You are on page 1of 44
Cinema e Ciéncias Sociais PAULO MENEZES DEPTO. DE SOCIOLOGIA FFLCH ~ USP* Para Ana Licia A questao fundamental para se pensar as relagdes entre Ciéncias Sociais e cinema no século XX coincide com o surgimento do que se convencionou chamar cinema, a partir do inicio do século XX, em contraposi¢ao ao que se denominava cinematégrafo, cujo aparecimento data de fins do século XIX. A invengao de uma maquina que conseguisse captar e registrar imagens do mundo exterior para entao projeta-las em uma tela aconteceu, portanto, na década anterior. Coube aos irmios Lumiére, donos de uma fabrica de chapas e filmes fotograficos, 0 desenvolvimento do que se transformou no filme cinematografico. Suas primeiras tomadas, realizadas com pequenos filmes que tinham no maximo trés minutos, foram de cenas absolutamente prosaicas, cotidianas: a saida dos operdrios de sua fabrica de Lyon, uma baba alimentando um bebé, ou um jardineiro com uma mangueira regando as plantas de um jardim. Este ultimo apresentava uma peculiaridade. Em determinado instante, um garoto pisa no meio da mangueira, cortando seu fluxo, sem que o jardineiro perceba. Intrigado com a stbita falta de agua, ele olha curioso para 0 bico da mangueira. Neste momento, 0 menino retira seu pé e a cimera capta a Agua jorrando em diregao do rosto do jardineiro molhando-o completamente. Experiéncia de encenagdo que, sem diivida, faria a alegria de Méliés, anos depois. A primeira exibigdo publica do que na época se chamava cinematégrafo ocorreu em Paris, em dezembro de 1895, no salao Indiano, do Grand Café, no Boulevard des Capucines. Do seu programa constava, além dos filmes citados 1. Agradego 4 FAPESP ¢ ao CNPq pelo apoio a realizacao desta pesquisa 130 Por uma sociologia do século XX ROUDINESCO, E. Diciondrio de Pssicandlise, Rio de Jonciro, Jorge Zahar, 1998. SARTI, Cynthia. A panorama of Brazilian feminism. New Leff Review, n. 173, Londres, 1989, STOLLER, Robert. A contribution to the study of gender identity. L/P (45), 1964. WALLERSTEIN, I. 1969, Révolution dans le systéme mondial. Les Temps Modernes, ns. 514-515, maio-junho de 1989. 132 Por uma sociologia do século XX acima, um outro denominado L'arrivée d'un train en gare de La Ciotat. Mostrava, como 0 nome aponta, a chegada de um trem tomada a partir da plataforma da estacao. Como esta plataforma era em curva, ¢ a maquina de filmar estava postada bem em sua borda, rente aos trilhos, 0 trem que se aproximava vindo da esquerda para a direita ia calmamente virando de maneira a ficar quase de frente para as cadeiras da platéia que olhava ansiosa. Ao ver trem crescer as suas vistas, e se aproximar cada vez mais em sua diregao, os espectadores levantaram de suas cadeiras ¢ sairam correndo em diregao das escadas, com receio de que aquela locomotiva que vinha decididamente em sua diregdo terminasse por atropeld-los’. Desta exibicdo, e da ilusdo de 6tica que criou, podemos depreender 0 primeiro problema causado por um filme em suas dimensdes propriamente sociolégicas: a confusao entre real e imagem, que remete diretamente a um outro e correlato problema, o coeficiente de verdade, ou de ilusdo, que esta presente na percepgao de um filme. Colocando o problema de outra maneira, a questo que se coloca é a de perguntar o significado epistemolégico de uma imagem, bem como de um filme, e, conseqiientemente, suas possibilidades de ser fonte de conhecimento para as Ciéncias Sociais. Esse problema se acentua com a passagem do que se chamava cinematégrafo para 0 que hoje se concebe como cinema. Como vimos, os primeiros filmes eram realizados por tomadas diretas, de mais ou menos 3 minutos, sem cortes, em perfeita continuidade espago-temporal. Eram, portanto, mais proximos do que hoje se poderia denominar de data. O cinema, por sua vez, passou a receber essa denominagao a partir do momento em que imagens filmadas foram rearticuladas em sucessao, pela colagem material de seus fotogramas, fundamento técnico do que pouco depois se transformaria no seu artificio fundamental enquanto forma de produzir sentido: a montagem (seja pela sua afirmagao, como no cinema soviético, seja pela sua negagao, como no neo-realismo italiano). Uma coisa salta aos olhos nesta comparagao entre cinematégrafo (data) e cinema (narrativa): o cardter absolutamente construtivo do segundo. Nessa acepgio, pensar o cardter construtivo é pensar os esquemas valorativos que presidem esta construgdo, os conceitos que a fundam, as hierarquias expressas, as relagdes propostas*. Essa diferenga expressa, guardadas as devidas proporgées, a divisio do olhar nas Ciéncias Sociais, fundada em uma primeira e primordial “divisio de trabalho”, entre Durkheim e seu sobrinho Marcel Mauss, cabendo ao 2. Optei por deixar no original os nomes de filmes ndo langados no Brasil. 3. Para maiores informagdes histéricas remeto a Eric Barnouw, Documentary, a history of the non-fiction film. New York, Oxford University Press, 1993. . Cf. Sorin, Pierre. Sociologie du Cinéma. Paris, Aubier, 1977. - Josué Pereira da Silva | oGanizanor 133 primeiro o estudo das assim chamadas sociedades “industriais”, regidas pela supremacia da solidariedade organica, pela ampla divisdo do trabalho e pela multiplicidade de érgaos e fungdes sociais, enquanto ao segundo caberia 0 estudo das “sociedades primitivas”, império da solidariedade mecanica, com divisado de trabalho incipiente e pouca diferenciagao social e institucional. Na esteira dessa trilha aberta por Marcel Mauss, Marc Piault ressalta que os primeiros etndgrafos de campo se diziam declaradamente positivistas*. Para esses etndgrafos, a camera de filmar nada mais era do que um 6timo meio de captar de maneira objetiva, imparcial, dados sobre 0 outro. Devemos lembrar, como afirmou Bazin, que a maquina fotografica pela primeira vez conseguiu registrar imagens nas quais o homem parecia elidido, fruto que eram de um processo absolutamente mecanico de fixagdo de um objeto em um filme, mera transposig’o de uma realidade exterior para a realidade da imagem, em uma camara escura, por meio de um conjunto de lentes, que nao por acaso foram chamadas de “objetivas™. Alfred Haddon, em 1898, em suas perambulagées pelas ilhas do estreito de Torrés, entre a Australia e a Nova Guiné, foi um de seus precursores ao realizar um levantamento sistematico da vida social, religiosa e material de seus habitantes’. Iniciou, sem duvida, uma forma de coleta de dados sobre 0 outro, ou sobre os outros em via de desaparecer, 0 que nos anos 50 seria chamada de “antropologia de urgéncia” e depois, com as reconstrugées de eventos ¢ rituais j4 no mais realizados, de antropologia da “salvagio”*. Eric Bamouw afirma que, desde seu principio, o cinema “documental” utilisou-se, sem qualquer problema, de cenas construidas e montadas especialmente para serem filmadas. Cita que, na guerra dos Boers, na Africa do Sul, entre os descendentes holandeses e os ingleses, atuais colonizadores, na auséncia de soldados Boer para algumas filmagens, Albert Smith nao teve duvidas em vestir soldados ingleses com os uniformes Boer para simular algumas lutas e batalhas. Assim, o fake é parte do cinema documental desde os seus mais tenros primérdios. Da mesma forma que Piault aponta o surgimento do cinema etnografico como um dos mais importantes bragos dos impérios coloniais, onde conhecer o “outro” era um passo importante e as vezes decisivo para se dominar 0 “outro”. a Cf. Piault, Mare. Anthropologie et cinéma. Paris, Nathan, p.108. 6. Cf. Bazin, André. Ontologie de l'image photographique. In: Qu'est-ce que le cinéma, op. cit., p. 13 7. Cf. Piault, Mare. Anthropologie et cinéma, op. cit., p. 16. Barnouw, Erik, Documentary: a history of the non-fiction film, op. cit., p.45. 9. Cf. Piault, Mare. Anthropologie et cinéma, op. cit., pp. 72-73. ~ 134 Por uma sociologia do século XX Esse papel também coube a muitos museus, patrocinadores de expedigGes para investigar e recriar esses povos dentro de uma chave cultural de compreensao e¢ hierarquizagéo que os conceberia como sociedades primitivas, tendo os valores branco-cristéo-europeus como referéncia. Por desdobramento, seus habitantes seriam concebidos como nao civilizados, como primitivos, e, dependendo da situago, como barbaros e selvagens. Ao elegerem-se os critérios para 0 que seria fundamental na caracterizagao da nogao de “civilizado”'’, essas sociedades, reduzidas a comunidades, simplificadas em suas dimensées culturais e simbélicas, foram empurradas para longe do mundo civilizado, para perto do mundo das criangas, para perto da natureza, para perto da “infancia da civilizagio”, quando nio simplesmente excluidas dela. Nao por acaso, e deve ser digno de nota, os museus que tratam desses povos, guardides de suas imagens e de seu legado, sao os Museus de Histéria Natural, onde esses povos encontram seu lugar ao lado dos insetos, dos animais empalhados e dos minerais, na fronteira do mundo inorganico, Starobinski salientou que 0 conceito de civilizado, desdobramento de seu sentido original de ser civil, acabou por ser cunhado, a partir do século XVIII, como par oposto dos conceitos de barbaro, de primitivo e de selvagem, ao mesmo tempo que era associado, de maneira indelével, a nogio de progresso''. Nessa diregao, além de “documentar” essas sociedades “primitivas”, reinventando-as a partir da clivagem conceitual branca- eurocéntrica, além de fornecer informagées sobre essas sociedades distantes € exoticas, as fotos e filmes desses primeiros expediciondrios acabaram por armar culturalmente os colonizadores e seus impérios na busca de uma expansio global'?. No caso especifico do Brasil, nao podemos nos esquecer do Major Thomaz Reis, nao por acaso um major do exército brasileiro sob 0 comando de Rondon, que, segundo Piault, bem poderia aparecer, nado fosse o eurocentrismo/norte-americanismo dos criticos etnograficos e cinemato- graficos, como o pai fundador, avant-la-lettre, do cinema etnografico, lugar atribuido por 99,99 % dos analistas a Robert Flaherty e seu Nanook of the North (1922). Major Reis filmou, entre 1912-1917, os rituais e funerais Bororo, nao sendo, entretanto, conhecido por grande parte da critica internacional, excegao feita aqueles que tém alguma relago, académica ou nao, com o 10. Cf. Blias, Norbert. O proceso civilizador. Volume 1. Uma historia dos costumes. Rio de Janeiro, Zahar, 1994 IL. Cf. Starobinski, Jean, 4s mascaras da civilizagdo. Sao Paulo, Cia. das Letras, 2001, pp.11-56. 21. Cf. Piaul, Mare. Anthropologie et cinéma, op. cit., p. 72. Josué Pereira da Silva | oncanizaoon 135 Brasil. Assim, coube a Flaherty 0 titulo de pai fundador, tanto do cinema etnografico quanto do cinema documental. Essa criagdo de Flaherty teve frutos mais profundos, pois ele nao fez apenas um filme sobre esquimods. Ele criou uma matriz visual de interpretagao do que se poderia conceber como bom selvagem, dando-Ihe cara, forma e expresso. Estava criada a imagem matriz de referéncia para a filmagem de povos “primitivos” e grupos sociais “desfavorecidos” até hoje, como se pode ver na esmagadora maioria dos filmes e videos sobre os indios brasileiros, excegao feita aos filmes do CTI outros poucos, infelizmente. Desde entio, o que também aparece nas tomadas dos indios de inameras cenas do filme Ao redor do Brasil (1933), de Thomaz Reis, 0 bom selvagem passou a ter uma imagem visual onde aparece sempre sorridente, ingénuo, bondoso, corajoso ¢, o que é muito significativo, sempre agradecido a civilizagao. E preciso ressaltar, também, que esses personagens aparecem em sociedades que sao reconstruidas de forma harménica, com a exclusao de praticamente todos os conflitos e dissonancias, com fortes e arraigadas tradigdes culturais, sempre reduzidas as suas dimensdes mais propriamente materiais, chamadas elegantemente de “cultura material”, ou a materialidade visual descritiva de seus ritos e de suas dangas. Aparecem, nessa diregao, destituidas de suas dimensGes simbélicas e cosmologicas mais complexas. Assim, essas imagens encontram ressonancia na mente dos espectadores especialistas, que j4 conhecem os significados daquelas expresses culturais por outros caminhos, mas nunca adquirem forma filmica alusiva a significados complexos para aqueles que desconhecem essas culturas. Além disso, nado raras vezes isto s6 é conseguido por meio de uma assepsia visual ¢ cultural que recria essas populagées em atividades e rituais que elas mesmas ja ndo mais realizam. O caso Nanook é exemplar. O ponto de encontro entre o mundo esquim6 eo mundo civilizado no filme é 0 posto de troca, o grande ighi do homem branco, para onde se dirigem os esquimés, com muito esforgo, no intuito de trocar as suas peles de urso ¢ raposa por “facas, balas e contas coloridas”, como afirma o intertitulo do filme. Além do irreparavel absurdo dessa troca aparentemente to desigual e, por que nao dizer, supérflua, pois de fato nada nela parece ser de primeira necessidade para os esquimés", a cena de Alee, filho de Nanook, é primordial. Primeiro 0 homem branco da as criangas esquimés biscoitos de agua e sal cobertos com banha, que eles comem animadamente. Depois, por ter ficado com dor de barriga, Alee recebe novamente das maos do comerciante branco uma colherada de Oleo de ricino, que ele bebe com prazer, sorridente. Aqui, constitui-se de maneira clara e 13. E evidente que nao é por estes produtos que eles se dirigem ao posto de trocas. 136 Por uma sociologia do século XX evidente a civilizagao como o lugar que alimenta e, se necessario, cura os longinquos esquimés. Essa cena ganha ainda outra dimensio se 0 espectador lembrar-se que, no inicio do filme, um intertitulo contava que Nanook, dois anos apés as filmagens, havia morrido de fome no meio de uma infrutifera cagada nas terras geladas de seu territério Inuit. Voltando ao filme, logo depois da cena do remédio, vemos Nanook investigar, com curiosidade ¢ incompreensio, o som que sai de um disco tocado num gramofone. Sorridente, como nao poderia deixar de ser, olha para o buraco do auto-falante nao compreendendo, em reagao ao que lhe afirmou o comerciante, como poderia 0 som sair de dentro do disco. Movido por sua incompreensao, ele acaba por segurar um disco em suas mos para, entdo, leva-lo para a boca ¢ mordé-lo, numa versao artica de Sao Tomé, e de seu ver para crer. Essa cena apresenta, de maneira evidente, a tecnologia sendo para Nanook algo misterioso inalcangavel, para a sua brava, porém simples, percepgao do mundo. Ao contrario de ser apenas uma cena de divertida curiosidade entre dois mundos, como alguns alegam, Nanook se vé, ao morder 0 disco, infantilizado perante o maior representante simbolico do mundo civilizado, aumentando por meio desse artificio filmico 0 fosso que separa aqueles dois mundos aparentemente heterogéneos, os dos civilizados e o de Nanook e seu grupo. Reduzindo o mundo simbélico de Nanook a incompreensio da tecnologia, ao mostra-lo mordendo o disco, Nanook é infantilizado e remetido a fase oral freudiana da civilizagao, da qual, pelo filme, ele poderia sempre estar apartado ao manter seus costumes o mais distantes de suas inovagdes. Assim, na clivagem conceitual de orientagdo valorativa do filme, entre civilizado e nao civilizado (que Flaherty termina por nao qualificar, apesar dos indicios que o filme vai mostrando), 0 posto de troca, ponto de encontro fugaz entre dois mundos heterogéneos e filmicamente estanques, transforma a civilizagao, para 0 mundo esquimé de Nanook, em algo misterioso mas generoso, que alimenta e cura. Essa construgao do mundo esquimé de Flaherty constitui um “outro” empurrando-o cada vez mais para longe da civilizagao e mais perto da natureza, aos olhos daqueles que tém seus valores culturais ancorados nos legados da “civilizagao ocidental branca ¢ crista”, por meio da eliminagao gradativa dos lugares em que essa “civilizagao” ja penetrou a vida esquimé. Ressalta esta distancia pela imagem da incompreensao causada pelo gramofone ao mesmo tempo em que se eliminam do filme os rifles e binéculos que os esquimés ja usavam para cagar, no lugar das langas e arpdes que o filme mostra incessantemente. Nessa diregao, o filme de Flaherty os situa em um passado imaginado deles mesmos, ao fazé-los encenar um modo de vida que © proprio Nanook nunca tinha conhecido ou vivido, mas que de maneira exemplar simulou perante as cfmeras que o imortalizaram, a0 mesmo tempo em que fossilizaram a sua cultura material e aniquilaram a sua cultura Josué Pereira da Silva | oRcanizanon 137 simbélica'’, Flaherty constroi um modelo interpretativo no qual as sociedades retratadas aparecem sempre como sociedades sem tempo, sem historia, que parecem nunca mudar, lugar de repeticgao perene de tradigdes culturais que nunca se alteram. Nao se questiona se a percepgao destas sociedades onde evidentemente a mudanga se faz por caminhos e ritmos alheios aos das sociedades industriais, apresentadas como sociedades praticamente “paradas no tempo”, nao é derivada de uma questo de método, de uma espécie de “cegueira analitica” que ao ser incapaz de perceber o sentido qualitativo de suas mudangas acaba reconstruindo-as pelo pensamento como sociedades sem histéria, reduto ultimo de perpetuagao de valores culturais arraigados e indissoliveis. Assim, ao apresentar Nanook dessa forma, Flaherty congelou no tempo uma sociedade que apresentava, até em cenas do filme, indicios de uma dinamica interna significativa, com a incorporagao diferencial de elementos do mundo “civilizado”, como as armas, binéculos e roupas. Isto da um outro sentido ao esforgo daquele grupo em atravessar mares gelados em grandes viagens para chegar ao posto de troca, qualificado como “Precious Store”, retirando os esquimés da ingenuidade de irem trocar as suas riquezas apenas pelas insossas balas e contas coloridas, posto que sua jornada se dava por razdes muito menos singelas e artesanais (muni¢ao, armas € roupas). Esse modelo de qualificagao do “outro”, de imagem do “outro”, fundado em Nanook para os olhos dos espectadores de cinema de todos os tempos, criou uma escola de representificagao'* do “outro” que tem vigéncia até os dias de hoje, j4 passados quase cem anos. Essa mesma estratégia foi utilizada por Major Reis em seu Ao redor do Brasil (1933), por meio da utilizagéo do conceito de pacificagao, como mediador do de civilizagao, criando uma interessante e ao mesmo estranha escala entre as tribos indigenas, indo dos mais pacificados e proximos da civilizagaéo, aqueles que aceitam usar roupas e trabalham junto aos expedicionarios, os Caraja, para os menos civilizados, os Nhambiquara, que nao se livram de seus habitos némades, recusam-se a usar roupas, vivem. desgrenhados e deitados pelo chao, junto com cachorros e outros animais, alimentando-se basicamente da cultura do ananas bravo'’. 14. Nao se pode esquecer que os esquimés possuem mais de 200 palavras para falar neve, © que ressalta a complexidade de sua cultura 15. Para uma discussio do conceito de representificagdo remeto a Menezes, Paulo. Representificacio: as relagdes (im)possiveis entre cinema documental e conhecimento. RBCS, Anpocs/Edusc, Sao Paulo, Bauru, 18(51): 87-97, fev. 2003. 16. Para uma andlise mais detida e aprofundada desses dois filmes, veja Menezes, Paulo. O nascimento do cinema documental ¢ o processo nao civilizador. In: Martins, José de Souza et alii (orgs.). O imagindrio e 0 poético nas Ciéncias Sociais. Bauru, EDUSC, 2005, pp. 73-127 Josué Pereira da Silva | orGanizaoon 141 tornando-o secundario e algumas vezes inexistente, como se as maquinas adquirissem vida propria, ao estilo de Marinetti, Grierson mostra incessantemente que o movimento das maquinas é uma poderosa forga auxiliar do trabalho humano, eleito e matizado como a principal forga criadora de mercadorias e, por conseqiiéncia, de valores no mundo industrial. Assim, de maneira diversa da utilizada por Vertov, Grierson mostra que o peixe que comemos com prazer em nossa mesa nao é um mero produto que encontramos no mercado, mas sim fruto de um arduo e diuturno trabalho humano, auxiliado pelas maquinas da industria moderna, mas nao superado nem aniquilado por ela. Ao lado disso, entretando, e diferentemente dos soviéticos, a visio da relagdo capital-trabalho de Grierson aparece no filme de maneira acentuadamente reformista. Se o filme mostra o trabalho humano e sua importancia, até mesmo na industria de ponta, Grierson, por outro lado, constroi a relagdo capital-trabalho como uma relagdo absolutamente harménica, sem nenhuma contradigao. Os operirios da pesca nado enfrentam as contradigdes dos marinheiros do Potemkin, nem dos operarios de A greve. Pelo contrario, em Drifiers, saem felizes para o trabalho arduo, para o qual acordam em alto-mar no meio da madrugada, lutando contra as ondas e contra a forga da correnteza, que aumentam em muito o esforgo de retirada das redes repletas de peixes, mesmo com auxilio mecanico. E, durante a jornada, tomam café da manha com sorrisos, os mesmos com que deixam 0 porto no comego da empreitada e com o qual retornam ao seu final, para verem 0 peixe ser embalado, pesado, transportado por carrogas, trens € navios, como afirma 0 narrador, “para os mais longinquos confins da terra”. Assim, se mostra 0 trabalhador como sujeito do processo de trabalho, bem como 0 processo de reprodugao do capital como processo de produgio, de distribuigao, de circulagao e de consumo, como queria Marx, ao mesmo tempo, e€ isso nao pode deixar de ser ressaltado, mostra o processo de trabalho como uma unidade organica e nao conflituosa, parecendo que do desenvolvimento industrial todos tem a lucrar, de operarios a capitalistas, orgdos e fungdes em plena harmonia de um corpo social, demonstrando assim as raizes de seu socialismo reformista e nao conflituoso materializado nas imagens de Drifter, um “épico de vapor e ago”, como anuncia a cartela logo no inicio do filme. Esse mesmo ponto de partida pode ser visto em outros dos filmes gerenciados por Grierson, como Night Mail (1936), dirigido por Basil Wrigth, que aborda o trabalho dos funcionirios do trem do correio que atravessa a noite da Gra-Bretanha, levando e trazendo as correspondéncias de seus cidadaos. Ou Song of Ceylon (1935) também de Wright, sobre a “industria”, esta jd ndo tao moderna, da extragio do cha no Ceilao. Wrigth aproveita 0 financiamento do Ceylon Tea Propaganda Board para ressaltar os habitos da 142 Por uma sociolagia do século XX cultura local, que ocupam grande parte do filme, tomando mais tempo do que aquele propriamente dedicado a industria do cha, da qual, na realidade, pouco se mostra. Outros, entretanto, comegam a levantar questdes sociais mais candentes e questionadoras. Dois devem ser ressaltados. O primeiro, Housing problems (1935), de Edgar Anstey, é fruto de outra artimanha de Grierson para obter financiamento, pois ele convenceu a companhia de gas que a demoligdo de um bairro de antigas residéncias de baixissima qualidade, repleta de cortigos, seria lucrativa e traria melhoria de vida para aquelas populagdes pois levaria inevitavelmente 4 modernizagao do local e 4 incrementagao do uso do gas. Com isso, a Gas Light and Coke Company financiou 0 filme e, a0 contrario do que eles esperavam, 0 que se viu como resultado foi um documentario sobre as cruéis condigdes de moradia daquela populagao, que vivia em cémodos sem calefagdo, com cozinhas infestadas de ratos, e que discutiam a sua situagao frente 4s cameras com a naturalidade de quem propée uma “guided tour” sobre a sua propria miséria e sobre o descaso das autoridades sobre esta situagao. Coal face (1936), do brasileiro Alberto Cavalcanti, apresenta esse mesmo ponto de partida ao mostrar, em um filme extremamente sombrio, a vida dos mineiros das minas de carvao, apresentadas como a grande forga motriz da industria e do império britanico. O filme, que utiliza uma narragao por meio de uma voz extremamente grave, comega com imagens das maquinas e das pilhas de carvao no exterior da mina, com uma luz de fim de tarde, ténue, densa, que reforga a sensagdo de insalubridade daquele lugar. A mina, profunda, estreita e perigosa, mostra o trabalho humano em condigdes bastante precdrias, um trabalho extremamente duro e realizado sob condigdes que se aproximam do sub-humano, pois sentimos o calor por meio dos corpos suados e sem camisa, que vao ficando tomados de fuligem como passar do tempo. Por fim, no entardecer, um operario retorna 4 sua casa, caminhando sozinho em diregdo a um conjunto de casas geminadas nas quais nao se vé ninguém, que mostram em seus patios roupas penduradas em varais, envoltos em um céu quase negro, tomado de fuligem, com nuvens também negras que dominam de maneira sufocante todo aquele ambiente. A narragao soturna e o ambiente quase sérdido dio ao filme uma atmosfera pesada, quase irrespiravel, que ressalta de forma marcante a “gloria” dos fundamentos da forga motriz da industria britanica. Nessa diregdo, a empreitada levada por Grierson se mostra curiosamente ambigua, promovendo, de um lado, o enaltecimento da industria e do império, como em Drifiers e Industrial Britain, enquanto que, de outro, mostra as mazelas dos alijados dessa industria e o trabalho insalubre daqueles responsaveis pela extragdo de sua principal fonte de energia, como em Housing Problems ¢ Coal Face. Josué Pereira da Silva | oncanzsooa 143 Essa mesma década de 30 propiciou outras experiéncias cinemato- graficas de dimensées politicas incomparaveis para o cinema até entio. Sio expresses dessa diferenciagao filmes de origem e tema tao dispares como Misére au Borinage (1934), de Joris Ivens, e O triunfo da vontade (1935), de Leni Riefenstahl, que abriram novas possibilidades para o pensar cinematografico ao mesmo tempo em que deixaram claras questdes epistemoldgicas fundamentais para um pensamento social voltado para a analise e produgdo de obras cinematograficas. Misére au Borinage é um marco do cinema documental por retratar, no calor da hora, uma greve de mineiros na Bélgica em 1933. Incorporando a utilizagdo de jornais, de fotografias, articulados a cenas da repressio aos grevistas realizada pela policia, com uma narrag4o que tomava partido direto da luta operaria ligando-a a crise do capitalismo, por um lado, e a possibilidade de superagao dessa crise pelo advento do socialismo, por outro, esse filme de Ivens inaugura uma linha de constituigao de documentarios que nada tem a ver com a pretensa neutralidade descritiva de filmes como Night Mail ou Drifters. Varias tomadas sao realizadas mostrando as péssimas condigdes de moradia dos mineiros, onde criangas esqualidas e sujas ressaltam as deploraveis condigdes sanitarias e de vida daquele local. Mostra, também, 0 esforgo da policia em desalojar estes habitantes de suas precirias casas como forma de reprimir a greve que em seu momento glorioso chegou a paralisar 200.000 trabalhadores. Associando a repressao dos grevistas pela policia com cenas de desalojamento, onde criangas e méveis velhos se empilham sobre precarios caminhées, o filme incita o espectador a tomar partido, revolucionario, no sentido de se botar a termo uma situagao de exploragdo que o sistema capitalista s6 acentuava, Ha duas versdes do filme em circulagao. A primeira, que nao credita Ivens como diretor, mas 0 Clube do Cinema de Bruxelas, tem uma montagem. mais labirintica e uma narragio realizada também por meio de intertitulos. A segunda, mais politizada, adquire um narrador que da o tom que os letreiros tentavam dar mas ndo conseguiam de maneira tao efetiva. Se o primeiro acaba com uma tomada dos portdes da mineragdo fechados, onde um close de um retrato de Karl Marx afirma que aqueles eventos aconteceram no 50° aniversario de sua morte, 0 que era seguido pela imagem de uma passeata onde operarios de punhos fechados e erguidos protestam contra o fechamento da mina, o segundo, mais didatico, termina com uma longa narragao, de altissimo apelo politico. Apés repetir as mesmas cenas do anterior, ouvimos: “O proletariado sabe que as contradigdes e a miséria em Borinage, como em toda a Bélgica, e no mundo inteiro, sao fruto do capitalismo e a humanidade s6 estara a salvo da desordem e da exploragdo do homem pelo homem pela ditadura do proletariado e pela chegada do socialismo”. Assim, evidentemente inspirado nos filmes de Eisentein, Ivens, que assina o segundo filme junto 144 Por uma sociologia do século XX com Henri Storck, tranforma a Bélgica de Borinage no seu proprio Encouragado Potenkin. Do outro lado da moeda, nao podemos deixar de lembrar o filme O triunfo da vontade (1935), de Leni Riefenstahl, sobre 0 IV congresso do partido nacional-socialista em 1934. Realizado em Nuremberg, com a participagio de mais de um milhao de pessoas, celebra de maneira decidida a ascensio de Hitler como o lider capaz de retirar a Alemanha das mazelas e dos encargos advindos da perda da I Grande Guerra. Utilizando-se de um aparato nunca visto (120 pessoas e 30 cimeras™) este congresso marca de maneira original a simbiose entre evento e documentagao nunca antes visto na histéria. Organizado e coreografado por Leni e por Albert Speer, arquiteto principal do Reich, o congresso foi pensado e executado para ser filmado, com os cameras disfargados em uniformes SS e os desfiles acontecendo sempre para dar o melhor angulo para as filmagens. Diferentemente de Borinage, com sua proposta politica revolucionaria absolutamente evidente, a clareza dos propésitos do filme de Leni, por mais que hoje sejam descaradamente visiveis, nao 0 eram @ sua época, envoltos que estavam em um simbolismo visual extremamente sofisticado, que se dava mostras daquilo no que se poderia transformar 0 nazismo, dava-as de maneira extremamente sutil e enevoada. Esse filme, para ser analisado em suas perspectivas temporais, exige do analista um afastamento em relagio ao advento histérico do nazismo bastante dificil de se realizar. A tendéncia quase natural ¢ olhar o filme de maneira arqueoldgica, genética, buscando ali encontrar elementos ja denunciadores do que ocorreria depois. O problema de tal abordagem é o de ver no filme apenas indicios e sementes de um futuro dado como certo, ¢ nao proposigdes de sentido de algo que poderia ter produzido, em outras configuragées, desdobramentos histéricos bastante diversos. O inicio do filme deve ser lembrado, pois a chegada de Hitler pelas nuvens, associada as imagens de inimeras mies segurando os seus bebés, drffios em virtude das herangas de uma recente guerra perdida, transforma o que seria apenas a chegada de um lider na figura da chegada de, além disso, um pai salvador. Essa cena, que mostra a sombra do aviao sobre as ruas de Nuremberg, como se fosse a imagem da aguia da bandeira alema a chegar ao mesmo tempo, une de maneira simbélica em uma s6 pessoa 0 lider, 0 pai e a nagao. Justamente por nao ser aos olhos da época tao explicito em suas propostas de pureza racial pela aniquilagao do outro que O triunfo da vontade ganhou o grande prémio do festival de cinema de Veneza, um dos mais importantes naquele tempo”. 22. Cf. Barnouw, Eric. Documentary, the history of the non-fiction film, op. cit., p. 101 23. Para uma analise aprofundada desse filme e de suas implicagdes veja Mauro Rovai, Imagem, Tempo ¢ movimento: os afetos “alegres” no filme O triunfo da vontade de Leni Riefenstahl. Sio Paulo, FAPESP/Humanitas, 200. Josué Pereira da Silva | oncawzapor 145 Assim, se Borinage coloca para 0 cinema documental a recusa explicita da neutralidade axiolégica, como se poderia pensar nos filmes de Flaherty e de Grierson, deixando evidente sua tomada de posig’o em relagdo aos eventos filmados e reconstituidos pela narrativa, negando de maneira direta qualquer possibilidade de mostrar ao espectador o “mundo como ele é”, 0 que exige dele uma tomada explicita de posigao politica, Leni coloca para o pensamento social sobre o cinema um outro tipo de questionamento. Primeiramente, o de problematizar a relacao entre imagens e fendmenos sociais em um patamar diverso daquele que tem referéncia apenas na encadeamento das imagens na construgdo narrativa. Aqui, diferentemente de uma construgdo na articulagio dos planos na narrativa, é 0 proprio evento que é constituido, por um efeito “camera”, devidamente coreografado e organizado, para propiciar o melhor efeito filmico. Ou seja, aqui se consegue uma indiferenciagdo bastante complexa em termos analiticos, entre fendmeno social e sua imagem, pois, neste caso, a imagem transforma-se no mével de organizagao e constitui¢éo do fendmeno como um todo. Nao é apenas uma questao de se fazer um filme de propaganda, como querem alguns. A questio é muito mais complexa pois remete a indiferenciagao entre coisa e imagem da coisa, atributo psicolégico da nogao de verdade da imagem, nos termos de Bazin*. O segundo questionamento, mais complexo, envolve a necessidade de nao deixar 0 que se sabe da historia contaminar a andlise do que antes se mostrava como uma possibilidade entre muitas, recusando essa nogdo genética analitica da historia, que busca no passado os elementos germinais explicativos de seus desdobramentos subseqiientes. A década de 50 marca um novo momento significativo para a relagado entre ciéncias sociais e cinema. Década bastante rica em possibilidades, viu nascer dois cinemas irmaos que tinham, a0 mesmo tempo, caracteristicas bastante diferenciadas: O cinema-verdade e 0 cinema direto. O cinema-verdade surge, pelas maos de Jean Rouch, no inicio dos anos 60, por meio de seu filme simbolo, Cronica de um verao. Rouch ja havia realizado varios filmes anteriormente, na primeira grande expresso de um empreendimento cinematografico associado a uma formagao académica. Seus filmes anteriores sio filmes etnograficos por exceléncia. Da mesma forma que o é sua ultima empreitada do tipo, Les maitres fous (1957). Filmes de ponto de partida muito proximo dos de Flaherty, sio organizados por conceitos positivistas de fungao e disfungao, além dos de sociedade mec4nica e civilizagao. Sao filmes que contam uma historia, na sua maior parte diretamente vinculada a explicagao, para o espectador, dos momentos ¢ desfechos de um ritual. 24. CF. Bazin, André. Ontologie de l'image photographique. In: le cinéma, op. cit., pp. 9-19. . Qu'est-ce que 146 Por uma sociolagia do século XX A reacio absolutamente negativa que Les maitres fous* provocou, nao s6 na Europa mas na Africa Negra, fez, na minha interpretagdo, Rouch abandonar essa perspectiva do cinema como “janela para o mundo”, com narrador explicativo, Voz-de-Deus”, onisciente e onipresente, para, a partir de uma primeira empreitada em Pyramide Humaine (1959), transformar a camera de cinema em objeto criador de situagées filmicas e sociais, como veremos acontecer em Crénica de um verdo. Diferentemente de O triunfo da vontade, a camera aqui tem a fungado de auxiliar a detonar situagdes onde as pessoas acabam por se colocar de maneira diferente daquela como se colocavam sem ela. Nada nessas situagées é criado e coreografado como no filme de Leni Riefenstahl. Pelo contrario, o filme segue o andar da carruagem sem na verdade ter muito controle de para onde ela pode ir. E claro que, em alguns momentos, Rouch e Morin, que co-dirige o filme, interferem colocando alguma questao que busca conduzir o filme na diregio do que se pode presumir que fossem suas expectativas primeiras. O filme comega com uma enquete, realizada por duas mogas, que saem pelas ruas de Paris perguntando aos transeuntes se eles sao felizes. A maioria responde que nao, alguns poucos que sim, mas todos nao conseguem escapar de uma cotidianidade absoluta em suas respostas ¢ afligdes. Falta de dinheiro, de amor, de trabalho, etc., dominam as respostas que obtidas. No meio do filme, em um jantar como os varios que jé vimos acontecer durante outras cenas, Morin pronuncia a seguinte frase: “Se eu fosse um estudante nesse momento, sobretudo um homem, em idade de fazer servigo militar, eu pensaria nos acontecimentos da Argélia, na guerra da Argélia”. Com esta frase aparentemente vinda do nada, Morin consegue, como num passe de magica, politizar a conversa de uma maneira como nunca tinhamos visto acontecer no filme. Agora tudo adquire novo sentido, as frases e respostas sio politicas e politizadas, e o dia-a-dia e as reflexdes sentimentais que tomavam conta das conversas desaparece definitivamente. Mas, de qualquer maneira, o filme é um grande exercicio de se refletir sobre a relagdo entre diretor e seus “personagens”, entre um e outro no papel de se constituir um filme, e sobre o tipo de conhecimento gerado e compartilhado em uma situagao filmica de interagao. 25. Para uma andlise detalhada deste filme remeto a Menezes, Paulo. Les Maitres Fous, de Jean Rouch. Questées epistemoldgicas da relagdo entre cinema documental € produgao de conhecimento. RBCS, 63, fevereiro de 2007. 26. Para um detalhamento da utilizagio da Voz-de-Deus como elemento narrativo no cinema expositivo veja Nichols, Representing Reality, op. cit., pp. 34-38. Josué Pereira da Silva | onGaNizaooR 149 Mero pretexto para que seus questionamentos atinjam as relagGes entre presente, passado e futuro, as relagdes entre “real” e imagem, entre discurso e verdade, entre imagem ¢ legitimidade. Uma de suas cenas, a meu ver a mais reflexiva, mostra uma limusine preta que anda pelas ruas, cruzando com um enorme 6nibus vermelho, passando na frente de enormes prédios publicos, para, por fim, percorrer um lugar onde operarios trabalham nas calgadas, enquanto um transeunte caminha olhando para a camera. Esta cena é acompanhada de uma narragio: “Yakutsk, cidade moderna, onde 6nibus confortaveis colocados a disposi¢ao da populagao cruzam sem cessar os possantes zignes, simbolos do triunfo da industria automobilistica soviética. Vemos, enquanto isso, a alegre emulagao do trabalho socialista, dos trabalhadores contentes — na frente dos quais passa um representante do mundo boreal - que se esforgam em fazer de Yakutsk um lugar aonde se vive bem.” Na seqiiéncia do filme, a mesma cena se repete. Mas, para nossa estranheza, uma outra narragao acompanha o seu desenrolar: “Yakutsk, de sinistra reputagdo, cidade sombria na qual a populagio se espreme nos énibus vermelhos cor de sangue, enquanto assistem passar os potentes zignes, caros e confortaveis. Como escravos, os melhores trabalhadores soviéticos, na frente dos quais vemos passar um inquietante asiatico, se aplicam a um trabalho bem simbélico: o nivelamento por baixo.” Para comegar, novamente, com uma terceira narragao: “Yakutsk, onde casas modernas tomam pouco a pouco o velho bairro sombrio, um énibus menos cheio que os de Paris em horario de pico, cruza um zigne, excelente carro soviético, reservado ao servigo publico. Com coragem ¢ tenacidade, ¢ em condigdes muito duras, os trabalhadores soviéticos, na frente dos quais passa um yakult estrabico, se esforgam em embelezar sua necessitada cidade.” Com isso Marker deixa claro como as imagens nio sao dotadas de sentido, para tristeza do positivistas, que ainda hoje, por sofisticagio, imaginam existir imagens polissémicas, nao percebendo que o sentido das imagens so se propée, primeiro, pelo lugar que ocupam no meio de uma narrativa que as articulam enquanto discurso, e, segundo, que o proprio discurso sé se efetiva e alude a um sentido na relagao com 0 espectador, que empreende uma interpretagao do discurso que esta vendo, e ouvindo. Marker mostra que nao existe uma realidade nas imagens, a nado sera de ser imagem, e que, por assim o ser, pode ser rearticulada em discursos diferenciais, reexperimentando, de maneira atualizada as proposigdes de Kuleshov. Por fim, Trinh T. minh-ha realiza em Reassanblage (1982) um filme que fez tremer uma grande parte dos etnégrafos visuais, ao questionar as construgées visuais que se fizeram como verdade sobre a Africa negra ¢ suas populagées. E um filme que questiona sem deixar de pé qualquer chance de se perceber um filme como sendo a verdade sobre uma situagdo, uma populagao ou um grupo social. Utiliza-se dos mesmos atributos de Vertov, 150 Por uma sociologia da século XX paralisando cenas e repetindo-as, tremendo cenas estaticas e paralisando cenas dinimicas, dissociando som e narragio daquilo que estamos vendo, forgando com sua voz uma reflexao sobre o que se olha, e sobre 0 que ja se olhou sobre aquilo, colocando em questao os conceitos que orientam a interpretagio de quem olha e pensa sobre aquele continente. Em uma de suas falas, logo no inicio do filme, Trinh T. minh-ha afirma: “bastaram 20 anos para que 2 bilhdes de pessoas se definissem como subdesenvolvidas”. Frase que, associada as imagens de pobreza, altiva, e de mulheres com os seios nus, em atividades cotidianas, mostra o carater construtivo dos conceitos interpretativos e visuais com que olhamos, qualificamos ¢ hierarquizamos o mundo. Pois, apesar de ser 6bvio que nao foram os subdesenvolvidos que se denominaram como tal, o problema ali levantado é mais complexo, pois advém do momento em que determinado grupo social passa a se pensar e se conceber por meio dos conceitos cunhados pelos outros, no caso, pela civilizagdo européia/norte-americana branca. Nessa diregio, Reassamblage é um anti Nanook, pois, no lugar de agradecer 4 civilizagao coloca esta mesma “civilizagao” em questao, problematizando seu arcabougo conceitual de qualificagio e hierarquizagao do mundo a que eles, ¢ nds, estamos sujeitos. Nessa acepgao, o problema que se coloca para a relagdo entre ciéncias sociais e cinema, e em particular o cinema documental, problema que perseguimos desde 0 inicio deste texto, encontra-se na encruzilhada de se perceber as imagens do cinema como data ou como construgdo, Compreendé- las como data remete a possibilidade de se pensar um mundo capaz de ser captado sem distorgdes, de maneira positiva, possibilidade que se disseminou nas filmagens dos primeiros etnégrafos de campo, e em intimeros de seus sucessores ¢ documentaristas, até os dias de hoje. Compreendé-las como construgao significa questionar incessantemente 0 seu lugar como imagem e como discurso, na constitui¢ado do préprio filme, pois, para o espectador, um filme que nao proponha a reflexao sobre suas proposigdes sera visto, na imensa maioria dos casos, como uma “reprodugao do real’’. Nessa diregao, cabe ao analista empreender uma investigagao sobre a constituigdo social das imagens, ¢ aos sentidos que elas aludem, bem como das relagdes que essas imagens possuem com os valores e conceitos que constituem nosso simbélico e imaginario social. Assim, se é possivel uma sociologia que investigue o cinema como industria, por meio da andlise de suas instituigdes e do jogo de poder entre elas, como faz IC. Jarvie, em Sociologia del cine’, também é possivel um outro caminho que me parece mais instigador: o de buscar discernir os valores 28. Madrid, Guadarrama, 1974. Josué Pereira da Silva | oAGanizapoR 151 € Os conceitos constituintes de nossas representagées coletivas, que fundam e dio coesio ao nosso universo simbdlico e ao nosso imaginario, e que se expressam por meio da articulagdo de discursos nos filmes que assistimos. Cabe ao analista, nessa acepgao, buscar entender os esquemas valorativos que presidem a constituigdo dos filmes, sejam eles “documentarios” ou “ficgao”, os grupos sociais que constroem, as hierarquias que propdem, os problemas que expressam e os valores que disseminam, colocando sempre em questio o contetido das imagens que assiste, e dos discursos que presencia, em seu cardter irrevogavelmente construtivo. Arte e cultura nas vanguardas e na arte contemporanea: breve comentario a respeito da importancia dos métodos de Aby Warburg CLAUDIA VALLADAO DE MATTOS (\A/ UNICAMP) As relagdes estabelecidas entre cultura e vanguardas na modernidade parecem ter sido significativamente diferentes daquela que se estabelece hoje entre cultura e arte contemporanea. Evidentemente, estamos aqui no Ambito das interpretages tedricas a respeito, tanto da arte, quanto da cultura. Poderiamos afirmar que as interpretagdes propostas pelo campo da histéria da arte partem de uma concepcao do que é arte que, via de regra, nasce do préprio objeto a ser analisado. As formas de relacionamento entre arte ¢ cultura na contemporaneidade geraram uma “crise” metodolégica no campo da historia da arte que, para ser superada, exigiu uma significativa ampliagao das fronteiras da disciplina, tornando-a mais interdisciplinar. A obra do historiador da arte Aby Warburg (1866-1929) tem sido um modelo fundamental para guiar essa reestruturagao. Gostaria aqui de realizar brevemente uma andlise comparativa do relacionamento entre arte e cultura no periodo das vanguardas histéricas e atualmente, para em seguida tratar da obra de Warburg e de sua contribuigao para novas tendéncias que surgem no campo da Histéria da Arte, como os Estudos Visuais, ou 0 Bildwissenschaft (Ciéncia da Imagem), na Alemanha. Em 1994 realizou-se uma exposigao em Londres intitulada The Romantic Spirit in German Art (O Espirito Romantico na Arte Alema)'. A curadoria da exposigao desenvolvia a tese de que existiria algo de essencialmente alemao na arte alema, aproximando os romanticos do século XIX, os expressionistas e manifestagdes da arte contemporanea, como Beuys, os neo-expressionistas, 1. Keith Hartley, Henry M. Hughes, Peter-Klaus Schuster e William Vaughan (org.) The Romantic Spirit in German Art 1790-1990, Stuttgart: Oktagon, 1994. 154 Por uma sociologia do século XX etc. Esse catalogo ilustra bem como os principios eurocéntricos, nacionalistas eracistas, que embasavam a disciplina da Historia da Arte em sua fundagao no século XIX ainda atuam em grande parte hoje. Ao invés de reconhecermos um espirito alemao por detras das semelhangas apontadas pelo curador nas diferentes obras, deveriamos nos perguntar até que ponto esta condigao da arte na Alemanha nfo seria fruto de um determinado modelo teérico de arte € de historia da arte que nasceu justamente no século XIX e que permanece atuante até hoje. Para tanto, é necessirio admitir que existe uma ligagao intrinseca entre a produgio artistica e os instrumentos tedricos desenvolvidos para analisar a produgao de cada época. Veremos como o modelo desenvolvido pela historia da arte no inicio do desenvolvimento da disciplina tem uma forte relagdo com a producao romintica e de vanguarda, gerando uma continuidade entre essas produgdes, mas que nao se justifica por uma esséncia, ou alma alema (ou de qualquer outra nacionalidade). O fundamento das teorias sobre arte tinha como base a idéia de sujeito criativo que atribuia a este uma posigao privilegiada como vanguarda no processo de produgao cultural. Meu argumento € que com a mudanga desses paradigmas na arte, 0 modelo teérico para a interpretagao da produgao artistica entra em crise. Hoje ocorrem cada vez mais manifestagdes no campo da arte que nao podem ser explicadas através do paradigma do sujeito criativo, mas exigem novas formulagées tedricas referentes 4 posig&o ocupada pelo artista no contexto da cultura. Sabemos que com os rominticos a arte tomou-se expressio do mundo interno do artista. O artista arvorou-se a capacidade de intuir a verdade sobre o mundo e sobre Deus, expressando-a em imagens. Nesta condi¢ao ele se transforma em Vanguarda da humanidade. Os quadros do artista alemao Caspar David Friedrich (Fig.1) sao excelentes exemplos desta nova posigao do artista. Os personagens representados encontram-se imersos em uma paisagem carregada de sentimentos religiosos. A paisagem deixa de ser simples oportunidade de mimesis para 0 artista, tornando-se 0 veiculo de expressio de seu génio. A historia da arte que nasce nesse contexto procura analisar as contribuigdes individuais do artista para a arte, que passa a ser vista como um campo auténomo, e investigar as raizes nacionais dessa produgao. Assim, os artistas passam também a ser considerados como veiculos da expressio particular de um povo especifico. No inicio do século XX, com as assim chamadas vanguardas histéricas, esse modelo consolidou-se. Observamos seu desenvolvimento, por exemplo, na obra de Wassily Kandinsky, cuja posigao teérica foi expressa em seu livro Do Espiritual na Arte, publicado em 1911. Neste, podemos ler a seguinte passagem referente 4 fungao social do artista: Um grande triangulo dividido em partes, a maior ¢ a mais aguda no pice, representa esquemitica, mas suficientemente bem a vida Josué Pereira da Silva | oncanizaoon 155 espiritual. (...) Por vezes, na ponta extrema, ndo ha mais do que um homem sozinho. Sua visdo iguala sua infinita tristeza. E os que esto perto dele nao o compreendem (...) Toda a via, solitario, muito longe ¢ acima dos outros, Beethoven também foi alvo de ultrajes destes.” E falando do papel do artista: “Podem-se descobrir artistas em todas as partes do triangulo. Aquele que, entre eles, ¢ capaz de olhar além d ites da parte a que pertence é um profeta para os que o cercam. Ele ajuda a fazer avangar a carroga recalcitrante.? De uma forma geral, as vanguardas histéricas véem o artista como agente de transformagao social, sua arte dirige-se ao futuro, inaugura 0 futuro. (Fig.2) Assim também a produgdo do outro grupo expressionista alemao, a Briicke, fundado em 1905 em Berlim, voltava-se para a libertagéo da condigao decadente da vida civilizada, através da instauragao de um novo modo de vida e uma nova moral, que deveria ser registrada através de sua produgao artistica.’ Deixando 0 ambito das vanguardas alemas, podemos afirmar que também o futurismo italiano é marcado por uma visio do artista como agente de transformagio social. As obras de Umberto Boccioni, Giacomo Balla, Gino Severini, entre outros, voltavam-se para a expressao do ritmo e do “espirito” da vida moderna, prenunciando as relagées futuras entre homem e sociedade (dai também o nome do movimento: Futurismo). Em todas essas manifestagdes de vanguarda, por mais diversas que fossem, a experiéncia individual do artista encontrava-se sempre no centro das teorias de relacionamento entre arte, cultura e sociedade. Resumidamente, pressupds-se que o artista criava a partir de sua sensibilidade ¢ de sua experiéncia de vida e essas imagens serviriam de inspiragdo para uma transformagio social. Ha uma confianga no papel transformador do artista que compreende com clareza a realidade. De acordo com Benjamin Buchloch, “a arte de vanguarda compartilha do desejo de visio total, diagndstico e solugao compreensiva do real.” Ela considera que a leitura do real € possivel e é privilegio do artista. 2. Wassily Kandinsky, Do Espiritual na Arte, Sio Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 36. 3. Sobre a producdo da Bricke ¢ demais grupos expressionistas ver meu texto “Histérico do Expressionismo”, in: Jacé Guinsburg, O Expressionismo, Sio Paulo: Perspectiva, 2002, pgs. 41-63. 4, Benjamin Buchloch, “Gerhard Richter’s ‘Atlas*: The Anomic Archive spring 1999, p. 119. in: October, 156 Por uma sociologia do século XX A cconfianga nesse poder emancipatorio da arte e no papel de vanguarda exercido pelo artista comega a ser abalado, ja no inicio do século XX, com 0 trauma da primeira Grande Guerra e com 0 avango da sociedade pés-industrial. Algumas das manifestagdes dadaistas refletem essa nova condigao da arte ao embaralhar imagens aleatérias e recusar a construgao de significados. Apés a Segunda Guerra esse processo se acelera e a arte que costumamos chamar de contemporanea, abandona a posigao confiante de “vanguarda da humanidade”, reconhecendo a complexidade das relagdes estabelecidas entre individuo, arte, cultura e sociedade. Os artistas dessa geragao em geral passam a adotar uma posigao reflexiva e indagatoria que muda profundamente o carater desta produgao. Alguns tedricos analisam tal mudanga de paradigma como uma passagem de um modelo “pictérico” de arte para um modelo “fotografico”’. Enquanto a pintura tem como base 0 sujeito criativo e, em sendo unica, guarda sua relagdo essencial com esse sujeito, a fotografia funciona de forma distinta. Seu principio de organizagao tem uma tendéncia para o arquivo, para a multiplicidade infinita, para a seriagdo, em oposigio a “sintese” do real pressuposta pela pintura. A produciio Pop é a primeira a apresentar novos elementos que resistem. a uma anilise através dos paradigmas tradicionais da historia da arte. Andy Warhol e seus pares introduzem a discussao a respeito do fim da experiéncia individual como a base privilegiada da imagem, uma discussio que Siegfied Krakauer ja havia registrado ao falar da fotografia: “(...) a inundagio de fotos derruba os diques da memoria. O assalto realizado por essa massa de imagens é tio poderoso que ele ameaga destruir a percep¢do potencialmente existente de fatos cruciais.”° As imagens Pop (Fig.3) nao podem mais ser compreendidas como a manifestagéo do “mundo interno do artista” e Thomas Crow e Hal Foster afirmam que elas também nao devem ser pensadas exclusivamente como ma “entrega do artista ao mundo da mercadoria”’. Na verdade, elas sao as primeiras materializagdes das reflexdes a respeito do estatuto da imagem no mundo contemporaneo. 5, O argumento aparece, por exemplo, no texto de Rosalind Krauss sobre 0 conceito de Indice. Ver: Rosalind Krauss, The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths, Cambridge e Londres: MIT Press, 1986. Krakauer, Photography, in: Mass Ornament, Harvard Univ. Press, 1998, p.58. Thomas Crow, “Saturday Disasters: Trace and Reference in Early Warhol”, in: Serge Guilbaut (org.), Reconstructing Modernism, Cambridge: MIT Press, 1990, p. 313- 317. e Hal Foster, The Return of the Real, Cambridge: MIT Press, 1996. ae 164 Por uma sociologia do século XX tentativa de “retorritorializar” um campo que ja estava irremediavelmente minado, a saber, 0 campo da cultura, da tradigdo. A famosa conversao de Friedrich Schlegel ao catolicismo, de 1808, serve apenas como um exemplo deste conhecido fenémeno a que me refiro. Esta tentativa de criar uma patria, um lar, ndstos, passou também por uma ontologia da linguagem, da nagao, da propria literatura ¢ do estético de um modo geral, ¢, em termos da teoria do conhecimento, pelo positivismo ¢ pelas tentativas de “sutura do Eu” por parte, por exemplo, da fenomenologia e do Existencialismo, Dentro do campo estético, o realismo e as varias modalidades da narragao tiveram mais sucesso em manter esta visada que quis manter a unidade do homem, do que na outra linha de desenvolvimento das artes ¢ literatura, que tendeu para uma radicalizagao dos modelos da estética primeiro-romantica do fragmento e do arabesco e pés em questdo os paradigmas de representagdo. Nao teria sentido algum tentar reproduzir aqui esta historia bem conhecida. O que importa neste momento é destacar os limites desta reagao 0 seu esgotamento. Se, para jd nos langar no campo de metaforas freudianas, Unheimlich, “denominamos a tudo que deveria permanecer em segredo', escondido e que se manifestou” (“nennt man Alles, was im Geheimn Verborgen... bleiben sollte und hervorgetreten ist’), segundo as palavras de Schelling citadas no ensaio “Das Unheimliche” (“O sinistro”) do fundador da psicanalise, podemos pensar no romantismo contemporaneo aquele filésofo como o momento em que o “escondido” veio a tona: o yéu que mantinha o real envolto ¢ distante para a apreciagao estética ou cientifica comegou a se romper. Este “vir 4 tona” é apresentado na esfera publica justamente através das encenagées estéticas. Ele corresponde, no entanto, nao a uma impossivel erupgao total do magma inconsciente, mas sim ocorre como é bem conhecido, segundo o modelo de uma valvula de escape e a partir de uma perversa “divisio de trabalho” na qual o sistema econdmico cobra tanto mais recalque, vigilancia social e autorepressio, quanto mais também permite uma controlada aparigdo no campo das artes do que escapa e é esmagado pela prosa da vida cotidiana. Se esta estrutura se mantém de certo modo intacta até nossos dias, 0 que mudou foi o teor do “real”, a saber, do “magma”, do que é “revelado”: esta mudanga implica também uma saida do estético, uma quebra no quadro em que se pensou as artes ¢ a literatura, Quanto mais 0 véu se rasgou, tanto mais as artes (e seu sistema) foi se submetendo a novos imperativos. Lembrando que para Moses Mendelssohn, 0 simplesmente prazeroso, perde seu atrativo, Reiz, e tende ao asqueroso (Fkelhaft) se nao for misturado ao 1. Vale notar que em alemdo 0 termo segredo, Geheimnis, ja contém o termo que est na raiz de Unheimlich, a saber, Heim, que significa casa, lar. Adorno, a paisagem catastréfica do século XX e a estética apds o ‘desencadeamento do elementar’: prolegdmenos para 0 pds-estético MARCIO SELIGMANN-SILVA (IEL / UNICAMP) A questao que gostaria de apresentar e discutir aqui deve ficar aquém e além do tema proposto a mim para este seminario, a saber, a questao do testemunho, com destaque para o corte que a Segunda Guerra Mundial significou. Nao procurei ir de modo direto ao fim proposto, mas antes tentarei explorar os arredores do alvo, sua moldura, com idéias e caminhos derivados sobretudo da obra de Theodor W. Adorno. Nao insistirei na virada romantica do pensamento. Mas esta deve permanecer como um pano de fundo ao longo de minha exposigdo. Sem a nogdo romantica de identidade como suspensio, Schweben, sem a ironia como resposta 4 impossibilidade do absoluto, sem, em suma, 0 absoluto literario, como espago a partir do qual 0 individuo moderno passa a ser pensado, a virada pés-estética que pretendo enfocar nao pode ser compreendida. Afinal 0 pés-estético s6 pode ser derivado de uma resisténcia ao romantismo e ao mesmo tempo da impossibilidade de se escapar da sua clausura. Paradoxalmente 0 pés-estético é fruto de uma época em que ao que parece deu-se o triunfo da estetizagao da politica, diagnosticada por Benjamin em 1936. O pds-estético é 0 que resta da arte apés a sua (tentativa) total “politizagio”. Mas esta “politizagéo” deve ser posta entre aspas porque nao se trata aqui da mesma nogio de politizagio das artes que Benjamin (ou Brecht) pensara na primeira metade do século XX. Antes, trata-se de um conceito de politica pos grande politica. Em uma formulagao radical, poderiamos pensar que 0 que ocorre a0 longo do século XIX e primeira metade do século XX foram tentativas de se responder ao abalo gerado pela nova visio do homem nascida com o romantismo: de um homem fragmentado e “sem patria”. A reagdo iniciou-se imediatamente, dentro do proprio primeiro romantismo alemao, com uma Josué Pereira da Silva | oRGANZADOR 161 Figura 4 — Renno Figura 5 - Mnemosyne Warburg Josué Pereira da Silva | orcanizaoon 165 desagradavel, Unangenehme, e 0 prazer, Genu/, nunca satisfaz nossos desejos, Begierde, poderiamos pensar que a manifestagio do Unheimlich, enquanto tempero das emogées mistas, levou — contra a perspectiva teérica do préprio Mendelssohn — a uma entronizagao do préprio Ekel nas artes. Tanto ele como seu amigo GE. Lessing consideravam o Ekelhaft como 0 limite do estético: sua aparigdo nas artes significaria a quebra da ilusio estética e a aparigao da propria natureza.’ E justamente disso que se trata na arte contemporinea. Seu dispositivo visa uma dissolugao das molduras, da cena que traga os limites entre o dentro e fora, 0 ptiblico e o privado, o extemo € 0 intimo. Neste ponto ela nega o conceito classico de tragédia, que para Aristételes deveria poder cumprir seu efeito sem recurso aos meios do espetaculo (opsis). Este poderia levar ao “monstruoso”, to teratédes, que gera um terror bruto e nao permite a reflexao, enquanto na tragédia o poeta “deve procurar apenas 0 prazer [édoné] inerente a piedade e ao terror, provocados pela imitagdo”. (1453b) A doutrina do “novo” na estética também desdobra a historia da arte nessa diregdo do asqueroso. As vanguardas histéricas ¢ seu trabalho de desconstrugio dos meios de representagdo herdados participam deste movimento. Nas vanguardas ja surpreendemos uma arte ndo mais preocupada em representar ou praticando a imitatio retérica, mas sim voltada cada vez mais para a materialidade da arte. Nesta materialidade encontramos um paralelo com o “elementar”, a entidade nua que se confunde com o Unhemlich e escapa ao discursivo. O matérico surge como uma versio sensivel do hypotipose que em Kant servia para a apresentagdo dos conceitos ou indicagao das regras formais das idéias da raz4o. Por outro lado, nao podemos. perder de vista o solo historico onde se da este processo de “rasgamento” do véu que encobria o belo artistico e estava no centro do jogo da representagao artistica: ou seja, a onipresenga da espoliagao econdmica, dos conflitos sociais e bélicos dela decorrente. Neste processo a multiplicagdo dos choques na vida cotidiana, descrita por Baudelaire e refletida por Benjamin, deve ser acrescida a multiplicagao de catastrofes ao longo do século XX, com particular destaque para os genocidios que se sucederam desde o dos arménios, passando pelo dos judeus e ciganos na Segunda Guerra Mundial, pelo assassinato de milhdes no Gulag, no Camboja, em Uganda, no Ruanda, em Srebnica, entre tantos outros massacres, e pela bomba atémica. Na era das catastrofes, mais do que nunca fica clara a equagao benjaminiana segundo a qual “nunca existiu um documento da cultura que 2. Cf. meu trabalho . “Do delicioso horror sublime ao abjeto ¢ a escritura do corpo”, O local da diferenca. Ensaios sobre meméria, arte, literatura e tradugao, Sto Paulo: Editora 34. Pp. 31-44. 166 Por uma sociologia do século xX nao fosse ao mesmo tempo um [documento] da barbarie” (“es ist niemals ein Dokument der Kultur, ohne zugleich ein solches der Babarei zu sein”; 1696). E interessante ler a tradugdo do proprio Benjamin dessa famosa passagem das suas teses “Sobre o Conceito da Histéria”: “Tout cela [I"héritage culturel] ne témoigne [pas] de la culture sans témoigner, en méme temps, de la barbarie” (11263). No Kunstwerkaufsatz (ou seja, no famoso ensaio de Benjamin sobre a obra de arte de 1936) ele formulou também a tese do “inconsciente dtico” que teria sido revelado pelo cinema e que manteria estreitas relagdes com 0 conceito freudiano de inconsciente. Para Benjamin “a natureza que se dirige 4 camara nao é a mesma que a que se dirige ao olhar™ (“eine andere Natur ist, die zu der Kamera, als die zum Auge spricht”; VII 376; 1731). E conhecida a teoria benjaminiana do cinema como um meio nascido e propicio 4 apresentagdo do choque. Também Adorno pensou a arte — s6 que as artes de um modo geral — “como escritura histérica” na medida em que ela é para ele “memoria do sofrimento acumulado”. (“Mas que seria a arte enquanto historiografia, se ela se desembaragasse da memoria do sofrimento acumulado?” [“Was aber ware Kunst als Geschichtsschreibung, wenn sie das Gedachtnis des akkumulierten Leidens abschiittelte”], ele se perguntou. TE.,p.291;A.Th., 387) No seu ensaio “Jene zwanziger Jahre” lemos também: “Porque o mundo sobreviveu ao seu proprio naufragio ele precisa ainda da arte como a sua historiografia inconsciente.” (“Weil [...] die Welt den eigenen Untergang iiberlebt hat, bedarf sie gleichwohl der Kunst als ihrer bewuBtlosen Geschichtsschreibung.”) E Adorno ainda arrematou: “Os auténticos artistas do presente sio aqueles em cujas obras ressoa o terror mais radical.” (“Die autentischen Kiinstler der Gegenwart sind die, in deren Werken das auSerste Grauen nachzittert.”)’ Na era das catastrofes a arte passa a ser pensada como arquivo historico — proustianamente vinculado 4 nogado de meméria/ escritura “involuntaria”, a saber, inconsciente. No que segue pretendo apresentar alguns aspectos desta estética — ou anti-estética — nascida de dentro da propria dissolugao da estética. Pensaremos com Adorno esta nova paisagem artistica a partir da nogao de sublime. No final enfocaremos — em . As obras de Walter Benjamin sao citadas a partir da seguinte edigio: Gesammelte Schriften, org. por R. Tiedemann und H. Schweppenhiuser, Frankfurt a.M.: Suhrkamp, sendo que indicamos apenas os numeros do volume ¢ das paginas. W.Benjamin, Obras escolhidas, v. 1, Magia e técnica, arte e politica, trad. S.P Rouanet. Sao Paulo: Brasiliense 1985, p. 189. 5. Citamos 0 volume de Adorno Teoria Estética, trad, Artur Mourdo, Lisboa: Edigdes 70, 1982, pela abreviagdo T.£. ¢ 0 volume Asthetische Theorie, org. por Rolf Tiedemann e Gretel Adorno, Frankfurl/M.: Suhrkamp, 1970, pela abreviagao 4. Th. 6. Gesammelte Schrifien, org. por Rolf Tiedemann, com auxilio de Gretel Adorno, Susan Buck-Morss ¢ Klaus Schulz, Frankfurt/M.: Suhrkamp, vol. 10.2, p. 506. + Josué Pereira da Silva | oRcanizaoor 167 pinceladas rapidas ~ a posigao central que as historias de vida ocupam nesta estruturagao da esfera cultural a partir dos restos da estética. Nesse passo 0 conceito de testemunho desempenhara um papel importante. A obra de Kafka servira de passagem para as palavras finais sobre a escritura da vida danificada. Deste modo fica claro desde ja que o movimento triadico nao é aqui dialético no sentido de visar uma Aufhebung: talvez a unica “sintese” possivel seria a propria obra de Kafka, que esta, no entanto, programa- ticamente posicionada na “casa 2” da tricotomia. Arte como expressao do sofrimento e memoria da barbarie No século XVIII discutiu-se muito entre os tedricos da Estética a questao da representagao do sofrimento. Na chave do conceito de sublime e da teoria do tragico, muito foi dito com relagao a isso. Schiller, por exemplo, que vinculou a teoria da tragédia a do sublime, escreveu em seu “Sobre o patético”, de 1793: “A primeira lei da arte tragica era a apresentagao da natureza que sofre.” (“Das erste Gesetz der tragischen Kunst war Darstellung der leidende Natur.”) Se esta idéia nao perdeu em atualidade nao ¢ menos verdade que a continuagdo desta passagem aponta para uma restri¢do moralizante dessa doutrina estética que nos afasta dela: “A segunda é a apresentagdo da resisténcia moral contra o sofrer.” (“Das zweite ist Darstellung des moralischen Widerstandes gegen das Leiden.”) Dentro desta teoria nao existe lugar para a representagao da dor extrema, para além de sua contengao estéica, pois, para Schiller, “apresentagado do sofrimento — enquanto puro sofrimento — nunca é 0 objetivo da arte” (“Darstellungdes Leidens ~ als bloBen Leidens — ist niemals Zweck der Kunst”), e ainda: “a arte deve deleitar 0 espirito e agradar a liberdade. Aquele cuja dor lhe toma por inteiro ¢ apenas um animal maltratado e nenhuma pessoa mais; pois exige-se sem mais uma resisténcia moral do ser humano contra o sofrimento, apenas assim pode-se fazer reconhecer o principio da liberdade nele, a inteligéncia”. (“Die Kunst muB den Geist ergétzen und der Freiheit gefallen. Der, welche einem Schmerz zum Raube wird, ist bloB ein gequilter Tier, kein leidender Mensch mehr; denn von dem Menschen wird schlechterdings ein moralischer Widerstand gegen das Leiden gefodert, durch den allein sich das Prinzip der Freiheit in ihm, die Intelligenz, kenntlich machen kann.”)’ Adorno assumiu como um dos desideratos de sua teoria estética fornecer os fundamentos de uma obra de arte que apresente este individuo totalmente abandonado ao sofrimento e 4 dor, que Schiller descartou do 7. Schiller, Uber das Pathetische”, in: Ulrich Profitlich (org.), Tragédien-Theorie. Texte und Kommentare vom Barock bis zur Gegenwart, Reinbek bei Hamburg: Rowohit, 1999, 100. 170 Por uma sociologia do século XX nossos debates ¢ polariza os espiritos. Trocando esta andlise em termos de uma teoria estética teremos: a aporia fundamental das artes contemporaneas consiste em nao poder narrar 0 inumano — que deve ser apresentado. O “puro inumano” passa ao centro de uma nova estética que agora nasce nao da tradigao retérica da arte como prodesse et delectare, ensino e deleite, nem de seus substitutos, como a definigao kantiana da arte como uma “finalidade sem fim”, ou ainda, como simples deleite, segundo pretendia a doutrina da “arte pela arte”. Arte e historia, memoria e esquecimento tendem a uma aproximagao sem precedentes na era das catastrofes. Tudo torna-se politico e a arte — que escapa a industria cultural — utiliza a sua “liberdade” para a reflexdo (auto-)critica. Isso sem tentar escapar ilusoriamente da dialética inexordvel da arte que a liga tanto a apresentagao do sofrimento quanto ao fato de ser jogo e — inclusive — aparéncia, fendmeno (Asth. Th, p. 64; T-E., p. 52). Para Adorno, a arte deve guardar 0 nao-idéntico: esta regra que aparentemente viola a sua tentativa de fazer uma teoria estética nao-prescritiva, pode ser lida também como um gesto de interpretagdo do fenémeno estético: “A verdade das obras de arte depende de se clas conseguem absorver na sua necessidade imanente o nao-idéntico ao conceito, 0 contingente que lhe é proporcional. A sua conformidade a fins precisa do que nao tem finalidade.” (7-E., p. 120, trad. modificada .”"Die wahrheit der Kunstwerke haftet daran, ob es ihnen gelingt, das mit dem Begriff nicht Identische, nach dessen MaB Zufillige in ihrer immaneten Notwendigkeit zu absorvieren. Ihre ZweckmaBigkeit bedarf des UnzweckmaBiges.” Asth. Th., 155;). O evento da arte sé pode ser compreendido para Adorno neste espago aporético. ‘Nao causa surpresa se também a famosa frase que Schiller escreveu no final da introdugio do seu Wallenstein, “A vida € séria, a arte é alegre” (“Ernst ist das Leben, heiter ist die Kunst”), foi criticada por Adorno em 1967 no ensaio “Ist die Kunst heiter?” (“A arte é alegre?””). Na era das catastrofes humanas esta divisio limpida entre 0 universo prosaico do trabalho e do dever e, por outro lado, o elemento por assim dizer “leve e prazeroso” das artes, implica a reprodugao de uma perniciosa divisdo de trabalho e estrutura de dominagdo. Como ele escreveu também: “O burgués deseja que a arte seja voluptuosa e a vida ascética; 0 contrario seria melhor.” (T-E., p. 25; “Der Biirger wiinscht die Kunst iippig und das Leben asketisch; ungekehrt ware besser.” Asth. Th., p. 27) Adorno concorda em levantar o tabu sobre a escrita apés Auschwitz naquela reflexio sobre a tragédia escrita quase vinte anos depois de sua famosa frase de “Critica cultural e sociedade”, de 1949: “escrever um poema apés Auschwitz € um ato barbaro, e isso corréi até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossivel escrever poemas” (“nach Auschwitz ein Gedicht zu schreiben, ist barbarisch, und das frift auch die Erkenntnis an, die ausspricht, warum es unméglich ward, heute Josué Pereira da Silva | oRcantzaooR 169 Continuando este raciocinio, Adorno propée uma lei mneménica que quase meio século depois, pode ser confirmada, se percebemos as infindaveis ondas de revisionismo histérico que caracterizam 0 nosso cotidiano, nao apenas na Alemanha: Contudo, talvez nada seja mais funesto para o futuro do que o fato de que breve, literalmente, ninguém mais ser capaz de pensar nisto, pois cada trauma, cada choque nao superado daqueles que retornam da guerra, é o fermento da futura destruigdo. — Karl Kraus fez bem ao chamar sua pega de Os tiltimos dias da humanidade. O que se passa nos dias de hoje mereceria ser chamado “apés 0 fim do mundo”.'! E neste espago-tempo fragmentado do “aps”, que perdura como um bloco de tempo petrificado, que temos que pensar a estética apds 0 dominio da visada estética criada a partir do inicio do século XVIII e que entra em crise com este tendencial predominio do “real” (entre aspas). De resto, a ditadura da informagao serve de lembranga encobridora, Deckerinnerung, para o verdadeiro drama dos choques e da guerra. (Vale lembrar a frase atualissima de Benjamin: “O ideal da vivéncia de choque ¢ a catastroft “Das Ideal des chockférmigen Erlebnisses ist die Katastrophe.” I, 1182.) Que o “debate” revisionista continue “acalorado” nao é uma comprovagao de que Adomo se enganou ao acreditar em um eminente esquecimento, mas antes uma comprovagio de que o esquecido — aquilo que nio pode se decantar em experiéncia — assombra os vivos, como o fantasma de uma culpa.'? E 0 esquecido, assim como o recalcado, 0 Unheimlich, que domina Oberall, mit jeder Explosion, hat er den Reizschutz durchbrochen, unter dem Erfahrung, die Dauer zwischen heilsamem Vergessen und heilsamem Erinnern sich bildet. Das Leben hat sich in eine zeitlose Folge von Schocks verwandelt, zwischen denen Lécher, paralysierte Zwischenhiume klaffen.” Adorno, 1951, op. cit., p. 89. 11, Adorno, 1993, op. cit., p. 46. “Nichts aber ist vielleicht verhingnisvoller fiir die Zukunft, als da8 im wortlichen Sinn bald keiner mehr wird daran denken kénnen, denn jedes Trauma, jeder unbewaltigte Schock der Zuriickkehrenden ist ein Ferment kommender Destruktion. ~ Karrl Kraus tat recht daran, sein Stiick “Die letzsten Tage der Menschheit” zu nennen. Was heute geschiet, miiBte “Nach Weltuntergang” heiBen."Adorno, 1951, op. cit., p. 89 12. De resto, ele escreveu no ensaio “Was bedeutet Aufarbeitung der Vergangenheit”: “O passado estaria claborado apenas quando as causas do que se passou estivessem afastadas. Apenas porque as causas persistem nao pudemos até hoje exorcizi-lo.” (“Aufgearbeitet wire die Vergangenheit erst dann, wenn die Ursachen des Vergangenen beseitigt waren. Nur weil die Ursachen fortbestehen, ward sein Bann bis heute nicht gebrochen.”) Gesammelte Schriften, op.cit., vol. 10.2, p. 572. Josué Pereira da Silva | oncawizanon 171 Gedichte zu schreiben”).'? Mas ele o faz nado sem a ressalva de que apos aquela catastrofe a arte ndo pode mais pretender ser inocentemente alegre. Para ele “o conceito de deleite artistico enquanto constitutivo deve ser eliminado.” (7-E., p. 27; “der Begriff des Kunstgenusses als konstitutiver ist abzuschaffen”. Asth. Th., p. 30)'* Como ele escreveu em 1962 em seu trabalho “Engagement”, também referindo-se ao seu texto de 49: “O excesso de sofrimento real nao permite esquecimento; a palavra teolégica de Pascal ‘on ne doit plus dormir’ deve-se secularizar. [...] aquele sofrimento [...] requer também a permanéncia da arte que proibe.”' (“Das Ubermaf an realem Leiden duldet kein Vergessen; Pascals theologisches Wort ‘On ne doit plus dormir’ ist zu sikularisieren. [...] jenes Leiden [...] erheischt auch die Fortdauer von Kunst, die es verbietet.”"") “On ne doit plus dormir”: 0 imperativo é aqui, como no Passagenwerk de Benjamin, o do despertar, e sobretudo o despertar para a morte do outro. Mas Adormo imediatamente dispara o gatilho de sua dialética negativa e problematiza (sem interditar) a arte extraida do sofrimento: “A chamada configuragao artistica da crua dor corporal dos castigados com coronhas contém, mesmo que de muito longe, o potencial de espremendo-se escorrer prazer. [...] Pelo principio da estilizagdo estética e até pela prece solene do coro, 0 destino imponderavel se apresenta como se tivesse tido algum sentido algum dia; é transfigurado e tira-se um pouco de seu horror. Basta isso para fazer-se injustiga as vitimas, quando, entretanto, perante a justiga nenhuma arte que evitasse o caminho delas resistiria.”'” (“Die sogenannte kiinstlerische Gestaltung des nackten kérperlichen Schmwezes der mit Gewehrkolben Niedergekniippelten enthiilt, sei’s noch so enfernt, das Potential, Genu8 herauszupressen. [...] Durch Asthetische Stilisationsprinzip, und gar das feierliche Gebet des Chors, erscheint das unausdenkliche Schicksal doch, als hiitte es irgend Sinn gehabt; es wird verklart, etwas von dem Grauen weggenommen; damit allein schon widerfahrt den Opfern Unrecht, wihrend doch vor der Gerechtigkeit keine Kunst standhielt, die ihnen ausweicht.”'*) A arte mesmo de um radicalismo estético como o de Schénberg no seu Uberlebende von Warschau, ou da literatura de um Kafka e de Beckett, nao deixa de ser também traigao na mesma medida em que é consolo (7rost)... mesmo assim “nao ha quase outro lugar [sendo 13. Prismen. Kulturkritik und Gesellschaft, Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1992, p. 26. Prismas: critica cultural e sociedade, Trad. A. Wemet ¢ J. Almeida, S. Paulo: Atica, 2001, p. 21 14. Cf. ainda: “No mundo falso, toda a edoné é faisa.” “In der falschen Welt ist alle edoné falsch.” T.E., p. 24. Asth. Th., p. 26 15. Notas de literatura, trad. C. Galedo, Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1973, p. 64; 16. Noten zur Literatur, Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1991, p. 423 17. Adorno, 1973, op. cit., p. 648. 18, Adorno, 1991, op. cit., p. 423 s. 168 Por uma sociologia do século XX campo estético. Sob sua pena a teoria do sublime sofre uma reviravolta — abandonando o pathos heréico em que ainda estava embebida em Schiller — e funda um novo campo estético (ou pés-estético) onde o tragico da vivéncia historica pode ser apresentado em uma era em que a tragédia ja nao pode mais existir como forma. Esta dependia do papel do individuo livre e auto- confiante. Este individuo (que Adorno interpretou como uma construgao ideal da burguesia do século XIX) justamente se extinguiu no século XX. Em um de seus fragmentos aforisticos de Minima moralia, ele parte de uma critica 4s tragédias de Schiller para defender a dificuldade de se representar 0 historico, a saber, o fascismo, na atualidade. No fascismo nao existe mais liberdade do sujeito, assim como, este sujeito deixou de existir na sociedade onde triunfou a industria cultural que transforma toda cultura em propaganda do status quo e na qual a impossibilidade de se diferenciar reduz as pessoas 4 massa. Adorno conclui este seu fragmento: “Apés a extingdo do sujeito, a arte é 0 que menos se deixa salvar pelo empalhamento do sujeito, e o tnico objeto que dela seria digno atualmente, o puro inumano, furta-se a0 mesmo tempo a ela por sua enormidade e sua inumanidade.”* (“Kunst la8t nach der Ausléschung des Subjekts am wenigsten durch dessen Ausstopfung sich retten, und das Objekt, das heute ihrer allein wiirdig ware, das reine Unmenschliche, enzieht sich ihr zugleich durch UnmaB und Unmenschlichkeit.”)’ Neste mesmo livro ele recorda outro género extinto, 0 pico, ao lembrar— na trilha de Benjamin — que a guerra destréi a continuidade, anula a epicidade, ou seja, a capacidade narrativa que garante a manutengao da memoria ¢ da tradigao. Assim como a gucrra nao contém continuidade, historia, nem um elemento “épico’, mas, de certa maneira, recomega em cada fase do inicio, assim tampouco cla deixard atras de si uma imagem permanente e inconscientemente conservada na meméria, Por toda parte, em cada explosao, ela rompeu a barreira de protegio contra os estimulos, sob a qual se forma a experiéncia, o intervalo de tempo entre o esquecimento salutar e a salutar recordagao. A vida transformou-se em uma sucesso intemporal de choques, entre os quais se rasgam lacunas, intervalos paralisados."° 8. Adorno, Minima moralia. Reflexdes a partir da vida danificada, tradugio L. E. Bicca, S. Paulo: Atica, segunda edigao, 1993, p. 127, 9. Adomo, Minima Moralia. Reflexionen aus dem beschéidigten Leben, Frankfur/M.: Suhrkamp, 1951, p. 272 10. Adorno, 1993, op. cit., p. 46. “So wenig der Krieg Kontinuitit, Geschichte, das “epische” Element enthilt, sondern gewissermaBen in jeder Phase von vorn anfiingt, so wenig wird er ein stetiges und unbewut aufbewahrtes Erinnerungsbild hinterlassen, 172 Por uma sociologia do século Xx na arte] em que 0 sofrimento encontre a sua propria voz"? (“kaum woanders [als in der Kunst] findet das Leiden noch seine eigene Stimme™’). A tradigao estético-literaria a que Adorno se reporta nesse sentido da apresentagao do sofrimento é sintomatica. Ele costumava lembrar de autores como Baudelaire, Nietzsche, Stefan Georg, Kafka e Beckett. Nela podemos ver tentativas de apresentagdo de aspectos do “humano” que a dita tradigao. humanista havia relegado ao esquecimento, ou seja, havia recalcado. Trata- se aqui do “resto” que, como vimos, aos poucos passa ao centro da cena estética ao longo do século XX € tem suas intersegdes com o proprio inumano que, por motivos éticos e politicos, para Adorno, deveria ser levado a sério por esta cena. Naqueles autores podemos acompanhar a arte se despindo do seu cardter de ilusdo e de aparéncia. Como ele ja formulara, em 1938, em seu ensaio “O fetichismo na musica e a regresséo da audigao”, é inteiramente impossivel que a aparéncia chegue a ser um testemunho valido da esséncia”.*! Adorno também trata deste elemento recalcado na sua Teoria Estética, quando ele detecta uma “invasio do sublime na arte”, “Invasion des Erhabenen in die Kunst”, a partir do final do século XVIIL. (TE., p. 222; Asth. Th., p. 292) Este sublime, ele aproxima do “desencadeamento do elementar”, “die Entfesselung des Elementarischen”, sendo que 0 espirito da arte é descrito por ele como “autoconsciéncia” de nosso “ser natural”, “Selbstbesinung auf sein eigenes Naturhaftes”. A arte passa a ser comandada a partir de entao por uma dialética entre o “espiritual”, “Vergeistigung”, e 0 “elementar” (ou “repelente”, “nicht wohlgefallig”, “desagradavel”, “abstoBend”: em uma palavra 0 nosso “ser natureza” sempre recalcado ou 0 nosso ser “apenas um animal” que Schiller tentara descartar da literatura). Adorno nota que “o que é sensualmente desagradavel possui uma afinidade com 0 espirito”, “das sensuell nicht Angenehme hat A ffinitat zum Geist”. 19. Adorno, 1973, op. cit., p. 64. 20. Adorno, 1991, op. cit., p. 423 21. Th. Adorno, W. Benjamin, M. Horkheimer, J. Habermas, Textos escolhidos, S.Paulo: Abril Cultural, 1983, (Colegio “Os Pensadores”), p.179. Ao final desta passagem Adormo remete ao artigo de seu amigo Horkheimer: “Der neueste Angriff auf der Metaphysik”, in: Zeitschrift fiir Sozialforschung V1 (1937), pp. 28 ss. 22. Cf. também: “Es ist beinahe so, als ob die Philosophie — und zwar gerade die gro8e, die tiefe, die konstruktive Philosophie — einem einzigen Impuls gehorschen wiirde: nur von dort wegzugehen, wo Aas, Gestank und Faulnis ist. Und gerade durch diese Entfernung, die ihre Tiefe von diesem Armseligsten nimmt, dadurch ist sie wohl in der perennicrenden Gefahr, selber zu etwas so Diinnem, Unwabrem uns Armseligem zu werden.” (Metaphysik: Begriff und Probleme, in: Nachgelassene Schriften, Frankfurt:M.: Suhtkamp, 1998, secdo IV, vol. 14, p. 184.) Ou seja, as mais abstratas e “elevadas” verdades da filosofia revelam-se como estando aquém daquilo que é 0 mais importante: o cadaver, a decomposigao ¢ 0 matadouro. Dai Beckett representar para Adorno um dos poetas mais verdadciros apés Auschwitz: ele se mantém fiel a esta verdade. Josué Pereira da Silva | oncanizaoor 173 O sublime penetra, para Adorno, as configuragées artisticas, tormando- se “latente”, onipresente, nas obras. Este sublime nao é mais o da teoria estética de Kant ou de um Schiller, mas sim refere-se aquele nosso “ser natureza” oprimido. Mas mesmo que Kant tenha reservado o sentimento de sublime para fendmenos da natureza, é¢ notorio que ele ja tinha claro que “o sublime nao é compativel com o carater de aparéncia da arte” (T-E., p. 224; “BewuBlos driickt seine [von Kant] Lehre aus, das Erhabene sei mit dem Scheinkarakter der Kunst nicht vereinbar”, Asth.Th., p. 295) Em outra passagem da Teoria Estética Adorno nota na “rebeliao contra a aparéncia”™, “Rebbelion gegen den Schein”, da arte moderna e tipica do expressionismo, uma manifestagdo do elemento aporético desta arte ja que “‘o carater de aparéncia imanente das obras nao pode ser liberto de um aspecto da imitagao do real, por latente que seja, e, portanto, da ilusio” (TE., p. 122: “Offenbar ist der immanente Scheinkarakter der Werke von einem Stick wie immer auch latenter Nachahmung des Wirklichen, und darum von Illusion, nicht zu befreien.” Asth.Th., p. 157 s.) Adorno critica a tendéncia da arte a um “segundo naturalismo” com base em uma énfase no elemento matérico e cru da arte que cré, deste modo, esconder a verdade sobre o seu ser instituido, Gesetztsein, tesei e nao physis.* Mas ele também acrescenta que “a alergia 4 aura, a que nenhuma arte consegue hoje subtrair-se, ¢ inseparavel da inumanidade nascente” (7E., p. 122; “Die Allergie geven die Aura, der keine Kunst heute sich zu entziehen vermag, ist ungeschieden von der ausbrechenden Inhumanitat.” Asth.Th., p. 158). Na origem desta revolta contra a aparéncia encontra-se ainda a situagao das artes no século XIX, quando “a aparéncia estética tinha-se elevado [...] a fantasmagoria” (7-E., p. 121; “Der asthetische Schein hatte im neunzehnten Jahrhundert zur Phantasmagorie sich gesteigert”. Asth. Th., p. 156.) Esta ultima frase, de resto, desdobrava a afirmativa de Benjamin, no seu Kunstwerkaufsai significado da bela aparéncia tem seu fundamento na era da percepgio auratica que esta se encerrando”. (“Die Bedeutung des schénen Scheins ist in dem Zeitalter der auratischen Wahrnemung, das seine Ende zugeht, begriindet.” VI, 368)" No seu ensaio sobre a obra de arte, Benjamin defendeu a “queda da aura nas obras de arte” — e portanto a superagéo da tradigao — como um “ein ungeheurer Gewinn an Spiel-Raum” (“um monstruoso ganho em espago de 23. Cf. também T-E., p. 288; Asth. Th., p. 383, onde Adorno nuanga esta questo ¢ explica 0 movimento das artes em diregao ao happening ~ com sua origem nas colagens de Picasso ¢ na destruigao da falsa aparéncia da arte. Esta passagem é das mais importantes para se pensar 0 “pos-estético” hoje. 24. Toda esta reflexdo sobre a aura ¢ a sua superagdo ao lado do abalo da aparéncia no campo das artes deve ser pensada dentro do didlogo constante da teoria estética de Adorno com o Kunstwerkaufsatz de Benjamin 182 Por uma sociologia do século XX “Caprichos” de Goya: uma mistura de comico feroz com cémico absoluto, que enfatiza o aspecto “fantastico” do mundo.’ Nao deve parecer estranho encerrar esta pequena apresentagdo da obra de Kafka, um autor do século XX cuja obra é marcada pela sua época, nos reportando a Baudelaire. A final este “poeta maldito” foi, como ja sugeri, um dos grandes exploradores da mistura, detectada por Adorno em Beckett, do tragico com o cémico. No ensaio seminal de Baudelaire, “De lessence du rire et généralement du comique dans les arts plastiques”, podemos observar um verdadeiro tratado sobre as paixGes mistas. O rir ¢ descrito por ele como um fruto da queda do homem: dai porque 0 riso seria sempre diabélico. Ele expressa antes de mais nada o sofrimento. “Le sage ne rit qu’en tremblant”, escreve 0 poeta. O riso é a manifestagdo do sujeito clivado entre seu corpo e o entendimento. Ja o grotesco seria 0 equivalente ao “cémico absoluto”. Ora, 0 mundo desfigurado de Kafka deve muito a tradigao do grotesco. O que a sua obra fez foi redimensionar esta tradigao. Ele uniu a apresentag’io da situagao de absoluto abandono do homem moderno ao cémico, que sempre permitiu a encenagao do destino dos “pobres” e “desprivilegiados” e de nosso “ser-animal”. Ou seja: pensando com Baudelaire, na obra do escritor de Praga o cémico se tornou ainda mais amargo e, talvez, mais proximo de uma estética capaz da dificil empresa de dar conta de uma época pontuada por catastrofes e pela correlata crise do /égos. As metamorfoses que lemos na obra de Kafka testemunham um momento na hist6ria da literatura no qual ja nao se podia mais langar mao sem escripulos de estratégias de representag4o ilus6rias que ja estavam desgastadas. O fato de termos recordado a tese benjaminiana que afirma 0 teor de testemunho da barbarie contido em qualquer manifestagao cultural nao deve nos levar a esquecer que cada artista e escritor apresenta seu momento a partir de uma série de opgdes estéticas — determinadas exteriormente em diferentes escalas. No caso de Kafka, ele criou uma poética da metamorfose, da parabola, onde 0 cémico € o tragico se unem (e sao desconstruidos) para apresentar a face doentia de seu presente. Contra a tradi¢do do literario ainda onipresente na sua época, que calcava a escritura no emprego abundante de belas metaforas, Kafka apela para uma inversio literalizante: ao invés de belas metaforas ele “antropomorfiza” 0 elemento terrifico do real em seus personagens que, por sua vez sao objetificados, reduzidos a coisas: revelando assim a consciéncia coisificada onipresente. Por outro lado, em um gesto paralelo, ele animaliza seus personagens e “antropomorfiza” os animais: revelando nosso ser pulsional recalcado e 33. Baudelaire, “Quelques caricaturistes étrangers” Il, p. $67. in: Oeuvres completes, op. cit., vol Josué Pereira da Silva | orGanizanoR 183 incapaz de sublimagao. Se nessa obra, como Deleuze e Guattari notaram, “tudo é politico”, nado é menos verdade que nela, tudo é real. Ela nos abre uma dimensao violenta do real. O pés-estético anuncia-se aqui com toda a sua forga. Podemos, diante desta obra, “rir convulsivamente” — como Kafka seus amigos o faziam em suas rodas de leitura — mas também detectar um tremor e abalo do proprio literario que deixou uma indisfargavel fissura sobre ele: e desde ento nao parou de crescer. 0 teor testemunhal da literatura Por tltimo gostaria de apresentar ~ ainda que de modo muito breve ~a questo do elemento testemunhal da literatura surgida na segunda metade do século XX como um objeto de estudo onde podemos observar e desdobrar varios elementos da reflexao estética e historica de Adorno e também vislumbrar um campo da literatura que ndo podemos pensar sem a sombra langada sobre ele pela obra de Kafka. No numero de julho de 1965 da revista Merkur, Adorno leu um ensaio que foi imediatamente incorporado nas reflexdes de seu curso postumamente publicado “Metaphysik. Begriff und Probleme” (e que em parte contém material preparatorio para o seu volume Dialética Negativa, de 1966). Refiro-me ao ensaio “Die Tortur”, de Jean Améry ~ nascido Hans Mayer, 0 intelectual de origem vienense que se exilara em 1938 na Bélgica onde foi pego, em 1943, pela Gestapo ao distribuir material anti-Forgas de ocupagio. Améry foi torturado pela Gestapo ¢ seu relato desta experiéncia que constituiu o cerne de seu ensaio da revista Merkur foi tratado por Adorno na aula do dia 15 do més de publicagao do ensaio. Por falta de tempo abrirei mao de comentar— como era minha intengao inicial —a literatura de testemunho de escritores mais estudados como Primo Levi, Jorge Semprun, Ruth Kliiger ou Robert Antelme e me concentrarei em uma passagem deste ensaio de Améry (posteriormente publicado no livro Jenseits von Schuld und Siihne, que foi recentemente republicado pela editora Klett- Cotta dentro da.publicagao das suas obras, Werke, e onde este ensaio foi encampado). Deverei também me limitar 4 questio da aporia artistica fundamental para Adorno, da arte como a um sé tempo salvag3o do nao- idéntico e impossibilidade desta salvagdo, e como escritura da histéria no seu momento catastréfico. Na literatura de cunho testemunhal a questdo da indizibilidade da fronteira entre ficg’o e discurso dito sério ¢ representativo da realidade ressalta uma série de questdes que Adorno tratou a partir de autores de obras mais programaticamente “literarias”. Na era das catastrofes esta fronteira também é abalada, mas isto nao significa de modo algum que ela tenha sido ou deva simplesmente ser superada. Também aqui a tarefa do pensamento consiste em aprender a trabalhar a partir de campos de forga endo de conceitos Josué Pereira da Silva | oncanizanor 185 Como vimos com Adorno, a narragio das catastrofes ja se mostrara impossivel a partir da propria vivéncia da guerra moderna, tecnologica. O conceito de testemunho implica tanto uma proximidade, uma primeiridade com 0 “evento”, como, em outro sentido, uma capacidade de julgar. Isto nao apenas em termos do testemunho juridico contemporaneo. Desde a Antigiiidade vincula-se a testemunha a visio. Benveniste recorda que também 0 sanscrtito vertar tem o mesmo sentido de testemunha e significa “o que vé, em gotico weitwops, participio perfeito [...] ¢ aquele que sabe por ter visto; da mesma forma o irlandés fiadu (< *weidon), ‘testemunha’. O grego istor [de onde deriva 0 nosso termo Histéria] entra na mesma série e o valor proprio dessa raiz.” O autor cita um texto do Satapatha-Brahmana: “se agora dois homens disputam entre si (tém um litigio), um dizendo ‘eu vi’, 0 outro “eu ouvi’, o que diz ‘eu vi’, é nele que devemos acreditar”.** O autor ainda nota que originalmente arbiter significava também “testemunha” ¢ apenas posteriormente assumiu o sentido de “arbitro”, Enquanto “o que vé” a testemunha se aproxima tanto dos paradigmas da historiografia como da cena do tribunal. Neste ultimo sentido também o termo mantém ecos de sua origem em “terstis”, terceiro enquanto instancia para decisio em um julgamento entre duas partes. Benveniste nota ainda um outro parentesco semantico da nogao de testemunha que, esta sim, pode nos ajudar a pensar de modo mais profundo a situagdo do torturado e sobrevivente. Superstes, como ele comenta, “nao é somente ‘ter sobrevivido a uma desgraga, 4 morte’, mas também ‘ter passado por um acontecimento qualquer e subsistir muito mais além desse acontecimento’, portanto, de ter sido ‘testemunha’ de tal fato.”** Mas 0 fato de aceitarmos a incomensurabilidade entre as palavras e esta experiéncia da morte nao deve implicar negar a possibilidade do testemunho como testis: afinal de contas os caminhos da meméria e do esquecimento do mal sofrido passam também pela construgio da histéria ¢ pelos julgamentos propriamente juridicos.” Devemos aceitar 0 testemunho com o seu sentido profundamente aporético de exemplaridade possivel e 35. O Vocdbulério das Instituigdes Indo-européias. Volume II: Poder, Direito, religiao, trad. D, Bottmann, Campinas: UNICAMP, 1995, pp. 174 s. 36. Id., pp. 277 s. “Verificamos a diferenga entre superstes ¢ testis. Etimologicamente testis € aquele que assiste como um ‘terceiro” (terstis) a um caso em que dois personagens esto envolvidos; ¢ essa concepgio remonta ao periodo indo-europeu comum. Um texto sdnscrito enuncia: ‘todas as vezes em que duas pessoas estdo presentes, Mitra esta la como terceira pessoa”; assim o deus Mitra é por natureza a “testemunha’. Mas superstes descreve a *testemunha’ seja como aquele ‘que subsiste além de", testemunha ao mesmo tempo sobrevivente, seja como ‘aquele que se mantém no fato’, que esté ai presente.” Id., p. 278. 37. Neste ponto afasto-me da interpretagio de G. Agamben que defendeu a impossibilidade absoluta do testemunho enquanto festis em Auschwitz em mais de 184 Por uma sociolagia do século XX fechados ~e alheios ao real. O cerne da questao do testemunho é que ele s6 existe a partir da possibilidade da ficgao e da mentira. Caso contrario o proprio juramento juridico nao teria sentido. Citemos a passagem do ensaio de Améry de 1965: ‘Tanto quanto permanece da experiéneia da tortura um saber que vai além do mero pesadelo, é 0 de uma grande surpresa e de uma estranheza do mundo que ndo pode ser compensada por qualquer comunicagiio humana posterior. Um estupor acerca da existéncia do outro que se afirma sem-limites na tortura — ¢ diante daquilo em que nés mesmos podemos nos transformar: came e morte. [...] Apenas na tortura se experimenta que a pessoa vivente pode em vida se tomar, meio a meio, presa da morte. A ignominia de uma tal aniquilagio nao se deixa apagar. Quem foi martirizado permanece, desarmado, entregue ao medo. E ele que a partir de entdo detém o cetro.# Neste paragrafo encontramos concentradas varias tematicas constantes nos testemunhos de situagdes-limite provocadas por outros seres humanos: a relagdo entre a experiéncia do sofrimento extremo e o pesadelo; a ruptura que esta experiéncia gera na nossa relagao com o mundo, que se torna estranho (Unheimlich); a incomensurabilidade entre esta experiéncia e a linguagem (que a condena a uma sobre-vida como que espectral: ao mesmo. tempo literal e alheia ao simbélico); a situagdo de infinita subordinagao da vitima diante do Outro-algoz; a transformagao, metamorfose, Verwandlung, do humano em mera carne e morte; a situagao de humilhagao que nao pode ser apagada, esquecida e que significa para o sobrevivente uma condenagao ao universo do medo. O mundo do torturado e do sobrevivente dos Campos. de Concentragio — Améry reuniu estes dois universos, j4 que, na qualidade de judeu, foi enviado a Auschwitz-Monowitz, o mesmo Lager em que ficou Primo Levi — nado é um mundo a ser “testemunhado” e narrado no sentido tradicional destes termos. 34. “Sofern Gberhaupt aus der Erfahrung der Tortur eine ber blob Alptraumhafte hinausgehende Erkenntnis bleibt, ist es die grofen Verwunderung und einer durch keinerlei spatere menschliche Kommunikation auszugleichende Fremdheit in der Welt, Ein Staunen diber die Existenz des grezenlos in der Tortur sich behauptenden Anderen -, und iiber das, was man selber werden kann: Fleisch und Tod. [...] Da® man aber den lebenden Menschen schon im Leben halb und halb zum Raub des Todes machen kann, dies wird erst in der Tortur erfahren. Die Schmach solcher Vernichtung 1a8t sich nicht mehr tilgen. Wer gemartert wurde, bleibt waffenlos der Angst ausgeliefert. Sie ist es, die flirderhin dber ihm das Szepter schwingt. * “Die Tortur’, in: Werke, vol. II, Stuttgart: Klett-Cotta, 2002, p. 622. Citamos a partir da versio publicda na revista Merkur, também reproduzida no volume Il das Werke de Améry. 106 Por uma sociologia do século XX impossivel, de singularidade que nega o universal da linguagem e nos remete “diante da lei”, e ao mesmo tempo exige e cobra esta mesma lei. Sua negagdo determinada deixa sua marca desconstrutivista tanto na linguagem, na literatura, como na lei. Paul Celan remeteu insistentemente no seu famoso discurso “Der Meridien” (22.10.1962) a esta ia de um “encontro misterioso”, “geheimnis Begegnung”, que implica justamente a capacidade “trépica” da lingua de unir e cortar pontos aparentemente isolados uns dos outros. “Niemand /zeugt fiir den/ Zeugen”, lemos no poema “Aschenglorie”. O enigma do encontro é 0 mistério da leitura possivel do testemunho(-poema) unico, singular — e legivel. Esta singularidade a um s6 tempo absoluta e impossivel esta na origem também de varias das querelas entre os historiadores desde a Shoah. Adorno, como lemos no seu ensaio “Was bedeutet: Aufarbeitung der Vergangenheit”, havia discutido esta questo que tensiona o “circulo hermenéutico” e corre © risco — desde a Shoah — de fraturd-lo irremediavelmente. O travo na interpretagao é o mesmo que, se nao impede, ao menos entrava a poesia, nos termos tanto da sua produgao como de seu consumo. Tanto 0 poeta como o filésofo agora tem como matéria prima suas vidas danificadas. Mais do que nunca escritura, biografia e tanatografia se unem no momento “pds- Auschwitz”. O teor testemunhal tornou-se um elemento central na literatura € nas artes pos-Shoah. Aprender a perceber e a analisar este momento das concretizagoes artisticas atuais — langando mao de conceitos forjados no século XX por autores como Benjamin, Adorno e no seio da psicanalise — pode nos levar a uma releitura da hist6ria da arte e da literatura do ponto de vista deste teor testemunhal que “veio 4 tona” junto com o Unheimlich. O cinza e o po das catastrofes do século XX penetram nos nossos pulmées € tingiram nossas mos. Eles dio um tom monocordico e monocromiatico as nossas falas e imagens. Se considerarmos correta a maxima do mestre dos matizes cinzas, Kafka, segundo a qual “sé existe um alvo, nenhum caminho” (“es gibt nur ein Ziel, keinen Weg”) e também aceitarmos 0 corolario deste diagnéstico “animador”, “o que denominamos de caminho ¢ hesitagao” (“was wir Weg nennen, ist Zégern”), poderemos julgar nossos teoremas como testemunho desta arte de “hesitar”. Isso corresponderia ao “ir e vir”, a Schweben, derivado desta situagdo no umbral da linguagem e da lei que marca tanto 0 objeto de nosso saber, a literatura e as artes, como 0 elemento testemunhal. Tentar tragar um dos possiveis esbogos da topografia desta hesitagao foi a proposta deste texto. uma obra. Cf. seus livros Quel che resia di Auschwitz. L'archivio e il testimone, Torino: Bollati Boringhieri editore, 1998 e Homo Sacer. O Poder soberano ea vida nua 1, Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002. Dilemas do século XX: idéias para uma sociologia da questao ecoldgica' LEILA DA COSTA FERREIRA” leilacf@unicamp.br Influéncias Tedricas que nortearam a analise sobre a questao ecoldgica nas ciéncias sociais Na interpretagao weberiana depara-se com esferas miultiplas de determinagio da agdo social. Podemos falar de uma esfera econdmica, relacionada aos contetidos de sentido referentes a produgdo econdmica e ao mercado. De uma esfera social relacionada aos contetidos de sentido identificados a um ethos social e a concepgao de honra (prestigio), ou de uma esfera politica relacionada aos contetidos de sentido referentes as lutas pelo poder. Podemos também falar de uma esfera juridica, estética, religiosa ou mesmo cientifica, cada qual relacionada a uma forma especifica da agao social ¢ a produgdo de contetidos de sentido que the sao pertinentes. Neste sentido poderiamos estabelecer aqui as maneiras pelas quais Max Weber (1911;1979) se faz presente nas formulagdes teéricas propostas por Bourdieu (1980) (Andrade Franco,2003). Como em Weber, a questiio dos sentidos, que os homens atribuem as suas condutas, é central em Bourdieu. Ao pensar a cultura, ou os sistemas simbdlicos, 0 autor procura sintetizar elementos de diversas orientagdes tedricas, reconhecendo que estas se repartem em duas vertentes principais: a primeira matriz Kantiana : Durkheim (1895; 1995), por exemplo, onde os sistemas sociais so pensados 1. Texto elaborado para o semindrio Século XX. IFCH. UNICAMP. Outubro de 2006 * Professora Titular de Sociologia do IFCH/ UNICAMP; autora de varios livros, dentre eles; Idéias para uma sociologia da questo ambiental no Brasil. Annablume. 2006. 188 Por ura sociologia do século Xx ao mesmo tempo como meios de comunicagao (estruturas estruturadas) e como instrumentos de conhecimento e da construgao do mundo objetivo (estruturas estruturantes). A primeira tradigao caracteriza-se por tentar compreender como se articulam a partir da elaboragao simbélica as formas de consenso. A segunda vertente teria em Marx (1845;1980) e Weber (1911;1979) seus principais expoentes e se caracteriza pelo entendimento dos sistemas simb6licos como instrumentos de dominagio. E desta reflexio sobre estas duas vertentes interpretativas que Bourdieu ira desdobrar os conceitos fundamentais com que opera: o de habitus e o de campo. A crenga nas relagées entre produgao de contetido de sentido e de formas de dominagao, bem como a idéia de que os diversos processos por meio dos quais tais contetidos de sentido se produzem podem configurar esferas dotadas de uma légica particular, fazem com que 0 conceito de campo seja tributario em grande medida, da concepgao weberiana da autonomia das esferas sociais. Temos aqui atores que se movimentam por entre configuragdes de idéias e instituigdes. Por um lado, a percepgio de um campo de poder, posigdes que se entrelagam em um sistema de relagdes que confere particularidade a cada posi¢ao e ao proprio conjunto, que é sempre dinamico e marcado por disputas. De outro, a nogdo de campo intelectual, que ganha autonomia na medida em que crescem 0 nivel de especializago e o status dos produtores de bens simbélicos. Idéias, praticas, instituigdes e habitos configuram um campo. Neste sentido, Bourdieu (1980) propde uma teoria da pratica na qual as agées sociais sdo concretamente realizadas pelos individuos, mas as chances de efetiva-las se encontram objetivamente estruturadas no interior da sociedade global. Poderiamos arriscar aqui um breve comentario que se articula com outras influéncias tedricas que subsidiaram a tentativa de uma sociologia da quest4o ecologica e ambiental. A criatividade sociolégica supde, ao mesmo tempo, um corte com o senso comum ¢ uma elaboragiio permanente e audaciosa de novas hipéteses. Como bem sabemos as grandes criagées cientificas nado se reduzem “nem ao grito da revolta” (a simples ideologia), “nem ao rigor das construgdes cientificas”. Evidentemente, no interior da obra de um autor existe um grau diversificado de coeficiente ideolégico. O trabalho intelectual nutre-se de uma dimensao ambivalente (ambivaléncia nao é sindnimo de ambigiiidade): o rigor e 0 controle cientifico e uma vinculagao visceral as coisas do mundo (Ortiz,2002). 190 Por uma sociologia do século XX Uma segunda visio sobre a construgao interdisciplinar restringe-se mais ao campo da pesquisa tematica, opondo-se 4 visdo das assimilagdes progressivas entre disciplinas. Esta visio reconhece a especificidade disciplinar, mas adota uma espécie de colaboragao deliberada dos saberes disciplinares sobre temas previamente definidos (Floriani, 2000). Neste sentido, podemos apontar algumas hipéteses que nortearam a analise da produgo intelectual sobre a questo ecologica. Em primeiro lugar, tudo indica que a énfase nessa drea transversal migrou da busca ingl6éria por um ator preferencial de mudanga social na ordem econdmica ou ambiental para uma questdo genérica delineada em torno das preocupagdes com a dimensio humana das mudangas ambientais, independente de juizos de valor sobre elas. Atualmente, essa questéo é decomposta em outras derivadas que dizem respeito 4 governabilidade ¢ as orientagdes sociais ¢ culturais ou normativas para a resolugao de problemas universalmente reconhecidos € considerados politicamente pertinentes. Nessa linha as discussdes e reflexdes das diferentes vertentes citadas no contetido deste trabalho centram-se em objetos que se inter-relacionam para dar conta de problemas como normatividade, institucionalidade e a emergéncia de novas institui¢des sociais na area ambiental. Em segundo lugar e nao menos importante esta o fato que tanto a produgao na rea no seu periodo de formag4o (nos anos 1960) como a posterior, bem como a discussao sobre a interdisciplinaridade, acaba influenciando e sendo influenciada pela teoria social contemporanea. Alguns autores (Leis, 2000, por exemplo) argumentam que no caso brasileiro estariamos, na maior parte das vezes, nao desenvolvendo perspectivas teéricas em relagao ao tema, mas respondendo a uma demanda desenfreada da sociedade civil. No entanto, as discussdes teérico metodolégicas, desenvolvidas no livro Idéias para uma sociologia da questdo ambiental no Brasil (Ferreira, 2006), tentam mostrar que no caso brasileiro, ha também setores da comunidade académica influenciados tanto pelas correntes ligadas 4 modernizago reflexiva (teoria do risco e modernizagdo ecologica) como por perspectivas construcionistas, assim como enfoques materialista durkeimiano, realista; _materialista marxista e enfoques pés-materialistas. A Questao ecoldgica e a Sociologia ambiental Asociologia ambiental, como produgao cientifica e académica, emergiu a reboque dos movimentos de contestagao social surgidos no inicio dos anos de 1960 e da constatagao da situagio emergencial de degradagdo dos recursos naturais e do desenvolvimento do industrialismo (Paehlke,1989; MacCormick, Eckersley, 1995). Talvez porque o nascimento do ambientalismo Josué Pereira da Silva | oRGaNizapor 191 na década de 1960 tenha surpreendido os socidlogos, que, naquele momento, nao dispunham de um corpo teérico ou tradi¢gao de pesquisa empirica que os guiasse em diregao ao entendimento da relagao entre sociedade e natureza. Os pioneiros da sociologia classica, Durkheim, Marx e Weber tinham abordado a questio de modo tangencial; além disso, apenas raramente surgiam trabalhos isolados na area de sociologia rural, sem no entanto promover uma acumulagio consideravel de conhecimentos que permitisse a criagdo de um campo ou sub-campo tedérico. Hannigan (1997) acredita em duas explicagdes para o fato dos sociélogos marginalizarem a questao ambiental em seus empreendimentos tedricos. Uma delas se refere as falhas do determinismo geografico ¢ biolégico, e sua visio conservadora sobre 0 entendimento das mudangas e conflitos sociais; a outra diz respeito ao proprio pensamento vigente que, em meados do século XX, enfatizava a literatura sociolégica da modernizagao. O que atualmente é identificado como preocupagao ambiental seria visto como atraso e obstaculo ao desen- volvimento, ao progresso. Certamente havia criticos ao paradigma desenvolvimentista, como os socidlogos marxistas; mas, estes tendiam a ver a problematica ambiental como um desvio das questées cruciais do humanismo. Buttel (1992), por sua vez, assinala o relacionamento ambiguo da sociologia, em sua fase de construgio, com as ciéncias naturais. Se, de um. lado, 0 pensamento sociolégico foi influenciado por conceitos provenientes das ciéncias naturais, por outro lado, a propria necessidade de legitimagao das ciéncias sociais exigiu uma reagao contra a simplificagao das explicagdes oriundas do determinismo biolégico e geografico. Foi neste contexto, embora de forma diferenciada, principalmente a partir dos anos de 1960, que grupos de sociélogos comegaram a dar importancia 4 problematica ambiental e perceber sua relevancia e abrangéncia, passando a ocupar a agenda dos governos, organismos internacionais, movimentos sociais e setores empresariais em todo o mundo. Tornou-se evidente que a questo ambiental nao era apenas mais um modismo passageiro e a sociologia ambiental assumiu desde entéo uma posigao significativa para estudar as divergéncias e conflitos sobre a natureza e as causas € a extensio dos problemas ambientais (Buttel, 1987; Redclift and Woodgate, 1996; Hanningan, 1997, Catton and Dunlap, 1998). A sociologia ambiental norte-americana, por exemplo, que dominou internacionalmente 0 sub campo até o fim dos anos de 1980 e inicio dos de 1990, tem tido algumas deficiéncias. A teoria sociolégica ambiental norte-americana desenvolveu-se originalmente em reagao a falta de atengao da sociologia dominante com os fenédmenos biofisicos; assim, enfatizou tendéncias fortes, sendo intrinsecas, das sociedades modernas 4 degrada¢io do ambiente, e tendeu a minimizar a teorizagado dos N. alvorecer do século XXI, 0 paradoxo esta em toda parte. A capacidade de produzir mais e melhor nao cessa de crescer e é assumida pelo discurso hegeménico como sindénimo do progresso trazido pela globalizacao. Mas esse progresso, discurso dominante das elites globais, traz também consigo exclusdo, concentracao de renda, subdesenvolvimento e graves danos ambientais, agredindo e restringindo direitos humanos essenciais. Mais inquietantes que os perigos nucleares sao agora, no entanto, os riscos decorrentes da microbiologia e da genética, com seus graves dilemas éticos e morais. Como equilibrar os beneficios potenciais da genética, da robotica e da nanotecnologia contra o perigo de desencadear um desastre absoluto que comprometa irremediavelmente nossa espécie? Um olhar sobre 0 século XX, com os imensos saltos da tecnologia e do conhecimento, mas com seus enormes 6nus de guerras tragicas, miséria e danos ambientais, faz brotar com forca a pergunta central: somos, por conta desse tipo de desenvolvimento global, mais sensatos e mais felizes? Ou podemos atribuir parte de nossa infelicidade precisamente a maneira como o sistema dominante utiliza os conhecimentos que possuimos? Afinal, as conseqiiéncias negativas desses vetores da globalizacao assumidos como inexoraveis e benévolos acumulam um passivo crescente de riscos graves que podem levar de roldao 0 imenso esforco de séculos da aventura humana para estruturar um futuro vidvel e mais justo para as geracées futuras. Gilberto Dupas ISBN 978-85-7419-719-7 TB8574 I

You might also like