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Michel Senellart AS ARTES DE GOVERNAR Traducdo de Paulo Neves editoralll34 EDITORA 34 Editora 34 Ltda. Rua Hungria, $92 Jardim Europa CEP 01455-000 So Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777 www.editora34.com.br Copyright © Editora 34 Ltda., (edigio brasileira), 2006 Les arts de gouwerner © Editions di Seu, Paris, 1995 ‘A OTOCGAIA DE QUAL QUER FOLHA DESTE LIVRO € ILEGAL, F CONFIGURA UMA APROPRIACAO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMOSIAS DO AUTOR. Get owvrage, publié dans le cadre du programme de participation a la publication, bénéficie du soutien du Ministére francais des Affaires Etrangéres, de l'Ambassade de France au Brésil et de la Maison francaise de Rio de Janeiro. Este livro, publicado no ambito do programa de participagio & publica contou com 0 apoio do Ministério francés das Relagves Exteriores, da Embaixada da Franga no Brasil e da Maison frangaise do Rio de Jancico. Titulo originals Les arts de gouverner Capa, projeto grifico ¢ editoragio eletrGnica: Bracher & Malta Producio Grifica Revisio: Fabricio Corsaletti Marina Kater Ricardo Lisias 1" Edigdo - 2006 CIP - Brasil, Catalogagio-na-Fonte {Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil) Seollrt, Miche, 1983 sit [As ares de gorernar: do reine 0 coecio de govetne / Michel Sencar ado ‘Se Palo Neves — Sho Pao: Ed. 34, 2006 336 p. (Colegio TRANS) Isa 85-7326-346-X “Teadagio de: Les ars de gourerner 1. Filosofia, 1. Tilo, HL Sie emp. 140 INTRODUGAO Gulliver esta em Brobdingnag, o pais dos gigantes, onde seus companheiros de viagem 0 abandonaram apés uma violenta tempes- tade.! Fle logo se torna intimo do rei, homem justo, doce, tolerante, cujas virtudes, to pouco conformes a funcao real, Swift escusa pelo fato de que, vivendo inteiramente separado do resto do mundo, ele ignora os costumes das outras nagées. Espantado com tanta inocén- cia, Gulliver Ihe revela o poder terrivel da pélvora de canhao, propon- do ensinar a seus stiditos a maneira de construir os tubos de bronze ou de ferro que Ihe assegurariam uma dominagio absoluta em caso de sedigao. O rei, horrorizado com a descrigao de tais maquina, afasta essa idéia com repugnincia. Escriipulo bizarro, aos olhos de Gulliver, que somente a ignorancia explica, “esses povos no tendo ainda trans- formado a politica em arte (into a science), como 0 fizeram 0s euro- peus cujo espitito é mais susil” 2 Essa satira, escrita segundo as regras da narrativa utépica, nto se contenta em opor a virtude natural 4 corrupgao dos povos civiliza- dos, nem a harmonia de uma sociedade pacifica 4 violéncia dos Esta- dos europeus, palco de guerras permanentes. Nao é tanto a desordem das paixdes egoistas que ela condena, quanto uma técnica racional de exercicio do poder. A utopia swiftiana, diferentemente da de Thomas Morus, nao exorciza as ameagas de uma desrazao tiranica, mas, 20 contritio, as de uma razao que “transformou a politica em arte”. A arte de governar, e nao apenas os apetites desregeados dos principes, cis 0 que, para Swift, torna a politica nociva. * Viagens de Gulliver, part I 2 Ibid, cap. 7, pp. 240-3, Introducio n Em que consiste essa arte? Seguramente, ela nao se reduz a cién- cia da guerra. “Lembro-me de que, numa conversa que tive um dia com o rei, disse-Ihe casualmente que havia entre nés um grande niime- ro de volumes escritos sobre a arte de governar (the art of govern: ment), ¢ Sua Majestade, contra minha expectativa, emitiu uma opiniio muito desfavoravel sobre nosso espirito, acrescentando que despreza- va.e detestava todo mistério ¢ toda intriga nos procedimentos de um principe ou de um ministro de Estado.”> A arte de governar aparece, assim, ligada ao céleulo, A maquinagao, a praticas complicadas e ocul- tas: arcana imperii, mistérios ou segredos de Estado, para empregar 0 vocabulério do século XVIL. “Ble no podia compreender o que eu queria dizer por segredos de gabinete (secrets of State). Encerrava a cincia de governar (the knowledge of governing) dentro de limites muito estreitos, reduzindo-a ao senso comum, & razo, a dogura, 3 pronta decisio das questdes civise criminais ¢ a outras praticas seme- thantes ao alcance de todos, e que nao merecem ser mencionadas."4 Grandville, na edigo ilustrada das Viagens, desenhou um retrato de Maquiavel no meio desse texto. Com efeito, a arte de governar identificava-se naturalmente com 0 maquiavelismo estatal posto em pratica no século XVII sob o nome de raziio de Estado. Swift inscre- verse no grande movimento de rejeigio do absolutismo pelas Luzes, opondo a transparéncia dos mecanismos governamentais & opacida- de de um Estado retirado em sua transcendéncia. Mas sua critica co- loca em evidéncia um aspecto um tanto negligenciado do combate amtiabsolutista. Enquanto este & geralmente analisado pela histéria das {déias politicas em termos de fundamento e de direito — quais sio as condigdes de um poder legitimo face a0 arbitrério da dominagio? —, Swift toma como alvo as prOprias técnicas da acio politica. O que esta em causa ndo é tanto 0 governo como tipo de instituicao (a forma da soberania) mas 0 governo como modo de exercicio do poder sobera- no, Nio se trata portanto de substituir uma concepcio da soberania, baseada na forca e no diteito divino, por uma outra, de esséncia con- tratual, mas de contestar o pressuposto implicito de toda teoria da soberania: a idéia de que a condugao do Estado depende de uma arte especial. E.a separagao entre a esfera piblica e o mundo ordinatio dos 2 Ibid, pp. 243-4. * Ibid, p. 244. 2 As artes de governar assuntos humanos que Swift recusa, tornando a encerrar a atividade sgovernamental dentro dos limites do senso comum, de virtudes e de capacidades “ao aleance de todos”. Versio burguesa dessa posi todos podem governar. Versdo democratica, ao final do século, em sua formulacio mais radical: 0 governo ndo consiste em outra coisa se- no na participagio de todos na vida publica. Da critica liberal a0 pensamento republicano, certamente a saberania passou, progressiva- ‘mente, do rei a0 povo. Mas essa passagem foi acompanhada de um novo questionamento da arte do governo, a ponto de esta tiltima apa- recer como a antitese mesma da aco politica. Assim, a teotia do Es- tado 56 podia livrar-se do modelo absotutista se, além de subverter suas bases doutrinai sse também 0s métodos que ele forjou. “Todas as artes produziram suas maravilhas”, escrevia Saint-Just. “A arte de governar foi a tnica a produzir somente monstros.” Essa acusagao, no entanto, contém um paradoxo. Com efeito, a arte de governar no designa apenas os estratagemas de um poder sem escriipulos, que utiliza todos os recursos da forga. Ela é igualmente, até o século XVI, o conceito de uma pratica moral (e nao calculista ¢

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