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BEATRIZ GOIS DANTAS vové NAGS E PAPAT BRAR.:O: Usos e abusos da Afri Dissertacgdo de Mestrado presentada ao Programa de Pés~ Graduag&éo em Antropologia Social da Universidade Estadual de Cam pinas. CAMPINAS 1982 A MEMORIA da Professora Josefina Leite Campos, que com £é e competéncia me iniciou na aventura da Antropologia. de Bilina de Laranjeiras, com quem aprendi que inicier "€ilhos de santo" & também um ato de competéncia e Fé. AGRADECIMENTOS: De diferentes modos, nessoas € instituigdes con tribufram para a realizacdo deste trabalho. Aqui expresso-lhes o meu agradecimento: A Universidade Federe ae Sergipe, pela onortu nidade de afastamento para cursar «) Mestrada, e 4 CAPSS/PICD, pela concessdo de Bolsa de estudo, os professores Maria Manuela Carneiro da Cunha, orientadora, e Peter Fry, coorientador, que juntos viram nas cer a id&ia deste trabalho, acreditaram nele ¢acompanharam sua. elaboracdo, animando~me com seu entusiasmo, discussdes, suges tées e amizade. Ros colegas e professores do Mestrado em Antro pologia Social da UNICAMP, varticularmente ®ubem César Pernan des, Mariza Corréa, Mauro Almeida, Antonio Augusto Arantes Ne to e Carlos Rodrigues Brandao, pelas criticas ¢ susestdes, so bretudo quando da apresentacdo do »rojeto desta dissertac2o. A Gisélia Gdis Santana que teve a paciéncia de decifrar meus manuscritos que Francisco José Costa Dantas re visou em sua forma final. Ros muitos vais, mies e filhos de sento de Le ranjeiras, em particular aos membros do Terreiro de Bilina,que me aceitaram com meu "querer saber para estudo" diferente do seu saber vivéncia. Aos muitos parentes consanguineos e afins - e foram tantos: pais, sogros, irm&éos, commadres - que, cuidando dos meus filhos ou deslocando-se nara Campinas, deram-me sem pre apoio nos momentos mais dificeis. A Ibaré Jinior e Silvie,os filhos, que partilha ram comigo a disciplina e os sacrificios impostos pela elabora co deste trabalho, amenizados e dicnificados pela presenca 2 mica e estimutante de Ibaré, companheiro de jornada. ENDICE INTRODUGAG 6 wk I~ A CONPIGURACAO DO PRESTIGIO EM YERKETROS DE XANG! - Os “de fora" classificam os terreires. .... Os terreiros se Véau a si wesmoS » + ee eee = Sobre as diferengzs. 2. ee eee aw Ne 1 - As diferengas vistas pelos "de dentro"... . - A importancia dos terreiros vista pelos "de dentrd! -Oidealeoreal.. ... eee ee ee eee A importancia dos terreirce vista pelos " ews 1 - As razdes do sucesso. - eee ee ee ee Notas, se ee ee ee ee ee TL - ONAGO FALA DE SI. 6. eee ee ee ee co - Da Histéria ao mito. . 2... eee ee ee - 0 culto danéstico aos orixés .. 1-1 ee ee © relato sobre ag origens. «ee + ee ee ee RON e ' - A histéria da mae de santo. ss ee ee ee 4.1 - "Papai branco" see ee ee ee 4.2 - "VowS nagS". wwe ee ee ee ee ee 4.3. - O trabalho... . ee ee ee ee 4.4 -A predestinagdo. . se ee ee ee 5 - Os descendentes de nagés e seu lugar no grupo. 6 - A heranga africana do terreiro nagé. . . . - - 6.1 - Os sinais da ortodoxia africana... . - Notas. ee eee eee ee III - © NAGO PALA SOBRE OS OUTROS. » ee eee ee et 1 - Malés - os que desapareceram por fazer o mal . 2 - De africano a toré~a trajetéria dos misturados 3 - Toré - da tradicio indfgena degenerada ao que trabalha com Exu para fazer oMal. ... 2... = Umbanda - a que cobra dinheiro da imandade. . "crentes - os gue no conbina con nds... - ~ Igreja Catélica-equela "can qvan nds mistura". Sone ' ~ A légica do "puro" e do “misturado" no terret FO NAG. eee ee ee ee ee Notas, 2 ee ee pag. 12 13 15 20 21 22 24 30 32 35 38 36 4h 43 46 46 49 54 55 60 63 63 7 81 84 87 91 94 94 Ive aA CONSTRUCKO EO SIGNIFICADO DA "PUREZA NAGO". . 1 - Os diferentes centornos os “nagés puros" 2- A Africa e o resienalismo nordestino . . 2.~ A exaltagio do nagd e a “democracia cultural". 5 = 3,1 - 0 confronts entre a Lei e a Ciéncia-Nina Rodrigues. 6 eee ee ee 3,2 - 0 didlogo entre a Lei e a Ciéncia - Anos Teinte. 26. ee ee ee 3.2.1 - 0 caso de Pernambuco... 3.2.2 - O caso da Bahia... .- 3,3 - Os Congressos Afro-Brasileiros e a poou larizacio ia heranga africana, exdtica, primitiva ¢ estética. 2... ee - A significagio da "Volta 4 Africa" e da exalta co do "nagd puro" Se ee - Africa negada x Sfrica exaltada, um paralelo entre a Umbanda e o Candomblé. .. . 1. Notas. 6 ee ee ee ee ee Vv - 0S USOS DA APRICA PELO TERRETRO NAGO. . . . 1 - As tradicdes e o culto ao passado da cidade. . 2 3 - 0 Nagd e os "brancos" - o recorte sobre digdes populares 2. ee ee 2,1 - 0 padre, as tradicées e o NagS . . - A linguagem da Africa como estratégia de vivéncla 6. ee ee ee Notas. 2. ee ee te ee ee CONCLUSKO, 6 eee ee ee ee ee BIBLIOGRAPIA 2 2 2. ee ENTREVISTADOS. © ee ee ee ee GOSSARIO. © ee ee ee ANEXOS: FOTOGRAFIAS, . .. 1 + ee ee eee 105 205 109 iis 120 125 128 133 141 172 176 179 188 191 197 207 209 215 IETRODUCAO Os estudos sobre aschamadas religides afro-brasi leires (1), particularmente sobre o Candomblé*, tém privilegia do como campo de anlise os contefidos culturais e as especifi cidades desses contefidos, quando nado a procura de suas vincula ges genéticas. Isto tem remetide constantemente & Africa e es sa busca incessante de africanismos, que se inicia no século passado com Nina Rodrigues, tem tomado feigdes diversas, desde © cotejo mecdnico e simples Ge tragos culturais cuja semelhan ¢a com congéneres africanos 6 apresentada como prova de “sobre Vivéncias" (Rodrigues: 1935, 1977; Ramos, 1951, 1961) (2}até os estudos que tentam mostrar a persisténcia dos tracos culturais como parte de um sistema religioso africano alternative e fun cional (Herskovits, 1967; Ribeiro, 1952), ou ainda como expres sio de um verdadeiro pensamento africano (Bastide, 1971, 1973 Santos, 1976}. Dessa busca 2a Africa emerge a valorizagio da pu xeza dos camdomblés. Paralelamente, a tradicgHo nagd* (3) é ele vada 3s culminancias de africanidade e apresentada como modelo de culto de resisténcia no qual a manutenc&o da tradigdo da A frica e dos valores africanos permitiria uma forma alternativa de ser, se nao a nivel das relagdes econémicas e politicas, ao menos a nivel ideolégico. £ o que propée, por exemplo, Roger Bastide através do "principio do corte" pelo qual se explica ria que negroes que se integram como forga de trabalho na socie dade capitalista tenham uma autonomia ideolégica que seria ga yantida pela sua insergao religiosa em grupos de origem africa na, guardiaes de um acervo cultural e um pensamento que reme, tem 4 Africa (Bastide, 1971). Considerando os candomblés, sobretudo os candom blés mais “puros" como reduto de africanidade e de resisténcia, os autores que adotam essa vostura metodolégica implicitamente aceitam que a presenca, no Brasil, de tragos culturais origina rios da Africa, necessariamente, indicam resist@ncia do negro. transformar africanismos em provas de resisténéia & ratificar © pressuposto que o significado dos tracos culturais & determi * - Os termos marcados com asterisco constam do glossario, no final do trabalho. nado por sua origem, sem se atentar para o fato de que tracos culturais, reais ou supostamente origidrios da Africa, podem ter significados diversos na sociedade brasileira. Nao se le vando iste na devida conta, busca-se a Africa no Brasil e dessa busca incessante emerge o modelo nagé construfdo com os dados empiricos des terreiros* baianos, onde o nagO persistiria em “pura”, sendo este modelo transformado em cate sua forma m goria analitica pelos estudiosos que, significativamente, pri vilegiam como campo de estudos os terreiros mais tradicio- mais (4). Quando se ocupam dos outros, o nagd mais "puro" @ sempre tomado como ponto de referéncia. Nesta perspectiva a umbanda*, a Macumba*, os Candomllés de Cabocio* e Angola*, na medida em que se afastam do modelo, s&o tidos como “degenera osas menos interes. dos", "deturpados", “sobrevivéncias reli santes", avaliagdes que permeiam os trabalhos que véo de Nina Rodrigues no fim do céculo passado a Roger Bastide em anos re centes. © que est& gubjacente neste raciocinio @ que 0 modelo "nagd pero" representaria realmente uva continuidade de culturais africanas que para aqui transplantadas instituigde: @ conservadas gracas 4 meméria coletiva negra se reproduzian guardando fidelidade 4s origens, inclusive nos seus signifi dos, tornando-se assim sinais de resisténcia. Em contrapartida, os que se misturavam com outras tra@igées, degenerando da sua 2 pureza original, tornavam-se mais integrados. Obviamente gragdo ¢ resisténcia passam a ser avaliadas pelo grav de “pure za", esta definida a partir dos tragos culturais encontrados nos terreiros, e tidos como africanos, Abandonando essa postura metodolégica e retoman- do pistas de pescuisas propostas por Ivone Velho, Peter Fry e Patricia Birman (velho, 1975; Fry, 1977a e Birman, 1980), inte ressa-me justamente tentar entender o que significa essa busca obstinada da Africa e, particularmente, a glorificagaéo da tra @igko "nagd mais pura", feita por toda uma corrente de intelec tuaig. Mas também estou interessada em ver a questéo pelo ou tro lado, ou seja, na perspectiva daqueles que se identifica como descendentes de africanos, especificamente nagds, e que apresentam a fidelidade & Africa como um sinal distintivo de si. Tentarei introduzir na andlise um aspecto,que de certo modo, tem sido deixado & margem nos estudos sobre candom blés, ou seja, a sua dimensdo organizacional no contexto sdcio cultural e polftico da sociedade mais ampla. Na medida em que a busca da Africa era o objet vo basico da pesquisa sobre religiées afro-brasileiras, priv legiava-se a cultura, concebida como entidade objetiva, * como etemento determinante da identificagio dos eultas com dadas tradigdes étnicas que, transplantadas para o Brasil, se adapta vam @ se perpetuavam como podiam mediante mesanismos de aul turagao. . Nesse tivo de andlise a cultura aparece como um sistema autOnomo, e se ignora a sociedade global na quai se de ille Herskovits, cuja proposta de trabalho se faz no sentido de eg senvolvem os contatos inter&tnicos e culturais. Mesto Mel: tudar o Candomb1é como uma totalidade, enfocando os aspects da organizag&o social e econdmica e nao simplesmente os reli giosos (Herskovits, 1967}, de certo modo isola e unidade = de culto do contexte mats amplo da sociedade brasileira ou consd, @era essa relacio apenas no que toca ao sinerctismo, e assim, ao tentar compreender os cultos negros como um sistema alter nativo, "uma aub-cultura que se integra na matrta da cultura Brastletva geval” Qlerskovits, 1954), ressalta nio apenas = @ id&ia de continuidade da tradig#o africana mas tem ainda uma visio muito restrita ao nivel cultural, Partindo de uma critica & Antrepologia e parti. cularmente aos culturalistas, por tratarem = cultura como algo abstrato que paira acima do contexto socioligico, Roger Basti de se propSe estudar os condicionamentos sociais das religides afro-brasileiras. Nessa perspectiva a manutengdo dessas formas religiosas deveria ser pesquisada em conexdo com a estrutura dual da sociedade, pois a "luta das etvttizagdes & somente um aspecto da luta das ragae ou das classes econdmtcas..." (Basti de, 1971:961, Caberia assim analisar a atuacto dos atores“afri canos" portaderes, conforme assinala Roger Fastide, de uma "fi losofia pragmAtica e utilitarista", nesse ccntexto em que seus interesses de grupos dominados eram antagénicos aos interesses dos dominantes. Bntretanto, se interesses de grupos negros truturalmente inferiores aparecem na anélise da evolugdo histé rica dos cultos, explicando-se por eles, por exemplo, o desapa recimento dos deuses africanos da agricultura gue deixam de ser cultuados no Brasil e em contrapartida, o realce dado a orixis guerreiros como Ogum* (Bastide, 1971:97) ov ainda, o fato do Candomblé representar um centro de apoio e integragfo para oo negro desprotegido da p&s-aboligdo, no seu todo, porém, a and lise do Autor termina por diluir os interesses dos grupos domi, nados numa mirfade de fatores, tais como solidariedade entre senhores e escravos e, apés a abolicgho, introduz 0 chamado "principio de corte" para explicar porque o negro continua 3 fricano sendo ao mesmo tempo brasileiro. Texmina por concluir que o Candonblé e outros tipes de religiées africanas tém re sistido a todos os caos estruturais, encontrando sempre o meio de adaptar-se a novas condigées de vida ou novas estruturas so ciais (Bastide, 1971: 236/240), induzindo desse modo 0 leitor a pensar que afinal o Candombié se manteve por uma capacida de intrinseca da civilizagao africana em autoperpetuar-se. Nesse particular, a andlise de Roger Bastide com porta algumas ambiguidades e até certo ponto estaria contraria A sua afirmagio de que o "scetioligico determina a cultural’ (514) © préxima da abordagem culturalista que nao sé privilegia = @ cultura, mas também enfatiza a continuidade historicamente rea lizada dessa bagagem cultural através de grupos constituidos ée remanescentes de etnias africanas (especificamente sudane ses) ou seus descendentes, que no Brasil continuariam apegados & xeligiZo dos seus ancestrais devido ao cardter conservantig. ta de tais populagées ou a wma forga especial da cultura em preservar-se. Autores como Abner Cohen e Fredrick Barth (Cohen, 1969 e Barth, 1969) véem a relacao entre etnia e cultura de m9 do diferente, ac deslocarem o enfoque do &tnico dos conteiidos culturais para a andlise do gxupo. Descartando a vis&o tra@icional de etnia como correspondendo 2 uma unidade cultural mantida em isolamento so cial e/ou geogréfico, Fredrick Barth considera o grupo &tnico como uma forma de organizag&c social em que ee enfatiza a inte xagio. Apesar disso, 0 grupo no se dilui pois mantém um com plexo organizado de comportamentos e relacdcs que marcam fron a teiras étnicas entre "os de dentro” e "os de fora". Na const: ¢ao e manutengfo dessas fronteiras, tragos culturais sio usa dos como marcas diferenciais, mas apenas algumas dessas dife rengas sao consideradas significativas pelos atores e¢ néo a so ma total das diferengas. © foco central da investigagao & 2 frontetra Biniea que define o grupo endo a matéria cultural que ele encerra” (Barth, 1969:15). Por seu lado Abner Cohen considera os grupos Stii cos como grupos de interesse que manipulam partes de sua culty ra tradicional como meio de efetivar a articulagSo do grupo sa busca do poder. Assim a etnicidade antes de ser um fendmeso cultural @ vista como um fendmeno essencialmente politico foi o segmento afro-br, sileiro de Laranjeiras, pequena cidade da zona agucareira = de Sergipe, ¢ particularmente um terreiro que se auto-identifica e & xeconhecido pelos demais como "nagé-puro". De 1970 a 1976 acompanhei de perto a vida desse terreiro, seus rituais, sua rotina, o relacionamento da mie de santo com os outros terreiros e com diferentes segmentes da so cledade mais ampla. A aceitacio da minha presenga por parte do grupo foi bastante facilitada por wm trabalho anterior que rea lizara sobre a Taieira*, um ritual orgenizado pela mae de santo @ avresentado no contexto catélice da festa de Sao Benedito.Por essa via eu me tornara conhecida de muitos membros do terreiro © privava da amizade da mje de santo, qve um dia me sugeriu que escrevesse um livro também sobre o Xangd. Isto veio de encontro a uma id&ia que eu hd muito acalentava e passei entdéo, a fre- quentar a casa com 0 propésito declarado de estudar o xangd e escrever um livro como fizera com a Taieira’ Ser focalizada em livro, ter seu nome escrito em letra de forma e suas fotos publicadas como dirigenteda ‘aieira fora, decerto, uma experiéncia gratificante para a mae de santo. Exbora, de certe feita, tenha deixado entrever como o livro ao tornar pfiblico um saber que era sd seu, a privara do monopdlio de informago sobre a Taieira’, era evidente que o livro era ele mento de aumento de seu status. A idéia de que eu escrevesse um um livro sobre o Xangd dava~lhe a possibilidade de inerementa- lo e aumentar o seu prestigio e a oportunidade de iniciar um no vo ciclo de trocas en que a informagio sobre o Xangd era ‘retri, pulda com pequenos favores, contribuigdes para as festas ¢ visi tas constantes, as quais terminavam por valorizar @ posigao eo status religioso da mie de santo e seu grupo de culto, Afinal, © seu terreiro nagd, e nao os outros, 6 que fora escolhide pela “professora da Universidade" para fazer pesquisa, e isto refor gava a ideologia da singularidade do nagd. Eu estava ciente da interferéncia que o pesquisador - observador provoca navida dos observados e percebia que a minha presenga junto ao terreiro en trava no jogo de avaliagSo de prestfyio das casas de culto, e interpretei como uma estratégia para tornar essa presenga mais prolongada, se nao efetiva, a tentativa para que se intensifi, casse a minha vinculagéio com o grupo de culto. As pessoas deste recomendavam-me com inststéncia, por exemplo, que eu “ndo andas ve de terreivo em terreive” argumentardo que & “arriscado a se nhova andar por at por esses torést pois esses torenetroo® sao natvadoz ¢ a senkora pode pegar cotsa ruin", Transferia-se as sim para a pesquisadora um padrao de conduta que faz parte do cddigo de ética dos membros do grupo, sob a alegag&io de que eu era "quase uma nagS", Em varias oportunidades a mio de santo ne advertia: "a senfora tem santo"* ou “8 santo* forte que protege a senhora", afirmac3o que trazia impiicita a idéia de que essa proteg’o poderia ser aumentada se eu o cultuasse convenientemen te. A proposta contudo ficou no ar n&o chegando a ser formulada verbalmente. Fram evidentes porém as tentativas para que cu me vinculasse mais estreitamente 4 vida do terreiro, se ndo atra do vés do batismo* que fixaria o meu santo, ao menos atxa estabelecimento de um parentesco ritual via apadrinhamento da mie de santo substituta. Com efeito, o convite que me foi diri gido para servir de madrinha quando esta foi sclenemente inves, tida na chefia do grupo nde foi apresentado como uma simples gentileza, mas como uma revelagio da falecida me de santo que teria aparecido em sonho para transmiti-la, Estabelecer um vin culo mais estreito do pesquisador com o grupo de culto era nao sé uma forma de assegurar por mais tempo a presenga deste noter reiro,mas também de garantir mais um ponte de apoio entre pes- soas de camadas médias e com relativo acesso a certos setores tnstitucionais, Era enfim alargar para além da classe baixa, on de habitualmente recruta seus membros, a sua rede de relagdes sociais, com as vantagens que dai decorrem, Quando me ausentei para cursar o mestrado em Cam pinas (1978/1979}, enbora continuasse informada sobre os aconte cimentos mais significativos da vida do terreiro e assumigse mj, nha contraparte nesse sistema de troca, distanciei-me fisicamen te do grupo. Este afastamento deixou-me mais & vontade, quanéo do meu retorno ao campo, para transitar pelos outres terreiros em relagio aos quais a minha mobilidade era, de certo modo res trita, pois enguanto era muito frequente a minha presenga no ter reito nagd, a expectativa deste era que eu também respeitasse as fronteiras entre ele e "os outros". Desde muito eu acompanha va & distfncia o que se passava nos demais terseiros, particu Jarmente suas relacgées com o nagé, mas sé agora me sentia 4 von tade paxa visitd-los, estendendo assim o meu campo de observa cdo para perceber como se configurava o segmento afro-brasilei- ro local, os critérios émicos (6) de classificagdo dos terrei ros @ atribuigio de status e o relacionamente entre eles e a so ciedade mais ampla. Isto constitui o tema do capitulo I desta dissertago e serve como pamto de fundo para s analise do nagé, pois sendo a etnicidade um conceito relacional torna-se operati va en face da presenga de outros, com quem o nagd disputard fidis e clientes no mercado de bens simbélicos. Nos dois capf{tulos seguintes a valavra @ dada ao a partir nagd para que ele fale de si ¢ sobre os outros. No das representagées da mie de santo nacd sobre si © sobre o seu terreiro, procuro ver como ela busca legitimar-se pela Africa, & qual estaria ligada velas origens ("bistéria" do terreiro ¢ genealogia dos chefes) © por uma heranga cultural que teria si do ortodoxalmente conservada sem “mistura", o gue constituiria a marca da sua distintividade no segmento afro-brasiicira ig cal. Mo capitulo III, com base nas representagides da m&e de santo nag sobre os outres terreiros @ sobre a Religido Catélica retomo as dicotomias NagS-Toré e Puro-Misturado, esbo gadas no capitulo I, para analisar as categorias subjacentes a este esquema de classificacio (Africano-Indio ¢ Bem-Mal), mos trando através da combinagio com a Tereja Catélica (o que ao degenera a pureza nagd), como os delineamentos da pureza e da mistura seguem as linhas dos dominantes ¢ dominados ra estruty ra social. “A ConstrugSo e o Significadc da Pureza Nag6"cons tituem o tema do capitulo Iv onde, alargando o meu campo de and lise, procuro mostrar que a pureza nagd nuo resulta necessaria mente da fidelidade a uma tradigo, mas de uma construgZo na gual og intelectuais tém papel destacado. Nesta perspective a fidelidade 3 Africa é apresentada como um sinal distintivo do io Nordeste e entra como componente do regionalismo dos anos 39. Mostro também como o “nagd puro" & transformado de feitigaria on "verdadeira religifo", reduzida porém a aspectos exdticos - primitivos-estéticos, e ainda como nesse traémsito do candorbié, alvo de perseguic#o policial para o candomblé nag6 exaltade,ele @ usado como simbolo da negSo e da democracia cultural brasilei, r No filtimo capitulo restrinjo o meu campo de analiv se novamente ao nagS de Laranjeiras para verificar como 0 nov: manto intelectual de exaltagio do africano, enfocado no capitu Jo anterior, se reflete numa pequena cidade do Nordeste e como © serreiro nagd tendo firmado sua exclusividade de tradigio a fxicana mais pura, @ usa no mercado concorrencial de bens simbé licog em busca de sua sobrevivéncia. il. 1 ~ © termo afro-brasileiro tem sido objeto de criticas que de nunciam a sua carga ideclégica associada a pressuoostos evo lucionistas e racistas (Velho, 1975: 12/15}. Embora concor= de com essas criticas e esta dissertagdo seja uma tentativa a mais de romper com a metodolocia que estA subjacente 3 criacgao do termo afro-brasileiro, continuo usande-o,por nao ter encontrado nos termos alternativos propostos um que me satisfizesse, Cultos necros ou relicides negras tém o incon veniente de adscrever, a nriori, significados que podem nao encontrar correspond@neia na nratica social desses grupos veligiosos; cultos de possessdo alaraa por demais 0 — canwo @e observacio incluinde formas religiosas protestantes, Em face degsas dificuldades continuo a empregar o termo afro- brasileiro, incorrendo assim nos mesos riscos do uso Go termo “primitivo", que apesar de sua forte carga ideolégica continua tendo uso corrente na Antropologia pelas dificulda des de substituicao. 2 - Ra Bibliografia, junto a esta data, que 6 a da edicdo por mim consultada, aparece, entre parénteses, quando foi possi vel localizar, a data da la. edic&o, o que permite situar a obra em sua época. 3 - Crengas e sobretudo praticas rituais através das quais: se pretende estabelecer vinculacdo de certos candowblés as tra, digdes religiosas de erunos africanos procedentes do Daomé e da Nigéri. 4- Terreiro & um termo que desiqna tanto o local do culto como © grupo relicioso e suas ordticas, em funcio das cuais se avalia seu tradicionalismo, ou seja, sua fidelidade & Afri ca, Em Salvador 0 Gantois ou I1é Ososi, o Engenho Velho ow 116 Tyé Iy&-Nass6, 9 So Goneale do Retiro mais conhecido como Axé OpS Afonja e, com menor frequéncia, o Alaketu ou 11é Moroialaia, s&o invariavelmente apresentades come — o# mais tradicionais pelos estudiosos, desde Nina Rodrigues no século passado até Juana Elbein dos Santos nos dias atuais. Do mesmo modo, os estudos sobre candomblés resultam de cb servacdes nesses terreiros. Assim 6 que no Gantois trabalha ram Nina Rodrigues e Artur Ramos. 0 Engelho Velho é tomado como padrao por Edison Carneiro na elaboracao Ge"Candomblés da Bahia". Roger Bastide usa dados j4 publicados velos seus antecessores sobre os_candombias tradicionais, sendo aceite como membro do Axé Ops Afonja, que mais modernamente serve de base aos estudos de Juana Elbein dos Santos, enquanto o Alaketu foi estudado por Jean Ziegler. ver Lima (1977:49/50). 5 - Kang € o termo que em Pernambuco, Alagoas e Sergipe é mais usualmente emoregado para designar os cultos conhecidos aa Bahia como Candomblé, 6 - Emico se refere & visio nativa, que estA apoiada em termos conceptuais ¢ categorias dos nréprios pesquisados, enquanto © &tico se baseia nos conceitos € categorias do ves«uisador, constituindo-se assim numa verspectiva analitica (ver Barris 1968). I CAPITULO A CONFISURACAO DO PRESTIGIO EM TERRETROS DE XANGO Laranjeiras, que foi no s&culo passado uma flo- xescente cidade da zona agucareira de Sergipe, 6 tida nlo ape nas como o foco inicia! e 0 reduto mais forte da tradigfo nag neste estado (Oliveira, 1978), mas também camo uma cidade onde proliferam con vigor os chamados cultos afro-brasileiros. Na rea uxbana funcionam 16 centros de culto e quase igual niimero se distribui pelos diversos povoados do mu nicipio (1). Este tem rma Area de 161 km* e.uma populagio de 13,280 habitantes, dos quais 5.150 residen na sede municipal. Emboxa a rede de influéncia dos terreixos nfo se circunscreva aos limites municipais, nem mesmo estaduais, parece elevada a concentragdo de casas ce culto na localidade. A minha pesquisa foi limitada & sede municipal e trabalhei com 10 terreiros, concentrando-me particulamente em um deles. A identificagio que esses terreiros fazen de si e dos outros, o reconhecimento social da importancia desiguai que ihes é atribufda pelos préprios participantes dos cultos e pelas pessoas "de fora", serdo os temas desenvolvidos neste ca pitulo, que visa estabelecer a configuragao do prestigio nun mercado de XangS (2). Terreiro @ a expressdo usualmente empregada tan to pelos participantes dos cultos os "de dentro" como nessoas nao participantes, os “de fora", para indicar o lecal a ao mesmo tempo o grupo religioso. Aparece também a designag&c Ge casa de santo* e centro”, esta mais frequentemente usada quando se indaga sobre o nome do terreiro, Aparece invariavelmente nos alvardés de funcionamento concedides pelas Federagdes de Cultos Afro-Brasileiros e de Umbanda aos terreiros registrados, sendo também usada por aqueles que resistem em registrar-se. 0 terreiro, via de regra, compreende um chefe e seus seguidores, geralmente chamados "filhos de £6*! Ao conjun to, di-se, por vezes, o nome de irmandade”, Os termos filho de 13 santo’e pai ou mie de santo* sio pouco usados, sendo mesmo re jeitados por alguns chefes de terreiros quando empregades pelo pesguisador, sob a alegagSo de que wm mortal nao scde ser pai ou mae de um santo. © texmo santo* indica tanto orixis* africanos co mo entidades caboclas, estas mais conhecidas come encantados Todos os terreiros visitados tinhar altares com santos” aos quais se dedicam festas realizadas cc toques* de tambores e dangas, ao menos uma vez por ano. Alguis deles po rém nao tém wn corpo de fiéis (filhos de £8*) ,dericando-se qua se que exclusivamente As consultas, chamadas loculmente de re paros*, e aos trabalhos*, expresso que engloba. ura série de atividades voltadas para a solugio de problemas imedietos. 5s tes terreiros existem pois em fungdo da prestagic de servigo a uma clientela que é atendida individualmente e nfo cria vinew los em relago ao centro. Prescindindo de um corpo de fiéis, estes realizam suas festas com o concurzo de filhos de £6* de outros centros gue af vdo dangar, o que & inconcevivel para ou tros terreiros onde dangar na roda* @ prerrogativn exclusiva dos seus membros. Estas e muitas outras diferengus sao traba Ihadas de modo a constituir uma diferenciagéo no interior do segmento local dos cultos afro-brasileiros, dizezenciagae que se expressa sobretudo na oposigaéo entre terreiros de nagd e terreiros de caboclo. 1 - 0s "De Fora" Classificam os Terreiros Na identificag&o dos terreires, os termos nagé e caboclo surgem como indicativos de categorias de classificagao manejadas com certa familiaridade nao sé pelos dirigentes e participantes dos cultos, como também pela populagado da cidade de um modo geral. A partir de conversas informais, entrevistas rea lizadas com pessoas de diferentes camadas sociais e de reda~ ges de alunos das 7a. e $a. séries do 19 Grau, conclui-se que os nao participantes des cultes ao se referirem aos terreiros, usam a oposigao nagé-caboclo, mas preferencialmente empregam nagod-toré. 4 + x. a : ; Toré & expresso da qual tém sido registrados significades diversos ora aparecendo como instrumento musical, ora como danga, mas sempre associada a indios. Em Alagoas, na regiao do baixo S&o Francisco, toeré aparece como uma "pantante do catimhS,* cesimania onde os cabo elos ou os encantados, atendendo ao "nestre",bat gam para ensinar rendddos, eomo num eandomolé de eaboelos", (Cascudo, 1969:708, grifos no origina) Sem restringir-se a esse aspecto puramente cura tivo, € como sinGnimo de terreirs de caboclo que o termo 6 usa do em Laranjeixas, Apresenta contudo, ao menos nesta cidade ,wma conotagdo pejorativa nao tendo sido usado por nenhum chefe de terreiro caboclo para indicar o seu préprio centro de culto, embora o usem, algumas vezes,para indicar terreiros de cutrem, sobretudo dos seus rivais, A carga negativa que reveste o tempo toré* se tora mais intensa no seu derivado torezeixo* que se aplica aos participantes dos cultos de caboclo. Tor ou caboclo & categoria que se opde a nagd. Este & termo genérico que no Brasil designava grupos provenien tes do Sul e do Leste da Repiblica Popular do Benin (antigo Daoné) ¢ do Sudoeste da Nigéria, entre os quais se incluem os Ketu, Sabe, 016, Egb&, Ijex4, Ijebu. Como lembra Juana Elbein dos Santos, a exemplo da palavra Iorub&4 na Nigéria, o termo na gd no Brasil foi aplicado coletivamente a diversos grupos vin culagos por uma lingua comum e que teriam chegado ao Brasil nos fins do século XVIII e inicio do XIX, concentrando-se nos estados do Norte e Nordeste, particularmente em Salvador e Re cife (Santos, 1976:29). Atualmente nagd & indicativo de um conjunto de pr&ticas e crengas tidas cano de origem africano-ioruba, atra vés das quais se define uma nagdo de Candomblé. (Serra, 1978: 37/38). Para os habitantes de Laranjeiras,af existe um- terreiro nagé que opsem aos demais, tidos como torés. A clag sificagio 6 pois sumaria, exclufdo 0 nag6, tudo o mais & toré, terreiro de caboclo. Um pouco mais matizada 6 a classificagao dos di rigentes de terreiros que se vera em seguida. 15 2 - Os Terreiros Se Véem a Si Mesmos Os chefes de culte, via de regra, tém um bam co nhecimento dos terreiros da cidade e alguns deles chegaram a enumerar quatorze casas de santo”, sua localizagdo, dirige e nagéo*. Ao classificar os terreiros, alguns deles fize; uso de categorias nado enumeradas pelos "de fora", apresentan‘o assim um quadro de identidades mais nuangado,que inclui 4 rentes nagées africanas como Ketu*, 1jex&*, Jejé*, Angola” ,aiém do Nagi identidade que o dirigente faz do seu terreiro, passando qui:e Essas especificagées contudo aparecem sempre na avtc~ sempre despercebida aos demais chefes de culto, para os qui’s © que nBo € nagd ou caboclo ou associagSo des dois, & simples. mente misturado* ou enrolado*. Veja-se o quadro abaixo. QUADRO I Classificagéo dos terreiros segundo os dirigentes @e culto (3) TERREIROS |AUTO-IDENTIDADE CLASSIFICACKO PELOS OUTRO: PAIS DE SANTO 1 Caboclo Caboele ou Tord . 2 Caboclo Misturado . 3 Caboclo Caboclo ou Toré/Misturado 4 Nagd Nagé (adjetivado de “puro"" Ie gitimo", no") Nagd. Nag6/Caboclo-nagé Ob& {nagd) Ketu,Tje]Nagé-caboclo/Nagé-angola /Cabo x&, Angola,Caboclo,|clo ou Toré / Misturado Jeje.) Nago, Ketu, 1jexa,|Cabocle ou Toré/Enrolado 7 Caboclo 8 Angola Cabcelo ‘ou Tors. 9 Jeje Caboclo ov Toré 10 N&o tenho nagdes | Toré/misturado 16 Nesse quadro de classificagao, misturado emerge como uma categoria que parece ter dupla significagdo, ora & sindnimo de caboclo, ora indica fus&o de cabosio, nagd e ou- tras nagdes. £ interessante observar que 0 adjetivo " puro" correlatos, que aparecem com frequéncia associados a um ter reiro nag, jamais foram usados en relago a algum terreiro caboclo. Retornarei, no devido momento, 2 essa questao do "pu ro" e do "misturado", do nagé e do caboclo. Por ora tentarei buscar os vincvlos existentes entre os tecreires, com o fim de estabelecer elos de ligagdo entre a auto~identificagio e a identidade atribufda pelos outros, na medida em que esta pare ce elaborada em cima da “histéria do teczeiro", muito colada A vivéncia do seu dirigente e as suas vizculagdes anteriores com outros centros de culto, onde afinel, teria recebido sua formagao. © que se pretende & uma breve reconstituigao da histéria dos terreires e as ligagées de uns com os outros, & base do que se procurar4 pensar a maior ou menor eguivaléncia entre auto-identidede e identidade atribufda. Graficamente a vinculag&ée entre os diversos ter yeiros poderia ser assim representada: NAGO GABOCLO £ OUTROS Op rtenene Ho eessH90 Qyrsteite nose wo vinewio ve omen Ep TRAIETORIA 69 TERRCIRO oy metutweia a Tome-se como ponte de partida o terreiro nagi (o 4) onde essa equivaléncia & total. Representaria a continuidade de um terreiro des antigos escravos africanos, dos quais descen aia a chefe criovla, hd alguns anos falecida (1974), que o diri giu por mais de cinquenta anos seguindo sempre a tradigZo rece bida dos ancestrais nagés e conservando-a até os dias de hoje. A histéria do terreiro 6, que se auto-define como cba, (nagS) e secundariamente como jeje, ketu, ijexé, angola caboclo, seria scmelhante 4 do anterior. Mas, a partir de um da do momento, o dirigente que o regeu por mais de meio século tam bém falecido h4 youcos anos, teria nBo apenas atualizado a tra digo dos nagés 2 outras nagdes africanas através da Bahia, mas também incorporado ao terreiro culto dos caboclos. Tornou-se “misturado". Sua influéncia na formag’o de outros terreiros da cidade é muito grande. Pelo processe de fiss%o que rege o cres- cimento dos cultcs, dele derivam diretamente 0 terreiro 1, que se auto-define caboclo, o 7, nagé, ketu, ijex, caboclo por au to-definigo eo 9, que se identifica como jeje, Teria influen ciado também, indiretamente, mais dois outros terreiros, cujos chefes nao se ligam a ele por filiagio de fé mas frequentavam— no habitualmente no passado, Trata~se do 2 que se diz caboclo e & aceito como tal, e do 5 que se auto-define como nagd, sendo classificado pelos demais dirigentes de culto ora como nagé,ora como caboclo-nagS. A hist6ria deste filtimo terreiro remontaria também aos africanos, que teriam deixado"santos da Costa*" sob a quarda dos seus descendentes crioulos. Estes, sob a influéncia do terreiro 6 teriam "misturado" nagd com caboclo, Durante mui tos anos os dirigentes do terreiro, que se sucediam dentro da paventela (41, seguiram a dupla tradig&o de eulto até que = ha aproximadamente, oito ou dez anos atr4s, sua chefe, sob pretex to de que os santes e africanos estavam zangados ¢ castigando a, empreendeu o “retorno &s origens", Aproximou-se do terreiro nagé, o "nagd puro”, e soh a imposig&o deste, teria suspenso as praticas caboclas. Encontra-se assim no limiar da fronteira ¢ enquanto uns chefes de culto aceitam seu retorno ao nagd,outros véem-no ainda como um cabocio-nagé. Quanto ao terreiro 3, deriva de um famoso ¢ hoje extinto terreiro caboclo da cidade. 0 8 se liga a um centro de outra localidade, enquanto o 10 se apresenta como prescindindo 18 de vinculos com outros terreiros e sua dirigente diz-se uma ilu minada*, que desenvolve sobretuéo consultas*, Tendo se filiado a uma das Federacdes de Umbanda esta tem incentivado o culto as entidades reunidas num elaborade santudrio e a realizacio de ri tuais piblicos efetuados com o concurso de filhos de santo* de outros centros, num esforgo evidente de transformar o que era um centro de consulta num terre vo de Umbanda. © esbogo da histéri.a dos terreiros, reconstrufda a partir das informagdes dos seis dirigentes, mostra que ha uma correlagao entre este e a classificago que 6 feita pelos de- mais chefes de culto, Tomando-s a oposigao caboclo-nagé como a vertente de classificagdo tem-s2 que, com exceg&o de um casc,ha correspondéncia, maior ou menoy entre a auto-identidade dos ter reiros e a identidade que Ihes & atribuida pelos outros. A Gini ca excegZo seria o 5 que reivinaica a identidade exclusiva com © nagd e este reconhecimento Ihe 6 negado por uma parte Gos che fes de terreiro, certamente em face das suas flutuagdes ao ion go da fronteira caboclo-nagd, Cov isto o terreiro 4 aparece com uma identidade exclusiva reconhvcida nfo sé pelos "de fora" mas também "por todos os chefes de clto do segmente afro-brasileiro “legitino", "verdadeiro" e "africano". Desse modo, recobrindo a oposigio na local, B visto como o Gnico terreiro nagé "pur gS x caboclo que é basica para os "de dentro" como para os "de fora", constréi-se uma outra oposigao entre "puro" x "misturad Em face da exist@ncia de um sistema émico de clas sificagao dos terreiros, indaga-se sobre a possibilidade de es tabelecer equivaléncia entre este e outros sistemas de classifi cag&o divulgados pela literatura sobre cultos afro-brasileiros, tais como Umbanda, Candomblé, etc, Como essa questdo & vista pe los laranjeirenses de um modo geral e pelas pessoas que partici pam dos cultos? Ao contrario de Xangd que & termo muito conheci do e usado para indicar indistintamente os terreiros eos = cul tos, Candomb1é e Umbanda quase nao sao usados. Significativamente num total de cinguenta e duas redagées de estudantes, Unhanda apareceu apenas uma vez, sendo apresentado como sindnimo de Candomblé. Este ltimo termo foi ugsado dez vezes, cito das,quais como sinénimo de Toré (caboclo) e oposto a Nagd; uma vez como "a designagao mats aproprtada pa pq indiear os cultoe", e outra como sindnimo de Umbanda (5). 19 Os dirigentes de culto também n3o usam estes ter mos, a ndo ser quando inquiridos sobre as diferengas entre as categorias caboclo e nagS. Mesmo assim apenas trés deles usaram nes. Seguem-se alguns depoimentos: "for3 % negdeto de caboelo, kas meu tio chamava ele de Candombié", (6) Ow entio: "Tore = Cundomblé pela Bahta. Tor’ & aqui mas o Candomblé da Bahia @ nate ketu, Toré @ mais Umbanda". (7) © que se deduz, além da existéncia de um sistema prdprio de classificag&o centrado nas categorias caboclo-nag6,é , quando solicitados a esclarecer este esquemz, os chefes de tarreiro tentam estabelecer equivaléncias com outro esquema de classificagdo, que supdem mais conhecido do pesquisador. Nesta tentativa nota~se que ha uma tendéncia a a- oximar o Toré ora do Candomblé da Bahia, ora da Umbanda, No entanto jamais se fez tentativa de estabelecer equivaléncias do Candomb1é com 0 Nagd. Seria de esperar-se que sendo o Nagé tido Jocalmente como o depositario da "tradico africana mais pura", atributo que om outros meios se reivindica para os candomblés mais antigos da Bahia, se fizesse uma aproximagdo entre ambos. Entretanto, na cidade, Candomblé foi associado ao pdlo mais"mis. turado" e desprestigiado que é o Toré, Para o mundo afro-laranjeirense a influéncia da Bahia sobre os cultos locais longe de incentivar a "preservagdo da pureza africana" teria agido no sentido de acentuar as "mis. turas". A este respelto a histéria dos terreiros 6 bastante elu cidativa, particularmente se vista a partir da casa de santo* 6 conforme visto anteriormente. A propésito da denominagdo dos cultos merece ser lembrado que nao sé em Laranjeiras mas em Sergipe de modo geral © termo mais usualmente empregado pelas camadas populares para designaé-los é XangS, tal como ocorre em Alagoas e Pernambuco. Isto parece intrigante quando se sabe da dependéncia econdmi ca e politica que marcou a histéria de Sergipe em relacSo a Bahia, onde og cultos so denominados de Candomblé. Esta denomi nag&o que em Sergipe & usual entre os letrados nao chegou a im por~se entre as camadas populares, o que indica também que a in flugneia da Bahia sobre o segmento afro-brasileiro de Sergipe nao 8 tZo avassaladora como fazem supor estudiosos da expanso do modelo de culto jeje-nagS baiano (Carneiro, 1964: 121/126) e 20 como podem sugerir a proximidade geogr&fica e a dependéncia his toricamente reconhecida no plano econdmico e politico. Esta quest&o da denominag3o dos cultos sera reto mada adiante. (Ver capitulo Iv) Voltando 4 questa da correspondéncia entre cate gorias émicas e as veiculadas pela ampla literatura sobre cul- tos afro-brasileiros percebe-se que h4 um descompasso entre cles, @ como o meu objetivo é, neste momento, ver como se percebem e se apresentam as diferengas dentro do campo religioso, trabalha rei com as categorias dos préprios informantes que tém como opo sigdo bisica: caboclo-nagd o que remete a eutra oposigio entre indios e negros. 3 - Sobre As Diferengas A suposta génese da tradicSo cultural veiculada por esses terreiros seria o ponto de partida paxa as diferengas observaveis entre eles, Os terreiros caboclos se ligariam en suas origens, aos Indios, enquante os nagds se vinculariam = 4 Africa. Esta idéia @ expressa por diversos agentes sociais de diferentes modos, conforme se pode ver a seguir: "ueu terreira & caboclo, Meu santo % 0 caboclo Res catea... Eu sou descendente de indio, A minka avo era india, Fot pagada « caseo de cavalo @ a dente de cachorro, no Amazonas @ ertada em Simao Dias Gel" (8), "Rog tempoe vd tras 86 tinha aqui em Laranjetras nagé e malé (...} 08 caboelo quem formou fot Ma nud de Zuina, Fle aprendeu 14 na aldeia, Ble of entou 1g 2 veto de ld fugido” (9). Se @ através da ligagSo com os indios que se ex plica o Caboclo, é recorrendo-se 4 ligacio com a Africa que se explica a origem dos terreiros nagés: "@ nagéd @ nagdo de preto velho, dos negros escra vos africancs. Foram etes que detraram (10). "0 eulto afvo-braciletro filhos de Cbd "representa o dirette de tradigago e sucesedo da falectda pre sidente Joaguina Marta da Costa, afrteana de ort gen, filha da eidade de Oba, das aetvas de vagd ...F an. al "9 terreiro nagé de Bilina 2 dos tronco vetho dos africanc. # diferente de nds caboclo que ven dos indios" (12). Segundo os informantes a origem diferenciada dos cultos estaria na base des diferengas que separam os terrejiros nagés dos caboclos. Para "os de fora", ov seja os nao participantes dos cultos, essas diferergas se encontram nas entidades cultua das, na atuaco desses cantros quanto 4 pratica do Bem e do Mal e sobretudo no ritual, Foi em torneo desses aspectos que se de tiveram os estudantes que. em suas redagdes trabalharam sobre as diferengas (13), Segundo «stes, no Nagd cultuam-se os mortos os orixés, enquanto no Toré culiuam-se os caboclos eo "Co". Em decorréncia de sua vinculagZo com as forgas do mal o Toré "ytve de faser feitigo" enquanto o Nagd seria menos maléfico(14). Mas & sobretudo em relagdo ao ritual gue as dife rengas so expressas em maior nfimero ¢ com mais nuances, embora se restrinjam aos rituais externos abertos ao piiblico e conhe os*, As diferengas enumeradas’ dizem dos localmente como feste xespeito 4 época das festas, aos toques* dos tambores, as dan gas e as vestes. Estas, particvlarmente, sio citadas com alta frequéncia como sinal distintivo: "as vestes do nagd eGo bran- cas, as do toré edo colortdas 2 estampadas", 4- As Diferengas Vistas Pelos "De Dentro" Para os dirigentes de terreiros a diferenca funda mental entre os nagés e os caboclos & “trabalhar" ou "nio traba lhar” com a “esquerda", 0 que significa recorrer a Bxu, identi ficado como o "CAo", "o Inimigo" as "forgas do Mal". Significativamente, 4 excegfo de um deles que ape la para elementos diferenciadores no ritual (15), os chefes de terreiro, além de renortarem-se 4s supostas origens, limitaram se a trabalhar essa cposicao: “terretro de cabocle trabatha com esquerda" enquanto "nagé ndo trabalha com a esquerda”. Registre-se que num total de dez chefes de culto entrevistados, sete deles recorreram a este sinal diacritico, e 22 dentre estes apenas dois terreiros se auto-definiam como naga, os demais identificaran-se como caboclos ou caboclo-nagS (16). Importante também registrar que, embora fizessem uso desse cri tério diferenciador, alguns chefes de terreiro levantaram diiv: das quanto 3 sua veracidade sugerindo que o Nagd também = traba. Ihava com Exu, sob o disfarce de um outro nome. "Bilina ndo garanto que trabalhasse com a _esquer da. Mag ela tinha Rard* accentado, E Bard Bo ne me de Enu* pela nagGo nagé* (17). 7 Wao obstante, h& uma grance concordancia, mesmo © @ rendas no mercado entre dirigentes que competem por presti. magico-religiose local, em apresentar 0 Nagé como avesso 4 mani pulag&c do Mal e voltado para a praética do Bem. B significati vo 0 seguinte trecho do depoimento de um chefe de culto que se autodefine como Caboclo, referindo-se & dirigente do terreiro nagd: "... ela fazia aqueles bankoe, com aquela forga dos ovisds, ajudava e ndo precisava de Eau, Podta faser trabathos pra ajudar, mas néo arriava Bou. 86 usava ervas e bankos, gente aereia og = traba tho de chdo, com galinha, wachaga, Gleool, pédlve va e farofa que passa no compo de pove", (18). Desse modo, o fato de nfo “trabathar com a esquer da" no implica em descartar a existéncia de uma clientela gi, xando em torno do Nagé em busca da prestag&o de servigos. Como ser visto oportunamente, admite-se a existéncia dessa cliente la, que seria satisfeita em seus desejor através da habilidade do chefe do terreiro nagé em lidar com cs“orixas de frente*" e deles conseguir a solug&o dos problemas, sem a necessidade de recorrer a Exu. Desse modo, ao Nagd, ao cual, como foi visto, se associa a nog&o de “pureza" @ acrescentada a idéia de Bem, 5 - A Importéncia Dos Yerreiros Vista Pelos “De Dentro” Em face da multiplicidade de terreiros hoje exis tentes na cidade. uns recentes outros antigos, uns grandes ou tros pequenos, uns nagés outros caboclos, quais os terreiros ti dos como mais importantes? Na histéria dos centros acima esboca da em suas linhas gerais, o terreiro de nimero 6 se destaca so bretudo como terreiro-matriz donde se originaram varios outros. 23 Seria isso wn indicativo de import&ncia? Quais os critérios que num mercado de Xangd slo usados para reconhecimento de importan cia e prestigio? Nesta parte do trabalho tentarei ver como essa questSo @ percebida a partir "de dentro", ou sejz, pelos pré~ prios dirigentes dos cultos. Estes, quase por unenimidade, con cordam que os terreiros 4 e 6 sao os mais importantes da cidade, Na avaliagdo por eles feita estes dois aparecem mais ou menos equiparados, enquanto os que se lhes seguem fo 7, 0 5 € 0 9),es to deles muito distanciados em termos de reconhucimento de im port@ncia por parte dos chefes de culto (19) Para justificar a importancia etrikuida aos ter reiros 4 ¢ 6 usam os seguintes argumentos: "ado tevreiros que tam mats de cen anos", ou "edo antigos, hietdnioos”, "2m funda mento"*, "vieram dos afrteanos", "sabem faxer a5 coteas”, A es im muttos Ff tes acrescentam-se: "sdo terretvos grandes que thos" o nimero de "“carros que param na ua porta "por ger fa Lado no radio e na TV" ou ainda por "dangar na porta do paldeto 1a em Avacaju". Os critérios utilizados para atribuigao de impor tancia acs terreiros podem ser agrupados em dvas categorias, De um lado sinais externos, portanto indicadores através dos quais & possivel avaliar o sucesso de um terreiro: nfimero de filiados, transito livre em certos setores dominados pelas camadas supe, riores representados pelos meios de comunicagio, convite de go verno e presenca Gos ricos em busca de servigos magicos, De ow tro lado razSes internas gue estariam na base da explicagéo do sucesso tais como a origem africana do terreiro, sua antiguida de © a capacidade ritual do seu lider, elementos que teriam a ver diretamente com a forga® do terreiro, conceito importante nas interpretagdes @micas sobre o prestigio dos terreiros, a0 qual retornarei adiante. Convém chamar ateng&o para o fato de que os dois terreiros apontados como mais importantes, apesar das diferen gas de trajetéria em relagdo ao legado original ¢ A sua identi ficagdo, t&m muito em comum, Além da antiguidade que lnes @ a~ tribufda, na diregSo de ambos permaneceram nos filtimos cinquen ta anos negros que teciam convivido com os Gltimos africanos da cidade e com eles teriam se iniciado no culto. Ambos faleceram 24 ha alguns anos atr4s, estando os dois terreiros no momento, sob a guarda de chefias recentemente confirmadas (20). Este fato nfo provocou, ao menos até o momento, uma reordenagSo da escala de prestigio dos terreiros estabeleci da pelos préprios chefes de culto. Isto n&o significa que reco nhegam, nos novos diricentes, a plen: capacidade ritual que sé sera comprovada como tempo. De um deies afirma-se mesmo que ainda "ndo tem Licenga para fazer trubathos" 0 que abriu espa go para que outros terreiros aumentascem sua clientela tornanéo se assim mais falados, 0 que ocorre “ que apesar de geralmente haver identidade entre o prestigio @) terreiro e o do chefe, em face da transitoriedade que marca as sucessées avalia-se a im port€ncia dos ditos terreiros em ternos dos antigos chefes. Com efeito eles continuam sendo referides como terreiro do finado Alexandre e terreiro da finada Bilina, SS com o passar dos anos © desempenho das novas chefias recém-empossadas ratificaré ou ribuida aos centros decul alteraré esse perfil de importancia tos afro-brasileiros da localidade, Trabaiharei pois coma vi so que os "de dentro” tém dos terreizos sob a chefia dos iri gentes antigos. Do mesnio modo, ao longs do trabalho, facgo uso do “presente histérico", transcrevendo falas de informantes j4 fa lecidos e a eles me referindo no presente. 6 - 0 Ideal e o Real Feito esse esclarecimento, explorarei um pouco mais os eritérios internos de avaliac&o de importancia dos ter, reiros analisando-os comparativamente em relag&o aos varios cen tros de culto, 25, : QUADRO IT Antiguidade dos terreiros segundo os dirigentes dos cultos Terreiro Anos de funcionamento 1 15 anos 2 08 anos 3 Ol ano __ 4 mais de 100 anos 5 mais de 50 anos 6 mais de 100 anos (seguramente desde 1906) 1 13 anos 8 15 anos 9 : 06 anos 10 oj. 10 anos Os terreircs 4 € 6, apontados cono os mais impor tantes, remontariam ao século XIX e nisto se diferenciariam dos demais. © que se observa porém é que a importancia de um terreiro nao se mede sé em fun¢gio dos anos de exist@ncia.Os tex reiros que, com grande dist&ncia, se seguiram ao 4 e ao 6 na eg cala de importancia enunciada pelos chefes de culto forano 7, que teria treze anos de fundado; o 5, que teria mais de cinquen ta; eo 9, que existe hd seis anos. Terreiros mais antigos como o leo 8, ambos com quinze anos de funcionamento,portanto mais antigos que o 7 e o 9, foram apresentados como "terreires fra cos", A ortgem ligada aos nagds e a ascendéncia africa na dos chefes foi outro critério usado pelos "de dentro" para atribuigdo de importancia aos terreiros. Tendo em vista que uma ascendéncia africana dire ta expressar-se-Ila no fendtipo e sobretudo na coloragSo da pe- le, apresento a seguir esta “marca racial” dos chefes de terrei ro. 26 QUADRO IIL Chefes de terreiro segundo a cor (21) > Terreiro Cor do chefe 1 Branca 2 Mulata clara 3 . Branca 4 _ Negra 5 Negra _ 6 Negra 1 _ Branca 8 Negra _ 9 Mulata 10 . Branca Dentre os quatro dirigentes negros, trés deles pretendem uma ligacio direta com a Africa, apresentando os seus terreiros (4,5,6) como continuidade de terreiros fundados por nagds. Consideram-se guardides de ‘santos da Costa*"que hes te riam chegado 4s méos por via de heranca familiar de antepassa dos africanos. Sobretudo a falecida dirigente do terreiro 4in sistia muito no fato de descender de avés africanos e ter sido crjada por uma nagd. "Neus quatro avée vieran da Africa, Mas a minha mie j@ era ovtoula nasetda no Brasil, Agora, eu fui ertada com a minha avd por parte de mame, se chamava Isméra, nome que necebeu no Brasil, Pela Afvica sex nome era Birunqué, Era nagd meemo.(22). 0 estabelecimento de vinculo estreito coma Afri. ca e 0 convivio com os africanos sio maneiras de proclamar co nhecimento dos segredos do culto, forga* ¢ assim legitimar-se pe rante o segmento afro-brasileire local onde crixd* € tido como mais forte do que caboclo.* 27 Do mesmo modo,o poder espiritual atribuido ao a fricano ou descendente deste seria maior que o atribuido a bran cos e mulatos, fata que pode ser interpretado como reconhecimen to do “poder dos fracos", poder atribufdo aos que est&o fora da estrutura formal de poder da sociedade (Douglas, 1976). De acordo com este critério émico de atribui¢gao de importancia se estaria reconhecendo aos chefes negros,descen dentes diretos de africanos, maior forca* devido 4 sua vincvla g&o com a Africa. Refsrindo-se A dirigente do terreire 4 seguem-se alguns depoimentcs onde se prociaman sua autoridade decorrente da ligagdo com a Africa ¢ a sua origem: "... ela fasta aqueles Banhos, com aquela forea dos orix&s, ajudava as peasoas @ nao preetsava de Bau (23). "Aguela mulher @ uma danada, Ja tomou “ndo | aet quantos consulentes meus. Ela tem muita forga* e advinhou o futuro deles, Pudera, Dizem que ela & afrceana (24). Maz, a mesma gnese nagé e ascend@ncia africana sio pretendidas pelo terreiro 5, e embora parcialmente reconhe cidas pelos demais: chefes de culto, a importdncia que se he a tribufam est4 muito aquém da do terreiro 4.e 6, e megito abaixo do terreizo 7, aque @ dirigido por um branco, Isto sugere = que uma suposta ou real ascendéncia africana por si sd nao confere importéncia, nem sequer quando vem associada & antiguidade,como @ 0 caso do terreiro 5, Compet@ncia ritual 6 um termo que usarei para en globar milltiplas atividades enumeradas pelos chefes de culto quando inquiridos sobre a significagio do "saber fazer ae cot sas", express&o por eles sada como indicativo da importancia dos terreiros. Aqui, a exemplo do que ocorreu quando se falou da ascendéncia africana do dirigente, a avaliagio do terreiro se faz muito em fungio das habilidades do chefe, da sua forca*. Forga* € um poder mistico e simbélico. Na termino logia dos cultos nagés da Bahia, como assinala Juana Elbein dos Santos, 6 chamada de axé*, sendo transmissivel por meios mate- riais e simbSlicos. Como todo poder, pode aumentar ou diminuir @e acordo com a atividade'ritual. Num terreiro, é 0 seu chefe o portador m4ximo do axé*, devendo zelar pela sua preservagdo © 28 desenvolvimento, transmitindo-o a novos filiados através da ini ciagio ritual (Santos, 1976: cap. 111). "er muitos filhos de santo*, congregar em torno de si um grande niimero de seguidores & uma decorréncia, & um si nal externo de poder. Avaliando os terreiros da cidade, todcs os chefes de culto concordavam que onde havia meior niimero de filiados ea nos terreiros 4 @ 6, ratificando desse modo as declaragées dos seus dirigentes a partir das quais foi elaborado o quadro que se segue: QUADRO IV Os terreiros e seus filiados, segundo os dirigentes dos cultos Terreiro Ne de filiados} Vinculo com o terreiro LL L Lavado 2 Nenhum _ 3 Nenhum | = 4 Mais de 100 | Confirmages e batizados | 5 _ 20 2 30 Confirmades ¢ batizados 6 Mais de 200 | Lavados, confirmados 0 feitos 7 15 Lavados e confirmados 8 pe Feitos 9 | 2 Confirmados_e feitos 10 : - Nenhum = A afiliag%o de um individuo a um terreiro se fas através de diferentes fases rituais que levam a uma vinculagao crescente com entidades @ como chefe que oc inicia. Ter capaci, dade para realizar todas as fases do processo - lavagem da cabe ga", confirmag&o* ¢ feitorio do sante* - indicio do conheci mento e da forga* do chefe de terreiro e por conseguinte, crité rio de atribuicZo de importancia ao centro. 29 Referindo-se aos terreiros que no dispdem de um corpo de fiéis em torno do chefe, um dirigente de culto assim se expressou: "f terretro de brincadetra. Rabe tambor vara o po vo brincar, NGo sabe de nada", (25) Registre-se que nenhum destes centros que presci dem de filiados figurou como terreiro importante na avaliacao @os chefes de culto, Bm contrapartida, como vimos, os centros 4 € 6 fg am indicados unanimemente como 0: que reuniam maicr niimero de filiados. Sobre 0 terreiro 6 1.2 uma informante: "Pra mim o mats importante & ela, Alewandre fasta os fithos, battzava,tiva a 3 va iad* do quarte, Aqui em Sergip ele @ Wand do Avacagu faz teso" (26). 8 A exclusao do terreiro 4 neste Gepoimento € hag tante significativa, Neste centro o processe de afiliagfo seque linhas diferentes do acima citado, que corresponde em suas li-~ nhas gerais ao famoso modelo jeje-nagé de candomblés baianos.No devido momento retornarei a essa diferenga, Por ora € importan te salientar que os demais terreiros ser&o avaliados, pelos ou tros chefes; em fung’o da maior ou menor aproximagdo a esse mo Gelo que, 4 excegio do 6, nfo chegam a executar por ompletoi27i, mas o terreiro 4, o “nagd puro", teria seu modelo préprio, dife rente, africano e portanto legftino:"9 Nagé xdo fas fettorio. ted sa de Nagd 8 dtferente™ (281. © reconhecimento de dois modelos diferentes e le gitimos de vincular fiéis aos centros de culto remete 4 oposi gdo fundamental entre Caboclo e Nagd. A competéncia de um chefe de terreiro se revela também pela eficacia dos trabalhos que realiza. Estes carreiam para o centro uma clientela em busca de solugo para seus pro blemas. Os terreiros 4 6, no tempo em que eram regidos pelos antigos chefes, eram unanimemente reconhecidos como os que a~ trafiam maior niimero de clientes. Mas a forga* de um chefe se mede também pelos xi tos que executa para cultuar as divindades, Realizar sacrificios de Bois & sempre lembrade come um ato onde essa forga* se ex pressa com vigor. 30 Membros do terreiro 4, que tentavam repensar cri ticamente suas crengas © praticas religiosas em face dos conhe cimentos recebidos em escolas (num caso em escola de nivel supe xior), confessavam sua rendi¢do ao Xang6 diarie da forga* de- co dos sacrificios de monstrada pela dirigente do cult por ocas bois. A propésito desta mesma chefe de terreiro relata se na cidade um caso ocorrido numa localidade préxima onde ela teria ido realizar une rituais a convite de ym filiado, Usined vos que nao simpatizavem com o Xangd, propos: talmente teriam soltado um boi bravo para para a¢abar com o xjuntamento de pes goas exatamente no momento em que iam inicia-se as Gangas sa gradas. 0 animal enfurecido investiu contra o assisténcia,porém a um simples sinal da chefe do terreiro, ter-se-ia prostrado 2 seus pés, 0 ocorrido 6 hoje repetido em Lararjeiras como uma de monstragio evidente da forga* da chefe de cuito, Na viso dos dirigentes de terveiro da cidade,ape nas dois chefes sacrificavam bois aos orixas, os dos terreiros 4e6, Apés a morte destes, um chefe Ge centro de um po voado préximo, cujo prestigio esta em franca ascensao, teria sa crificado um boi, fato que, muito recentemente, também ter-se~ ia repetido no terreiro 4, j& sob a nova chefia. De acordo com a teologia nagd 9 sacrificio entra na dinamica geral dos terreiros como elemento de manutengado da harmonia dos componentes do sistema, na medida em que restitul © redigtribui o axé* (Santos, 1976: cap. X). Relaciona-se assim diretamente com o sistema de forga* que no caso especifico se manifestaria inclusive ne capacidade de imolar animal de grande porte, detentor de grande forca fisica que se queda imével ante a forga sobrenatural da mae de santo. Em resumo, o que se est& tentando mostrar 6 que para os “de dentro" a importancia dos terreiros se explica, em grande parte, pela forga* dos seus chefes. 7 - A Importancia dos Terreiros Vista Pelos "De Fora" Os critérios de atvibuigaio de importincia usados pelas pessoas da cidade edo basicamente os mesmos des “de den- 31 tro", Remotendo & antiquidade, origem dos africanos e capacida @e dos falecidos chefes, a grande maioria dos entrevistados ele geu os terreiros 4 e 6 como os mais importantes, seguidos do 7, 5,10 e 9429).A escala de prestigio & muito semelhante & dos pais de santo, No entanto, uma difevenga se observa no ordenamento dos terreiros feito pelos "de fora" se comparado ao ordenamento feito pelos "de dentro". Na escala de prestigio apresentada por aqueles figura um terreiro, que embora nao seja antigo e nfo te nha sequer filhos de santo*, se destaca pela eficdcia magica que atribuem aos trabaihos* da sua dirigente. Bo caso do ter reiro 10, a respeito do qual diz uma entrevistada: "Hoje o terreiro mais famoso & 0 de Neuza, Fas mut to trabalho, Ela trabalha divetto, 0s terretvo® antigos, afamadoa, cairam muito com a morte dos donos" (30). Este seria um caso extremo pois o terreiro indica do como mais importante nao dispde sequer de um corpo de fiéis. Contudo, o centro que na cidade estaria mais préximo de dispu tar prestigio com os "tradicionais", segundo @ visdo dos "de fo ra" seria o terreiro 7, invocando-se sempre a eficacia dos tra balhos realizados como justificativa de sua importancia, que & também apresentada como decorrente de sua origem a partir do 6, Observa-se assim que, ao menos, para wna parcela minoritaria dos "de fora", que véem o terreiro sobretudo — como uma agncia alternativa na solugdo de problemas imediatos,a com pet@ncia na "feitura de trabalhos" 6 um dado importante a ser considerado. supondo a pouca experiéncia dos dixigentes recém empossados nes centros antigos, uma parte dos entrevistados,que constitui a clientela em potencial dos terreiros, dirige sua @ tengaio para os terreiros que julgam mais equipados no momento para aterdé-los em suas eventuais necessidades. Desse modo, a efic’cia m4gica ganha maior destague na avaliag&o que uma par te dos "de fora" fazem dos terreiros. £ também possivel que essa maior énfase que os"de fora" deram aos trabalhos*, coma indicativo é¢a importancia do terreiro, seja devido ao fato de julgarem que no fundo eu esta va mesmo interessada em saber do melhor terreiro para mandar £3 zer algum trabalho". através dessa via que geralmente ae pes soas com aparéncia de classe média ou alta se interessam pelos terreiros. 32 De qualquer forma, a tendéncia dos "de fora"a pri. vilegiarem a capacidade dos chefes em fazer trabalhos eficien tes 6 uwa maneira de explicar a importancia dos terreiros pela forga cus dirigentes e por esta via aproximam-se da visio dos "de dentvo", cuja escala de prestigio 6 ratificada em suas 1i mhas gerzis pelos "de fora". 8 - As izzdes do Sucesso Forga* 6 um termo que aparece com muita frequén cia nos \erreiros para indicar o poder do chefe como sendo um poder viiculado ao sobrenatural. 2 através dela que, em Gltima instance! ,ecutados em beneficio da clientela e o sucesso do chefe , se explica a nivel émico a eficdcia dos trabalhos ma gicos 2 de terr*iro em lidar com os orixfs, deles assegurando benefi- cos paia si e seu grupo de fiéis. A forga* de um terreiro 6 demonstrada pela habili, dade dc chefe em lidar com as entidades, o que implica om conhe cimente das tradicSes e segredos do culto. Mesmo quanto esta forga* reside em santos de pe- @ra* deixados pelos africancs, tidos como santos fortes* cuja posse representa forca em potencial para quem o possui, se nao se tem habilidade para deles cuidar, a sua foxga* resulta ina proveitada e ndo traz beneficios para ninguém (31). A forcga* est associada 4 competéncia para lidar com o sobrenatural. Essa competéncia pode ser adquirida através de aprendizado ou mesmo de “revelagio", o que supde a atribui~ g&o de um vinculo com o sobrenatural., (Ver capitulo IT). Desse modo os crita@rios de antiguidade, origem a fricana e competéncia ritual se interpenetram na constituig&o da forca* da chefia do grupo, e portanto na importGncia do ter xeiro, levando 3 conclusSo de que para os “de dentro” como para os "de fora" a configuracio do prestigio no mercado de KangS se giria de perto a atribuigSo de ligagGo do chefe como sobrena sural, seria portanto derivado de un lado do seu carisma e do vutro de sua tradicionalidade. 33 Enfim, seria na forga* do chefe que residiria a explicagdo para o sucesso do terreixo, Desse modo, forga*, ca tegoria teolégica, assume um status de categoria analitica na explicugiio do sucesso dos cultos. Alguns autores tém chamado atengdo para o fato de que mutos estudos sobre cultos-afro-brasileiros, ao tentarem explicer o prestigio dos terreiros o fazem exclusivamente = em termor, da teoria mica dos cultos, e desse modo se constituem numa =epetigao da ideologia popular acerca do Candomblé mais do que nz explicagSo dos mecanismos através dos quais os terreiros se revreduzem socialmente (Fry, 1977a, 1977b e Silverstein 979), Varios estudos, mesmo quando consideram que opre: tigio dos terreiros se mede também pela riqueza exibida sobretu do no: rituais piblicos, suqerem que sio os filiados, recruta dos entre as classes baixas, que sustentam materialmente o ter reiro, néo levando na devida conta a inserg&o das camadas = mé- dias e altas mesmo nos candomblés mais tradicionais eo que re presenta sua presenga em termos de recursos € prestigios para os cultoe. (Ver por exemplo, Carneiro, 1968; Herskovits, 1958; Bastide, 1971; Ribeiro, 19521. AnAlises mais recentes tém se preocupado em ver a presenga das classes médias e altas no Candomblé e o que signi ficam nio sé para sua sobrevivéncia mas tambér! para a configura @Ho do seu prestigio, Tomando como fulcre de sua an4lise a prépria fam: pis lia de santo, Leny Silverstein mostra como nos candomblés baiz nos da atualidade esta familia se amplia através do og&*, geral mente indivfduo de classe média, que uma vez iniciado "passa a fietfieia"” ou r se nelactonar d2 uma maneira ual com a nova fa nilia, ¢ assume obrigagées acarretadas por tat retactonamento”. (Silverstein, 1979:157}, Desse mado, ampliando as teias do pa rentesco ritual, a mie de santo estende seus vinculos para além das barreiras de classe e raga e recruta na classe média os re cursos materiais e humanos, gracas aos quais seu terreiro pode sobreviver. Nesta perspectiva © poder do chefe ¢ © prestigio do seu terreiro nao se circunscrevem 4 forga* do seu dirigente,mas se explica pela "conversdo de recursos sustats @ simbélicos em vantagens econSmicae”. (Silverstein, 1979:158). 34 Sem estabelecer entre 0 econdmico e o = simbdlico esta linearidade de causa e efeito, Peter Fry, inspirando-se em Ernest Gellner, analisa a economia dos terreiros vendo-a como um circuito em que a atribuig&o de carisrue¢ os indicadores de sucesso se relacionam circularmente através de um sistema de feedback em que um realimenta o outro. Se um pai de santo osten ta sinais externos de sucesso (muitos fillies de santo, cliente la, riqueza, brilho nos rituais piblicos, etc.} deve ser um pai de santo a quem se atribui muita forga*. Assim, os sinais externos co sucesso do chefe do terreiro reforgam o carisma que lhe & atzibuldo e este por sua vez redunda na ampliacio do circulo de invluéncia do terreiro nfo sé entre as camadas baixas mas nas camadas médias e altas da sociedade, de onde advém o dinheiro ‘a manter o brilho das festas e circularmente aumentar o status 2 as quaiidades de um pai de santo com muita forca* (Pry, 1977b}. Teoricamente, isto geraria terreiros imensos, mas na pratica esta expansSo & auto-contida por varios fatores. No caso dos terreiros que se auto definem como “puros" e tradicio nais, por exempio, um fator limitativo desse crescimento é a ne cessidade de controle sobre os filiados (e modo a garantixr-lhe condigdes de manter os padrdes de moralidade e a ortodoxia dos rituais que invoca para distingui-lo dos demais. Doutro lado a ajuda mitua que se efetiva através da mediaco direta da mae de santo tornar-se-ta dificil num terreiro muito ampliado, onde j4 n&o fosse possivel os contatos face a face. Na tentativa de entender a degcrigdo de status e prestigio a gruzos de culto, processo que nao se circunscreve ao mundo dos terreiros mas se desenrola na interacfio destes com a sociedade mais ampla, tentarei, nos capftulos subsequentes, ver como um terreiro capitaliza sua fidelidade & Africa e a auto~ identificacio nagd para tornar-se um terreiro de prestigio. 35, fi NOTAS 1 = Diversos pesquisadores tém enfatizado as dificuldades para saber-se 0 niimero exato de terreiros e sua localizacdo numa cidade (Ver vor exemplo Y. Mott, 1976:28). Mesmo trabalhan do numa cidade pequena, enfrentei alqumas dificuldaées so bretudo em relagdo aos terreiros menores © aos de sundagao recente, Também a mobilidade dos centros de culto, alguns dos quais t&m mudado para a capital, e a efemeridade de ou tros me levou a muitas apidancas infiteis seguindo falsas pis tas, Embora néo seja importante para 0s objetivos a cue me proponho saber o nfimero exato de terreiros da cidade, esse nimero é seguramente muito maior do que o que const. do fo jheto informativo sobre Laranjeiras, onde se ressalts sobre tudo a presenga do negro e segundo o qual haveria 9 centros de culto na sede do municipio, (Laranjeiras, turisms 1.1976, Folbeto editade com apoio da Prefeitura Municipal), le qual quer modo,o niimero de casas de culto resulta elevade em ter mos de Sercipe. Ndo disponho de dados seguros sobre 9 nine ro de terreiros registrados neste estado, Bm 1974 um jornal local (Gazeta de Sergine, 6.3.74) falava da existéncia de quase 1.200 terreiros no estado, todos eles filiados 2 uma das cinco federagées que funcionavam Aquela época. ldo tive condigées de apurar esse dado que me pareceu exagersdo. Ale gando que seus arqtivos estavam em fase de organizacdo duas @as Federacées negaram o acesso ao pesquisador, Nas outras trés Federacoes, tidas como menores estavam registrados, se gundo as fichas existentes no arquivo, 259 terreiros, 0 ano de 1974, A nocdo de mercado relicioso desenvolvida por P. _ Yourdieu (1974) & neste capitulo restritivamente aplicada as agén- cias de culto afro-brasileiro que oferecendo os mesmos ser vicos competem entre si Aa busca de fiGis e clientes. 0 ter mo cliente no contexto do Xango tem sentido restrito, indi gando aquele que busca servicos m4gicos para a solugio de problenas imediatos diferindo assim do corpo de fidis, (fi thos de santo*, filho de f@*), que mantém com o Xango uma relag&o duradoura de filiac&o e comprometimento. ver, & pagina 207 dados sobre os chefes dos terreiros, Vivaldo Costa Lima chama atengZo para o fato de que a suces gio das chefias dos terreiros se Zaz mais frequentemente sé qando a linhagem do santo do que a linhagen familiar (Lima, 1977). Nao sei se no caso presente havia correspondéncia en tre as duas. Em relacdo aos estudantes foi_pedida uma redagdo sobre “Ter reiros de Caboclo, Nagd, Xangd, Candomblé, Umbanda, Toré". Quanto aos chefes de culto, em se tratando de entrevistas , nao forneci nenhuma categoria e, quando necessario, usei ag categorias fornecidas por eles: Naga e Caboclo. C. S. Negra. Chefe do terreirc 6. 1980, Ent. 9B. M.N, Negra. Chefe do terreiro 5, 1980, Ent. 8B. I. 0, Mulata. Chefe do terrefro 2, 1980, Bnt. 10B. U.A. Negra. Falecida chefe do terreiro 4, 1973, Ent. 11a, 10 il 12 13 14 as 16 iy 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 Estudante da 7a. série do 19 grau. Redagio. Estatuto do terreiro 6. Diario Oficial do Estado de Sergipe. 5.6.1947, T.O. Mulata. Chefo de terreiro 2, 1980. Mt. 10B. Num total de 52 redagdes de alunos 14, ow seja,26%, tratam da disting&o entr: Nago e Toré. Es¢a visdo maniqteista que associa Toré ap Mal e Nagé ao Bem aparece nas radagdes que trabalharam sobre as diferen gas entre eles, Noutras, os cultos, inclusive o Toré,apare ¢em como ambivalentes, trabalhando para fazer o Mal e tam bém para curar as pessoas. Sienificativamente, 6 o terreiro nagé que trabalna mais em cima das diferencas pois ele @ que precisa distinguir-se ¢ delimitar bem claramente suas fronteiras. Ver quadro I 4 pag. 15, T. 0, Mulata. Chefe do terreiro 2. 1980, Ent. OB. C, Vv. Mulata, Chefe do terreiro 9, 1980. Ent. 4B. Solicitados a enumerar os terreiros mais importantes da ci dade alguns chefes de culto preferiram néo fazé~lo e os dé mais assim se pronunciaram: Terreiro 4 - citado oito vezes (quatro veres em 1° lugar, quatro em 29 apds o 69 € Oo 7%). Terreiro 6 ~ citaco sete vezes (quatro em1? lugar, duas em 2? apds o 49 ¢ uma em 3? apds 0 7°). Terreiro 7 - citado trés vezes (uma das quais em 1?), Terreircs 5 e 9 - cada um com uma citaclo (nenhuma em 19 lugar). A dirigente do terreiro 4 faleceu no final de 1974 e a sa ficou até 1979 sob uma chefia proviséria,que foi ent&o confirmada. O terreiro § apés a morte de seu antigo chefe, em 1976, ficou sob a chefia de uma filha de santo que tam bém morreu e foi substituida por outra no final de 1979. Em face da auséncia de objetividade na classificacio da cor das pessoas este quadro foi feito pela pesquigadora e¢ comparada com a classificacdo apresentada por chefes de terreiro, sem que se registrassem diferengas significati, vas entre as duas classificagées. U.A. Negra. Falecida chefe do terreiro 4, 1972, Ent. 1A, C.V, Mulata. Chefe do terreiro 9. 1980, Ent, 4B, 8.8, Mulata. Cartomante, 1973, Ent, 61A, C.v. Mulata. Chefe do terreiro 9. 1980, nt. 4B, I.0, Mulata. Chefe do terreiro 2, 1980. Ent. 10B. Os terreiros 9 e 8 declaram ter filhos feitos mas o proces so de iniciago n3o inclui um perfodo de reclusio como no 6, Segundo os seus dirigentes & “feito no pé do santo, ca tula e bola no pé do santo", ou seja diante do altar, no vai para a camarinha. 28 - 29 - 30 - 31 - 37 C.F. Branco. Chefe do terreiro 7, 1980. Ent. 73, Rescala de prestigio dos terreiros segundo os “de fora" foi estabelecida a partir do ordenamento dos terreiros 4 presentado por 22 entrevistados, aos quais pediv que enume rassem, em ordem de importancia trés terreiros. O resulta do foi o seguinte: ~ Terreiro 4 - citado dezenove vezes (dez em i¢ lugar, ocito em 29 e@ uma em 3°). Terreiro 6 - citado catorze vezes (sete em 1¢ lugar, seis em 20 e uma em 30). Terreiro 7 - citado cite vezes (duas em 1? lugar, trés em 29 e trés om 39). Terreiro 5 - citado seis vezes (duas em 1@ lugar, uma em 29 e trés em 3°}. ferreiro 10- citado quatro vezes (uma em 1° lugar, uma em 29 e duas em 39). Terreiro 9 - Citado trés vezes (uma em 2? lugar, duas em 32). Terreiros 2 1 - citados una vez cada um, sempre em 3? lu gar. A escala de import&ncia dos terreiros segundo os "de fora" é: 4, 6, 7, 5, 10, 9. Segundoode dentro” 6 4, 6, 7, 5, %. M.M, Branca. Cliente dos terreiros. 1980, Ent. 113. Com frequéncia as pessoas falam dos santos fortes* dos an tigos naaés,ora para acusar individucs que deles teriam sé apropriado indevidamente, oxa vara lamentar o desperdicio de que quem os tem sob guarda nao saiba deles cuidar. 1 II CAPITULO © NAGG FALA DE SI 1 - Da Histéria ao Mito Em estudos sobre cultos afro-brasileiros, espe- cialments sobre os candombiés nagés, a hist6riz dos terreiros e as genealogias dos seus dirigentes sao, por vewes, apresentadas como provus de continuidade com a Africa, o que atestaria que um deter...nado elenco de tragos culturais vivenciados no terrei ro constivui a mais legitima e pura tradigao africana. Tal postura metodolégica, na medida em que atri bui 4 tradig&o, sempre associada ao passado do grupo e, especi. ficaments, & sua origem africana, um peso muite grande na expli cagdo do presente, constitui-se num desdobramento da orientagao genética e de busca de africanismos, que marcos tio profundamen te a produgad antropolégica sobre cultos afro-brasileiros. Nessa perspectiva a "histéria do terreiro", que & sempre uma histéria oral, aparece como algo dado, sem atentar se para o fato de que aquilo que & retido pela neméria e apre “sentado no discurse como a “histéria do terreiro” constitui ver, sdes que,.ndo Sendo nécessariamente falsas ou verdadeiras, so elaboradas dentro de determinados marcos que induzem e orientam recortes e sélegdes do que serd realgado ou desenfatizado. Tais recortes se fazem em fungae dos interesses em jogo e dos objetivos visados, enfim dentro éa experiéncia so cial dos que contam a "histéria" hoje, pois o que & apresentado cono um simples discurso sobre o passado, termina agindo sobre ele, operando reconstrugdes, evocando identidades, realizando enfim um trabalho de produgéo de sentido que visa Jlegitimar a gSes ne presente, 0 estudo de Edmund Leach sobre as Kachin dos al. tiplanos da Birminia 6 a este respeito signifizativo. Ao descre ver facgdes de uma aldeia o Autor mostra como reportando~se aos acontecimentos de um passado mais ou menos recente, cada chefe de linhagem Kachin conta uma vers&o que situa a ele ¢ a seu gru po numa posigZo mais favor4vel na luta contre os outros. As di 33 ferentes versdes, embora assinalem elementos divexsos de grupos particulares, reconhecem aos outros o direite de ter suas histd vias préprias. Tais narrativas, que pretendem ser a histériadas lutas que se teriam desenvolvido no final do scalo XIX, esta riam na verdade sendo usadas como uma linguagem diferencial a- través da gual grupos rivais procuram legitimar-se. Apontam pa ra as tensdes e contradig&es existentes na sociedade.Constituem se nua "Zinguagem de discussdo e ndo de harmonia", A falsidade ou veracidade de tais relatos 6 irrelevante, o que importa é que o relato existe e justifica atitudes e agdes no presente, Neste sentido igualam~se aos mitos, definidos como relatos sq bre seres divinos, Como estes abrigam também inconsisténcias em suas narragdes, diz o Autor: “uinha conclusde & que a defintgao antropoligica normal de mito @ uma eategorta tradequada no que diz respetto aos Kachin, 4s narvagdes sagradas ~ ou seja, os relatos sobre os seres divinos que 840 amplamente conheetdos - nao tam nenhuma ca ractertatica eepsetal que os distinga doe rela- toe sobre os avontecimentos locais de vinte anos atras. Ambos og tipos de relatos véa a mesma fun gio: cua narragdo é-um ato ritual (em mex sentt do do termo) que justifica uma atitude conereta adotada pelo narrador no momento de conta-La" (Leach, 1977:299). Deste modo, Edmund Leach rompe com a separagdo en tre relatos sagrados (mitos no sentido tradicional) e os rela- tos que se pretendiam histéricos, mostrando como estes sao tam bém mitolégicos, na medida em que sua narragdo justifica rela gdes sociais no presente. Se numa sociedade tribal, de sistema religioso nico, como a dos Kachin, mitos sdéo manipulades como recurso po jitico, numa sociedade de classes e de miltiplas religides em concorréncia, mitos serdo criados ¢ usados com frequéncia como armas na luta pelo controle do espago religioso (1). Ao lidar com narrativas que s30 apresentadas co mo “histérias de terreiros", o que se pretende nado é negar apos. sivel origem africana de muitos desses centros de culto, que em alguns casos serve de matriz 4 elaboraggo dos mitos, mas chamar ateng&o para o fato de que tais narrativas sao marcadas pelas intengdes e interesses dos pais e mies de santo, que através de las visam a estabelecer um estreito ¢ expifcite clo de ligag&o - 40 com a Africa e, desse modo, apresentarem-se coms depositaérios de um acervo cultural que seria a mais pura e legitima tradigado africanz., O que quero sugerir é que aspectos deases relatos que ressalt:m a continuidade com a Africa n&o seria t&o enfatiza aos se, por exemplo, a "pureza" da tradigao africana nao fosse, de algua modo, valorizada por certos setores da sociedade mais ampla, ce maneira a permitir sua utilizagZo de forma vantajosa na lute pelo mercado religioso e em sua inserga na sociedade. © fato de grupos de negros buscarem a Africa pa ra refesenciar-se, como no caso em estudo, através da assungdo da idertidade nagd, sé poder4 ser entendido dentro da estrutura social politica e econémica nas quais se acham inseridos. Aqui as diferengas regionais deverao ser levadas em conta, Se ro Su deste a pr&tica religiosa tida como de origem africana 6 xecal cada nz Quimbanda, porque o que vigora so os valores da classe média bvanca inscritos na Umbandaf (Brown, 1974; Ortiz, 1978), no Noraeste 6 a pureza da Africa que 6 valorizaia através do Candomblé, Embora reste por inquirir sobre o significado dessa valoriiacéo da Africa efetuada no Nordeste, & vio que estas variagiies regionais no prestigio atribuido a determinados esto ques simbdlicos terminaro por influir na construgae das "hist6 rias" dos centros de culto. £ neste sentido que as "hist6érias dos terreiros} seriam histérias construldas, histGrias miticas,sobrecarregadas ae sentido, nao significando com isso que sejam necessariamente falsas e conscientemente. forjadas, mas no sentido que os aspeg tos realgados e recorrentemente invocados, come no caso especl, fico a ligago com a Africa e a pureza da tradig&o, assim 0 sao porque,além do aspecto cognitive, ha um espago possivel de mani pulagio, através do qual é possivel legitimar-s= ou auferir van tagens. Antes de passar ao relato apresentado como a"his téria do terreiro”", convém deter-se em alguns espectes que per meiam a narrativa da m3e de santo, mas como nao cst&o suficien temente explicitados podem dificultar o entendinento subsequen te. Trata-se da coexisténcia do culto de commnidade e do culto donéstico. 2 - 0 Culto Paméstico aos Orixds Embora no inicio deste século Nina Rodrigues t @ncia de um culto daméstico 4: nha registrado na Bahia a exis “i gido aos orixds (Rodrigues, 1935:60/62), na verdade, os estudes sobre religides afro-brasileiras tém se dedicado quase com clusividade aos terreiros e ao culto desenvolvido pelo pal santo e seus seguidores. Este fato fez con que Melville Hers’, vits, preocupado em identificar africanismos no Brasil, form lasse a seguinte indagag3o: "Reppecentard o candomblé que vem vendo tido ¢ mo a tntea expressdo valida das retengdes reli giosas africatas no Brasil, antes formas espe ciate e reatritas de organtszagées encontradas i083 meios upbanos do Dahomey ¢ da Nigérta, transplen tadas para os centros urbanos do Brastl? (...} 0 estudo intensive da religiao afrozbrastleiva nas dreas rurais nao revelarta retengdes de padrées africancs mats difusos, organiaados em culto ja miliary de divindades vreinterpretadas cono santoe ou mesmo com seus nomes africanoe, os espectai tas 36 sendo chamados para exeeutarem os ritucts mate compleacs e mats amplos quando estes devanm ger realtzadcs?" (Herskovits, 1954:24/25). Na mesma linha de trabalho, Roger Bastide, ao es tudar “as religides africanas no Brasil", tana como pento de partida o dualismo que as caracterizaria entre os povos do Col fo da Guin, set. foco de origem, onde se apresentariam como re ligiZio de linhagen e religido de comunidade para concluir que no Brasil, apenas esta Gitima teria persistido, pois o regime de escravidéo fizera com que se rompesse a ligagao orixa linha gem masculina, que constituia a base da religifo danéstica da Africa. Recorrendo contudo a alternativas culturais africanas mais adequadas para sobreviverem nas circunst4ncias brasileiras (tranemissSo do orixd pela linha feminina), o autor admite a persisténcia esporédica de elementos desse culto, mas incoxpo- rado ao Candomb1é, ou seja, ao culto de camunidade . (Bastide, 1971: 86 89). Sem a preocupagao de estabelecer vinculagao gené tica, ou de considerg-1lo cono scbrevivéncia de alternativas cul turais africanas, uma vez que interessa-me vé-lo em sua realida dee significagao atuais, o que encontrei atualmente em Laran jeiras e no relato da mie de santo referente ao passado € que, 42 ao lado do culto coletivo aos orixas, realizadc por um pai ou mae de santo ¢ seus seguidores, invocando beneficios para toda a comunidade, existe paraielamente um culto daméstico também di rigido aos orixds. Na atualidade os componentes tisicos deste culto gio “alumiar e dar Zgua aos santos" ou seja, wanté-los sempre no claro, iluminades por luz do sol,de velas ou luz elétrica, € conservar vasilhas apropriadas com Agua junt» a eles, A realiza gfo destas tarefas no exige o concurso de vn especialista, nem mesmo vinculag&o direta ao Candomblé, havencc “zeladores de san to" que nem sequer sSo filiados a centros de culto afro-brasi leiro. No entanto, esporadicamente, quase setpre de sete em se te anos, a presenga de um pai ou mHe de sant» se faz necessaria para a realizagao dos ritos de “dar comida 20 sganto"*, que in cluen além dos sacrificios de animais e preparo adequado — dos alimentos, toques* e dangas, raz&o pela qual o pai ou mae de ganto se faz sempre acompanhar do seu grupo de fiéis para reali. zar o festej6", cujas despesas correm por conta dos responsa- veis pela guarda dos santos, Esses altares damsticos, cujo niimero vem sofren do wn crescente processo de retragio, (2) abrigam "santos da Costa"*; em geral pedras, que sao tidas como santos da familia, cuja posse ¢ encargos se sucedem, em yeral, segundo as linhas diretas do parentesco consanguineo - pais, Zilhos, netos. Para as pessoas que receberam como heranga a guar da de um desses altares domésticos e nfo estGo dispostas a assu mir os encargos do culto nem simplesmente abendoné-los, esta UL tima tida como solugio perigosa e reprovavel, hd duas alternati vas socialmente aprovadas: 1 - romper definitivamente con cs vinculos que os antepassados estabeieceran con os orixds mediante a realizagao de rituais que exigen a participagdo de um especialista e resulta em gastos mais cu menos elevados (3), ou 2 - conseguir a aquiesc&ncia da mie de santo pa ra recolher os santos ac terreiro, livrando se desse modo das cbrigagdes do culto diario que s&o assumidas por aquela, cabendo porém 43 ao “dono do santo"* todos os encargos econd micos do culto(4). Por ora estas informagées sAo suficientes para clarear certas passagens da narrativa da mae de santo referente &s origens do terreiro. 3 - O Relato Sobre as Origens "J@ naset pra ser dona das colénias de Santa ar bara pela Africa. Quando e¢ acabasse os africa nos eu era a dona. Quando ou era pequena ele tava eu na cabega dentro dum cesto @ sata da do na voda.* Ieto era 1d na easa de Ti* Herc: no, que o terreire era 1d, Eu nao me lembro to. Eu era pequena. Vovd era quem contava. Li Hereulano era um nagd, mas o primetro begs. 0 fundador mesmo do terreize dos nag3 aqut de ba ranjetvas, fot Ti* Henrique. De Ti Henrique pas sou pra Herculano, @ dele pra eu. Quer dizer que eu ndo cou africana, ja sou neta. Neta de quarro avd africano nagé. Sou ertoula legitima. Ti Henrique, o prtimeiro beg*, eu no aleancet. Ele era malungo* da minha avd. Ele fundou o tex retro na rua do Cangaleizo, Primetro era ld. qué até vovd morcu tvinta e eineo anos com a mutner dele, Vovd era eserava no Tanque da Moura (fasen da) @ depote ficou vidva e veto e'enbora pra La ranjeiras, e morou 1a. Que quando Tt Henrique morreu, o terreiro ficou pra Tt Herculano, que mudou ele pra Comendaroba, Agora os santos de Pi Henrique ficou na casa daz rua do Cangateizo. A vidva, a finada Caetana, era quem zelava* junto com a minha avd. Depota que ela morreu, a filha Judite tomou conta dos santos que era da familia, mas 0 terreivo ficou pra Tt kerculano. Eu nao aleancet Ti Henrique. Agora Ti Herculano ex aleancet. Eva um afrioano de muita eténcta. Um nagd grande 2 forte que morava 1d na Comenda roba. A casa eva bem grande e fécava no meto de um sitio. Bra gente de posse. Tinka salina, crta va muito pores. A gente dangava era dentro da oa sa. Pinha um ealao enorme. Cabta todo mundo. & nesce tempo tinha era muito fttho de santo. Tinha ainda africano. Bu aleancet: Tia Lucinda, Ina pe ta Africa; Rufino, um nagd que morava na baima do Calumbt; Tt Ovd, Linha muito, & porque eu nado me lembro. Depots que festejava ld, que fasta o ‘eorte do inhamet dat ta festejar neseas casa to das. Ia pra Riachwelo, pra Socorro, Divina Pasto pa (cidades visinkae) que 1d tanbam tinha nago que tinka santo, e Ti Hereulano era quem festeja va. Ws ta tudo, Wo Riachuelo era Ta* Lucréctay no Socorro Ta* Luiaa, Era mutto trabalho. Hoje ¢ 44 que se acabeu tudo, 36 restou nés. bu brinquet miito na casa de Tt Hereulano. Depote sat pra trabalhar, pra me empregar ¢ quando voltet fot pra tomar esta desse lugar. Que esse lugar fi eou pra min @ pra Manata, que eva filho, fitro no, era neio de Ti Henrique. Ble num quia, 24 fiquet s6. Que até que ele nao queria mate cut dar dos. sanso do avd, eu trouce eles pra ed pro terretro. quando & tempo de festeje eles aju dan, dao dimhetro, mas quem aeta® sou eu. Ta tu do at no pegé*, og santos de Ti” Henrique, o prt “metro beg*. SGo santos legitimos afrtcancs e mut to fortes"(3). 7 Para melhor visualizaglo reproduzo o relato so- bre as origens num diagran2, o qual, acrescido de outras infor magdes, registra as geneaicgias dos chefes que se teriam sucedi do na chefia do terreiro desde sua fundagSo em Laranjeiras. Genealogia Parclal dos chefes do Terreiro Nagé avertani O=A caly Bastise convengées ULMER CHEF DE TERREIRO HOMEM AFRICANS. CASAMENTO LUNKADE sucessad 0a cHEFIA 50 TERRERO FrUAcho, LINHA DE SUCESSHO 005 SANTOS tnuaos DE. FAMILIA cess RELACRO DE convivéncié 45 © diagrama permite observar que a sucessio da che fia do grupo de culto, culto de comunidade, no segue as linhas do parentesco consanyuineo, regendo-se talvez por critérios de parentesco ritual (6}, enquanto que os santos de familia, objeto de culto doméstico, se transmitem seguindo as iinhas de sangue. Doutro lado mostra como as duas linhas de sucesso terminam por convergir para a mae de santo, reforgando assiri sua ligagdo com a Africa, B esta ligegfo que & enfatizada ao Icngo do reltato que comentarei a seguir. Através dele a m&e de santo estabelece uma vinculag&o direte do centro de culto coma Africa ao apre sent&-lo como contincidade de um terreire fund:do pelos nagés.A presenta-se a si mesm) como predestinada a suc.der os africanos na diregdo do culto cuando estes se extinguem. Essa predestina ¢do teria sido por eles reconhecida e sancions a através de ri exlto. Huma te: tos que a destinavam ao exercicio da chefia 4 ra onde nao mais existem africanos, suas orige s nagés, que re montariam aos avés maternos ¢ paternos, sao in ocadas para ates tar sua proximidade genealégica em relagdo aqu:les. A presenga da Africa 6 ainda realgada pelo fato de que a histéria dos ancestrais da mie de sano, a histéria de sua familia,em diversos momentos, se confunde «om a prépria his téria inicial do centro de culto ¢ dos fundado:-es deste. Os vin culos se estabelecem através da avd que teria «indo na mesma le va de africanos que o fundador do centro,e nese teria desenvol vido longa convivéncia, participando nfo s6 do culto da comuni dade, mas tornando-se uma auxiliar no culto de: santos de. fami lia do africano que dera origem ao terreiro. Essa ligacio se renovaria no presente através da chefe de culto, gue no apenas dirige o terreiss original mas também se transformou na guardia dos santos de familia do funda dor do centro, que sio rec¢lhidos ao terreiro tevide ao descaso dos seus descendentes. A me de santo, que teria tido acesso & chefia do grupo de culto por predestinacdo, aventa sua forga prestigio perante o segmento afro-brasileiro local ao recolher os santos de familie do fundador do terreiro - “santos legiti nculos estabelece moe africanos @ muito fortes", e assim mais vi) com a Africa. Por essa via a narrativa liga 0 presente ao passa do e remete i Africa, Esta 6 a fonte de legitimidade do terrei, ro e de sua dirigente. & 4 base da idéia de continuidade e fide 46 lidade 4 Africa que se constréi a “pureza", sinal que o distin gue dos torés “misturados" da cidade nos dies de hoje, e confe re ao terreiro e 4 sua dirigente um: posigdo de destaque na es cala de prestigio em que sio ordenaios os centros de culto de segmento afro-brasileiro local, Desse modo, a “histéria do terreiro" nfo se esgo ta na simples reconstrugdo de um pessado mais ou menos remote, que se situaria na segunda metade ¢2 século rassado e inicio do atual, mas se constitui num mito de africaniéade frequentemente invocado para legitimar situagées € relagies sociais do presen te. 4- A "Histéria" da Mae de Santo Ao longo de sua eXistincia, nas Iutas que teve de sustentar para conseguir firmar-se na chefia do grupo de cultc e manter o prestigio do seu terreiro, a recorzéncia a elementos desse relato & uma constante. Sendo uma narrativa que — remete sempre A Africa, nfo se pode perder de vista 2s muitas vincula gdes da mae de santo com o mundo branco, vinculagSes que permedam toda sua histéria de vida, e por esta via verceber que suas re presentacées de Africa se constroem num mundo dividido entre brancos dominantes ¢ negros dominados. 4,1 - "Bapai Branco" Dizendo-se descendente de quatro avés africanos, teria nascido Umbelina de Arafijo, comhecida como Bilina, aa ‘ci dade de Laranjeiras, n3o sabendo precisar contudo o ano do seu nascimento, Assim, sem ter nogdo exata dos amos que se passaram e@ preocupada em demonstrar que nao alcangou a escravidao,afirma sem muita convicgHo ter ora 65 ora 68 anos, idade muito aquém daquela que indica a sua aparéncia fisica e o testemunho de va rias pessoas do seu grupo. Referindo-se a ela, um dos informan tes, que se diz da sua idade, assim se expressou: "a eseravidio se aeabou num ana e née naseeu no outro" (71, Deste depoimento aproximam-se ruitos outros, inclusive alguas da prépria Bilina, levando-me a concluir que,ao morrer,teria aproximadamente 87 a nos, tendo nascido por conseguinte no final do século, quando se processava a substituigao de ordem escravocrata pelo regime - 47 de trabalho livre e Laranjeiras vivia a fase final do seu perio do dureo, A sua mae, a crioula Carolina,conkecida por Calu, fora escrava rural, sendo vendida para servir de ama de leite de um érfZo recém-nascida, vindo ent3o morar 1a cidade de Laran jeiras, trazendo consigo o filho que tivera do wtigo senhor, "Chamava-ee Mulate e era milatinko porque era fttho do Senhor." Na nova condig&o de escrava urbana pertencente ao tabelido Manoel Joaquim de Atafijo, {8} morava en casa do seu no vo dono, amamentando o recém-nascido e ajudanio a criar os mui tos filhos do tabeliae recentemente enviuvadc. 44d pegou a ter amtaade fora, iorava na casa do senkor ¢ tinka nde pela rua" diz Bilina, queronio com isso indi car a auséncia de vinculo matrimonial entre = sua m&e e o negro Bastigo, o seu pai, Este era um crioulo, escrive do Padre = Ma- 06 filhos = dos noel Pontes (9) ¢ texia dado 4 negra Calu qu quais Bilina era a terceira. Assim, Calu teve assegurada duran te certo tempo a sta profiss&o de ama de leit:, com mercado ga rantido na aristocraética Laranjeiras do sécuin passado, exercen do-a como eserava de aluguel (10) e mais tard: por conta pré- pria, quando conseguiu a sua alforria. Calu "ndo sabia nem fazer feiva, 6 iar de manav 2 cut dar doe meninoe, Dava de mamar > ezse povo toda aqui da rua. 0 povo gostava dei: 2 sempre agrada va ela, de manetra que ela com dinketro que da va de mamar, comprou essa casa 4 conprow outra na rua de 14" Mesmo assim continuava a Morar na casa do antigo senhor, onde nasceram @ sé criaram os filhos, juntos com cs do tabeliao a quem chamavam "papai branco". "E 03 nomee dos ftthos de papa® dvanco era o nome da gente tanbim, Ele botou ¢ n°3 22 assina Bilina de Araiijo, Glieépta de Avaiijo. deles tambam tam Avaijo; mas deles ld, filh. de casat e nds de eriagha, Bom, e fteamos tudo a!\. Papat betou na escola Glieera, Manuel e Maria ‘truaoe de Pilina). Ey tinka vontade mas eles ndo f tavam, Agora esse pessoal afvieano, fazta questar mais que a gente aprendesse costurar, ¢ Ler ndo” Assim devido a interferéncia da avd materna, ima nagS que "no gostava" de estudos, Bilina, ao contrario dos seus irmios, nao 45 frequentou escolas. Mais tarde, quando empregada doméstica,pedi ria aos patrées para lhe ensinar a escrever e hoje diz: “eu ae sing 0 nome, mas pouco.” Na casa do tabeliao morou Calu tom seus filhos en quanto ele viveu. Foi o pai que eles conheceram pois,como diz Bilina: "RBastido (pai bioldgico] munca gastou por nds (../ quem dava tudo era papat branco. Que quando ele (papat brance) morreu eu ftquet com 12 anos. F pa pat branco tinka mareado um sttia at pra dar a na mae @ num passou o papel ainda, num sabe? Ele mor veu de repente." - Ent&> og filhos.do antigo senhor teriam considerado sem valida de tal doagdo e a negra Calu ressentida com os descendentes do tabeliZo abandona a casa, negando-se a concordar que um dos fi lho: al permaneca como empregade doméstico, ¢ se muda com todos eles para a rua da Cacimba, localizaéa na periferia da cidade. "At mamie botou nde tude pra trebathar porque ndo tinia mate papat pra dar. Papat dave de comer, de vestir, de eu do, Ele morreu, pronto," Conquanto a experiéncia vivida ror Bilira em sua inffncia seja marcada pela individualidade da sua histéria de vida, ela se torna sociologicamente significative por encarnar certos aspectos fundamentais da sociedade traéicional brasilei ra no momento de transigio da sociedade escravocrata para a 50 ciedade livre, em que o sistema de relagdes snciais engendrado na velha ordem se projeta e persiste na ordem emergente. No relato da informante percebe-se com bastante nitidez padrdes de relacSes sociais vigentes aa sociedade urba na pds-escravocrata do final da centiria passela, muitos dos guais haviam sido j@ registrados por viajantes em pocas ante- riores e analisados por diversos cientistas scciais, sob enfg ques diversos (11). A estrutura da familia patriarcel que aqui apare ce sob a forma de “familia extensa", a qual além do niicleo cen tral constitufdo pelo senhor branco e seus filhos legitimos 2 grega a escrava e os filhos desta, teria permitido que — estes fossem criados juntos com o Zilho do senhor, que frequentassem escolas, que por extensSo recebessem o nome az familia, enfim, 49 que vissem no senhor 0 pai. De um lado essa forma de convivén cia social, vigente sobretudo entre senhores e escravos domésti, cos, gerava solugées cue podiam resultar na emancipagfo do es eravo, doutro produzia formas mais refinadas de dominagZo do ne gro, ¢ o tratamento benigno, cordial e paternaiista apresentava se como solucdo adotada quando o comportamento social do escrz, vo se exprimia segundo as expectativas herdadas da tradi¢do - 9 bediéneia, humildade e fidelidade (Ianni, 1962:157/168), Talvez tenha sido por fidelidade que a antiga oscrava continuou mora do com seus filhos em casa do ex-senhor mesmo depois de ter coz seguido a sua alforria. Desse modo, em troca do trabalho seu - dos seus filhos, tinha assegurados para si e sua prole a more- da, a alimentag%o e a protegdo do antigo senhor. A projegio desses padrdes de comportamento, vigen tes na sociedade escravocrata, fez com que Bilina, apesar = ¢o nado ter conhecido a escravid3o, tivesse sua socializagio de fancia e parte da adolescéncia vivida num arbente engendrado la sociedade escravocrata, na qual a figura do senhor represen ta para ela e¢ sua familia, a seguranga e a.protegio que desap2 recom no momente em que se d& a rotura coma classe senhoriai aqui representada pelos descendentes do tabelifo. Este rompimen to motivado por quest%o de bens, impele a familia de Bilina = = tentar a vida 3s suas prdprias expensas sem o apoio e a prote gSo de que até ent&o gozava, Em contrapartida, @ como repres. 8 lia, a negra Calu se sente desobrigada de emprestar os filhos pata servirem de empregados aos descendentes do antigo senhor. Rompera-se,por assim dizer,o sistema de solidariedade até ents existente, ¢ uma nova fase de vida se inicia para a ex-escrava e seus filhos. 4,2 ~"Yovd Nag" Na primeira fase de sua vida, que transcorre num ambiente dominado pelos brancos, trés personagens emergem desta cando-se entre os demais. A mie crioula, cuja profissdo aproxi mava-a cada vez mais do universo cultural dos brancos; 0 pai, n&o o pai biolégico, mas o pai de oriagdo, representante da cultura dominante @ oficial, e a avG materna, uma africana nagd, emponhada em fazer da neta uma continuadora des tradigées reli giosas des seus ancestrais. Esta 6 apresentada como figura nu clear na formag3o da futura mie de santo (121. Chamava-se Tsmé ra, nome que recebera no Brasil, pois pela Mngua nag o © seu . 50 nome era Birunqué, Quando crianga, Bilina, que de todos os = fi Ihos da negra Calu fot o que mais se aproximsu da avé materna, @iz que owviu dela a histéria da sua vinda de Africa e quando ela a contava, "chorava se tembrando da Terra”. Separada de sua familia nuclear, teria embarcado num navio com destino ao Bra sil, no sabendo precisar o local de desembarque.Recorda-se con tudo, pois sta av Ihe contara, que este fora cercado de precau gées, sendo os negros escondidos dentro de barris, o que me le va a concluir que chegow ac Brasil quando legalmente j4 estava proibide 0 traéfico negreiro. Fora vendida para servir de escra va rural no Tangue da Moura, Junto com o marido fez roga, pois Wagd §& que eabe plantar tnhame", e na fazenla presencia a morte do seu marido, “Avertant na linguagem dz Africa," o qual morre pisoteado pelo cavalo do feitor que, desse modo procurava intimidar o negro que era "“quebrado" e¢ nao 0dia trabalhar, Mais tarde a "justia desenterrou o corpo que havia sido enter vado na bagacetra" e Isméra, algum tempo depois, compra sua al forria e vai morar em Laranjeiras, onde residiam alguns dos seus tu at : , malungos;" Af passa a frequentar o terreiro d2 Henrique, o orga nizador da religido dos nagés na cidade, e esse convivio se pro longa por mais de trinta anos, ao fim dos qua:s vai residir com a filha Calu, mae de Bilina, quando aqueia ab:ndona a casa do antigo senhor. Desde muito crianca, Bilina acastumou-se a andar com a avé e junto com as "outras meninas abric a roda dos fez tejos de Xangé", Seria o inicio de um longo processo de aprendi gagem que haveria de transformi-la um dia em nde de santo, fun gdo para a qual teria nascido predestinada e zara corresponder a essa indicag&o dos deuses, a avé Isméra nado poupow -esforcos, comegando por impedir seu ingresso na escola, Decerto muitas ou tras fontes de informagdo atuaram na visao de Africa da mae de santo, mas as reminiscéncias e informagdes da sua avd sao apre sentadas como as mais significativas, "Vou') me falava mutto da terra. Contava as histd pias de 1a, A Africa & grande, 22m _mutto lugar & muitos povos diferentes: nagd, nal’, jeje, jend, congo. Era tudo da ifpien, Agor quer dizer que de varias classes, Aqut nao tem Avacadu, Laranjet ras, Réachuelo? Pote la tambée 2 aesin, Tem mutta slugar. A Africa % grande e rtew, Buzo, inhame e@ esas coteae tudo do Bracil, eva de la, E os afri anos sabia onde tinka pérola, ouro. E quem eabie 2 descobria essas coisas ere na Afrtea. Por que é que nao tem mate ouro oomo tinha? Porque quem des eobrta tudo era os africanos(...) Pérola, ouroy 51 diamante, tudo eles sabia, Era povo que tinha mud to ouro, Eeaes busos da Costa ta &.dinheiro." ~ Mas, a riqueza da Africa nao & apresentada © como simples efeito da natureza, nfo é devido apenas 4 presencu dos metais e redras preciosas, mas ao trabalho, No universo mental de Bilina o africano & sobretudo um povo trabaihador. "Tad eles trabathavam, Bra povo de dinheivo. Traba thava até com oc filhos nas costa, trabathendo, fa nendo dinhetvo. Nao era pove de se encoetar. Tudo velhinho, mas trabathando, Nao vé a gente com a ensada? § pra enainar tudo a tvabalhav.A tuto pra nado pedir eenola. 83 pedir quando ndo pudev. inst nar doe pequeno aoe maior, Wo Brasil mesma, os a= fricanos era um pescoal que sabia trabatha’.B mor ria e detzava dinhetro (...) Porque os afeicanos sabia trabalhar fot que desceram pro Bracti no ca tivetro. Yieram furtado que oe francés e@ inglés enganaram eles 12 com fumo. Eles eram mats assim com negdeio de fumo que 1 nfo havta. Euganava eles, grande, vequeno, pegava tudo botava no ba» co, quande chegava no Brasil vendia, Por ai fot que se formou 0 eativeiro, Mas ex nao aleancet es ee tempo", (13) ~ Nas representagdes de Bilina o trabalho & concebi, do ambiguamente, Ser trebalhador @ caracteristica éo africano e como tal o trabalho & valorizado como elemento de riqueza. Mas © trabalho que idealmente permitiria ao africano, quer na Afri ca quer no Brasil, "ndo pediz" e “ter dinheiro", tornou-se = a causa da sua escravizag&o e por conseguinte, da alienac&o do produto do seu trabalho e da sta pessoa, pois trabalhava subjx gado e sem ter dinheiro. Paradoxalmente & esse trabalho do ¢s exavo que 8 celebrado ritualmente no terreiro. Incluindo-se no ciclo de festas do “corte do inhame"*, rituais que marcam a a+ bertura do ano litirgico do centro de culto, xealiza-se o“adibo xé pegar"*, 0 rito da enxada. Curvada sobre uma enxada de cabo curto a me de santo desenvolve uma danga movimentando o instru mento como se estivesse revolvendo o solo. Assim age durante al gum tempo, até que passa a enxada a um dos filhos de santo que @4 continuidade 4 danga mimética "do trabalhar", enquanto a mae de santo se posta ao lado, com um chicote de couro na mao.Assin se sucedem todos os fiéis e cada um deles apds ter dangado de volve A dirigente do culto a pequena enxada, e esta a entrega a um cutro membre do grupo, mostrando-lhe sempre o chicote — como se estivesse a alerta-lo. 52 A monotonia da repetigSo dessa danca imitativa, que ser4 gradativamente executada por todos, & quebrada por al guns fiéis cujos movimentos fogem ao padrfo acima descrito. Ao receber a enxada, ao invés de ir "trabalhar",o dancarino mostra as m&os alegando que est&o doloridas,resmunga, encosta-se como se estivesse canssdo ou maneja o instrumento oo extrema lentid&o. Em suma, a coreografia por ele desenvolvida uma representagio do negro que n&o quer trabathar, Isto provoca a reag&o da mie de santo que se pée a chicote’-lo para induzi~ lo ao trabalho, Eo fiel, a xepresentar o papel de "negro pre guigoso", sempre sob ameaga do chicote, puxa as criangas entre gando-Ihes a enxada para que executem o trabalho, A certa alt xa, algumas moedas sfo jogadas no ch4o ao alcance do “negro pre guigoso" e ele as recolhe, Prossegue a encenayao por algum ter po provocando o riso dos presentes, até que o “negro rebelde” termina sua danga diante da mie de santo, pedindo compaix&o an te a ameaga do chicote. Os fiéis se sucedem na roda, comportando-se, po- rém, quase todos, como se estivessem a trabalhar sem opor res. t€ncia. Poucos vivem o papel de "negros preguigosos". No ental to, a sta danga se alonga, divertindo e servindo de exemplo aos presentes. Embora rito andlogo tenha sido registrado em anti gos candombiés da Bahia como um rito de purificagdo (14), no terreiro nagd de Laranjeiras ele & apresentado como um rito pe dagégico: "... 8 pra enoinar a trabalhas, Prabalhar até ndo poder mais, Dos menince ace grandes. Trabathar. Yiver sempre trabathando. $6 pedir quando néo py der mais (...) Wao v8 0 tempo de cativeiro? Pots @ Zeoo. Bu Pies com o ehicote, porque nos tempos ve Lhos era assim. 9 senhor ficava com o mangud.Aque le que & mats ronceiro leva mats curriada prd a= prender a trabathar", A mie de santo, no somente desempenha o papel de feitor como utiliza explicitamente este termo para designar-se a.si mesma nesta encenagio do trabalho que 4 transposta para 0 passado, para o tempo do cativeiro. Este & que 6 celebrado no terreiro, transpondo de forma direta para o campo ritual a es trutura da sociedade escravocrata: a me de santo porta-se como um feitor a servico dos brancos, enquanto os filhos de santo re 53 presentam os escravos. Mas, so mesmo tempo, através dos motivos invocados para a realizagdo do ritual ultrapassa-se a escravi aio e atualiza-se o rito cujo objetivo expresso é “ensinar a trabalhar para nao pedir esmola" e “para ter dinheiro", 0 que nao @ contraparte do trabalho escravo. Ter dinheiro é, no minimo, uma forma de sobrevi. ver sem ter que pedir esmola, simbolo maior de degradagao e de desqualificac’c social. Num mercado concorrencial, trabalhar é a forma de consegui-lo (15), mas o modo concreto pelo qual se pretende induzix as pessoac ao trabalho remete ao universo ¢s cravista, do trabalho por medo da repress3o expresso pelo chicg te do feitor. A representag4o sobre o trabalho € assim ambigua mente construfda com elementos da ordem burguesa e elementos do mundo escravista (16], Este era o mundo que se desmoronava quan do nasceu a mie de santo, mas o mundo no qual viveram seus avés © sua nde, cujas experiéncias vividas ou simplesmente represen tadas indicam duas faces da escravidio: de um lado as explica cdes de vivéncia de sua m&e, escrava urbana doméstica, que real gam o paternalismo, de outro a experléncia vivida pelo seu avd materno, morto pelo feitor e enterrado na bagaceira, que enfati za a opressio e a violéncia, Suas representagdes sobre o "cati, veiro" so assim ambigquas ¢ a adogSo de um padrfo de conduta ou de outro parece algo que fica a depender das idiossincracias dos senhores: "tinha muito senhor matvado que gostava de judtar os escravos, mas tinha outros que era bom". Se para explicar ‘a es¢ravidio do africano recorre ao trabalho, para explicar a aboligio da escravatura = vale-se de sua vivéncia pessoal marcada pelo paternalismo: "Dona Isabel, a fitha do ret, tinha uma cattva que lie dava de mamav e pedia que tinha vontade de forrar ce malungo* dela, o¢ companheiros. E vona Teabel prometeu e entdo deu a alforria ese aca bou o eativetro”. 7 Terminara o cativeiro, mas no exilio a que os for gara a escraviddo, persistiam os africanos, tentando fazer dos seus deacendentes depositarios das tradicdes culturais da “TER RA", a terra dos seus ancestrais, a terra da riqueza, a terra a do trabalho. B para Bilina e sua familia, apés a morte de pai branco” o trabalho fora do circulo doméstico se tornava uma necessidade imperiosa, imprescindivel 4 sdébrevivéncia. 4,3 - 0 Trabalho "At sequtmoes pra trabathar, Mamde diase que nao podta ta dando de comer e de vestir a tants ftitho e tudo pegou a trabalhav, Peguetame enpregar sen do ama de menino. 0 primate dinheino que ganheT sendo ama de menino fot doie mil réte por nes. De pots a patroa enstaou a cosinhar, dat que quando aprendi fui queimar panela, ser eoainhetnc' Laranjeiras j& era no inicio do século ume cidade em decadéncia. Isto se refletia no mercado de trabalho ¢ na re dugSo dos salarios dos empregados, e assim foi que: "endo que ae cotsa ndo tava boa, me chameram pro Aracaju, ful me empragar no Avacaju ganhavco 10 mil réis por més pra costahd. Passet ait ris anos e fut pro Rio de Janeiro, & l& fiquet. Passet trés anos @ nove meses no Rio de Janetro. Tava ia quan do mamde ficou doente. Dat eu vim porque mange disse que nao queria morper sem que nao me visse, mas quando eu cheguet ela j@ tava enterrads.” Deixara-lhe o encargo de dar continuidade zo ies tejo de Taieira*, obrigagao que teria assumido como promessa no passado. Volta ao Rio de Janeiro, onde vivia empregada com uma familia migrada de Laranjeiras, e 14 permanece até que é chama da para assumir a dirego do Xango. No universo externo de trabalho no qual Bilina in gressa apds a morte do “papai branco” predominavam as relagdes do tipo pessoal entre empregados e patrées. Estes eram em geral pessoas criadas na propria Laranjeiras e o conhecimento mituo das familias dos patrées e empregados criava entre eles um rela cionamento intimo e hoje ainda Bilina recorda os nomes dos seus antigos patrées e dos seus familiares até duas geragoes de as cendentes e de descendentes. Com os patrées aprender a escrever o seu nome © recorrendo a eles tentava solucionar os problemas surgidos no seu relactonamente com os deuses africanos. Estava no Rio de Ja neiro quando em sonhos um orix4 lhe indica a obrigagao * que deveria ser feita para acabar com a variola que implac&vel asso lava Laranjeiras (1911). Os patrdes servem de intermediarios, fa zendo chegar aos africanos desta cidade, através do Telégrafo, as instrugées das divindades. Compreendendo a sta missio, no tentam retS-la quando resolve abandon4-los para atender ao en cargo dos dets que a queriam como sua sacerdotisa,

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