duas cenas, dissemi- nam-se nos lugares de vinte e cinco francos. As vezes, um vendedor de gado ou um portugués com risco de apoplexia se page a loucura de uma primeira fila, para ver a pele. Levaram aqui pecas bém desiguais: L’école des Garconnes, Ce coquin de Printemps e uma espécte de obra-prima, Fleur de Péché, que permanece come mode- 1o do género erético, espontaneamente lirico, que gos- tarfamos de ver meditada por todos os nossos estetas com o mal da vanguarda. Esse teatro que s6 tem por objetivo e por meio o proprio amor, é sem dtivida o ‘nico que nos apresent uma dramaturgia sem tru- 134 ques, verdadeiramente moderna. Podemos esperar ver dentro em breve os esnobes cansados do musichall e dos circos desviaremse de rumo, como gafanhotos, para esses teatros desprezados, onde a necessidade de fazer viver algumas mulheres ¢ seus proxenetas, e dois, ou trés michés"” magricelas, fez nascer uma arte tao primeva quanto a dos mistérios cristios da Idade Mé- dia, Uma arte que tem suas convengies e suas audécias, suas disciplinas e suas oposigdes. O assunto mais fre- qiientemente explorado segue mais ou menos esse €s- ‘doco: uma francesa roubada por um sultéo fica plante- da num harém até que um aviador em pane ou um, embaixador vé até 14 se divertir, atrapalhado em seus, amores pela paixo ridicula que ele inspiraa cozinheira ou a sultana mie, e tudo acaba da melhor forma posst- vel. Um pretexto qualquer, festa do harém, album de fotografias folhesdo cantando, é suficiente para fazer desfilar cinco ou seis mulheres nuas que representa as partes do mundo ou as ragas do império otomano. 0 grande poder de agio da comédia antiga, equivocos, disfarces, despeitos amorosos e até os menecmas,” niio sii esquecidos aqui. O proprio espirito do teatro primi tivo esté salvaguardado pela comunhfo natural entre a sala e a cena, devido ao desejo, ou a provocagao das mulheres, ou as conversas particulares que os risos grosseiros do auditério, seus comentérios, a troca de insultos das dangarinas com 0 pitblico indelicado, os encontros marcados estabelecem freqiientemente, jun tando um encanto espontaneo a um texto recitado de mangira monétona e geralmente desafinada, ou titu- beante, ou assoprado, ou simplesmonte lide de altima hora sem retoques. Alguns caracteres eonstantes for- mam 0 fundo bastante restrito da fauna dramética: uma espécie de megera, um lacaio tolo e robusto, um principe efeminado, um heréi saido de La vie Parisien- ne, uma fauna exética que tem amor ao senso tragico, 135 uma parisiense que tem a sua prética ¢ filosotia de acordo com o gosto do bowevard, mulheres nuas, uma ‘ou duas servas ou mensageiras. A moral é ado amor, 0 amor a preocupagiio tinica: os problemas sociais néo poderiam aflorar ai, a néo ser como pretexto de exibi- eo. Acompanhie nfo é paga e toma liberdade com seus papéis, vivendo de aventuras. E também é rude, como uma verdadeira companhia de artistas e suporta mal as brincadeiras ou a baderna. Nos entreatos os piadistas de mau gosto so chamados de lado pelos defensores naturais dos intérpretes: O que a coitada fez pré voce? Ela esta defendendo o seu pio de cada dia, ete. Nessa alhambra de putas termina enfim meu passeio ko pé dessas fontes, dessas confusdes morais, que sia marcadas ao mesmo tempo pela garra do leio e pelos dentes do rufio. No gesto a moda antiga da pequena escrava que se lembra da rue Aubryle-Boucher enquanto representa seu papel: Salve, senhoral e 0 coro canta Bo més de Venus £0 més mais belo (sacrilégio de falsas pérolas ¢ tangas bordadas de lante joules), condensa-se a renda érabe de pedras rosas em que nem o rosto humano nem os suspiros reencontram, © espelho ou 0 eco procurado. O espfrito cai na armadi- Tha dessas redes que o arrastam sem volta em diregio a0 desenlace de seu destino, o labirinto sem Minotauro, onde reaparece, transfigurado como a virgem, 0 erro com os dedios de rédium, essa minhe amante cantante, minha sombra patética. O filete que reveste seus cabe- Jos faz uma pesca magnifica de navalhas e estrelas. AS supersticgdes se erguem como martelos e caem como pedregulhos arremessados sobre as frontes incertas a0 longo das rotas mal iluminadas da noite. O que me importava tanto, minha pobre certeza, nessa grande 136 vertigem em que a consciéncia se sente um simples patamer dos abismos, no que se transformou ela? Eu niio pesso de um momento de uma queds eterna. O pé perdido nfo se reencontra jamais. Omundo moderno éo que convém a minha manei- ra de ser. Uma grande crise nasce, uma perturbacéo imensa que vai se distinguindo, O belo, obem, o justo, overdadeiro, o real... ¢ tantas outras palavras abstratas nesse mesmo instante vao banearrota. Seus contré- ios, se preferidos, logo se confundem com elas mes- mas. Uma Gnica matéria mental enfim reduzida no cadinho universal, apenas fatos ideais subsistem.O que me transpassa é um claro de mim mesmo. E foge. Nao poderei negligenciar nada, pois sou a passagem da sombra para aluz, sou ao mesmo tempo 0 ocidente ea aurora. Sou um limite, um traco, Que tudo se misture 20 vento, eis todas as palavras em minha boca. Eo que me cerca é um sulco, a onda aparente de um frisson. 487 O SENTIMENTO DA NATUREZA NO PARQUE BUTTES-CHAUMONT Ausschawende Idee"? Naqueles tempos magnificos e s6rdidos, preferindo quase sempre as preocupacdes do tempo as de meu ‘eoragao, eu vivia a0 acaso, em busca do acaso, que ere a tinica das divindades que soubera guardar seu pres- tigio. Ninguém tinha ainda instrufdo o processo ¢ al guns lhe restitufam um grande charme absurdo, coi fiando-the até o cuidado das decis6es intimas. Eu me rendia, portanto. Os dias corriam nessa espécie de acard girat6rio. Uma idéia de mim mesmo era tudo 0 que eu tinha em mente. Uma idéia que nascia suave mente, que ebria suavemente suas ramagens. Uma palavra esquecida, uma dria. Nés a sentimos ligada a totalidade de si mesmo e, como uma forma que busca, coutra com sua lanterna no meio de noite, e que voc® vé indo e vindo, tomamos a menor dobra do terreno por um homem, um arbusto ou algum pirilampo. Nessa calma e nessa inquietude alternadas que formavam, enti todo o meu céu, eu pensava, como outros pensam. do sono, que as religiGes so crises da personalidade, e 08 mitos, sonhos verdadeiros. Tinha lido num grosso livro aleméo a hist6ria desses devaneios, desses sedute- res erros. Acreditava que eles haviam perdido, acredi- tava ver que eles haviam pouco a pouco perdido seu poder eficaz nesse mundo que me rodeava e que me parecia prisioneiro dessas obsessdes inteiramente no vas e diferentes. Eu no reconhecia os deuses na rua, impregnado que estava de minha verdade precéria, 139 sem saber que toda verdade s6 me atinge no ponto om que cometi o erro, Eu nfo tinha compreendido que o mito € antes de tudo uma realidade, uma necessidade do espfrito, que ele € o caminho da consciéncia, sua esteira rolante. Eu aceitava sem exame essa crenga ‘comum segundo a qual ele é, ao menos por um instan- te, uma figura de linguagem, um meio de expresso; & ele eu preferia loucamente o pensamento abstrato felicitava-me por isso. O homem enfermo da logica: eu desconfiava das alucinagdes deificadas. Entretanto 0 que era essa necessidade que me ani- mava, essa tendéncia que eu me inclinava a seguir, esse desvio da distra¢do que me proporcionava entusiasmo? Eu experimentava a enorme fora de certos lugares, de diversos espetaculos em relagdo a mim, sem deseobrir © prinefpio de tal encantamento. Havia objetos usuais que, sem diivida alguma, participavam para mim do mistério, merguthavam-me no mistério. Amava essa embriaguez da qual eu tinha a prética, mas nfo o método. Buscava-a empiricamente com a esperanga guase sempre decepcionada de reencontréla, Lenta- mente vim a desejar conhecer a ligacdo de todos esses prazeres andnimos. Pareciame que a esséncia desses prazeres era inteiramente metatisica, que ela implicava uma espécie de gosto apaixonado pela revelagéo. Um objeto se transfigurava sob meus olhos, ele nfo tomava © aspecto alegérico nem 0 caréter do simbolo; ele me- nos manifestava uma idéia do que era essa prépria idéia, # assim ele se prolongava profundamente na massa do mundo. Eu experimentava vivamente a espe- ranga de tocar numa fechadura do universo: como se Ingiieta da fechadura fosse de repente deslizar, abrin- do @ porta, Parecia-me também que o tempo nio era estranho a esse sortilégio. E 0 tempo erescia, no sentido em que eu avangava a cada dia, ea cada dia 2umentava 0 império desses elementos, ainda dispares, sobre mi: 140 nha imagina¢io. Comecava a apreender que a natureza deste reino se alimentava de sua novidade, e que uma estrela mortal brilhava sobre seu porvir. Tais elemen- tos se mostravam para mim, portanto, como tiranos transitérios, de alguma forma agentes do acaso junto minha sensibilidade. A clareza veio enfim: eu tinha a vertigem do moderno. Essa palavra dissolve-se na boca no momento em que se forma. E assim é com todo 0 vocabulério da vida que no exprime estado, mas mudanea. Foime neces- sério convir com a insuficiéncia do pensamento puro para dar conta daquilo que me possufa. Como teria eu tirado 0 sentido do mistério do sentido da possibilidade logica? Entretanto tal era a via que eu seguia e cujo mapa nfio podia mais negligenciar e, nesses meandros, mil vezes surpreendido, comecei a adivinhar uma es- pécle de presenca que tudo me levava « chamar de divina. O que me impressionava na empreitada intelec- tual que me levava a esse ponto 6 que sua fonte estava unicamente nesse pensamento figurativo, pelo qual eu a desprezava. Lembro-me de uma cera em ebuligdo num cabeleireiro, de bragos cruzados diante de seios e de cabelos desfeitos umedecendo sua ondulacéo per- manente na agua de uma taca de cristal. Lembro-me de ume loja de peles. Lembro-me da mimica estranha do eletroscdpio de folhas de ouro. © cartolas! Vocés tive- yam para mim, durante toda uma semana, 0 negro aspecto de um ponto de interrogacdo, No limiar da emociio sensivel, um nada podia me induzir a pensar que em minha idéia limitativa e particular de cada coisa ha mais certeza do que na intuicio absoluta que tenho dela. Isso durou pouco tempo. Depois, sem ditfi- culdade desde entéo, pusme a descobrir o semblante do infinito sob as formas concretas que me escoltavam, andando ao longo das aléias da terra. 141 Solicitado dessa forma, por mim mesmo, aintegrar © infinito sob as aparéncias finitas do universo, eu tomava constantemente 0 hébito de recorrer a uma espécie de frisson que me assegurava a justeza dessa operagio incerta, Chegava a consideréJo como uma prova efetiva e inquietava-me com sua natureza, Disse, de outra forma, que eu a tomava por essencialmente metafisica. A ligacdo intima que eu descobria assim entre a atividade figurativa e a atividade metafisica de meu espfrito, em cem circunstancias que despertavarn a0 mesmo tempo em minha consciéncia, voltou-me em direcio & revisiio das criagdes miticas, que outrora eu condenara bastante sumariamente. Nao pode me esca- par por muito tempo que a propriedade de meu pensa- mento, a propriedade da evolugto de meu pensamento era um mecanismo em todos os pontos anélogo a gene se mitica e que, sem dtivida, eu nao pensava nada que nao determinasse imediatamente em meu espfrito a formagio de um deus, por mais efémero, por menos consciente que ele fosse. Pareceu-me que ohomem esta pleno de deuses como uma esponja imersa em pleno céu. Esses deuses vivem, atingem 0 apogeu de sua forga, depois morrem, deixando para outros deuses seus altares perfumados. Eles séo os préprios princi- pios de toda transformagao de tudo. Eles so a necessi- dade do movimento. Eu passeava, portanto, com em- briaguez, em meio a mil concrecdes divinas. Pusme a conceber uma mitologia em marcha. Ela merecia pro priamente o nome de mitologia moderna. Eu a imagi- nava com esse nome. 0 A lenda moderna tem seus inebriamentos ¢ sem dGvida sempre se acha alguém que cré mostrar sua 142 puerilidade, como a do Olimpo ou a da Eucaristia, Néo escutarei nem o ceticismo nem o medo da vulgaridade, Os sinais exteriores de um culto, a representagio figu- rada de suas divindades importam-me antes de tudo ¢ deixo para os habilidosos as interpretagoes de sutileza das mais belas hist6rias as quais 0 homem jé soube misturar 0 céu. Atravessarei esses campos enormes semeados de astros. Se percorro as planicies, vejo apenas orat6rios de. sertos, calvarios derrubados. A caminheda humana abandonou essas estagSes, que exigiam um ritmo com- pletamente diferente daquele que ela tem. Essas Vir- gens, as pregas de seus vestidos supunham um proces- so de reflexfo nao compativel com o princfpio de aceleracio que governa hoje a passagem. Diante de quem vai se deter portanto o pensamento contempora- neo, a0 longo dessas rotas em que perigos novos 0 limitam, diante de quem vai se humilhar a velocidade adquirida e 0 sentimento de sua fatalidade? Sao gran- des deuses vermelhos, grandes deuses amarelos, gran- des deuses verdes, fixados sobre a margem das pistas especulativas que o espirito empresta de um sentimen- to para outro, de uma idéia para sua conseqiiéncia, na corrida de sua realizacdo. Uma estranba estatudria pre side ao nascimento desses simulacros. Quase nunca os homens tinham se deleitado com um aspecto tio bar baro do destino e da forga, Os escultores sem nome que erigiram esses fantasmas metdlicos ignoravam dobrar se a.uma tradicio tao viva quanto a que trecou as igrejas, em cruz, Bsses fdolos tém entre si um parentesco que 0s torna temiveis, Surapintados de palavras ingleses e de palavras de criagdo nova, com um ttnico braco longo “e flexivel, uma cabeca luminosa ¢ sem rosto, 0 pé tinico © o ventre da roda cifrada, as bombas de gasolina tém as vezes 0 aspecto das divindades do Egito ou dos povoados antropéfagos que adoram somente a guerra. 143 Ohh, Tewaco motor oll, Bsso, Shell, grandes inscricdes do potencial humano! Muito em breve faremos 0 sinel Ga cruz diante de suas fontes, ¢ os mais jovens dentre és perecerfio por ter considerado suas ninfos ne nafta. ‘Agora que fizemos deitar a nossos pés 0 relémpa- go como um gatinho, e que sem palpitar mais que & guia contamos sobre sua face as sardas do sol, & quem transmitiremos 0 culto de latria? Outras forges cegas nasceram para nés, outros temiores maiores, ¢ @ assim que nos prostramos diante de nossas filhas, as maquinas, diante de diversas idéias com que s0- inhamos sem desconfianga, numa manhé. Alguns de nnés, que previam essa dominagéo mégica, que sen Ham que ela néo trava seu principio do principio de utilidade, acreditaram reconhecer aqui as bases de lam sentimento estético novo. Eles confundiam inge- Juamente o belo o divine. Mas eis que as razdes profundas desse sentimento pléstico que se levantou va Europa no inicio do século xx comegam a aparecen, nce desenredar. O homem delegou sua atividade as maquinas. Desistiu, por elas, da faculdade de pensar E elas pensam, as maquinas. Na evolugio desse pen samento, elas ultrapassam o uso previsto. Blas inven: taram, por exemplo, os efeitos inconcebtveis da velo- cidade, que modificam a um tel ponto quem 08 experimenta que se pode quando muito dizer, que s€ pode apenas arbitrariamente dizer que esse homer 0 mesmo que aquele que vivia antes na lentigo. O que se apodera entéo do hornem, diante desse pensa- tnento de meu pensamento, que Ihe escapa e cresce, que nada vai mais deter, nem sequer sua vontade, Gue ele acreditava criadora, @ exatamente o terror pinico, cujas armadilhas desmontadas ele imagine ‘ra, presuncosa erianga que se gabava de passear sem jnedo do escuro. Uma vez mais, na origem desse 144 terror, vot encontrado ant tagonismo do homem qu seconsiders, es considera sendo,e deseu pensamento dese tron Coir rg de ota miso Ha un co moderno:é uma expécie de grande volete que 24 eque nfo ¢ dirigido pela mio. sit Tudo o que 6 oxtravagante n ‘ nele de errente, de extraviado, mm davida pedotia caer nestas dias slab: jarcim. Jemais The tina indo uma proporgfomals estan, tmaidsia mas Aesorientadora, desde que ees eft de aaa. ou sopra nos metals, do que quando ele inventou os Jardins. ‘Uma imagem dos lazeres dorme na relva, cc pes tors iaos ohare a af com sua miragem de chafarizes e de cascalho mitido no paraiso legendério, que ele ndo esqueceu incelramente Jardins, por soa curvature, por set nndono, pela queda d'égua que desliza entre seus seios, pela languidez de seus cachos vocts 80 inulheres dovespirto, freqtientemente tolas e malva, das, mas embriaguez total, ilusdo total. Em seus lim: 7 tes de evénimos, entre seus cordées ce buxos, o hx nf mem se desfaze retorna a uma linguagem de era a fea a regador, Ele mesmoéo regador o sol, com sua eabeletra fresca, Ele €0 ancinho e a pa. Ele u poreiio de pedregulho. Jardins, voces s assomelhamn a eeses agasalhos para as mon feitos de pele de lontra, a lencos de renda, a eect de Kreores. As vezes voots enganchamn seus labios 20s baleBes; 08 tetos vocts cobrem como feras,e miam fundo dos patios interiores. Dormi em suas pirogas: meu brago tinha se estendido © pequenes formigas fugiam em directo a terra As flores ge ondensavam 145. sobre 0 céu, © banco verde lamentava o Nilo, onde sobre um solo fervente se desvaneciam, diante dele, grandes faixas brancas. Brinquei em seus gramados € meu pé em suas aléias levou mew corag&o entre o céu ¢ 0 inferno, Diante de suas platibandas, agitei, meu lengo como um imigrante a bordo. E 0 navio jé se distancia, Nos equipamentos dos jardins, os dese jos mais simples, as suavidades da noite secam com Ininha camisa. Por testamento 0 sol nos deixa um vaso de geranio. Essa noite os jardins erguem suas grandes plantas morenas que parecem, no seio das cidades, acampa- mentos de némades, Uns cochicham, outros fumam seus cachimbos em siléncio, outros tém o coragao cheio de amor. Hé os que acariciam brancos paredées, a os que se apéiam na tolice das trinchelras e maripo- sas que voam nos capuchinhos. Hé um jardim que € adivinho, outro é vendedor de tapetes. Conheco as profiss6es de todos: cantor das ruas, pesador de ouro, ladrao de prados, fidalgo gatuno, piloto dos Sargacos, e voc’, marinheiro de agua doce, vocé, devorador de fogo, & voce, voed, voce, mascates de beljos, todos charlatées e astrélogos, as mios repletas de falsos presentes, imagens da loucura humana, jardins de musgo e de mica. Eles refletem fielmente as vastes regides sentimentais em que se movem os sonhos selvagens dos cidadios. Tudo o que subsiste nos adul tos da atmosfera das florestas encantadas, tudo o que ainda particips neles do habito do milagre, tudo 0 que respira em seu sopro um perfume dos contos de fadas, sob a mesquinha aparéncia demente dessas, paisagens fracamente inventadas se revela e denun- cla o homem com seu tesouro insensato de vidrilhos intelectuais, suas superstic6es, seus delfrios. Ble se agacha agui em meio a todas as pedras redondas que péde encontrar, conta-as ¢ ri: esté contente. Assim ele 46 pée bolas de vidro nas arvores, um pouco de fgua no buraco de um rochedo. O que vio dizer disso as fmeas? Eleréias unhas eri. Quando fizer a sesta numa rede, tentaré 20 mesmo tempo o sono da morte e a paz do cemitério. Que um passaro cante e lé esta ele com lagrimas nos olhos. Ele se entemnece e oscila no meio dessa figuracéo cretina da felicidade. Seis- por-trés dos pomares, duplo branco dos terragos: sera que ele joga dominé ou se conforma com uma liturgia primitiva? Ele ri suavemente ao lado das Facsias. Os que viajaram durante todo o curso de sua vida, os que encontraram 0 amor e seus ambientes, os que queimaram suas barbas ao sul, congelaram seus cabe los no norte, aqueles cuja pele é feita de todos os s6is e ventos, aqueles que foram na boca do Oceano uma perpétua bola de tabaco maseadia pelos recifes e suas salivas, os servos da fumaga, os piolhos davela, os fills da tormenta, ao fim de seu longo pesadelo, quando retornam com um papagaio sobre os ombros e o passo prevendo os tremores de terra, néo tém um tinico Gesejo que nao seja o de ter um jardim. Entéo, nos arrabaldes mentais para onde sio relegados esses ve- Thos monstros assombrados pelas perfidias do mar, palmeiras ands, goiveiros e bordas de conchas evocam para eles o infinito. E a mulher que vern dos contins do prazer, a que foi uma olheira em volta dos othos, um 1ébio mordido, a que tocavanoshomens desconhecidos © permanecia sob um fanal, na imensa penumbra de prata.das cidades, na esquina em que viram os cfies, os punhais, os romances, a mulher que tomava a forma do desejo, tendo enfim abandonado o leque das cari- clas, 20 prego de seus solucos e de suas artimanhas, pede apenas um fundo de verdor em que perfilar 0 resto absurdo de seus dias, Para todos esses coragées obscuros pelos quais estou rodeado, a eternidade come 147 a, numa tarde, por um jardim. Podem irse, vethos Ioucos encurralados em seus canteiros, dispostos em suas flores em plena barbérie, Podem irse, vocés, meus semelhantes. Vocés, meus semelhantes? Me- diante essa idéia minhas faces sangram de vergonha. Que © toldo do céu os cubra para sempre, que ele dissimule para 0 meu olhar sua trangiiila bebedeira, seus resedas e suas poltronas de vime claro. Que 0 pica-pau do tempo, batendo em sua témpora com a casca- ta de golpes, perfure seus timpanos. Os tetos vermelhos desmoronam para dar o exemplo a seu sangue. 0 ovelha, se vocé no renunciou a toda dignidade humana, j4ébem tempo de morrer, j4 que vocé tem, enfim, gosto da jerdinagem! Vv Eu tinha me impressionado varias vezes com diver- sas estranhezas no curso da vide dos homens. Como eles reproduzem sobre telas o que seus olhares podem aprender, particularmente 0 mar, as montanhas, os rios. Como viajarn. Como tém gosto pelos jardins. Eu sentia que uma tinica palavra devia unir essas paixdes dispares e a buscava, e o que é melhor, encontrei-a: 6 que eles experimentam um sentimento confuso nessa ocupagées, comum a todas elas, anélogo a essa inquie- taco que eu tinha ao vé-los agi e que eles nomefam de osentimento da natureza. Nao tinha me perguntado se eu possufa esse sentimento. Interrogava sobre ele di- versas pessoas conhecidas por télo e por se sobress: rem nele. Percebi bem rapidamente que tinham da natureza apenas um conhecimento vulgar, que quase nao me satisfazia; que elas eram especializadas apenas no sentimento, mas completamente ignorantes em re- M8 | | | | | | | lacio a seu objeto. Eu examinava, portanto, apenas a idéia de natureza, ‘Tendo sonhado um pouco com essa filtima, tendo confrontadoa ainda que bem ou mal com as idéias mais correntes que eu fazia do universo, tive que reco- nhecer que ela era entendida nio no sentido amplo, 0 sentido filoséfico, mas num sentido estético restrito, que abarca apenas os objetos dos quais 0 homem esté ausente, Acepgao antiga de uma palavra, que nos vem desse tempo em que a obra humana era reputada feia ¢ repudiada por seu pai, e oposta por ele a uma obra divina distinta, na qual ele néo acreditave ter participa- so. Pareceu-me, pois, de inicio, que ela nfo devia desem- penher nenhum papel nessa concepeo mitica do mun: do moderno & qual eu me apegava. Mas logo a anélise dos mitos novos forcou-me a reconsiderar esse aspecto. Esses, substituidos pelos antigos mitos naturais, nao podem ser realmente opostos a eles, pois tiram sua forga, sua magia da mesma fonte, pelo pr6prio fato de que sio da mesma forma mitos e, dessa forma, o que me emociona neles é seu prolongamento em toda a natureza; € 9 reconhecimento desse prolongamento que os sagra e Ihes da sobre mim esse poder. Confessa- va amim mesmo no encontrar sombra de razéo nesse sentido partitivo da palavra natureza. Eundo a empre- gava mais a nfo ser para significar 2 um s6 tempo 0 mundo exterior. E isso convinha mais a representagaio que eu tinha dele do que uma tinica consirugéo de meu espirito enquanto limite desse espfrito. Limite que creio“falsamente descobrir por um mecanismo que é Justamente 0 da consciéncia, © mundo chega pouco a + pouco A minha consciéncia, por momentos. O que néo quer dizer que ele me seja dado. £u o dou para mim mesmo, partindo do ponto que escothi para ele, como um matemiético escolhe seu postulado inicial. De mim nasce sua necessidade, Assim ¢ natureza inteira 6 mi- 149 nha méquina: a ignordneia que tenho dela, que eu possa ser ignorante, é um simples fato de inconscién- cia. Como o matemético que determina de uma vez sua ncia, mas que, no entanto, ignora suas conseqiién- fas infaliveis. A experiéncia senstvel aparece entao para mim como 0 mecanismo da consciéncia ¢ a natu reza, vé-se no que ela se torna: a natureza é meu incons- clente, Aquilo a que meus sentidos se entregam, para falar a linguagem de habito, ndo esté separado dela, Mas por instantes, em limiares raros, reconhego esse liame que une os dados de meus sentidos, alguns desses dados, & propria natureza: ao inconsciente, Essa consciéncia requintada de uma passagem é 0 frisson de que eu falava. Objeto que proporciona sua ‘acasiao é o mito, no sentido que dou a essa palavra. ‘Tendo obtido esses esclarecimentos sobre a natu reza, os mitos, suas ligagées, eu experimentava uma espécie de febre em busca desses mitos, Suscitava-os. Agradava-me sentirme cereado deles. Eu vivia numa natureza mitica que ia se multiplicando. Em tudo isso, perguntava-me: 0 que 6 0 sentimento da natureza? A idéia primeira que vem dai est4 sempre unida a esse sentido vicioso da palavra natureza, que abandonei Essa idéia”” esté em estreita conexéio com 0 monoteis- mo cristo e com os tefsmos que safram dele. Ela supée, CEST, in finom. " B vemnos que ela nasce da deficiéncia no espirito das divindades figurativas das religioes antigas, que per. sonifieavam as forcas naturais. O cristianismo subst titi a elas esse poder sentimental, a natureza, que perdi todo valor metafisico. Os tefsmos nio agem de forma diferente um pouco mais tarde, quando substi- tuem 0 Deus triplo, figurado, pelo sentimento do bem, por exemplo, 150 1 | | eu dizia, a oposi¢io entre a obra divinae a obra huma- na, £ nas épocas em que os paganismes cedem passo ‘a0 maravilhoso cristfo que vemos esse sentimento ir- romper na arte, com seus caracteres imperiosos. Mas que,o dogmatismo cristao retroceda, por sua vez, na fé humana, e nada mais sustenta 0 sentimento vulgar da natureza, que é entiio depreciado. E preciso que ele ceda lugar a um movimento que esteja em relagéo intima com o pensamento filoséfico do século. As- sim creio poder asseverar, hoje, que ele no respon- de mais a coisa alguma. Muito ao contrério, entenda- moo no sentido geral e novo que Ihe dé a acepcao verdadeira da palavra natureza, Vemos que ele & 0 sentido do mundo exterior e, para mim, o sentido do inconsciente. E preciso se pér de acordo sobre essa ‘ltima expresséo. ‘Na verdade, se nos atemos concepeao geral do inconsciente, nao imaginamos que ele possa ter urn sentido verdadeiro. Ou pelo menos nao poderia existir dele nada além de um conhecimento abstrato, propria- mente uma intuigao légica, Mas se pensamos que 0 consciente nfio esgota em parte alguma seus elementos, a nfio ser no inconsciente, somos realmente obrigados a convir que o consciente esté contido no inconsciente Ent&o é um sentido liminar do consciente no incons: ciente, um sentido cujo ponto de partida é figurativo, enquantoseu prolongamento élégico’ queassim ocupa todo espirito — que teremoso direito de nomear como © sentido do inconsciente. Mas voltemos & definicao qué eu dava do mito e veremos que esse sentido se confunde em todos.os pontos com o sentido mitico, que ele é 0 sentido mitico. E sua descrigsio nos explica seu poder e seus efeitos. + Gina espécie de marcha-axé sentimental. 181 Assim, sentimento da natureza no passa de um outro nome do sentido mitico. Est no inicio de tudo isso 0 que eu exprimia de forma negativa, querendo marcar de que ignordncia longinqua eu retornava: “Eu ndo havia compreendido que o mito é 0 caminho da consciéncia, seu tapete de honra”. Preciso acrescentar que 0 mito é a nica voz da consciéncia, entendido fora do dominio da intuigdo légiea e que se essa verdade repugna a nossa prépria consciéneia, que ela néo é pensada jamais, que ela nfo pode ser pensada em suas formas cambiantes, mas sim imaginada fixa, estitica de alguma forma e por isso exterior ao inconsciente, independente. Que essa orgulhosa consinta nisso: ela é apenas uma modalidade e se sobrevive é somente por- que em cada ponte traz a marca da morte. Ela é a fénix do espfrito, condenada a pira perpétua. Ocorreu-me, nessa altura da reflexio, considerar 0 atalho pelo qual eu tinha chegado até ai. Observei entao nio sei que éria fortuita misturada A necessidade. O que me tinha levado daqui até 1é, o que me tinha langado em outra parte, todos esses recortes de mim mesmo cram os frutos de encontros, de circunstancias que pareciam completamente estranhas ao proprio assunto do debate: encontros malogrados, pequenas decepedes, viagens. Eu me revia num vagio, num lugar em que os outros dangavam e um nada recolocava em rota uma idéia que no obscuro siléncio jé tinha percorrido seu caminho. Numa situacdo insignificante demais para que dela eu nao guardasse detalhe algum, pareceu-me ter negligenciado um dos temas mais fentésticos de meu devaneio. Era a idéia antiga da natureza, Digo a mim mesmo antes de mais nada que, feitas as reservas de linguagem, seria possivel perguntar se nao existiria hoje um sentimento mitico particular, eficaz, que se restringisse aquilo que foi outrora a natureza, Ha mitos naturais moderns? Assim se colocava a questo. Entre- 152 tanto pareciame possivel prever que apenas ume espé- cie de retérica poderia agora distinguilos — ¢ bem artificialmente—dos outros mitose que, seele existisse, 0 sentimento moderno da natureza s6 seria explicavel gracas nogiio que eu adquirira do sentido mitico geral, Dediquei-me por algum tempo a pequenas nogdes que no me deram grande esclarecimento sobre quase nada, Depois me cansel ¢ dediquei-me inteiramente a outra coisa durante seis meses quando, um dia, entran: do em casa encontrei o tédio vestido com seu grande uniforme, sentado numa eadeira e me olnando. v Suave mulher do vento que seca o feno das luzes, tu, cujos cabelos puros, por um caminho riscado de cometas, chegam por contrabando até meus olhos, ainda uma vez Alcione, encantadora Alcione dos cilios de seda, deixa-me renover 0 mito de Moe: aler.* Que o dardo figurado da gravidade, loura arhorescéncia dos abismos do céu, venha uma vez mais golpear teu seio, que ele te penetre, nudez de amianto, que ele te faga desfalecer novamente, Assim, de tem- pos em tempos, no coraciio do carrossel, a méo que agrupa as atracdes planetirias deixa escapar o né dos baldes do sol. As linhas de forca caem entio em plenas Pidiades e sob essa chuva Alcione sorri. A claridade de seus dentes ilumina por um instante a terra, £ nesse instante que sonho e vejo no ar 0 espectro absurdo de minha sorte. + Esse espectro € 0 tédio, jovem de grande beleza que baba e passeia com uma rede de cacar borboletas, para pegar os peixes vermelhos. Ele tem no bolso um pod6: metro ¢ tesouras de unhas, cartas e todo tipo de jogos baseados nas ilusdes dticas. Ele 1é em voz alta os carta- 153, zes € as placas. Sabe os jornais de cor. Conta histérias que no fazem rir. Ele passa sobre os olhos a ino de trevas. Ndo é? Dizem os franceses a propésito de tudo. Mas uma redundancia terrivel escande suas palavras: Para que serve isso? Nao pode haver um botdo elétrico que ele nao ligue. Ele nfo pode ver uma casa que no visite, uma soleira que nao atravesse, um livro que nao compre. Para que serve isso? ‘Tudo sem curiosidade nem prazer, mas porque é preciso fazer alguma coisa, antes de mais nada e também porque estamos aqui antes de mais nada. Bo que era esse TUDO inchando na voz que o forma’ [ee] Nada que valesse a pena de se remoer tanto assim por ter sido enganado. Escutem a cancao do tédio numa dria conhecida, a cango conhecida nume aria de tédio: Prd. qué Prd. qué Pré que isso Pré que isso Pré que isso Prd. qué Prd qu® Pri que isso Prd qué Prd gud isso isso isso Ad libitum: PRA PRA PRA ~ PRA PRA PRA que isso 0 tédio oltha as pessoas passarem na rua. Ele entra num café, Sai, Entra numa moca. Sai. Ele subverte uma vida: sai bem dessa. Ble bem que mataria: sai bem dessa, Ele se mataria: 154 | j i i Ba segunda estrofe da cancao. Portanto, naquele dia, 0 tédio estava sentado A mi nha mesa, exatamente como se estivesse em sua casa. ‘Tinha arregacado as mangas e escrito pequenas narra- tivas que me leu: “Nam transmissor de movimento de méquinas, a epilopsia tinha feito amizade com um fabricante de cestos que delirava em seu préprio domicflio. Ela Ihe ofereceu colibris. Em pouco tempo aprenden a tornar- se mestra de suas proprias preguicas e isso era tudo 0 que ela desejava. Enquanto havia dinheiro, as sobras de vime, digerindo ao sol, ameagavam virar contrabandis tas como o pai delas. O guardaflorestal das noites sombrias nfo se teria contentado com pio e agua sem aria verde e o pequeno bastio. Mas o sonho das rodas de carrinho voltava com uma preciso inteiramente + matemiética a cada vez que a persiana batia no menini- nho maledtucado, tinico herdeiro da Casa Ventos e Cia, comissio exportagiio.” 0 tédio parou, olhou-me e pésse novamente a ler: Beba escondido a astiicia feita de lantejoulas, que 158 serve de traje para essas dangarinas de corda que se suicidam na aurora com punhais nos sorrisos e catas- trofes nos dedos. Vocé encontraré sob as pedras os s6is danificados pelo uso dos estupefacientes que me entre- garam a enormes escorpides dos quais posso ver apenas as patas, mas cuja sombra total me revela a presenca acima de minha cabega, no ponto em que os cabelos se retinem com as preocupacdes trangadas ao pensamen- to da morte. A morte hoje, segunda-feira, é uma nada- dora cujo sexo vejo mexer na prata da claridade do magnésio, “Sob sua malha colante ostrelada, o prazer dese- nhou nervos de ramagem infantil. Ao tocé-la, a égua se transforma em f6sforo, A morte se chama Lucie, nessa noite, Eu me embrenho por seu suico, onde clarées de casas perdidas nas campinas sealternam com braseiros da Inquisi¢do € sinais dos provocadares de nautré- gios.”” Venha a mim a noite que se desdobra segundo uma elipse cujo eixo se desloca 4 medida que meu espirito chega a compreender sua lei e que assim se assemetha, espantosamente, a um vestido que cai de um corpo percebido por acaso ao pé dos revérberos. Que sejam servidos os pedreguthos sobre as caricias ¢ 05 assassinatos sobre os comboios de metré! Embre- nho-me, dizia eu, no seio dessa camélia que é minha conhecida hé anos, diante da impossibilidade de me achar pela manh& a mesa, onde fiz minha prece ao sono. Grandes ledes jé aparecem no levante e fazem ouvir uma incrivel melodia. Jé se abrem as janelas da aventura e eis que comeca a cruzada do beijo ¢ dos passaros. Uma tropa de siléncios se aproxima, Ela parece aclamar alguém num espelho. £ a greve de fome com seus espléndidos punhos e a sombra do confessor me entra por um olho para sair pelo outro. Que eu me dane, padre, se o senhor for outra coisa além da atra- io pelo perigo. O senhor ri como uma louca e os 156 | | 4 | 4 tabiques caem por terra, Caixas de papelao, caixas de papelio, costureirinhas.”” A todo instante as casas de costura afrouxam suas chagas em meus miolos. S40 realmente verdadeiras libélulas? Sou prisioneiro de sua exibicio. Apés o diltvio dos pensamentos, as méos juntas se dispersam sobre os telhados e reen: contram ao pé dos para-raios 0 casal misterioso que acaba de unir sob um plitano a necessidade de fugir vestido de oficial de paz.” De repente o tédio levantouse e expulsoume de meu quarto. Foi entio que tive a idéia de fazer uma visita a meu amigo André Breton, vl Em 1924, apés ter dado algumas voltas por sua propria curiosidade e pelos divertimentos um pouco simples que guardara de seu pai e de sua mie, jé tendo esgotado todos os seus recursos, o homem tentava se distrair com um expediente mais a altura dos aconteci- mentos que ele atravessava. Nao havia entio para ele outra saida, a.ndo ser restituir & vida a cor tragica que estava altamente favorecida naquele ano, quando as catéstrofes foram a moeda mitida dos dias, Dai essa vaga de sinceridade heréica e a voga das brincadeiras que Ihe permitiam manifestar-se: notas para as quali- dades eos defeitos de cada um, jogo da verdad forgada, jogo das preferéncias, que so grandes dramas e ajudam a devolver aos pensamentos tornados inoperantes na vida de sociedade essa cficécia, essa capacidade ofensi va primeira, em que as rupturas, os citimes, as descon fiangas, as Tuinas do amor e da amizade encontram sua origem. Sempre vi que essas ocupagdes que acreditava- mos inocentes deixavam tragos longinquos naqueles que se dedicavam a elas e que, no final das contas, era 157 esses destrogos que eles tiravam prazer, apesar de suas, denegagdes ¢ de suas ressonanciss impreviss vyeis.” Um gosto do desastre estava no ar. Ele banhava, cle tingia a vida: essa fung&o de duracio tomava do ‘moderno Gaquele tempo um sotaque que logo pareceré singular e de alguma forma inexplicével. Encontravam-se na casa de André Breton, durante asobremesa do jantar, ao pé dos quadros que fixam na parede alguns aspectos da magia passageira, diversas pessoas que tinham consumido a tarde nesse lugar de convergéncias, com esses jogos de que falava, Elas se encontravam no estupor que se segue a eles, quando no se tem mais vontade de prosseguir, mas somente de considerar os conhecimentos que se podem tirar desse exercicio acabado. Havia um peso sobre as cabe- cas endo parecia que alguma coisa pudesse nascer dessa combinacdo de homens e mulheres que acaba- vam uma refeigéo ao lado de um céozinho. Foi entio que André Breton decidiu sair comigo e com Marcel Noll. Marcel Noll participava da prostragio geral, que para ele aumentava devido a diversas coincidéncias que o perturbavam e que ele tinha sofrido nas tiltimes horas. Parecia-nos dispor. todos trés, de frageis recursos na baixa claridade timida da primavera, sobre os decli- ‘ves de Montmartre, onde diversas tentagdes piscavam © olho sem adquirir esse poder que teriamos gostado de reconhecer nelas. Todo esse encanto das luzes, que se manifestava nas portas banais do prazer, nfo nos retinha nas ruas, por onde deslizavamos com uma ‘bruma leve e nossas névoas particulares. Esse bairro que € feito de lantejoulas, onde os vendedores de bugi- gangas aproveitam-se do desvario de todo um povo sentimental, esse bairro que tern um claro de olho em contraste com o kajal™ — era cedo demais para as oates, tarde demais para o cinema —deixava-nos fugir 158 por suas malas de trevas em diregio a place Saint-Geor- ges que em véo contornava a rue Laferridre com seu hemicicio de beijos. Na bajxada da rue Notre-Dame-de- Loretie, sensivelmente no nivel do oculista que tem em sua vitrine um pequeno busto de mulher penteada a moda de 1907, em composicio policrome, que ele mu- niu de éculos antigos muito grossos ¢ que familiarmen- te temos 0 costume de chamar de A Beleza futura, reencontramos no fundo de nosso abatimento 0 uso incerto da fala. André Breton nao queria ir mais longe. Marcell Noll propunha ir para Montparnasse quanto a mim beber era tudo 0 que queria. Essa espécie de creptisculo da decisio arrastou-se conosco até a encru- zilhada de Chateaudum, que € onde os acidentes em Paris mais gostam de se produzir. Tomar um téxi pare- ceurnos entio mais facil do que tomar uma resolucio. Noll, sempre assombrado por coincidéneias recentes, deu inteiramente ao acaso 0 enderego do Lion de Belfort, porque naquele dia mesmo Robert Desnos devia se encontrar Ide porque na mesma hora alguém... quan- do André Breton propés ir para o parque Bu‘tes-Chau- mont, "crue sem dtivida estava fechado, Algumas palavras arrastam com elas representacdes que ultrapassam a representacio fisiea. O Buttes Chau ‘mont provocava em nés uma tiragem, com o tangivel desses fenémenos, uma miragem comum da qual nos sentiamos todos os trés como a mesma presa. Toda melancolia se dissipava sob uma esperanga imensa ¢ ingénua. Enfim famos destruir 0 tédio, diante de nés abria-se uma caga miraculosa, um terreno de experién- cias, onde era possivel que tivéssemos mil surpresas e, ‘quem sabe? uma grande revelagio que transformaria a vida eo destino, £ um sinal dos tempos que trés jovens fantasiem assim, de imediato, tais possibilidades para um lugar. Para eles 0 romanesco tem primazia sobre qualquer outro atrativo desse parque, queduranteuma 150 meia hora tomariio pela Mesopotamia, Esse grande ofsis num bairro popular, zona suspeita em que reina uma notével luminosidade de assassinatos, essa area louca nascida na cabeca de um arquiteto, resultante do conflito entre JeanJacques Rousseau ¢ as condicdes econémicas de existéncia parisiense, é para os trés ‘caminhantes uma proveta da quimica humane, na qual os precipitados tém a palavra e olhos de estranha cor. Se supéem com exaltacéio que o Buttes-Chaumont pode permanecer aberto durante a noite, nao ¢ por espera- rem dele o retiro da solido, mas sim 0 retiro de todo um mundo aventureiro que o singular desejo de vir para essa sombra pode ter triado e agrupado na extre- midade do mistério, segundo uma semelhanga oculta. Quase no terdo receio de ir dar nesse ponto de encon: tro ja freqiientado por uma corja que eles encontraram nas noites do Bois de Boulogne e que hoje néo tem ‘enigma para eles, O que eles buscam nifo so amantes de prazer: buscam curiosos ¢ essa palavra em suas bocas caracteriza uma forma ativa da inteligencia. Eles bus- cam, esperamn nesses pequenos bosques perdidos sob 08 fogos do perigo, uma mulher que néo tenha sucum- ido, uma mulher que aja de caso pensado, uma mu- Iher que tenha da vida um sentido tao extenso, uma mulher tio verdadeiramente pronta para tudo, que por ela valha a pena subverter o universo, enfim. £ quando 08 trés amigos constatam que nao esto armados. Essas preocupagées nao eram novas para nés: elas diziam respeito a uma grande quimera, resultante da impossibilidade moderna de se subtrair as leis que estabelecem uma invasora moral universal em que os individuos no acham mais vantagem. Havia entre nés ‘um tema habitual, um dominio de franqueza em que tudo seria permitido para experimentadores animados pelo novo espirito que os ligava, nés 0 inventévamos segundo a escala da vida daquele tempo, com suas 160 grandes cidades, suas fébricas, suas regides da cultura, nés o disptinhamos na margem mais favorével para a liberdade e 0 segredo, que nos parecia ser esse grande arrabalde equivoco em volta de Paris, moldura das cenas mais perturbadoras dos folhetins e dos seriacos franceses, onde toda uma arte draméticase revela. Sem evocarmos esse lugar, figurévamos suas vias de acesso, as rotas desertas com pequenas casas fechades, os gran- des cartazes Lucite ¢ um carro abandonado, nfo longe de uma estrada de ferro. Nao ¢ dificil que semelhante ficgfio pareca infantil para aqueles que nao véem nela oavesso de diversas existéncias, Nio se enganem a esse respeito: a imaginagdo jamais permanece impagavel. Ela jé € 0 infcio temfvel de uma realizagéo e esse mito devia levar bem Jonge um ou dois daqueles que tinham presidido seu nascimento. His que, ociosemente, pomo- nos a pensar que talvez houvesse em Paris, ao sul do décimonono arrondissement, um laboratério que, gre- gas & noite, correspondesse ao mais desordenado de nossa inven¢&o. O téxi que nos levava com nossa ma- quinaria de sonhos, tendo atravessado pelo lado direito da interminavel rue La Fayetie 0 nono e 0 décimo arrondissements, na direcdo sudoestenordeste, atingiu enfim o décimo-nono nesse ponto preciso que trazia 0 nome da Alemenha antes do de Jean Jaurés, onde por um Angulo de aproximademente cento e cinqtienta graus, aberto na direcdo suceste, o canal Saint Martin se tne ao canal do Oureg, na saida da Bacia de La Villette, ao pé dos grandes edificios da Alfandega, na esquina dos boulevards exteriores e do metrd aézeo que retine irrisoriamente esses dois extremos, Nation e Dauphine, diante da companhia de Petites Voitures, do café de La Rotonde e do café de La Mandotine, a dois passos da rue Louis Blane, onde Le Libertaire tem sua sede, ao norte do feudo da sifilis e a0 sul do servigo finebre, entre os armazéns gerais de La Villette ¢ as oficinas de materiais 161 das estradas de ferro do Norte. Depois, penetrando diretamente em direcdo ao sudeste, ele pegou a avenue Secrétan que é cheia de érvores ¢ que, depois do cinema eda companhia geral dos dnibus, atravessa uma regidio de escolas © de dispensérios, triunfo da organizacio laica. Ela estava quase deserta nessa hora e completa- mente entregue ao espago, grande paisagem de con: trugées mortas e titeis, onde a pedra tomava ur aspec- to de bravata, ao lado de paredes de tijolos e entulhos, de conjuntos de galpées que, de altura desigual, limita: vam diversas idéias filantrépicas da vizinhanga. No nivel da rue de Meauce nao vimos 0 pequeno pontilhnado vermetho que traca o limite do bairro de La Villette e do bairro du Combat. Jé ultrapassévamos 0 metr6 Bolivar onde termina por um degrau em hélice a rue Bolivar, que se abre sobre um prado de edificios novos. A rue Secrétan entio sobe e chega ao grande depésito dos Paralelepipedos, a pequena distancia da Bscola profissio: nal Jacquard. & assim que, nas proximidades do parque em que esta aninhado o inconsciente da cidade, os grandes mensageiros da vida citadina assumem sem- blantes ameagadores e surgem acima dos terrenos va- gos e de suas cabanas de trapeiros e de hortelos, com toda a majestade convencional e o gesto condensado das estétuas. Teria sido dificil nessa hora, com a veloci- dade do carro, constataro ntimero anormal de oculistas que encontramos na rue Secrétan, da rue Bolivar até a rue Manin, onde enfim o taxi parou diante do chalé Edouard, Niipeias e Banquetes, que alia, com seu friso de madeira recortada, 0 estilo da Floresta Negra ao do Bas-Meudon. Pode-se imaginar o estado de espirito dos trés com- panheiros, no instante ern que constataram que a porta do parque estava aberta. Um deles, Noll, jamais tinha vindo a esse lugar, para o qual fora levado apés um dia de superstigdes, de inquictude e de tédio, num brusco 162 sobressalto imaginative que seus dois amigos ainda reforcavam, devido aos propésitos que sustentavam em relagio a esse jardim, Dele guardaram na meméria a grande ponte dos Suicidas, onde se matavam, antes, que Ihe colocassem uma grade, até mesmo os passantes que nfo tinham tomado essa decisio, masque oabismo de repente tentava, Guardaram também o Belvedere — parece inacreditavel que se possa ir & noite ao Belvedere — o Belvedere ¢ 0 lago ¢ a inverossimil diversidade dessa construgdo de pequenos vales ¢ de gua viva. Eram. nove e vinte e cinco e uma bruma espessa descera sobre toda a cidade. Os altos postes de gés comprimido que iluminam o parque formavam grandes rastos sulfuro- 508 nessa diibia noite em que se alongavam os troncos das arvores, Alguns garotos de boné safram do parque ¢ distanciaram-se, sem cantar. Entramos com o senti- mento da conquista e a verdadeira embriaguez da dis- ponibilidade de espirito, vi O parque Buttes-Chaumont, visto do alto, tem a for- ma de um gorro de noite cujo eixo, perceptivelmente orientado de oeste para leste, junta-se ao face a face da ‘rue Priestley com a rue Manin, ¢ 0 da rue de Hautpoul com aruede Crimeée; sua base retilinea formada pela rue de Crimée orientada para norte-sul, é ligeiramente obli- qua em direcdo ao sudeste, da rue Manin rumo & rue du général-Brunot. Dos dois lados curvilfneos dessa figura, © setentrional, convexo, é formado, no nordeste, pela . Tue Manin, ¢ o meridional, céncavo, no sudeste, pela rue Botzaris. No mais, a ponta, o angulo oposto & base, formado pela reuniao desses dois lados, € desviado em direcao ao sul e ligeiramente em direcio ao leste, for- mando um cume anguloso que prolonge o parque a0 165 sul, entre arue Manin, além das rues Priestley e Secrétan, ea rue Bolivar que se segue a ela no canto da rue Manin até além da rue des Dunes, duma parte e, de outra, da rue Botwaris € da rue Fessart até a rue Bolivar. A base desse prolongamento é constituida pelas aléias do par- que que unem a porte da rue Secrétan & porta da rue Fessart, O relevo ¢ as aléias que cle determina sfio organizados segundo trés sistemas: um a oeste, forman- doo prolongamento descrito, o segundo no centro, em volta do lago e que ocupa sua parte média, o tereeiro a leste, em volta da linha ferrovidria urbana, que atraves- se. parque, da rue de Crimée e da rue Manin, até a rue Botzaris, no nivel do Reservatério, seguindo uma reta perpendicular ao segmento correspondente da rue Bot- zaris. As portes do parque situam-se: ao norte, na place Armand-Carrel, na extremidade da avenue Secrétan e, por fim, no Angulo da rue de Crimée e da rue Manin; no sul, na esquina Botivar-Botzaris, no nivel da rue Fessart €,por iltimo, um pouco aoeste do Reservatério Botzaris; finalmente, nas vizinhangas da esquina sudeste, hd um portio diante da rue de La Villette. Nao ha nenhuma entrada na rue de Crimée. ‘Osetor ocidental, cujos limites descrevemos, forma uma tiniea colina rodeada de seis macigos, sem eontar 0s extensos macicos limnftrofes das rues Botzaris, Bolivar € Manin. Essa colina situada a leste do cume anguloso sobrepuja logo apés a entrada da rue Fessart. © acesso a ela se faz por um caminho em espiral, que preciso tomar novamente para voltar a descer. Ela limita em direcio ao leste o caminho da rue Fessart para a rue Secrétan, que costeia, antes dela, os trésprimeiros macigos deeu falava, situados ao norte da colina, enquanto os trés outros estilo situados a sul e @ oeste, em relacio a ela, ‘O segundo setor, central, de dimensées muito supe riores as do setor ocidental, apresenta em sua parte média um lago visivelmente quadrilétero, cuja base 164 meridional é paralela a rue Botzaris, enquanto a seten- trional, curvilinea, é dirigida obliquamente, no conjun- to de sudeste para noroeste, a fim de formar com a rue ‘Manin um Angulo obtuso aberto em direcio ao sudoes- te. De tal forma que o lado ocidental do lago é menor que 0 oriental. Uma itha triangular encontre-se ai. Seus lados sio: 0 setentrional paralelo ao ledo setentrional do lago, os dos outros convergentes em direcio A por- co média da costa sul desse lago. Ela é unida & terra por duas pontes, ume curta ao sul, outra muito mais Tonga em seu éngulo oeste. A ilha constitui uma colina, sobrepujada por um belvedere. Duas colinas limitam a0 sul 0 lago. Uma, a leste, abriga as grutas em sua margem setentrional; outra, a oeste, sobrepuja o porto central da rue Botzarts, Entre a esquina e essa tiltima ’@ fecha, no oeste, 0 circo cujo Jago € 0 centro. A disposico em vales do terreno, formado por essas duas tiltimas colinas, apés terse desviado ligeiramente na altura do angulo ocidental do lago, ergue-se, sem atingir sua altura anterior, para constituir em direcdo ao norte um relevo que nfo me- rece o nome de colina, uma espécie de elevagio em forma de corcova, cuja vertente oriental limita o lago a noroeste € deixa ver 0 café do parque. Depois, na entrada da place Armand-Carrel, a lndeira desce, para voltar a subir crescendo ao longo da margem seten- trional do lago, confundindose com o relevo do tercei- ro setor. Esse contém uma colina que ocupa a esquina sudes- te do parque, uma outra situada a nordeste do lago com -Seus alpendres ¢ entre esses dois sistemas de alturas, um grande conjunto de vales orientado ao longo da nha ferrovidria urbana que se encontra a céu aberto sobre os dois tergos norte do percurso e que se embre nha num tunel ao sul. E, nesse nivel, 0 centro do con- colina, uma outra col 185 junto de vales se ergue para formar uma dobra de passagem entre as duas colinas do setor. Em sus totalidade o parque Buttes-Chaumont cobre vinte e cinco hectares de terreno. Construfdo durante fa segunda metade do século xx, obra de Barillet Des- champs e a Alphand, esse tiltimo diretor dos Passeios € Jardins. Ble se estende por um quarto da superficie do bairro du Combat, entranhado como uma cunha nese bairro, de leste a oeste, na parte média da rwe de Crimée que o separa do bairro de VAmérique. vu Entre as forgas naturais, uma hé cujo poder reco- nhecido de todos os tempos permanece em todos 08 tempos misterioso e completamente misturado ao ho- mem: é a noite, Essa grande ilusiio negra segue a moda © as variagdes sensiveis de seus escravos. A noite de nossas cidades nao se assemelha mais aquele clamor dos ces das trevas latinas, nern ao morcego da Idade- ‘Média, nem a essa imagem das dores que é a noite da Renascenga. £ um monstro imenso de lata, perfurado mil vezes por punhais. O sangue da noite moderna é uma luz que conta, Tatuagens, ela trez tatuagens mé- veis sobre seu seio, a noite. Ela tem bigodinhos de faiscas e, no ponto em que as fumacas evaporam, ho- mens so elevados sobre astros deslizantes. A noite tem. apitos e lagos de clardes. Fla pende como um fruto no Iitoral terrestre, como um quarto de boi no punho de ouro das cidades. Esse cadaver palpitante desenlagou sua cabeleira sobre o mundo e, nesse feixe, 0 tiltimo, 0 fantasma incerto das liberdades se refugia ¢ esgota na margem das Tuas iluminadas pelo sentido social seu desejo insensato de ar livre e de perigo. Assim, nos Jardins piblicos, o mais compacto da sombra confun- 166 7 de-se com uma espécie de beijo desesperado do amor e da revolta Ela confere @ esses lugares absurdos um sentido que é desconhecido, Néo foi para o luxo, como quer a idéia corrente, que Lufs xv mandou construir Versa- thes, mas para o amor, que tem também sua majestade, com os esconderijos de folhagem aparada, as galerias para passelo com grutas ¢ 0 povo demente das estituas, Hoje a higiene ocupa um lugar de pompa para os habitentes das cidades e é em seu nome que, incons- cientemente, eles constroem esses retiros de arvoredo que tomam inocentemente por um refiigio contra a tuberculose. E, depois, a noite desce e os parques se levantam. Como balanca um homem que adormece no trem, e sua mio pende, e logo todo esse grande corpo que esquece a velocidade do vagio vai se dobrar & imobilidade do sonho, assim a moralidade urbana re pentinamente vacila sob as Arvores. Uma espécie de langor que tem o timbre ea graca daquilo que no pode ser conhecido transpée as pequenas pontes nisticas, dos quais muitas néo so de verdadeira madeira, f entéo que as pessoas créem buscar o prazer. Nas ondu lagGes do terreno, em que tudo as solicita, elas sio os bringuedos da noite, elas so os marinheiros desse velame em trapos e eis que alguns deles ja naufragam. O grande clamor da imaginacio as faz. esquecer o silén: cio. Sobre as aguas de satisfagio, no tomozelo nu das cascatas, vemnos deslizar o cisne Bt caetera, Aqui comega uma regio de eclipse. Ah, esse ruido de correntes que tombam no primeiro passo em diregio ao coracdo som brio do jardim! H& um momento em que todo mundo 6 fraco de- ‘mais para 0 seu amor, hé um momento que se asserne tha auma frutinha bem madura, um momento que esté saturado de si mesmo. Por duas vias ctimplices, o dese- Joe a vertigem acrescentam-se um ao outro e quando 167 confinam, quando se misturam, num salto, num so: bressalto do olhar, ergome além de minhas forcas, além das circunstancias, que no so mais um desses aspectos luzidios das coisas, mas minha vida, a vida, 0 instinto de sobrevivéncia, o pensamento de quesouum, ser continuo, além de tudo que empreendo. De minha meméria me ergo, ergo-me no sentimento conereto da existéncia, que esté inteframente envolvido pela morte, Eis-me aqui na exceléncia do destino. O ar é selvagem ¢ queima diante dos olhos. & preciso que o aconteci- mento se transforme em minha loucura. Sei, apesar da raaiio, que minha loucura tem pare ela um poder irrepreensivel que esté acima do humano. Sombra ou turbilhdo, dé no mesmo: a noite ndo entrega suas artérias. ‘0 homem presa da armaditha das estrelas. Ele se acreditava um animal conhecido. Acreditava-se cativo das peripécias e dos dias. Seus sentidos, seu espirito, suas quimeras, cle 56 se dava um tempo de reflexio para coordenar e perseguir idéias que tivera, que pen- sava manter em sua cabega, do comego so fim, da lembranga ao presente, como um péssaro vivo entre os dedos das mos. Esperava de si préprio a conclusio, « coeréncia. Organizavase por si mesmo, em volta dos epis6dios interligados de sua sorte. Confrontava-se con- sigo mesmo, seguia-se; era ele mesmo sua sombra, uma hipotese © seu minguante. Via com lucidez embriage- dora o tragado das forcas que o dominavam. Contavaas. Mimavase sobretudo por suas perspectivas trangiiilas, ra, finalmente, numa noite « noite o olhou, a noite que se olha nos jardins como nos espelhos, que se multiplica pela cruz de suas arvores, a noite que reen- contra aqui sua lenda e seu semblante de outrora, ‘Mas 0 povo dos passantes e caminhantes das gran- des cidades, cidades que nio terminam onde ele se movimenta ¢ morte, nfo tem 0 direito da nostalgia. 168 Nada Ihe 6 oferecido além desses mosaicos de flores & prados, ou dessas reducdes arbitrérias danatureza, que constituem os dois tipos de paraiso corrente. Sao esses, liltimos que ele prefere, porque esté ainda embriagado pelo gleool roméntico. Ele se langa a essa ilusio, pronto para recitar, no Buttes-Chaumoni, Le Lac de Lamartine, que fica tio bonito numa mtisiea, Uma vez que se tenha, langado a isso, ndo é no rumor das torrentes que seu espirito sogobra: a linha ferrovidria urbana esté ld ¢ a sofreguidao das ruas limita o horizonte. Grandes lam- padas frias colocam-se acima de toda a maquinaria moderna, que se dobra também, que compreende tam- ‘bém os rochedos, as plantas que no perdem as folhas no inverno e os regatos domesticados. E 0 homem, nesse lugar de confuséio, reencontra com assombro a marca monstruosa de seu corpo e sua face escavada. Ble se choca contra si mesmo a cada passo, Kis af o palacio de que vocé precisa, grande mec&nica pensante, para saber enfim quem voce é, x Mal avangévamos no perfume do grande ciclame noturno, trocando 0 caminho pelo mais sombrio dos atalhos, e jé descobriamos no oco das folhagens negras figuras acasaladas sobre suas cadeiras sagradas, sobre bancos semelhantes a buracos na imensa solidéo hu mana. 6 casais! Em seu siléneio um grande passaro perfilase de repente. Mimicas lentas, mios estreitas, posturas divinas. Tomei de seus modos, da diversidade de seus modos, um gosto que leva & danacdo, um gosto danado da surpresa. Aqueles que estio iméveis, que nao se olham, que se perdem, aqueles que um vinico ponto une, por exemplo as espaduas, aqueles que esto inteiramente mesclados de alto a baixo do corpo, aque- 169 les que se escutam, aqueles que se dissipam no ar da paisagem, os apaixonados distantes, os medrosos, os apressados, os que se créem invisiveis no fundo de um beijo sem fim, os que se levantam de repente e andam, os que estremecem, 05 que descobrem de uma vez 0 sentimento da existéncia, encolhsidos nesse prazer que tudo retardaré, os voluptuosos que evitam a voliipta, os casais dos parques sabem fazer durar o prazer além do humanamente possivel. Passeemos por esse cenério dos prazeres, esse cenério repleto de delitos mentais, de espasmos imaginérios. Talvex. compreendamos, na traigo de um gesto ou de um suspiro, o que liga esses fantasmas sensiveis A vida das moitas trementes, 20 cascalho azul que range sob nossos pés. Quem me diré 0 segredo dos arcos de ferro que limitam os caminhos, a0 longo dos gramados, 0 segredo desses coracées sub- missos a todo um protocolo de verdor e a enfadonha lei de um pais inventado? Avancemos, meus amigos, por essa noite povoada, Portanto eis af o amor, 0 hierético amor que faz a sebe sobre nossa passagem. Em busca do prazer ou de alguma confuséo ineontivel, todo o desespero humano estd aqui, submetendose a esse rito imaginério num templo de evénimos em que tudo — o frio vivido e os, olhares — se une contra o culto af celebrado. Mas sou ‘um objeto desse culto, minha presenga, a nossa. Acre- ditariamos ver os candelabros de prata cinzelada pas: seando em meio aos eltares em que essa missa canta- da é celebrada por sacerdotes hieraticos submetidos a estranhos cénones variéveis, em suas capelas de bei- jos. “O deslocamentos insensiveis dos corpos, vocés significam a cada lance uma grande resolugio filos6- fica das trevas, nada est& perdido, suaves translagdes, daquilo que é intencional em seu nascimento. f a hora do frisson, que se assemelha a revolta contra 170 um traco de tinta negra. Regozijamo-nos por sermos os tintelros Mancet, Nott: Que caminho percorrido desde a floresta primitival Primeiro eu gastava a relva com meus pés nus, em diregdo ao rio, Bastou um passo, e tive a primeira idéia da lembranca, Depois, foi meu rastro persistente ¢ 0 espectro dos atalhos ergueu-se em minha inteligéncia, Ele me disse com suavidade como ir procurar uma apaixonada, Conduziu-me em diregio a lugares de de- vaneio, em que o hébito enfim tomava a forma de meu coragio. A aléia! Meus primeiros escrevos, com seus dorsos luzentes dobrados sobre tangas de palha, trilh ram para mim uma rota. fizeram da arvoree da pedra camplices de meus passos. A eléial Ainda nfo passava de uma via ‘til, uma brecha para minha alma de selvagem e essa serpente cresceu e reunit as cidades, mas no era a eléia de nome nostélgico, a aléia que surgiv somente no espirito megnifico e puro de um louco que devia ser um monarca muito jovem, e sem desejos, a aléia com um claro de metal malhado a frio deum século que termina, A aléia! Desde que penetro nela, percebo toda a sua perspectivaea saida arramada dessa grande associagéo de idéias plantada de uma Ponta & outra das arvores talhadas, cujo aroma foi escolhido. Sua largura ¢ proporcional ao uso previsto, seu comprimento & melancolia do jardineiro-paisagista. Bla-desposa as formas dos gramados, desposa « fronte pélida do caminhante. Nao multipliquem as aléias, recomendam os tratados téenicos. Quanto a mim, digo: de que importam, 6 jardineiros, suas leis, sua sabedoria? Vocés temem que um jardim, caso seja demais retalhado, pareca pequeno. Al! Vocés foram estragados pela clientela de subtirbio, pelo que vejo. im Esqueceram o gosto das grandes coisas. Que o conceito simuoso da aléia os arrebate de vez, levando-os a verda- deiras loucuras labirinticas. Que possamos ler sobre a terra em que nos perdemos a expresso burlesca e desesperada de sua inquietude. Como se ata a vela ao vento sempre mutante, atem as aléias ao jarcim em que suas milos se abandonam. E se as inscrigSes filoséficas gravadas sobre a pedra dos monumentos parecerem necessérias para a sutileza combinada dos arbustos ¢ da meditacdo solitdria, af vio inscrigdes filosétieas, da pedra musgosa de prazer, da laje abalada pelo pé de um fantasma, Nao temam o sorriso odioso daquele que nio concebeu os jardins como poemas. Af vio o ridfculo Iuxuoso das cascatas, o hibride prazer dos pequenos bosques tenebrosos. Que sua mio suspenda uma trepa- deira, nesse ponto preciso para onde sobem os clhares. © Krafft, alemio hidrocéfalo e triste. Na véspera dos tempos modernos, enquanto escutavam ao longe 0 barulho dos lenhadores que abatiam cabeeas, sobre seu pais entdo presa dessa divisdo que é julgada de mau gosto na distribuigo dos canteiros pelos arquitetos de nossa época, os Duchéne, os Martinet, os Edouard An- dré, os Vacherots... sobre seu pais em migalhas, Krafft, genial sonhador, voeé passeava um olho demente ¢ foi sem diivida diante desses dominés das fronteiras que voce inventou 0s tortuosos desenhos pelos quais se vé cada vex menos enamorada @ juventude que, nesses, dias malditos, acha-os cansativos. Entretanto somente vooé soube dar aos jardins sua ideatidade: vocé os tornou ao mesmo tempo atraentes e burlescos. Bles se abriam tanto para o esquecimento quanto para a lem- branga. Vocé os curvava sob seus dedos magicos & imagem de seu delirio, sem lancar mo dessas cores ‘que hoje tiram do apuro os jardineiros sem imaginagio: para vocé seriam suficientes as pequenas variagSes do verde ao marrom e ao cinza-palido na ramagem, para 172 limitar 0 fundo fugidio do sonho, no ponto em que a esperanca dos visitantes buscava evadirse pelo enxe- me dos olhares. Voce niio tinha a seu servigo o pelargé- nio vigoroso, o crisantemo pesado, nem a salva explo- siva, Apenas 0 sanfeno da Espanha ¢ a ancélia, 0 miosétis e 0 amor-perieito esclarecem um pouco seus macigos metafisicos, suas bordas de suspiros e lamen- 10s. Eu o saiido, moldador de planetes. B minhas home- nagens a madame Krafft. Noll se cala. O caminho serpenteia no flanco de uma colina em cujo pico luz um lampadario. Sobre a planicie da noite ea planicie do parque, sigamos os trés amigos que avangam com o sentimento fugaz da extre- vagincia e com um desejo que esté ligado @ esséncia do mundo. x Eles chegam & plataforma que dorrina a noite, na qual uma luminéria a gis esta disposta ao pé de um lance de escada de luz violeta e violenta. Nesse cume do espirito os bancos esto vazios, em semicirculo, junto a0 cascalho. Parece que nfio se pode ir mais longe: “Ha dez mil anos...” Ora bolas. Nossos jovens buscam uma saida, mas por toda parte chocam-se contra arame farpado do chamado La Bruyére; e na bruma, a seus pés, ha um prado que desce. Finalmente um deles reconhece a isca de um caminho e assistimos a uma dessas partidas costumeiras na histéria da ciéncia, quando uma hipétese com cinturinha de vespa é aben- donada por um vohivel professor de quimica ou de biologia comparada, sobre o pico inacessivel ou repu- tado como tal, onde por puro desafio, se nfo por orgu- Iho deslocado, ela havia se empoleirado para niio decair na estima de seus contemporaneos. Entio o encarrega- 173 do de curso, tendo arregagado, ou frisado, ou anelado seus bigodes, parte com um ar desenvolto sobre uma pista inteiramente nova, sem preocupar-se com adeses- perada que agita seu lenco e lembra com seus botdes das suaves noites, das angtistias comuns ¢ as comuni- cages impacientemente esperadas com as sociedades sdbias de segunda categoria, dos artigos cerimoniosos nas revistas cientificas ¢ literdrias em que Horécio, 0 poeta latino, é citado a propésito de tude quando 0 autor, trazendo as justas proporedes o assunto de que trata, quer mostrar ao mesmo tempo que o encanto € 2 cultura de seu espirito... mas 0 que dizia eu? Quer mostrar que nao Ihe fazem... desinit in piscem, Voces a copiardo de mim. ‘O designio que me leva a contar essa aventura com a infinidade de seus detalhes, por exemaplo: quem anda na frente, se André Breton usa hoje sua bengala — aliés ‘uma linda bengala que os garcons dos cafés apreciam ‘como convém, comprada num antiquério da rue Saint Sulpice, que vende também utensilios de falso estanho, uma bengala de proveniéncia duvidose, africana para uns, asiética para outros, ainda para outros, fruto do génio exdtico e intelectual de Gauguin, 0 homem do coral da égua verde, uma bengala ormamentada por relevos obscenos, homens, mulheres ¢ feras, € se voces querem mais, ai esté, lesmas arrastando-se em diregao is vulvas, posturas faceis de se compreender e um fantGstico espetéculo aterrorizando um negro barbudo que brocha — esse des{gnio me leva a contar esse pas- seio sonambiilico pelo vazio da indulgéncia dos edis, para onde toda a Camara Municipal reunida decidiu ‘que trariamos sem risco de priséo nossas pequenas revoltas noturnas ¢ a insociabilidade de nossos coragdes. Esse designio me parece, de repente, bastante misterioso. Estranho, estranho: adivinho 0 desenvolvimento do que vira. 174 Quando numa cidade do interior um e&o ~ e olne que jé é pleno dia —nas ruas vazias, sentado de repente sobre as patas traseiras, deixa pender a esmo suas orelhas e se pée a ganir dirijindo-se ao céu, uivando indefinidamente a morte, o caixeiro da Ioja de chapéus e coroas mortuarias fica feliz por encontrar na mono: tonia de uma vida miserdvel uma razdo plausivel para pendurar os punhos nas aneas, na soleiza da loja. Ele uiva, esse cdo. E que no mundo matinal Fé alguém que acabou de agonizar, ou entio deverfamos duvidar da sinceridade canina, Mas 0 cio, esse grande signo miti- co, até omomento jamais nos deu razdo para desconfiar de seu poder cinico de vidéncia. Entio o caixeiro, do duplo baledo em que os vivos e os mortos desse grande centro administrativo de cantéo se provém contra as intempéries e a ingratidao, o caixeiro se pée a calcular que cidadéo de sua clientela teria passado dessa para a melhor. Ele experimenta um pouco a realidade da morte de cada um. Assim. ‘Ab, eu 0 pego. Bis o assim que esperava frenetica- mente sua necessidade de légica, meu amigo, 0 assim. satisfatério, o assim pacificador. Todo esse longo paré- grafo por fim arrastava consigo sua grande inquictude © as trevas do parque Buttes-Chawmont futuavam em. alguma parte de seu coracdo. O assim persegue essas sorabras opressoras, ele é um varredor gigantesco cujos cabelos se perdem entre as estrelas, cujos pés penetram pelos respiradouros nos pordes das casas humanas. assim escandaliza os poetas em seu leito de penas. O assint passeia de porta em porta, verificendo os ferro: Thos e a seguranga das habitages isoladas. O assim pertence a sociedade dos vigias da Guarda Urbana. E nao vou falar da bicicleta do assim. Assim experimento a forga de meus pensamen- tos, assim me pergunto o que est morto em mim, 0 que ainda ¢ eficaz e, na soleira de meu espirito, um 175 instante detido por um clamor sinistro, passeio em minhas moradas mentais uma a uma, por meio da escritura, em busca de um cadaver e de um enterro; ou entao finjome assim de cio e grito com 0 defunto, ocaixeiro éoleitore amuncio, por essa absurda narrativa composta e capeiosa, as infelicidades da hu- manidade nova, precipito por sua enunciago criminal ‘0 advento das catistrofes e nfo leiam mais esse texto maldito; : “.. ou ento assim, pronto para pasar dos chapéus as coroas, ohomem é advertido pelas revolugées de sua sorte por uma voz animal que parece inicialmente dirigirse as nuvens, que fala, por exemplo, do encanto experimentado num parque citadino, onde se mistu- ram os simbolos lividos do amor e da neblina; ou entiio assim eu os levo a reboque com uma tolice de palavras e nada mais, no coragio € no espi- ito, além do gosto insensato da mistificagio e do desespero. xI (© caminho termina por uma coluna de bronze que mede a temperatura, a hora e a pressio atmosférica, Giante de um vasto funil em que so lancadas, como dados do siléncio, as colinas dissimuladas pela noite, Grandes clardes revelam ao longe o Belvedere e diversos sorrisos das trevas, um reflexo de agua parada e um grito de passaro na profundidade. Mes na margem desse cdlice, nesse gume da sombra, fora das folhagens chinesas, sob uma reverberagio de traje de baile que atira suas joias frias ao prado, calgado com as cores do irreal, geada elétrica e verde de neve, um proscénio diante do poco da orquestra guia na diregio de nossos olhares um ntimero fantasma. Logo adiante na relva, 176 um homem nu corre imovel em dirego a0 abismo. Sua grande insensibilidade ao ar da noite faz com que acreditemos que ele seja de bronze. Ai entendemos como, por que mistério, o homem sempre ligou suas: representacGes divinas a imagem do corpo humano. E. também compreendemos porque hoje, num justo re- torno, esse cético dissecado como a mio de um esque- Jeto — e552 masturbador do espirito tem em vista ape- nas si mesmo quando, com a argila, ou 0 mérmore, ou 0s metais, reproduz seus tragos genéricos ¢ o fenémeno finalmente se inverte: ele queria mostrar ao mundo Deus, mnas era sempre um homem que erguia, ¢ assim € que acredita em vio ter 0 poder de fingir, pois, desde ‘que suas méios modelem um corpo ou um rosto, é Deus, que sai imediatamente delas. Entio ele experimentou @ feitira para niio fazer surgir da terra essas divindades inquietantes cujo ntimero vai crescendo. E no que se tornaré a humanidade no dia préximo em que o povo das estétuas se tiver tornado to abundantenas eidades € nos campos, que mal poderemos circular pelas ruas de pedestais, através dos campos de poses? Perspectiva, sufocante, Entdo, nese cemitério da imaginacio, ele ‘conheceré o poder divino imprudente, suscitador de entidades, infeliz prisioneiro da desproporcio e do sonho. A humanidade perecera devido a estatuoma- nia. O deus dos judeus, que temia a concorréncia, sabia © que fazia, proibindo as imagens talhadas. Grandes simbolos particulares exercendo seu poder concreto sobre 0 mundo, as estétuas comerdo seus cabelos, passan tes. © forca de uma noite figurada no bronze, negro precipicio dos olhos mortos cevados um pouco mais alto que a terra, desqualificagéo da razo pelos espectros, desmoronamento da vontade a esses pés lacrados & rocha, Bu disse que, desejoso de sustar esses progressos do divino no espaco, essa invasio do imaterial na 477 matéria, com uma conseiéncia pestejante de seu des. tino e de seus atos, o homem decidira esculpir apenas a feitira com as ancas do vazio. A estética de Bugene Manuel parecet-Ihe assim um remédio para essa gé: nese sobrenatural. O cotidiano — jamais nos aproxi maremos suficientemente do cotidiano ¢ um poeta do século passado disse uma palavra sobre isso. Imi- ti em seus roupées, suas roupas familiares, suas sorridentes bonomias, os simulacros dos tempos mo- dernos emprestam a insignificéncia dessa maneira ridicula de vestir uma forca magica desconhecida em Efeso ou Angkor. E isso é tio verdadeiro que as reli- gibes secretas acabam por se estabelecer em honra dos novos idolos. Assim 6 que um rito imprecatério é observado com relagio ao inerivel Gambetta da cour du Carrousel; que uma seita, da qual Paul Eluard é um dos mais ferozes zeladores, ve depositar diante de Paris durante a guerra os tributos periédicos dum calto apaixonado. Uma noite, voltando para casa, qual nfo foi minha surprese ao ver um longo cortejo vestido de branco que vinha sacrificar pombos diante do baldo de Ternes. E 0 convulsionérios da estétua de Strasbourg! Vocés devem se lembrar, caso tenham idade, desse cadaver j4 decomposto que levavam num automével, coberto com seu capuz, todos os anos, para a place de la Concorde. Assim, por intermé- dio dessa irris6ria forma humana, insultavam a vida opondo a figura majestosa da pedra um Déroulede verdejante; as faloforias™ de Trafalgar Square, onde Nelson, © maneta, é testemunha da historia de um povo; a Joana d’Are de Frémiet, o Quand méme de ‘Antonin Mereié, sem falar das estétuas esportivas, do Serpolet da place Saint-Ferdinand, do Panhard-Levas- sor de Porte-Mailtot, nem da magnifica apoteose de Chappe a0 pé dum cadafalso telegréfico; nem da corrente quebrada de Etienne Dolet, da place Mau- 178 bert. Ainda uma estétua maléfica, a Lisel 4 Voie, de Strasbourg: e a hermafrodita de Montargis, que se ergue diante de um grande cartaz intituledo La patte oie; © 0 Génte Maritime, em Toulon; e Vereingétorix em Gien!® A magia levanta assim seus sinais negros no meio das Tuas, 0 passante de alma inocente os contempla, felicita-se pela habilidade do escultor ¢ discute o rendu®® da emogio artistica, x Discurso Da RStATUA Os fuzilamentos! Hé cingtienta ancs espero pelos fuzilamentos. Afinal € preciso fixar com chumbo os homens que se movem e riem e deslizam na paisagem em que estou, para sempre, congelado. Fiteis movi- mentos das multidées, das criangas. As maes felizes, com suas sacolas de tried. O Malthus, bispo do grande coraciio, so as estétuas enfim que realizado suas qui meras: as mulheres que nos véem de repente abortam e ajudamos com nossos membros polidas a imaginacio por demais lenta das timidas, que se agitam na sombra estranha de nossas formas, que néo tém outro amor além de nossos corpos sobre-humanos. Entio se cons- titui no fundo dos paraues e das avenidas uma grande nostalgia em que tomamos parte, que une oinanimado a0 mais sutil da vida, entio levanta-s2 0 vento dos prazeres sublimes em que a idéia enfim se libera e encontra em si mesma um alimento. A idéia do homem! Acima dos campos devastados pelos passos cruzados que os marcam, a idéia do ho- mem aparece, maior que em tamanho natural, no gesto exemplar de um corredor ou de um rei. E aos pés dessa idéia que o homem vive, olhos elevados, sem chegar a 179 identificar-se com ela, 6 aos pés dessa idéia que ele se tortura e dilacera, prisioneiro do grande delitio abstra- to chamado psicologia. Palavra de estétua que no ha no espago, nos cem mil recantos, uma $6 atividade, seja a filarmonia ou o bilhar Nicolas, que me pareca tio ridicula quanto @ psicologia. O sem-falta, o infalivel dessa ciéncia... eu rirla se 0 bronze gostasse de se dobrar no sentido transversal. Entretanto 0 homem, inventou um dia a psicologia. Havia um vento do diabo e nosso covarde tremia. Ele viu sua sombra que subia até os céus diante da menor rajada. Quis explicar a si mesmo um fenémeno tio aterrorizante. E com isso, explicar que as nuvens estourassem sobre seus cabelos, que 0 trovo espetasse sua armadura, que suas partu- rientes sonhassem sempre com frutos vermelhos, que os batentes da floresta batessem os dentes nas trevas. Uma a uma, as psicologias nasceram, Houve a psicolo- gia das afinidades materiais, ou quimica, a psicologia das forgas, ou fisica, a psicologia de Deus, ou religiéo, a psicologia da carne, ou medicina, a psicologia do des- conhecido, ou metapsiquica, a psicologia do mar, ou arte nautica. Por essas sutilezas, satisfazendose com pouco, o homem, diante de todo e qualquer abismo, aprendia a conhecer as paredes do abismo, a esquecer © abismo e os tormentos do infinito positivismo huma no: vocés nao perguntam, portadores de cabeleiras le ves, 0 que pensam seus fantasmas, testemunhas de cima de seus pedestais gravados com nomes célebres, de suas falcatruas, positivas ou nao. Nés, que falamos a0 céu, nés, cobertos de orvatho, os dangarinos mine- rais que temem as noites, nés, os domadores de brisas, 0s encantadores de passaros, os guardiaes do siléncio, sob 0 lustre adorével do espfrito que ilumina nossas atitudes irremediéveis, principios divinos prisioneiros de nossa liberdade concreta, nés, emanacdes particula- res de um grande sopro, negagdes do tempo que 0 sol 180 inunda, nés 03 fdolos sem confissio, os errantes da metafisica, nés dominamos em toda a atlética estatura do pensamento 0 formigamento disforme das nagdes da insonia, Virem-se sobre seus colchdes de palha, ma- nfacos sonhadores, o parque é fresco e puro. As brumas J acorrem a nossas témporas. Jé esquecidos de voc& animaizinhos, reunimos a estrela a seu posto de azul Eeis que um frisson meteorico arremate um panorama azul sem rufdos e sem esperancas. Quem fala? Aqui, a divindade adivinhada, Aqui, o reino do absoluto, Como vio as criaturas angélicas? Muito bem, obrigada. A asa, 64 asa que aparece na extensdo de seu conceito, desdo brad largamente acima do reino das estituas. A asa com uma bandeira americana no ar. A asa com sua indole cantora, a suavidade de sua penugem, a brancu- aa priori ea ordem vantajosa das plumas, a asa que constitui um firmamento de flores. O que sei de um deus, eu, o bronze, o que eu sei do Deus pressentido é a asa e, jé que parece que implora- mos, é a asa que imploramos, do pedestal em que estamos petrificados, desse cais sem navio de onde estendemos nossas mios em diregio ao inacessivel. E canto para essa asa-deus 0 ritual dos simulacros: Asa em tudo parecida ao amor Asa acima das fortatezas Isa que sopra as velas Asa batendo as ondas do mar Asa tempestade atingindo a orta Asa vdo da alba adorada Asa é pianos na noite Asa antes da neve blasfema Asa que nao énada além de si mesma’ 181 ‘As estituas com seus dedos grudados enviamhe a saudagio do siléncio — que as arvores dormentes ja- mais a agarrem — nossa asa que esté nos céus como na terra, 0 imaterial assentado que coneebe a matéria e se reflete dessa matéria e de sua negacio na afirmacio sutil, ete. Essa prece, dita nove vezes cada noite, quando a toupeira, elevando as dejegbes de suas galerias, faz luzir seu olho cego no morrido vermelho em que um apaixo- nado perdeu as unhas de sua bemvamada, fard chover as bengfios da Asa sobre os proprietarios de estatuas, os italianos vendedores de gesso, os gerentes de Muscus de cera, 08 construtores de monumentos funerérios, os subscritores de mausoléus patriéticos, os escolares que desenham homenzinhos desengoncados, os artistas modeladores, os trituradores de miolo de po, 0s neo- zelandeses que representam em meio aos pequenos pedregulhos agrupados imensos passaros fantisticos cobrindo o flanco desnudado de uma montanha, os apéstolos estilitas,"* os monarcas emparedadores de armadas, os colecionadores de esqueletos, 08 vitrinistas das grandes lojas, os herdis suscitadores de efigies, os vereacores enamorados de urna arte teatral e sem vida, 08 fetichistas da via pilblica e os infelizes amantes de miimias. xu Perdemos um pouco de vista o itinerério dos trés amigos: uma vez entrando no parque pelo portio da ‘rue Secrétan, deixando a direita o caminho direto rumo a0 portio da rue Fessart © a esquina sudoeste, eles contornaram e depois subiram a colina mais alta para chegar & praca da coluna, que ter a seus pés a cratera do lago, o Belvedere ¢ a paisagem longinqua das casas 192 | | E ESCOLAS COMUNAIS: espremidas da rue Manin, dissimulada pela neblina. Desviando sua atengio desse vuledo de aparéncias e desdenhando a loquez estétua, um Acteon que aponta a seus cies fossa lacustre, eles decifraram, uma auma, com, grande quantidade de palitos de fosforos, as ins- crigdes da coluna quadrangular que decore essa praca circular filosofal. Essa coluna é sobrepujada por um catavento que nos permite distinguir as faces do monumento segun- do os pontos cardinais. A face norte, virada para o lado do lago, trez em sua fronte a data 14 JULHO, 1885 acima de um termémetro centigrado, atribuido a J ‘Thurneyssen, Paris, que nos informa que a temperatu- ra atingiu os 40° durante 0 vero de 1868. Sob esse termémetro lé-se na coluna propriamente dita: CRECHES RUE DE CRIME, 144 (TRINTA LUGARES) ORFANATOS Rue BaRBaniane, 7 (A. ¢ E.) RUE Bouvan. 67 e 69 (A. e E.) RUE D'ALLEMAGNE, 87 (A. e E.) RUE DE‘TANGER, 41 (A. e E.) RUE DES Bois, 2 (A. ¢ E. Rue Jomanp, 5 (A.) 183 RUE DE PALESTINE, 1 (A.) RUE DE MEAUx, 65 (B.) Rue Fessart, 2 (E.) PLACE DE BITCHE (E.) ESCOLA MUNICIPAL DE APRENDIZES BOULEVARD DB LA VILLET Sobre a face norte do pedestal, podem-se decifrar essas explicagdes sugestivas, reveladoras de umahuma- nidade que deve ser a que se encontra no cinema, humanidade mal aplicada ¢ mal recompensada, ene- ‘morada pela felicidade do domingo eembriagada pelos conhecimentos adquiridos na escola noturna: |[ 4s" ARRONDISSEMENT POR AUTORIZAGAO BENEVOLA A ADMINISTRAGAO MUNICIPAL ESSE OBELISCOINDICADOR FOI ERIGIDO EM 14 DE JULHO DE 1885, PELO INVENTOR BUG. PAYART, VIATANTE DE COMERCIO, COM A COLABORACAO DOS SENHORES: ‘A, BOUILLANT, FUNDIDOR, DUMESNIL, FABRICANTE DE CIMENTO COLLIN, RELOJOEIRO InMAos RICHARD, FABRICANTES DE BAROMETROS DELAFOLIE, BASTIDE, CASTOUL x Cia. FABRICANTES DE APARELHOS A GAS 184 BOUILLANT FUNDIDOR-CONSTRUTOR PARIS A face oeste da coluna traz no alto as iniciais laurea- dias da Reptiblica, frente a frente com uma estrela. Elas fica acima de um barémetro redondo, cujo quadrante informa-nos 0 endereco da Sociedade Andnima dos Esta- belecimentos Jules Richard: rue Mélingue, 25, Paris. Os coracdes ingénuos fardo af outras observacdes: que se 75 significa tempestade na linguagem da rosa dos ven- tos, 7A quer dizer Chuva, 75, Chuvaou Vento, 76, Variével, 77, Bom Tempo, 78, Bom Tempo Estivel, 79, Muito Seco, 80, Barémetro. Néo deixaremos de observar que Chuvas e Trovoadas e Muito Seco esto inscritos apenas na base proxima a moldura, enquanto as outras men- Ges e seus ntimeros magicos esto submetidos a forca centripeta, Finalmente ficaremos alarmados com a su- cessio ininterrupta das cifras que faz com que, desde que sejam contadas no sentido dos ponteiros de um rel6gio, ou inversamente, leiamos 73, 74, 75, 76, 7, 78, 78, 80, 73, T4, etc., ou entio 0, 79, 78, 77, 76, 75, 74, 73, 80, 79, ete. ¢ logo trataremos de imaginar 0 curioso fendnemo meteorolégico que acompanha a brusca pas- sagem de 73 a 80 e viceversa, Acima do barémetro, nova inserigao: i © 19" ARRONDISSEMENT CoMPREENDE OS BATRROS La Visuerte (73) 1 Axtériqus (75) P', ps FLANDEES (74) || ComBaT (76) POPULACAO: 117.885 HABITANTES SUPERFICIE: 566 Hecrares CASAS: 3.162 15 COMPRIMENTO TOTAL DE RUAS, CAIS, BOULEVARDS, BTC. 52 QUILOMETROS E 583 METROS (0.19! ARRONDISSEMENT CONFINA COM O 18°, © 10° E 0 20? ARRONDISSBMENTS. A PORTE DE ROMAINVILLE, ADES PRES ST. GERVAIS E ADE PANTIN, ‘ADE FLANDRES HA DE AUBBRVILLIERS, [AS LINHAS DO LESTE, 0S CANAIS po OURCQE DEST. DENIS, COLOCAMNO EM COMUNICAGRO (Com 0 EXTERIOR DE PARIS. CONSTR. DA ALFANDEGA, BOULEVARD DE LA VILLETTE BACIA e DOCAS de La VILLETTE PORTE CASERNE B™ 25, PORTE pe PANTIN E sobre 0 pedestal da face oeste: BAIRRO DO COMBATE | MAPA po 19" ARRONDISSEMENT fe | 186 PONTO GEOGRAFICO 48° 52? 40” Larrrupe NORTE 0° 2" 45” Loncrrupe Less ALTITUDE 65m 60cm 92 m 25 em do ACIMADO SENA —_ACIMADO Mag infeliz Eug. Payart! Inventor e viajante de comér- cio, sua generosidade nao foi compreendida, ou foi mal interpretada. Vocé tinha dado o bronze, os aparelhos € A iia. Isso Ihe parecia suficiente. Que a comunidade, pensava vocé, se decidisse ao menos por arranjar um mapa do décimo-nono arrondissement e, como veremos do lado oriental, um mapa de Paris. Pois bem, tal é 0 espfrito de mesquinhez dos homens, que seu monu: mento permanecera para sempre inacabado, com suas duas grandes lacunas vidas de geografia local e de bom movimento por parte de uma excéntrica adminis. tracdo municipal. Notaremos também que os bairros desse distrito trazem, por uma fatalidade tocante, os miimeros do barémetro que simbolizam tempestade, chuvas e trovoadas, chuva ou vento e varidvel. Entre- tanto ndo tentaremos unir esses ntimeros A significacaia ‘comum dos nomes dos bairros, pois se Combat unido & Varidvel pode ainda fazer oscilar a biissola do espirito, nao seria sem ultrapassar as perturbadoras fronteiras da imbecilidade que ligariamos indestrutivelmente Amérique com Chuva ou Vento, Porte de Flandres com Chuvas ¢ Trovoadas e La Villeite com Tempestade, Isso é © que fica entendido. A face leste traz um mostrador de vidro, vazio, que talvez tenha abrigado, que sem diivida abrigou um Tel6gio. Vao colocé-lo de volta se forem bem comporta- 187 dos. Acima dele vemos as armas da Cidade de Paris e, abaixo, essas palavras mégicas: LOCAIS DESTINADOS AOS CULTOS: Torwja St Jacques— St CHnistoPHE ToRnja St JeAN BAPTISTE: ‘TeMPLO PRT RUB MEINADIER ‘TeMPLO PRT RUE BOLIVAR STABELECIMENTOS MUNICIPAIS: MAaTaDOUROS GzRAIS MERCADO DB GADO MERCADO DE RACAO PARA GADO MERCADO DOS CAVALOS MERCADO POBLICO, RUE SECRETAN SERVICO FUNERARIO MUNICIPAL, JARDINS E PRAGAS: PARQUE BUTTES-CHAUMONT PLACE Dis Fares PRONTOS-SOCORROS RUE De MBAUX, 56 RUE JOMARD, 1 RUE DB LOUVAIN, 7 188 ALBERGUES RUEDE CrIMéx, 166 Paremos para respirar, modernos Champollions. Acreditam voces que o designio misterioso que guiou a mio do gravador, que guiou o espirito do autor dessa inscric&io nao correspondesse a algum equivalente para a incompreensibilidade e a dificuldade da decifragio na sombra cuneiforme em que, entretanto, um de seus semelhantes soube finalmente reencontrar seu cami- nho? Paciéncia. E sobre o pedestal, em diregao ao levan te, que se 18: MAPA DE PARIS CAwana MUNICIPAL A 5 Ko. 500 S.0. PORTE DE AUTEIL.A 10 KM. 500 0.8.0, PORTE DB VINCENNES A 4 KM. 300 8.8.5, PORTE DE.LA CHAPELLE A 2 KM. 700 N.O. PORTE DB GENTILLY A 7 KM. 300 8.3.0. Finalmente, sobre a face sul, 199 19* ARRONDISSEMENT BUTTES.CHAUMONT PREFEITURA PLACE, Justiga bE Paz < AnMAND CARREL COMISSARIADOS DE POLICIA RUg DE TANGER, 22 {VILLETTE 75 Q) RUE Ds NANTSS, 19 (PORTE DE FLANDRES 74) [RUE D’ALLEMAGNE, 132 (AMERIQUE 75) RUE PRADIER, 21 (COMBAT 70) ARRECADAGAO DE IMPOSTOS RUE DB FLANDRES, 51 (75 € 74) RUE REBEVAL, 72 (75 € 75) BOMBEIROS Rue CuRIAL, 6 Ru Dz L’Ourca, 89 RUE DU PRE | Ru REBEVAL, 8 AW, LAUMIBRE (PREE.) MaTaDOUuRos GERAIS 190 CORREIOS E TELEGRAFOS Rup be Crimes, 74 T RUE DALLEMAGNE, 3 BT RUE DALLEMAGNE, 159 ET RUE D'ALLEMAGNE, 211 ET. RUE DBs PYRENEES, 597 (20° ARRONDISSEMENT) ET FERROVIAS URBANAS, BELLEVILLB-VILLETTE sragoEs PONT DE FLANDRES LINHAS DO LESTE: ESTAGAO LSTE-URBANA 4 DE JULHO DE 1883 OUSTRY, Paé#ET DO SENA ALPHAND, Dinetor nos TRAVALHOS , ALLAIN-TARGE, Dppurapo Do 19! ARRONDISSEMENT: 191 ‘MUREAU, PRErErTO GARCIN, MILOT, ApJUNTOS MILLET P., BAILLE LE, SacretArio CATTIAUX, GUICHARD, REYGEAL, ROYER, ‘VEREADORES De repente Noll nao acredita mais no que vé: de pé, sobre um espaco livre, de pedra, acima ce uma vertigi- whosa hera trepadeira, como um mergulhador no polet- fo das aves, um espeetro brenco, com o vazio absoluto entre as pernas, aparece de baixo para cima sobre © grande arco gue se une ao prado diente do Belvedere, ajoelhado sobre uma xicara de café preto, Entéo André Breton toma a palavra: “Vocés podem ver dag, disse- nos, a Ponte, a famosa Ponte dos Suicides. xv mundo, como nés da reflexfio humana, erieaaee! ‘algumas grandes idéias sobrenaturais particulariza- 192 tanto nfo poderia ser a toa que um conceito tao singular quanto esse tenha se formado nas profundidades da consciéncia humana, Nenhum sistema filoséfico pode desprezar um conceito. f preciso — esse é seu destino —que ele o legitime, que coloque em si todos os concei- tos constitutivos dos sistemas passados, que Ihes dé o sentido e a acepeao que no tinham, Um sistema é um dicionério e nenhuma palavra deve ser banida dele. Para conceber suas formas locais, ponho-me a so nhar um pouco com essa expresso preciosa: as formas de uma idéia, Pergunto-me que timida representagio me impede de encaré-las como o real do ser, com sua riqueza de circusténcias, seu aparato de acidentes, be- las joias individuais. Penso nas idéias como nas pes- soas, no sentido comum dessa palavra, que 6 extrema: mente mistico. Por exemplo: o que é proprio da pessoa, © pessoal da pessoa, é um elemento repetido sem fim, que poderé ser reencontrado pelo menos infimamente em toda aparicdo da pessoa, a mais longinqua, inespe- rada. Se o homem se dedica & matematica, encontro nessa maneira de dedicarse a ela um pouco da conces- so feita a sua mae por uma historia impertinente, ¢ ‘esse passeio matinal entre altas sebes, havia um péssa- ro, um pedago de tecido vermelho. Incidentalmente, Jango as bases de uma moral, Assim, hd naidéia alguma coisa que est para a idéia assim como o acidental esté para a pessoa, 0 acidental, nfo o inessencisl, o acidental da esséncia. Assim posso dizer, sem imagem: a boca de uma idéia, seus labios, eu os vejo. B essa aparéncia suave. que espreito enquanto escrevo, tomado pela idéia do beljo, mas aquela que eu esperava no veio, sofremos numa noite gelada em que tudo se mistura, em que o espirito transparece nos reflexos do vidro ¢ da prata, Essa mulher & minha volta, compreendo pela totalidade de mim mesmo que hé ume mulher, que hé essa mulher em cada idéia que em vio eircundo, que 195 ha qualquer coisa, em cada idéia, que é precisamente essa mulher € seus gestos so os gestos do espirito, Volto, pois, aos lugares sagrados. ‘Sio, mais freqiientemente, os cenérios legendarios: um pouco de uma grande alma agarrouse ® essas Tnuralhas, a ossas alturas. Blas estio realmente trans: mutadas por esses morcegos memoréveis. Realmente. $6 poderia se passar algo de grandioso aqui. A terra € negra, digo negra exemplarmente para mostrar de que noite se impregna o impessoal nessa soleira de todos os mistérios. Esse gro do espago enfim carrega um senti- do, comoums silaba de uma palavre desmonteda, Cada létomo suspende af um pouco de sua crenga humana, aqui precipitada. Cada sopro. E o silencio 6 um easaco ‘que se abre. Vejam essas grandes dobras repletas de estrelas. © divino coloca sobre o ilusério a rogadura de ‘seus dedos desprendidos. Sopra seu delicado hélito no vidro das profundezes. Transmite telegraficamente aos coragées inquictos sua magica mensagem: PACIBNCIA Masrn1O BM MARCHA e, traido, revela-se para os clardes. O divino se recolhe ao fundo de uma caricia: todo o ar da paisagem é misturado a idéia, todo o ar da idéia arre- pia-se ao menor vento, f uma grande argola marrom Voces brincarfio & vontade, enrolando-a ¢ desenrolan do-a, até que no fim venha o fim do mundo. Baargola {deal em que aidéia se resume, a nogo concreta saindo das aguas puras, sem canicos. Entretanto, mulher, tomas o lugar de todas as for- mas, Eu apenas comegava a esquecer um pouco esse fabandono, e até as negligéncias negres que amas, mas tu estés aqui e tudo morre a teus pasos, Teus passos celestes envolver-me numa sombra. Em teus passos fem direco & noite perco cogamente a lembranga do dia, Encantadora substituida, tu és 0 resumo de um mundo maravithoso, do mundo natural, eras tu que reinavas quando fechei os olhos. Tu és a parede e sua 194 brecha, O horizonte e a presenca, A escada e as barras penearem algo que néo sje milagre, cndoo milagre , envolvido por set vestide noturno? Assim 0 “niverso poucoa pouco se apaga para mim, dissolve se enue suas profunderaslevanteso tm fntasana Adorivel, sobe ume grande muller enfim perflade, gue sparece por toda parte sem nade que me separe del, nosspeeto mas ime de win mudoque se tab 6 deseo, cropiseuo das formas, dos sins deste poente da vide consderome um prisioneiome grade dalior dae, suo prisoner dos trans foados deamon one e segue-se um niimero grande de para que minha boca oconheca.A grande mulher cresce. Agora o mundo é seu retrato, o que ela absol tamente ainda nfo englobou das parcels reunides de seu corpo, oqueainda nfo fo! mconporadoa sua deca, Tanenieapet poupado por meu delirio, Eo que se ladda ce, a nebulosa realidade fugaz, é enfim re- Paap, acessério do retrato, Montanhas, vocés ja- ins serdo algo além do longinguo dessa mulher o, estou aqui, é porque ela tem una fronteem que eoloce sua mio. Ea ereace, Ea apartncia do tu jf alterade por esse crescente magico. Os cometas caem nos co} " devido a desordem de seus cabelos. Suas mios, sim, 0 que eu toco participa sempre de suas mios. Ai esta: ei due nfo pasto de uma gota de chuva sobre sue pele © orvalho. Mar, tt. amas suficientemente tous afogedos em putrefagio? A dogura de seus membros féceis? ‘Amas seu amor que rentincia ao abismo? Sua incrivel pureza ¢ suas cabeleiras flutuantes? Entio, que ela me ame, meu oceano. Passa através de minhas palms, ‘gua parecida com as lagrimas, mulher sem limite pela meu e6u, do meu silencio, de minhas veles. Que meus péssaros se percam em teu olhos. Podes matarme, 195 podes matarme: aqui estéo minhas florestas, meu co racho, minhas cavalgadas. Meus desertos. Minhas mt- tologias. Minhas calamidades. A infelicidade. E nesse zodfaco em que me perpetuo, pithagem enfim, belo monstro, came de caca de claridades. "s mulher tomou lugar na arena imponderavel em que tudo o que € poeira, pé de borboleta, eflorescéncia ide reflexos, torna-se eflivio de sua carne ¢ encanto de sua passagem, Segui com 0 olhar esse sulco infinito de tm navio. Mas dize-me apenas, Simbad, 0 que pensas do {ma que descola 0 casco de teu navio no meio do mar? Quanto a mim, que me abandonem esses corpos estrangeiros que me retém, que meus dedos, meus ‘ossos, minhas pelavras € sua argamassa me abando- nem, que eu me desfaga no magnetismo azul do amor! ‘A mulher esté no fogo, no forte, no fraco, a mulher esté no fundo das vagas, na fuga das folhas, na dissimulacéo solar onde, como um viajante sem guia e sem cavalo, extravio minha fadiga numa feeria sem fim. Pélido pats de neve e de sombra, nfio sairei mais de seus divinos mmeandros. Assim, encontrando a inflexdo feliz de sua anca, ou a sutileza enfeiticadora de seus Dragos nos mais diversos lugares para onde me levam toda & in- quietude da existéncia ¢ essa imonsa esperanca que pousou sobre mim, ndo posso falar de outra coisa a nfio ser de ti, E nfo te enganes a esse respeito, mesmo quando eu dissimular, todas as minhas palavres sto ‘para ti, sfo tua aparéncia. Minhas imagens revestirar- Sedo esmalte detuas unbas, tua vozenlagouse minha Jinguagem demente. Devo prosseguir agora nessa des- crigdo mentirosa de um parque em que trés amigos penetraram numa noite? Para qué: tu te ergueste sobre fesse parque, sobre os caminhantes, sobre o pensamen- to. Tua marca ¢ teu perfume apoderaramsse de mim. Estou despossuido de mim mesmo ¢ do desenvolvi- mento de mim mesmo e de tudo o que nio é a posse de 196 mim mesmo por ti. Tu, a influéneia do eéu sobre meu Jodo sem forma, Enfim, para mim tudo divino jé que tudo se assemaline atti eee além da razio e do cora¢o, o que 6 um lugar sagrado, 0 que o torna sagrado para mim, Sou 0 verdadeiro idélatra pelo qual os templos foram generalizados corno enfermidades. De agora em diante nfo hé lugar que nao seja para mim uma local de cuito, um altar. volto-me para esse arco langado em diregio a uma ilha em que outrora buscavam minha morte com fervor. bis a vordadeira Meca do suicidio, ssa ponte a que temos acesso por um declive suave, Uma pequena gra- de entim subjuge apossibitidade dese precipitar dag. Quiseram com esse aumento de prudéncia expressar a proibi¢io de uma pritica que se tornou epidémica hesse lugar. E af esté a docilidade do devir humano: ninguém se langa mais desse parapeite facilmente ul- trapassével, nem a esquerda onde se eafa sobre a estra da branea, nem a direita em que o brage acariciante do ago, rodeando a ithe, recebia 0 suicida na extremidade de sua vertigem uniformemente acelerada na razio direta do quadrado da massa edo poder infinito de seu desejo, Mas isso novamente me detém, Nenhuma, ne- nhuma vontade de falar do suicidio, Nem de nada. O que vocés esperam de mim, vocts a? Eles estdo 16 olhandome, estipidos. Sou um homem de carne ¢ 0860, vejamn e toquem, 0 perfeito exercieio de cada um de meus membros, de meus mésculos...Ah, ah, vejo do aque se trate, esses senhores tomavam-ine por uma mé- quina, Darihes prazer? Nao, quem sabe as vezes. Po- dem irse com sua ponte sob o brago, com o lamento pelas lantejoulas que voeés teriam gostado que eu cos- furasse ao longo de seus arcos, raios Ianares, de sua atengio boquiaberta, Bah bah beh Ndo importa. Quan- do imagino o que pensam todos vooss, tfo pequenos, assim, a meus pés, e eu em toda minha grandeza, 0 oéu 197 como coroa, meu caleidoseépio de cabeca para baixo, ‘os naufrégios no bolso, um pouco de prado entre os dentes, todo 0 universo, 0 vasto universo em que 05 péneis correm sem rédeas, as fumagas se divertem em esquecer as linhas retas € 05 olhares! Os olharesndotém azo para suas paradas, entretanto se detém: veja, uma cena de comando de nevio, o oficial tem em sua boca, oimbecil, um megafone de papelo. Mais adiante estiio trituradores de pedras numa encruzilhada de cami nhosna montanha, ¢ sua viseiras me fazem rir. Depois, por cima das sentinelas congeladas, as mensagens dos rouxindis com a corrida rasa, por terra, dos ratos bran- cos, enquanto sobre o apoio de um crazamento uma carta comercial que néo é precisamente uma carta comercial mas um pretexto, digamos sem rodeios, uma carta de amor, levanta vo, vo, vo. Ah, ouvi sobre 0 teto o suave caminhar dos ladrées. O tecido singular ce suas roupas intriga-me devido a sua semelhanca com 0 xadrez das folbagens. 0 sopro azul dos ventiladores. Quem esta ai? Quem me chama? Querida. Bu nao me revolto, j& vou. Aqui estéo meus Iébios. Entio se oculta. Depois. Naturalmente néo sou dificil. Danado, danado. Que eu me aniquile, bate-me, despedaca-me. Sou tua criatura e tua vit6ria 6 minha derrots. Enfim, esta acabado. Tu exiges que eu fale, aqui estou. Mas sei fo gue queres e do que gostas, oh serpente sonora: € a frase em que as palavras, enamoradas de ti, tenham a inflexdo feliz e 0 peso do beijo. O que importa alimalha prodiga dessa balanca e o sentido desesperado que toma toda palavra ao ganhar o salto do coragio aos Ifbios, o que importa o que digo se os sons transforma- dos er mios geis tocam enfim teu corpo nu? Nada mais me protege, como tu vés: eu me rendo. Meu pensamento é todo teu, sol. Desce das colinas sobre mim. Ha no ar um encanto infantil que tu das a Iuz, diriamos que teus dedos erram pormeus cabelos. Bstou 198 86 verdadeiramente, nessa gruta de sal féssil, onde os mineiros carregam suas tochas detrés dos pendentes transparentes da sombra e passam esticando suas car- rogas cobertas de neve. Estou s6, sob essas &rvores esculpidas com cuidado num calor de azul, onde as mulas giram monjolos, por habito. Estou so nesse carro de entrega, enfeitado com uma reproducii fiel da placa j@ fora de moda de uma loje de roupas intimas. Estou s6na beira desse canhio feito pela mao do homem num Jardim do sudoeste, onde se ouve o riso claro das ru- Theres cobertas de esmeraldas. Estou s6 em qualquer lugar, sob toda iluminacéo artificial, desatento em re- lagdio ao que me intriga, além das oscilagées isécronas de meu amor, mas confiante nesse amor que repercute naquilo que serve de rocha para o delirio, nos lincha- mentos de beijos, na justica suméria de meus olhos, 0 coragdo suspenso como um enforcado, enquanto os cavalos mal amarrados arrastam cordas pastando sob as somnbras das drvores, seguindo as sebes de bérberis e agitando suas crinas bicolores. Estou s6 em todo abismo, com os esplendores do instante velados, acima das repugndncias, das necessidades sGbitas de partida do meio de uma companhia sorridente, acima das perversidades passageiras e de outras cotovias brancas que passavam rente ao solo num desejo de chuva e de pressagio em que esfumagava toda uma nuvem de suor. $6 pelos labores e pelas espadas. $6 pelos sangra- mentos @ pelos suspiros. $6 pelas pequenas pontes urbanas e pelos desenlaces de subtirbio. S6 pelas bor rascass pelos buqués de violetas, pelas noites desperdi- adas. S6 na ponta de mim mesmo, onde no faiscante clario de um baile adivinhado, um homem perdido num bairro novo e deserto de ume cidade em eferves: c@neia, numa noite de verdo divina, demora para jun- tar, com a ponta de sua bengala de junco, 03 restos esparramados 20 pé de ume parede, de um cartio 199) postal nostalgico negligentemente rasgado por uma mio sem luva, onde brithava, ao lado dos anéis, a mordida viva e recente de um dente que vocé nao conhece. Mais s6 que as pedras, mais s6 que os mex: Ihdes nas trevas, mais s6 que um pirogéneo” vazio 20 meio-dia sobre uma mesa de terrago. Mais s6 que tudo, Mais s6 do que o que é 86 em sou casaco de arminho, do que o que é 86 num circulo de cristal, do que o que & 56 no coragao de uma cidade sepultada. Posso, pois, prosseguir nesse caminho que se em- brenha pela vertente ocidental da itha e que logo faz nascer 0 atalho do belvedere, do lado direito. Meus ‘pasos siio firmes. O propésito que me leva a prosseguir numa exploragio de sibito comprometida, inexplica- velmente, nao deve ser efeito apenas do acaso. Tenho rainhas razées. ois bem, que eu guarde para mim mesmo minhas raxdes. xv Disseram-me que o amor é risivel. Disseram-me: 6 facil, e explicaram-me 0 mecanisino de meu coracio. Parece. Disseram-me para nao acreditar no milagre, se ‘as mesas viram é porque alguém as empurra com 0 pé. Enfim, mostraram-me que um homem. que est apai- xonado por encomenda, verdadeiramente apaixonado, enganase. Apaixonado, 0 que ha de melhor que isso, desde que o mundo é mundo. Entretanto, nao se dio conta de minha credulidade. Ela é tamanha que as flores poderiam crescer a seus ppassos, ela faria da noite pleno dia, ela criaria todas as fantasmagorias da embriaguez e da imaginagio, e isso nfo teria nada de extraordinério. Se eles no amam, & porque ignoram. Quanto a mim, vi sair da cripta 200 | grande fantasma branco da corrente quebrada. Mas nao perceberam o divino dessa mulher. Parece natural que ela esteja ld, que va e venha, tem-se dela um conhe: cimento abstrato, um conhecimento de ocasitio. O inex: plicdvel nao salta aos olhos, nao é mesmo? De que barranco ela surge, por que vereda aos pés das érvares resinosas, que fosso de clarses, que rastra de mica e menta ela seguiu até mim. Era preciso que. em todas as encruzilhadas, entre as mesmas perspect vas repetidas de tijolos e macadame, ela escolhesse sempre o corredor cor de tempestade para, de sulfario em sulfario, abandonando as folhagens minerais, os abricés petrificados sob as cascatas calcérias, os rios de murmiirios em que sombras méveis a chamavam, aventurar-se enfim no destiladeiro magnético, entre os fragmentos de ago suave, sob 0 arco vermelho. Eu no ousava olhéla vindo. Estava fixado, indissoluvelmente ligado a vida diamantista. Naquele dia tinha nevado. Os homens vivem com os olhos fechados em meio aos precipicios magicos. Eles manejam inocentemente simbolos negros, scus lébios ignorantes repetem sem saber encantamentos terriveis, formulas semelhantes a revélveres. ‘Ha razBes para estremecer 20 ver uma familia burguesa que toma seu café com leite pela manhé, sem observer o inconhecivel que transparece nos quadrados vermelhos brancos da toalha de mesa Sem falar do uso desconsiderado dos espelhos, dos sinais obscenos desenhados nas paredes, da letra W hoje empregada sem desconfianca, das canoes de café. concerto que guardamos na meméria sem conhecer suas letras, das linguas estrangeiras introduzidas na vida corrente sem & menor pesquisa prévia sobre sua capacidade demonfaca, dos vocébvulos obscuros provo- cadores, tomados como chamadas telefénicas, e do al- fabeto Morse,”” do qual s6 o nome ja deveria dar o que pensar. Depois disso, como os homens tomariam cons 201, cigncia dos encantamentos? Bsse passante que eles em. purram, vooes nfo observaram nada? & uma estétua de pedra etn marcha, essa outra é uma girafa transforma- da em book-maker ¢ essa, ah essa aqui, psssssssss: é um apaixonado. Vejam como ele anda, com pedras de esti- lingue agoitando sua fronte, com uma costura de ando- rinhas ao redor do chapéu, com a brisa dos vales felizes, em torno do pescogo, com 0 buraquinho da mordida na boca. Ele esté vestido de veludo branco — isso € tio certo quanto 0 fato de que estou no mundo ~ e se se debruga na superficie dos viveiros suburbanos, 03 pet- xes viram facas. 1é apaixonados nas ruas, apaixonados verdadeiros, como aqueles dos quais se rie chore, como aqueles que sio expulsos e Iouvados, como aqueles sobre 0s quais se faré um dia grande estardalhaco, Othem: af esto apaixonados que passam. O vocés, que um regimento e seu séquito de fedelhos ¢ clamores retém por um instante nas janelas, vocés, pobres ris atiredas por alguns trapos multicores, vocés que sat dam a bandeira tricolor que eu negligencio, 0 cristo ‘trazido para os agonizantes atrés de uma pequena sine- ta, os mortos e outros policialéides™ do espirito, vocés que tiram o chapéu para outro homem somente caso tenham unido pels voz seu nome e 0 dele, deixem de render esse culto absurdo a tudo aquilo que ndo seja, unicamente o amor. Jé é tempo de instaurar a religiéo do amor. Quando seu coracio néo estiver fixado a0 movimento das cidades, quando seu pensamento esti- ver A mercé do vaivém dos encontros, possuido unica- mente pela divindade que deve inspird-Jo, quando suas idéias forem como luzes méveis na superficie fugaz.das Aguas, quando voeé erguer um olhar vazio para aquilo que 0 rodeia, percebendo pela primeira vez que esti nesse caminho de sombra, com seus passos se extra- viando num dédalo de hébitos e paralelepfpedos, na agitagiio confusa em que se mantém mil elementos 202 dispersos oriundos dos confins do amorfoe da fumaca, ai enttio voc’ reconhecera um faquir do amor no ané. nimo que Ié adiante se detém, um homer que nio é como vocé, um homem livre da vulgeridede da alma, um hpmem moldado e recriado, enfim, pela idéia Salve, Legendario: vocé é uma casa assombrada e isso de nada serviria, a no ser para envier uma delegagio de sabios com seus pequenos aparelhos, para observer os estranhos fenémenos dos quais vocé é a matriz martirizada, Mas mela noite no ¢ suficiente para suas, adordveis almas do além: somente 0 dia e 0 sono sao, quando muito, suficientes. Em suas paredes um perpé- tuo rufdo de vestido que se arrasta inguieta-o as mara: vilhas e vocé ama esse rufdo. Que rainka tem, portanto, o palécio que tomea forma ouvida outrora, uma cangio maldita e um cavaleiro negro? Seus bragcs, seus belos bragos brancos estreitam sua memérie. Sua meméria? Nao, é ela que desafie o tempo e sous terrenos pantano: sos, ela volta pelas fendas de suas velas, sorri demore damente, vai falar, seu ar esti inteiramente mudado por algum pensamento soberano, ela fala, seu seio exe € eu ougo. fo ruido de seu coragio que esconde todos os meus pensamentos. Estou aqui, meu amor, nfo te deixei XVI © atalho do belvedere é barrado, A notte, por uma grade portatil, podese atravessé-la facilmente pela rel- va, Depois tem uma bifurcacio: de um lado pitoresco, moda suica, é pequena ponte e verdor; do outro lado, 6a grandeza com sua linha vertical sobre 0 lago e as, fraturas da montana, feitas a mao, mas com a méo de um gigente. E como um homem que une as mios, os dois caminhos se retinem sobre um pequeno templo 208, greco-roméntico, onde colunas Luis xvt sustentam uma capula ao gosto da Capela expiatéria, Belo efeito de luz, fo abismo, a paisagem a nossos pés, mas no me apego a essa embriaguez. Voce pode descer por um labirinto de rochedos, meio-gruta meio-serpente, extremamente propicio para as divagacées. E uma grade sélida vai detélo de repente sobre o caminho que vocé queria. Praguejando, retome 0 filme 20 contrério: labirinto, belvedere, 05 dois atalhos germénicos, seu pai, ¢ vire & direita, Descemos por degraus de pedra largos e planos ¢ irregularmente cortados, que me fazer voltar a memé- ria meus modos de crianea que pulava nas escadas, nas ruas, um paralelepipedo sim outro néo, 96 vale pisar ‘em cima dos riscos, mil jogos metafisicos. A direita, formosa estétua representando um homem caido lu- tando contra ume aguia: qual seré a moralidade desse grupo, por que raziio vocé toma partido, quem est certo, que sera vencedor. Pois af esté, diante de voce, & grande ponte péncil. & proibido balancécla, Nao vou ter omenor cuidado com isso. 6 Pontes pénceis etc. Observar & direita um cume devido ao génio da casa x (© lago tem o clario elétrico da lua, pintado por ‘Arnold Bécldin,” eesse tema continua na moléura, que é a cidade de Paris. O conjunto expresso em trés cores, E trés jovens que o contemplam. A venda. Quem der mais leva. Aponte treme B dessa sépia que se diz na pagina 85 da edigiio original de O Monge de Lewis (trad. pelo abade Moreliety ‘ssa inscrigdo foi colocada aqui apenas para a orna- mentagao da gruts; ¢, como os sentimentos do Eremita, todo o restante 6, igualmente, imaginério”. Mas de que inserigdo se trata? E parece-me, amigo leitor, que tudo 208 6 igualmente imaginério. De fato. De alto a baixo na escala social. A ponte treme, Escadas, tiro o chapéu para vocés. Mesmo. Meu chapéu 6 imaginério. Mas a ponte é pénsil. E pende em Giregdo a seus libios, senhoras. Os homens nio sic mais galantes, Nao sio mais galantes que uma ponte pencil. E hf ainda as serpentinas das veredas, 0 lago dos passaros dormentes, os patos mandarins, jogamos pe. dras neles, mas cles sabe que nio serio atingidos e permanecem sobre um poleiro na agus, iméveis. No café de cima estdo a alma de Henry Bataille, os primet- Tos atos em que hé também pintores, leagdis brancos cobrindo os méveis do coracdo, mas vocts néio podem compreenderme. Parque, parque e parque. Ai esta o apartamento dos sonhos: num desfiladeiro de roche- dos artificiais, uma passagem ao fundo de um vale préximo a um, regato que corre, a cascata a perderse. André Breton exprimesse as vezes num :nglés de rara elegancia. O fundo de seu discurso, que se confunde com 0 fundo do ar, é um equivoco estabelecido entre as drvores e as palavras, sendo que o prado assemelha- se a um limmerick, “ft was a young lady of Gloucester”, Um pouco mais tarde é Marcel Noll que descobre, entre os clardes cruzados na neblina, o encanto das viagens extraordinérias ao fundo das grandes grutas que se aninham, favor ver o mapa, no sudoeste da illsa, em que chegamos por uma caminheda circular. Deixo 20s so. nbadores esses buracos do falso rochedo para esconder ai suas aves cle rapina noturnas e suas aranhas tecedei- ras, e que 0s jornalistas, reverén ja ao falar, desenvol- 205 vam esse tema por tras dos bastidores: as grutas so as tetas da sombra e isso me apraz. EU: Vocé se cré, meu jovem, obrigado a descrever tudo. ‘Ainda que ilusoriamente, mas obrigado @ descrever. Vocé esté muito enganado. Ainda nao contou os pedre gulhos, as cadeiras abandonadas. Os vestigios de porra sobre as hastes da relva. As hastes da relva, Tomara que toda essa gente que se pergunta onde voce quer verda- deiramente chegar se perca no detalhe, ou no jardim de sua ma vontade. Alinhamento a direita, leitores. Pois dliga vocé, homem da luneta, voc’ poderia ajudar: ndo so pouca merda, as estrelas. No caminho, trate de ver se estiea os pés como medida. Passo cadenciado, Eles me soguiram, os imbecis, como naquela complicagao do jogo-de-pular-sela, chamada passeio, em que se se- gue o bravo cavaleiro, imitando os gestos absurdos de um guri dominador. Subam nessa pequena colina, des- am. Bles esto ld, bem adiantados, e eu, desdenhoso demais para rir. Néo sabem nada de meu orgulho. ‘Todos os que falaram comigo acreditavam em minha polidez. Meus sapatos, lambam meus sapatos. E mais. Deus sabe por onde arrastei meus sapatos. Jamais ter- minaret esse livro que vocés comecam a aprecier. Ca era a vocds imaginar essa espécie de Sibéria, esse Ural que costeia a rue de Crimée, onde passa a linha ferrovié- ria urbana, E também as portas, 08 acessos ao parque, a poesia salva para voces de lugares mais convencio- nais, para mim que... vocés nao créem. Sogobrem em minha fraqueza, escravos. Meus bracos vio deixélos entrogues ao tédio e vocts serfo punidos por esse gosto duvidoso que tém de mim, apenas pela decepgio. Per tengo & grande raca das torrentes. Isso néo é para voces. ‘Tudo o que digo, tudo o que penso € bom demais para 208 vocés ¢ ser sempre suficiente. Seu reldgio de pulso, vor. Voce, sua mulher. Vamos, sem rodeios, ponbam tudo a meus pés. Ninguém est pedindo sua opiniao, nio vale a pena que murmurem com suas gengivas: FORMOSA NATURBZA. Deitem-se de barriga para baixo, um pouco mais répido, oh tapete! Ando sobre seus corpos, rei ocioso que sou, avanco, sujo svas roupas, sua pele, seu coracdo. Desenhos loucos de tapegaria de Aubusson servil. Com mil diabos, nada de revolta, capa- chos. Se eu tivesse lembrado de usar meus sapatos com pregos, eu com esporas. Esporas, isso néo seria mal, Reran, rrram a roseta da espora, Pan pan do calcanher. Calem a boca. xv Ao Sr. Philippe Soupault 4, Avenue d'Erianger Sr. Diretor da Revue Buropéenne®™ © senhor nao tem vergonha de publicar todos o3 ‘meses uma coletdnea de palavras sem significacio ge ral vélida ante 0s olhos abstratos do pensamento? Fe- chem-se, pervineas. Que abismo jé foi escavado sob os pasos de seus colaboradores? Seré que o des{gnio de flcgdo e 0 ar amivel de que necesita, os rodeios de inteligéncia das ficcdes judiciérias do espirito valeriam todo esse comportamento de escritura e impresso? Valeriam as provas corrigidas e as batidinhas de seu coragéio, mensalmente, na paginacio? Docéu, um gran de ridiculo se abate sobre esse género de atividade. ‘Quando a narrativa de tais empresas é feita por alguma Pessoa que sempre considerau a agitagio humana de maneira vulgar, sem inquietude, balangando a cabeca nesse gesto ferninino de desaprovacio, entéo toda a falsidade de uma tal posi¢ao intelectual aparece. Leiem 207 isso que diz Wanda de Sacher Masoch sobre a fundagio de uma revista por seu marido: o coraco se levanta © depois cai. Que gente, meu senhor. Mantenho esse propésito porque, mediante diversos sinais de inteli gencia que vos me faziels, acreditel varias vezes com: preender que pudéssels ter certa nogio da inutilidede, da insignificdncia de todo esforco, Talvez eu me tenha enganado. Bern, eu havia comecado — particularmente para indenizé-los pelos adientamentos pecunidrios que vo- cés me concederam—a exporIhes uma fantasia que eu ‘tinha do divino e dos lugares em que ele se manifesta. Logo de inicio, para nfo amedronté-los com a amplidao de um projeto como esse, eu o tinha apresentado sob 0s contornos de simples passeios misturados a reflex6- es, dos quais ha diversos exemplos na literatura, Sem ativida as primeiras paginas do manuscrito decepcio- naram vocés, que esperavam por alusées arqueolégicas e sonhadoras. Mas a alguns elas nfo haviam desgostado ¢ enconrajaram-me a prosseguir. Vocés tiveram a pre senga de espirito de ndo se encolerizar com alguns abusos que fiz em fungfio de sua indulgéncia ¢ desaten- Ho, deixando escorregar aqui e ali, sem que percebes- sem, alguns propésitos um pouco livres para a Franca, corroborando assim a idéia de que voces nao se preo- ‘cupam nem um pouquinho com aquilo que é oferecido ao mundo pata ler. Ao contrétio, isso pareceu encanté- Jose seu proprio editor cativou-mecom aidéia de editar Tuxuosamente um texto, que ele achava sem divida endiabrado. Como nos enganamos! Porém durante aquele tempo, como dizer? Eu pen- sava poder fazer dar um passo a metafisica. Louvavel erro. Bela estupidez. Para que eu provasse 0 som falso proporcionado por esse bronze das quermesses, era preciso todo o desgrenhamento das nuvens do amor. E af estéo elas, algumas sfo réseas e hé grandes rasgdes 208 de claridade, sombras passageiras, balaustradas para os passaros, Minhas miragens nfo so mais para vocés, Azar, entio, que isso tenha um ar inacabado, azar se 0 caminhante que pereorre 0 Butles-Chawmont com meu livronas mios percebe que mal felei desse jardim e que negligencief o essencial dele, xvi Basta experimentar, por um instante, a aquiescén- cia que existe por trés do primeiro compromisso de um homem e 0 inverossimil novelo de boas razdes que ele tem para prosseguir num empreendimento insensato, ‘para que cesse o encantamento. Sim, comecei a mistu rara paisagem com minhas palavras. Pensei em descre- ver uma figura de espirito ¢, juntando 0 exemplo & reflexio, propus ume via para o frisson, sacudi as poei- ventas ramagens em que morriam as ninfas descolori- das, acreditei que meu prazer casava-se com a luz de uma idéia. Agora, que me importa? Vocés esperam distragio daquele que nada distrai de si mesmo. Que a indulgéneia do desprezo caia para sempre sobre vocés, No é problema meu acabar com o tédio desses leitores enfermos. Que eles peregam, que eles murchem na noite do siléncio, onde vagos saltimbances simulam sem dor o semblante das dores humanas Quanto a mim, nao sou quem diz onome de cada coisa. E, abaixo de uma onda ponto de estourar, nesse vazio parecido com a érbita, foime deixado, no méxi- ‘mo, um sopro. Qual ser4, pois, a palavra escolhida entre os milhdes de palavras, os milhdes de murmiios, a2 incontévels perplexidades de idéia nesse cacho de es- puma, na cerejeira azul do mar, por minha boca ébria telvez por um beljo, ¢louca, e livre estranhamente para mim mesmo estrangeira, minha boca, esse mistério. 209 que morde infinitamente 0 mundo aéreo. Qual ¢ a palavra que me resume, 6 escérnio, e pela qual morro? Para mim as conquistas do espirito no silo nada. Pesquisadores de todos os tipos, 0 que vocés Tazem a nio ser a repugnante apologia dos sentidos? Algumas ‘vezes acreditei em novos frescores. Level os lébios a essas neves. Frutos, clardes que se derretem, juventude, Aguas queixosas, florestas. Apenas um ilusdrio vinculo me acorrenta a seu trend, perfume do mundo. Pode deslizar. Nas esquinas, as quedas sfio parecidas a um yoo de péssaro. Diante dessa cruz comemorativa de um acidente do pensamento, repito: nada so, para mim, as conquistas do espirito. Quando o homem passeia na sala das Novas Aquisigées, com um sorriso! Um sorriso! Bu jamais poderia suportar esse sorriso, Desde os tem- pos das caravanas, nenhum terreno, néo se ganhou nenhum terreno sobre 0 mistério, Despertem sob 0 punhal, condenados & morte, meus irméos. Na gargan- ta da Fera. Suavemente a resina do galho que se que- bra... escorre sobre meu rosto. 7: ‘Nao vou mais acompanhé-los ao Barbizons™ do pra- zer. Voces se interessam por isso, por aquilo: ¢ eu com isso? Meu coragio, sob essa ponte de rochedos que 0 enfeita com plimas — ou seré uma névoa? — arrasta, ‘com seus pedacos de gelo, grandes séis mortos que se entrechocam. Todo 0 céu afogou-se em minhas veias. O vento chora nos vuledes ¢ @ lava esté no fundo da orelha, a noite se levanta da terra, as larvas saem dos sulcos do arado. E tarde demais, enfim é tarde demais: para o informulével destino desejado, para a transfigu- ragdo sangrenta do cadaver e LAzaro jamais saira de seu ‘tairmulo. Ble jamais saiu de seu timo, ‘Acontece-me, em meio aos eventos que me limitam eme humilham, nessa maré que me conduz ao contato com os penhascos humanos, quando a ressaca da aten- gdo morre aos pés de uma mulher e seu olhar, entretan- 210 to, tem seu prego, ¢ eu espero perdidamente um bem hipotético, acontece-me imaginar que nao estou 56 sob esse ramo estrelado. E que hé uma mul:idao de seres animados por esse movimento das aguas, respirando coma eu, que siio como eu o brinquedo dos dedos louros dos planetas. E haveria homens. B sonho; ¢ minha cabeca se vai. Onde vai, cortada? Minha eabeca se ramificou na palmeira humana, Extreordinério pa- norama romanesco. Ai esto todos os personagens fa- bulosos: o dono do armazém, o capitdo de equipamen- tos, a rainha, 0 cantor, o esquimé, a dona da loja de laticinios. Cabeca, nfo caia ainda sobre o solo. Arregale os olhos, cabeca. Todas essas coisas nao seziam imagens confundidas de um reflexo de mim mesmo? Vocé pode ouvir a lingua hibrida que traz a brisa arrastando os trigos humanos? Sio palavras dementes que falam da felicidade, Cabeca, nfo caia ainda. Escute, parece o canto que brota das paredes timidas das prisées ao fim uma bela jornada. Grandes palavras banais; quando ‘tudo estiver acabado, se alguém puder lembrarse, isso 6 tudo que viré até sua meméria: “Fez um dia tio suave hoje... Nao gosto muito dos vestidos claros... Voes en- controu aqueld muther que dizem que é tio linda?... et caetera.” Nao caia ainda, cabeca, A cangic retoma: “Di- rfamos — perdioe a expresstio—queo céu esté ao aleance da mio... fiquel completamente pasma encontrando sua porta fechada e nenhum recado com o zelador. gostaria de ter morrido naquela hora... entdo, é 0 que digo,., Vocé acreditaria que eu... Contam-nos coisas tao loucas, no entanto... vocé acredita que morremos real- mente?” Caia, caia, cabeca, jé jogamos bilboqué demais, “sonhamos demais, vivemos demais, Basta: que a fuma. ga volte chama, que o futuro se curve diante do dia, Voce viu suas ruinas, 6 Ménfis, e sua estétua cantante” habitada pelos insetos negros, Para que serve imaginar aun esse mundo? Cale-se. Voc# conhece o destino do pensa- mento. vAquele que falava levante-se, entio. B sua cabeca, precariamente reajusteda, é arrancada de novo, Ble & Prranca com uma forga pouco comum, com wma forge Ge que quase no suspeitariam nesses bragos pouco nusculosos, cle joga longe sua cabega cujos ollos estar Yarn pélidos, ¢ 08 labios hébeis, jogs Longe sua cabeca Gistintiva e ela salta sobre as pedras que a esfolam, rola, foge ericocheteia nos flancos des montanhas, ela deseo, Vai em diregio aos vales profundos; por um instante os Jarieios agrupados a retém pelas orelhas em seus bos: ques, mas a forga inictal da propulsio a carrega ¢ 8s drvores se desviam com um suave ruido de folhas yocadas. A Cabega passa, atinge os campos. Role pelas culturas, Cabeca, pelas sementeiras, Ela se mistura 20 taro, e 0 jootreiro a toma em sua joeira e a envia em Giregao a outras sebes em que o estudante vir, por sus yea, recolhéla, sangrando sob os cabelos negros. “Essa amora”, diz o guri, “ainda esté vermelhinha de um Jado.” Depois a joga, de mau humor, na poeira. A cabega agora aprende a conhecer os pés, Ha diversos tipos de pessoas que passam por esse camino no campo. Seus mnodos de andar sao variéveis até infinito. Seus passos traem os miltiplos movimentos de seus coragbes. Pas: tos pesados do lavrador, passos da moca, do assassino apressado que foge na relva e corre. E voces, pés desea! (gos, cansados, adoréveis. Acabega vai rolar suavernonte em direc&o 20 mar. ‘Aquele que se tinha separado de set pensamento saiti da imobilidade como um ponto de interrogagio de ‘cabeca para baixo, quando as primeiras vagas vieram Jamber as chagas da cabeca desprezada. No ar puro, acima das serras calcinadas, nessas alturas em que 0 eeu de diamante banhava implacavelmente a terra tesfregada até 0s ossos, onde cada pedra parecia marca- 212 da pelo passo de um cavalo esteler com ferraduras de fogo, o corpo decapitado lancava com grandes safandes, 6 triplo jato de suas mais fortes artérlas ¢ o sangue formava samambaias monstruosas no azul faiscante do espaco. Seus arcos desdobrados nas profundezas pros seguiam, devido a finas suspensées de vida, devido a um pontilhado de rubis que se enrolava aos titimos péssaros da atmosfera, no circulo luminoso das esferas, nos sopros tiltimos das atrages, Ohomem-fonte, arras: tado pela capilatidade celeste, clevava-se em meio aos mundos, seguindose a seu sangue. Todo 0 corpo imtitil estava invadido pela transparéncia. Pouco 2 pouco o corpo se fez luz, O sangue, raio. Os membros, num gesto incompreensivel, imobilizaram'se. E 0 homem do foi mais do que um sinal entre as constelacdes. 213 O SONHO DO CAMPONES HA no mundo uma desordem impensével ¢ & ex: traordinério que, de forma ordinaria, 0s homens te- nham buscado, sob a aparéncia da desordem, uma ordem misteriosa que Ihes é tao natural, que expr me apenas um desejo que esta neles, uma ordem que eles no introduziriam antes nas coisas, mas com a qual 05 vernos maravilhando-se ¢ fezendo implicar essa ordem numa idéia, explicando essa ordem por uma idéia, £ assim que tudo thes é providencial e que eles dio conta de um fendmeno que ¢ testemunho apenas da realidade deles, que 6 « relacdo que eles, estabelecem entre si —por exemplo, a germinacao do Alamo, explicada por uma hipétese que os satisfaga — depois admiram um principio divino que dew a leve- za do algodio a uma semente que seria necessério propager para incontaveis fins, pela via do ar, em quantidade suficiente. espfrito do homem nao suporta a desordem por- que nao pode penséa. Quero dizer que ele nao pode penséia primeiramente. O fato de que cada idéia se manifeste apenas no ponto em que é concebido seu contrério 6 uma verdade que padece da auséncia de exarme. A desordem é pensada apenas em relacdo a ordem e, na seqtiéncia disso, a ordem ¢ pensada apenas em relacdo a desordem. Mas apenas na seqiiéncia disso. A propria forma da palavra Jé o impée. Eo que se pretende, dando & ordem um cardter divino, é impos- sibilitar, conseqiientemente, uma passagem para a de- sordem: a passagem de sua concepcao abstrata a seu 215 valor concreto. A nogio de ordem nao é compensada pela nogo inexpugnavel da desordem. Dai aexplicagao divina. ‘Ohomem se atém aisso. Entretanto néo hi diferen- ga entre uma e outra idéia. Toda idéia é suscetivel de passar do abstrato para o concreto, de atingir seu desen- volvimento mais particular, de no mais ser essa noz ven com @ qual os espiritos vulgares se contenterm. & Iieito que eu néo me atenha ao que adiantel até aqui, devido a seqtigncia necessaria, a marcha logica de mew pensamento. Pareceme que, para 0 espirito que nfo ‘Sbscurece seu perceber ideal por uma incessante trans- cricdo, por um controle continuo de cada momento de ‘seu pensamento, através da comparagio dese momen ‘to corn todos os momentos que o pereebem (e o que essa preferéncia dada ao passado sobre o futuro, qual seu Jundamento?), para o espfrito que concebe a diferenca ‘dessas palavras compo uma pura relacdo sintética, que ‘concebe, em conseqiiénels disso, a coexisténcia de di- ‘versos gases distintos num rectpiente fechado, ocupan do cada um todo o volume que € oferecido a todos, a desordem é suscetivel de passar para o estado conereto. if claro que isso néo € um simples sentimento e que tanto a ordem como a desordem foram tomadas como os termos dessa dialética apenas com a intengéo que tenho de mostrar acessoriamente, aomesmo tempo em que dou um exemplo dessa dialética, por que emprei- tada vulgar 03 homens puderam coneeber uma explt- cago divina do universo, que € repugnante para toda filosofia verdadeira. Penso antes de tudo no processo do espitito, Apenas a idéia de limite absoluto ¢ verda- deiramente impensével. f da definigao do espirito no ter outro limite. E se adesordem é impensfvel, entendo que, se ela fosse concretamente impensével, o conereto da desordem seria o limite absotuto do espirito. Singu- Jar imagem daquilo que muitos chamaram de Deus. 216 Nio vejo como ela seria eonetiével com algum dos sistemas de opinides que Ihe servera de conhecimento. Esse de forma primitive afirmei, numa primeira instén- cia de minha reflexao, que a desordem era impensével, € que essa primeira insténeia era a do conhecimento vulgar, pela qual me vém logo, de inicio todas as minhas intuigdes. A idéia de Deus, ou ao menos 0 que a introduz na dialetica, ndo passa de um sinal da preguica do espirito, Da mesma forma que ela se levantava, no primero passo, para deter toda verdadeira dialética, no segundo ela rea parece por um desvio semelhante, e vése que € fécil Givinizar a ordetn segundo a desordem oa, no curso do desenvolvimento dessas nogées, reuntlas em Deus, Foi nnesse estgio que o ideatismo transcendental se detevec certamente, ele dava & idéia de Deus um lugar mais satisfatdrio para 0 espirito do que os lugares que The destinaram precedentemente. Porém, no instante em que reconhego na prépria idéia de mediador absotuto a ‘mesma pusilanimidade, a mesma fadige do espirito que me era mosirada nas teologias pelos idelistas, dirjo contra eles, oespirito dirige contra cles a condenacio que eles promunciaram contra essas, E para ser examinada sobsuastrés formas, nastrés etapas do espfrito, a aparicao a idéia de Deus, om que reconheco o mecanismo dessa aparigio, em que posso prever que sou suscetivel de sueumnbir a essa idéia, em que posso de antemtio me condensr,na medida em que esse franqueza aparece em mim mesino como sua vitualidade. E que eu generalize as pfopriedades dessa idéia, pelo proprio mecanismo, sempre 9 mesmo, que pereebo em sua aparigdo, A idéia de Deus’ 6 um mecenismo psicolégico. Fin caso elguum poderia ser um principio metafisico. Ela mensura uma Ydéia repugnante e vulgar, 217 incapacidlade do espirito e nfo poderia ser o principio de sua eficiéncia. ; Daf que para oexpirito vulgar conelu pela incapa cidade da metafisica, basta um passo. Bis o que faz com que, nesse ponte das reflexdes, certa intuigao seinsinue ‘aos homens que desconhecem as etapas intermediérias demeu raciocinio; intuicao que os leva freqtientemente a julgar impossivel a metafisica. B que para eles, 0 objeto da metafisica 6 Deus. E se niio se pode, dizem eles com um ar de felicidade, atingir por meio da metafisica a idéia da qual cla fez seu objeto, isso s6 pode ser devido a uma auto-protbigao do espirito. Erro cuja ingenuidade conheceu inacreditével ventura, Além de ligar a metafisica a um objeto que Ihe é estranho, ele reclama para si um pragmatismo que faria rir, Aconte- ce que os homens aceitaram, durante quase um século, como \inica idéia razodvel, essa idéia que constitui um. verdadeiro suicidio do espfrito. Todo raciocinio cons- truido sobre 0 mesmo modelo, mas que nfo tivesse apenns o esprito por matéris, parecer monstruoso, indigno, e faria com que tratassem como louco aquele que reproduzisse o percurso habitual do positivismo. Esse nfo é um sofisma novo. Os idealistas tinham-no encontrado em seu tempo, tinham-no vencido por si mesmos. Uma simples sutileza, essa falsa modéstia do canigo pensante que parece sempre do melhor quilate seria suficiente para reproduzir, com toda sua forca, uma dificuldade jé resolvida. Toda a filosofia moderna, mesmo aquela que se opés ao positivism, foi viciada e atingida por isso. Um espfrito filoséfico nao tem outro recurso a néo ser dispor ordenadamente, entre as for- ‘mas mais grosseiras do erro, 0s silogismos condenados pela filosofia aristotélica e ndo mais se preocupar com eles. : Se o problema da atividade nao é, como adianta- ram, haja 0 que o houver, objeto da metafisica, se a 218 prépria metafisica ndo ¢ uma impossibilidade logica, qual é portanto, o seu objeto? Os idealistas haviam percebido que a metafisica ndo é a finalizacdo da filo- sofia, mas sim seu fundamento, e que ela ndo era distinia da légica. H4, nesse segundo ponto, uma acei- tacdo de sinonimia que é inaceitavel. Se a légica é a ciéncia das leis do conhecimento e se essas leis sio incompreensiveis fora da metafisica, com o que concor. do, nfo decorre dai que essas leis sejam a metafisica mas, evidentemente que, sendo a metafisica ciéncia do objeto do conhecimento, somente nela é que a logica se exerce e desenvolve suas leis. Eu me faria entender melhor dizendo que a l6gica tem por objeto o conheci- mento abstrato e a metafisica, o conhecimento concre- to, Segue-se que, para falar a linguagem do idealismo e desemaranhar as vias do erro nesse sistema, nao pode. Tighaver af nem logica da nogio, nem metafisiea do ser. E que apenas essas concepeées, filhas dos proprios erros que os idealistas combatiam, conduziram Hegel A construcio que ele chama A Ciéncia da Esséncta, inter- mediério inGtil que the permite passar da logica metafisica, quando primitivamente ele es misturou. Seria suficiente ‘imanter suas individualidedes, Al6gica é ciéncia do ser, a metafisica,a ciéneia da nogao. Se pudéssemos ter acesso diretamente & concep- so metafisica, a légica nfo seria de forma alguma necesséria para nosso espfrito. A légica nfo passa de um meio para nos levar a metafisica, Eno se deve esquecer disso. Desde que deixe de ter esse valor, desde que se exercaho vazio, ela perde todo o valor. E pela via légica que temos acesso a metafisica, mas ametatisica envolve 2 légica e, ao mesmo tempo, permanece distinta dela. Annocio, ou conhecimento do conereto é, portanto, 0 objeto da metafisica. f para a percepgao do concreto que tende o movimento do espfrito. Nao se pode ima- ginar um espirito cujo fim no seja a metafisica. Ainda 219 {que seja 0 mais vulgar e obscurecido pelo sentimento qnopinido, Ba isso que tende o espirito e pouce impor ta que ele atinja o que nfo sabe que procura. Uma filosofia nfo poderia rer éxito, # da grandeza de seu Shjeto que ela empresta sua propria grandeza, ¢ ela a conserva no fracasso. Também no instante em que constato o fracasso do idealismo transcendental, sa6d0 ceva empreltada, @ mais alta jamais sonhada pelo ho- nem como etapa necesséria para oespirito. Entretanto, fm stia cammineda em dirego ao concreto, que ele nfo Seembarace com o assentimento passageiro dado a um sisterna. Nao ha repouso para Sisifoe sua pedra nao cai, ela nfo deve deixar de subir. Desca para sua idéia, habite sua idéia, como um operario que fura pogos pendurado em sua corda, De infcio no passava de um traco, um circulo e, agora, ela se limita verdadeiramentee por toda parte toco naquilo que no é ela, toco por ela naquilo que anega, omundo expira em suas praias. Minha idéia, minha idéia pren- dese a mil vinculos, Uma longa historia e enternego-me ‘com as cicatrizes de sua forma, beijo as imperfeigdes de wen alas terriveis e encantadoras, que outros ern seus bracos ponham-se a generalizar. Que eles se embria- guem encontrando sob esse aspecto mtitavel que, @ tim, desconcerta, © que une todas elas, o que ven @ dar, entretanto, no verdadeiro amor. Gosto mais de seus beljos. Gosto mais de cada beijo, distingo isso, sonheria com isso por muito tempo, ndo esquecerei mais, Ouvi homens que se lamentavam, suas amantes hijo tinham aquilo que é proprio das mulheres ¢ incor. . lam nequilo que as mulheres evitam. Eles sofriam por nao sentir sob a pele acariciada esse frisson da lei geral 220 que os deixaria embasbacados. Pois bem, nao eu. Adoro voeé, voe8, por essa particularidade adorivel, no hé uma polegada do corpo, um movimento do ar que seja vélido para outro. Nao construiriam sobre suas miozi. nhas.*t Vocé confunde a ei, ao mesmo tempo que a manifesta, Uma grande liberdade que ela negligencia explode a seus passos. A maravitha ¢ que eu tenha fugido da mulher em dirego a essa mulher. Passagem. vertiginosa: a encarnagio do pensamento ¢ lé estou, no posso conceber um mistério maior, Ontem, as cegas, eu me entregava a essas abstragées vazias. Hoje uma pessoa me domina ¢ cu a amo, sua auséneia é um mal intolerével e sua presenga. Nao posso compreender sua presenga, nada é natu. ral nela, em seu poder. Ume atitude. Uma palavra. Um deslocamento do vestido. 6, quando o bracelete brinca, rogando a carne. Eu me tinha demorado num ponte de meu pensa- mento como um homem que nio sabe mais 0 que 0 levou, onde se encontra, nem vé caminho de volta. A infelicidade faz com que o proceso de meu pensamen- to seja também o de minha vida. Meus amigos observa. vam em mim uth estado pelo qual sei que se afligiram, Jamais haviam suspeitado de que fosse a falta de pers- pectativa metafisica que me confundia a tal ponto. Eu me entregava a esses pequenos trabalhas literérios, cuja lembranca me dé vergonha. Temos tais movimen. tos de pudor quando nos lembramos dos episédios da infancia, da vida em familia. Nenhuma empreitada logica parecia dever tirarme desse calabougo légico, que trafa uma melancolia. Foi entiio que uma subver sio total de minha sorte, em que acreditei néo ter Participagio elguma, deu uma dimensao téo nova a meus pensamentos, que meu pensamento por sua vez osultrapassou. Apaixonei-me eo que se avizinhadessas duas palavras, fora delas, permanece inimaginavel. 224 Posso € n&o posso, 80 mesmo tempo, dizer muito bem quando se elevou em meu espirito a idéia desse amor, precisemente desse amor. Tudo me separave daquéla de quem decidi inicialmente fugir, fugindo sobretudo em mim mesmo. Hé em meu arrebatamen. to pelas mulheres uma certa altivez que se refere a diversas mAgoas que tenho, ao fato de que por muito tempo acreditei que uma mulher podia, no méximo, odiarme, a esse sentimento horrivel do fracasso que me leva sempre para os confins de uma sombra mor- tal, Proibime de amar essa mulher, desvie-me dela ‘com uma espécie de terror que confessa seus proprios lamentos da lembranca. Diversos sentimentos que eu tinha ditavam-me também minha conduta. Sem dt- vida eu adivinbava entilo, entretanto sem fixar os tragos de um fantasma, uma modificagéo profunda de meu coragao. A filigrana estranha do amor jé ‘comecava a aparecer nele. Acreditei numa disposicao geral de meu humor e foi nessa desordem real que encontrei uma outra mulher. Que ela possa perdoar hoje, quando tudo esté adormecido, minha confissao. ‘Ameia & maneira daqueles tempos, como me era ossfvel, sem saber que sua imagem estava mesclada a-uma outra, amei-a sem mentir, com um amor que 36 se desvaneceu diante do préprio amor. Ela sabe muito bem que me tornou infeliz. Ainda que muitas vezes se mostrasse earente, nfo usei esse amor — e sem diivida era dele que tirava sua vida — contra 05 obstéculos que me opunha. Mas entendeme, cara amiga, reencontrei em mim o que eu havia negado. Vocé era minha tinica defesa e logo se distanciou, Entio fui infeliz pela outra, sem crer que ela soubesse coisa alguma disso. Vivia sem nenhum esforgo para me reaproximar dela, Disse que outros sentimentos, entéo, desviavam-me. E depois eu estremecia por experimentar minha fraqueza. ‘Temia que 0 dia se 222 tornasse intoleravel para mim, se ela me humilhasse uma vez. Ela fez essa coisa extraordinéria de me chamar até ela: ¢ eu ful. Noite de perturtagio, noite eclipse: entio, diante do fogo que jogava sobre nés dois seus grandes elardes, cheguel, vendo seus othos seus olhos imensos e tranqiiilos, cheguei didéia desse amor concebido e negado, que se impunba de repen- te para mim na evidéncla, ao aleance de minha mao que se acreditava demente. N4o me apressel. Aquilo durou horas ¢ horas, na vertente insensfvel da contis- siio. Nao houve ruplura entre a indiferenga e o amor. Uma porta enfim cede e é assim que aparece a mar: vithosa paisagem, Accitamos trangililamente que a paixio obscureca © espirito. £ que ela desconcerta esse aluno aplicado naquilo que ele tem de vulgar. As distragdes dos apat xonados € dos sabios ainda nfo deixaram de fazer rit. Blas se equivalem ¢ traduzem apenas uma adaptacdo a uum objeto muito grande, No amor, pelo proprio mece- nismo do amor, eu descobri o que a auséncia do amor me impedia de perceber. Aquilo que ness mulher se reformava retomando essa imagem e desenvolvendo nela um mundo particular, 0 gosto, esse gosto divino que conheco beni em toda vertigem, advertiame ainda uma vez de que eu entrava nesse universo concreto que esté fechado para os pensamentos. Para mim o espirito metafisico renascia do amor. © amor era sua fonte. E nfo quero mais sair dessa floresta encantada Acesfera da nogao é parecida com o fundo do mar. Ela se enriquece, se levanta das estratificacdes devidas a0 proprio movimento do pensamento e em seus ban- cos de areia engloba tesouros, navios, esqueletos, todos os desejos extraviados, as vontades estrangeiras. O ex. 225 se medaihio que travagante caminho ee aon oes pager de rum emisin até ese eaimento our em que ele se avizinha de ae aaa < tporethagens vend de agua sna Arar” A nog&o € também o naufragio da lei. eerie Geaconcert Ea me eee onde «sti. Teno at gaigade em elevarme ao parteust.Atientoms 80 Sortclr bereome nic O sina doa per é to Enter commento, Hao © gB0 me ce

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