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Letras coloniais e historiografia literaria Joao Adolfo Hansen DLCV- FFLCH- USP O que vou Ihes dizer aqui niio € novo, pois retomo coisas que jé fiz, falei ¢ escrevi sobre as letras luso-brasileiras dos séeulos XVI, XVI ¢ XVIMT e a historiografia liter Muitas dessas coisas aprendi com o trabalho e a amizade generosa de Luiz Costa Lima, leon Kossovitch e Aleir Pécora. Falando muito geneticamente, sabemos que, desde os egos até a segunda metade do século XVIII, o discurso da historia foi um repertério de Uipicas epiditicas cuja verdade de magistra vitae era reescrita interminavelmente como a combinatéria de um comentério verossimil. As apropriagées crsts dessa historia epiditica Geram-Ihe sentido providencialista, incluindo a historia como uma figura do tempo definido como ente eriado, efeito e signo da tnica Causa e Coisa absolutamente auténtica, Deus. O esjuecimento dessa hist6ria providencialista se tornou natural a partir da segunda metade do séeulo XVII, quando o tempo se tornou apenas quantitativo ou eontingente e, perdendo Sta qualidade substancial ou participativa anterior, foi subordinado & hist6ria, como diz Kant em sua Anirapologia, como objeto de um cileulo apenas humano que passou a orientar seu sentido como evoluglo, consciéncia e progresso, Assim, as historias escritas no séoulo XIX pressupdem o continuo evolutivo e a elassficagdo dedutiva de épocas, periodos © estos artisticos por meio de unidades sucessivas ¢ irreversiveis que avangam de maneira on cumulativa ou dialética, como sconteve em nossashistérias da atte e historias literérias, ‘como Idade Média, Renascimento, Maneirismo, Barroco, Neoclassicismo ete Leon Kossovitch demonstrou em um ensaio publicado recentemente pelo Museu do Louvre que nessas historias a descontinuidade tem o papel fundamental de delimitagao dos periodos ¢ dos estilos artisticos que se sucedem no tempo posto kantianamente como Seu a priori. A descontinuidade assegura a positividade da existéncia das unidades estanques e irreversiveis aplicadas como taxonomia ou classficagdo dedutiva, A propria descontinuidade ¢, contudo, como que transparente ¢ nfo pensada, pois ¢ aplicada como se fosse exterior & prépria historia como nogo simplesmente instrumental, Segundo essa concepglo do idealismo alemfo, que até agora é mantida na maioria dos estudos histéricos brasileiros de artes ¢ letras, 05 silos artisticos sdo invariantes dedutivas que se realizam em ocorréncias positivas ou obras particulares que os exemplificam. Assim, em sua sucesso, eles evoluem sem que a propria descontinuidade que os delimita seja pensada. Como Kossovitch demonstra, a descontinuidade é em todos os casos, 0 principio de alterndncia que garante 0 retorna sucessivo de um estilo depois do outro, como ocorre exemplarmente na oposigio de eldssico/barroco de Heinrich Woltilin ou na oposigio de vontades expressivas ligadas & abstragdo © & empatia de Worringer. Como demonstra Kossovitch, essa oposigdo dos estilos ou das vontades niio considera as diferensas historiens, pois ¢justamente a historicidade que impede o retomo das formas estilisticas. ose mesmo a priori da descontinuidade aplicado nas historias literdrias ¢ da arte caudatévias da historiografia evolucionista ou teleol6gica do século XIX se eneontra como neokantismo em uma historia muitissimo influente que as destréi, a historia arqueologiea dda loucura ou a historia gencalogica da verdad de Michel Foucauit, que funda os discursos ‘no mais sobre 0 continuo, mas sobre a propria descontinuidade, Como sabemos, Foucault limina as positividades © também as idealidades, sejam elas subjetives, factuais ou estlisticas, da historiografia do continuo ¢ da consciéncia, Com a eliminagio, somos remetidos win fundo inacessivel, uma nfo-origem como an-arkhé ou néo-prineipio, cuja cfiedcia decorre justamente de que, como fundo, € suposta como invisivel, indizivel © ‘mpensével, Com Foucault ¢ continuo falando com Kossoviteh a descontinuidade ¢ estabelecida por condigies de possibilidade formalmente puras, que so as da linguagem em sua definigéo estruturalista como estrutura que se pensa a si mesma nos homens. Uma historia de tipo neokantiano como a de Foucault, demonstra Kossoviteh, ndo pode traduzir~ se sendio como histéria de obres arqueologicamente pures que exclui © impuro, ou seja, 0s dominios contingentes das obras ¢ de suas pratiess produtivas e consumidoras, onde uma rmultiplicidade jntotalizivel de escolhas titicas © vias atistieas em que coexistem temporalidades heterogéneas aparece executada sem nenhuma consideravdo por condigdes puras, Quando se trata de categorias puras, tanto em Foucault como nas historias teloologicas, a redugto classificatéria dos periodos histéricos ¢ seus estils artisticos se impde a priori, como no caso da oposigo de cldssico e barroco corrente nas historias literdrias brasileiras que se ocupam das letras coloniais. Outras possibilidades de historia, que pressupdem sua radical impureza contingente, so propostas por Kossovitch. Elas passam ao lado do continuo evolutivo do século XIX também da descontinuidade nao-explicitada de Foucault, pensando o tempo e 0 espago de uum modo que aproxima a operago das operagdes de Nietzsche, Freud e Marx, que nio 0 pressupdem kantianamente como a priori, nem fundam a diferenga num fundo impensével,, mas remetem a historicidade da historia materialidade contingente dos processos produtivos, cuja consideragao evita o anacronismo, a teleologia, a unidade psicolégica do sujeito, 0 nacionalismo e a descontinuidade meramente instrumental. Em 1984, tentei fazer algo semelhante, pensando os discursos coloniais como priticas contingentes. Como tinha ficado chato ser moderno ¢ eu nfo queria ser eterno, decidi estudar uma arte que para mim era até entdo uma referéneia_vaga, “o Barroco” dos manuais de literatura. Resolvi estudar a poesia atribufda ao baiano Gregorio de Matos ¢ Guerra, que viveu em Salvador entre 1682 ¢ 1695. Lia critica existente sobre ela e, como me parece anaerdnica, psicologista ¢ evolucionista, fiz a hipdtese de reconstituir sua primeira legibilidade normativa. Depois de ler varias vezes os 7 volumes da edigdo de James Amado ¢ 0s eédices da Biblioteca Nacional para classificar seus temas, examinei a relagdo diacrénica dos poemas com as verses latinas da doutrina aristotélica do cémico e das paixdes da alma, principalmente a sitira de Hordcio ¢ Juvenal, ¢ a poesia medieval de ‘escémio © maldizer portuguesa editada no Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende, de 1517. Descobri que varios pocmas eram feitos como variagdes de um subgénero aristotélico do cémico, o ridiculo, por isso imitavam principalmente a sitira de Horécio, Muitos outros ‘emulavam a sétira de Juvenal, fazendo-se como variagao de outro subgénero cOmico, a maledicéncia, Sincronicamente, cruzei os poemas com preceptivas retéricas italianas, espanholas e portuguesas dos séculos XVII e XVIII, como os tratados de Matteo Peregrini, Sforza Pallavicino, Emanuele Tesauro, Baltasar Gracién, Francisco Leitio Ferreira etc., principalmente 0 capitulo XII, “Tratatto dei Ridicoli”, de I! Cannocchiale Aristotelico, de Tesauro; também os cruzei com tratados teolégico-politicos catélicos dos séculos XVI XVII, como os de Possevino, Bellarmino, Jerénimo Os6 De Soto, Francisco Suarez € Giovanni Botero; com livros de emblemas, como os de Alciato, Horapolo, Valeriano ¢ Ripa; com espelhos de principe etc. Para levantar informagSes sobre a Bahia seiscentista, li atas e cartas da Cémara de Salvador escritas entre 1650 ¢ 1750; as dentincias da visitago de 1618 do Santo Oficio da Inquisi¢ao; a correspondéncia entre o rei € 0 governador Anténio Luis Gongalves da Camara Coutinho; ordens-régias, bandos ¢ pragmiéticas de tratamentos e trajes ete. Fiz os eruzamentos para constituir homologias que me permitissem inventar e sistematizar regularidades ou estruturas repetidas na diversidade das representagdes produzidas em varias circunstancias. Em todos os discursos que examinei, encontrei a mimese aristotélica, @ definigio escolistica da pessoa, a teologia-politica catélica, a tépica da “razio de Estado”, a ética cristi e um fortissimo sentido providencialista da historia. Para fazer os cruzamentos, foi fundamental a arqueologia de Foucault ¢ os procedimentos de desnaturalizagio ¢ rarefago que propoe em L'ordre du discours, Com a operagio de cruzamento, foi possivel propor que a sitira seiscentista se apropria de normas sociais representadas nos discursos formais das instituigdes portuguesas nos discursos informais da populagdo colonial. Ela isola as normas da sua fungéo institucional de regulago prética e as estiliza ficcionalmente como metaforas de prineipios teolégico-politicos da politica ibérica contra-reformista. Por exemplo, cita diseursos do Senado da Camara de Salvador, do Tribunal da Relago, da administrago de governadores, de ordens-régias, de pragmaticas de tratamento € trajes, do Santo Oficio da Inquisigdo etc.- e também discursos da murmuragdo popular contemporinea sobre eventos, negécios, grupos e individuos locais, como a corupgio de governadores, escdndalos conventuais, simonia e mancebia de padres, contrabando de farinhas, falta de moeda, aumento de impostos, confusées hierdrquicas, insubordinagao de escravos, préticas sexuais contra naturam, pregos monopolistas dos géneros alimenticios, crise da lavoura agucareira etc. A sitira deforma esse referencial quando inventa tipos viciosos, que vitupera, aplicando modelos da retérica ¢ da ética aristotélicas imitados na poesia latina ¢ medieval; ao mesmo tempo, cita o sentido escokistico, legal ¢ ortodoxo das normas, elogiando-o como correg’o moral ¢ prudéneia politica. Como resultado, foi possivel propor que as imagens dessa poesia néo sio realistas, como a critica brasileira ainda afirma, pois a sétira € inventada retoricamente: no imita a empiria nem reflete nenhuma infraestrutura, mas encontra a realidade de seu tempo como pritica discursiva também real, que aplica t6picas, verossimilhangas ¢ decoros partilhados assimetricamente por sujeitos de enunciagéo, destinatérios textuais e piblicos empiricos. Para falar com Chartier, cla figura a ‘compatibilidade entre as interpretagdes feitas pelos personagens satiticos em ato © 0s atos de interpretagdo das recepedes empiricas diferenciadas, que conferem valor e sentido & representagao!. Assim, quando cruzei a sitira com as dentincias que se seguiram a visita do Santo Oficio da Inquisigio 4 Bahia no inicio do século XVII ¢ alguns manuais \quisitoriais, como o de Eymerich ¢ Petia, 0 Manual dos Inquisidores, além do Malleus maleficarum ¢ mais instrumentos do terror catélico, foi possivel constituir modelos e preceitos seiscentistas de uma tecnologia catdlica de controle do corpo e produgdo da alma ¢, com eles, propor que o discurso ficcional da sitira ¢ homélogo das praticas inquisitoriais de dentincia ¢ confissio. Tanto as sitiras quanto as denGncias se fundamentam no Direito CanGnico, encenando publicamente para um destinatirio textual e piblicos empiricos difecenciados a presenga da luz natural da Graga inata nas instituigdes portuguesas. Para isso, mobilizam distingées como legal, legitimo, eterno, natural, positivo, puro, impuro, catélico, herege,gentio, metaforizando-as por meio das técnicas ret6ricas de uma racionalidade ndo-psicologica, a do coneeito engenhoso ou agudeza, em que a defesa da hicrarquia é nuclear. Fiz o trabalho sobre Gregorio tentando passar ao lado da critica brasileira que define ‘os estilos das representagdes coloniais dos séeulos XVI, XVII ¢ XVIII por meio das unidades cronolégicas fechadas ¢ irreversiveis de que falei, “Classicismo”, “Barroco”, “Neoclassicismo”. Quando estudei as ruinas do século XVII nos arquivos, ficou evidente pelo menos para mim que essas unidades sfio dedutivas e aprioristicas, ou seja, idealistas. Quando fiz 0 trabalho, usei a categoria “Barroco”, coisa que hoje acho totalmente desnecesséria, pois s6 produz equivocos de interpretagdo. No caso da tradigao colonial Gregério de Matos, seu uso unifica todos os estilos de poemas particulares de varios ‘generos como exemplos ou ilustragdes de caracteristicas da esséncia classificatéria, no considerando que, no tempo assim etiquetado, coexistem miltiplas temporalidades heterogéneas de modelos artisticos que sto imitados diferencialmente pelo suposto autor dos poemas segundo preceitos, téenicas, formas, estilos e finalidades sem correspondéncia com as categorias evolucionistas e psicologistas pressupostas na classificagio. Desde 0 século XIX, a critica que se ocupa da poesia atribuida a Gregério e de outros discursos coloniais — penso por exemplo em Anchieta, Nobrega, Bento Teixeira, Vieira, Manuel Botelho de Oliveira, Ckiudio Manuel da Costa, Basilio da Gama ‘hartier, Roger. "George Dandin, ou le social en représentation’In Annales.Litérature et histoire, Patis, ‘Armand Colin,Mars-Avril 1994, p:283, 49e. Année- no. 2. 6 ete.- costuma ignorar ¢ eliminar sistematicamente suas categorias, substituindo-as por outras, que _universalizam valores interessados do presente dos intérpretes. As categorias escolisticas que compdem a pessoalidade “eu-tu” no processo de interlocugaio dos discursos slo ignoradas e substituidas por categorias liberais e psicolégicas da subjetividade burguesa; a orientagdo metafisica, religiosa e providencialista do sentido da historia, que ¢ propria da politica catélica portugues em luta contra a heresia maquiavélica e luterana, é eliminada e substituida por concepgies evolutivas, iluministas ¢ liberais, formativas, progressistas e nacionalistas; a regulagdo retérica dos preceitos artisticos e das formas, além da interpretago teol6gico-politica da sua significago e do seu sentido, sio apagadas, propondo-se em seu lugar categorias estéticas exteriores, como a expresso da psicologia dos autores, a oposigao “forma/contetido”, 0 realismo documenta, a antecipagdo protonacionalista do Estado nacional brasileiro, Além disso, 0 uso naturalizado da nogo de “Barroco” para classificar essa poesia e totalizar seu tempo generaliza transistoricamente as definigdes liberais, as vezes marxistas, das nogdes de “autor”, “obra” e “piiblico”. Assim, para thes falar do meu trabalho sobre essa ruina arruinada, as letras coloniais dos séculos XVIXVIL e XVIII produzidas no Estado do Brasil ¢ Estado do Maranhio e Gréo-Pard, repito que é um trabalho arqueol6gico condicionado pelo seu lugar institucional, a universidade neoliberal que conhecem. Ele passa ao lado da historiografia literéria fundamentada nas categorias do continuo evolucionista do século XIX, como disse, e tenta inventar, de modo verossimil, a estrutura, a fungdo, a comunicagao e valores dessas letras em seu presente colonial. Para isso, pressupte os condicionamentos materiais ¢ institucionais da sua produgfo na circunstincia colonial, como 0 exclusive metropolitano, 0 escravismo © 0 catolicismo contra-reformista; a ago de agéncias culturais, como a Companhia de Jesus, responsivel pela educagdo colegial e universitéria dos letrados coloniais; a situagao profissional e a posigaio hierérquica dos letrados cooptados nas redes clientelistas locais; os esteredtipos ibéricos da “limpeza de sangue”; as censuras do Santo Officio da Inquisigao e da Coroa etc. © trabatho também se ocupa de eédigos bibliogrificos, como a manuscritura. O conceito de “publicagao” do tempo dessas letras € mais extenso que 0 nosso: o manuscrito, que circula sendo copiado em verses produtoras de variantes, também € publicagii diversamente de hoje, quando entendemos pelo termo apenas o texto impresso, Grande parte das letras coloniais foram inicialmente publicadas como manuscritos, tornando-se "obras" somente quando oralizadas em circunstincias cerimoniais e polémicas”. Em sua ese de doutorado sobre os cédices gregorianos, Marcello Moreira demonstrou que a oralidade produzia variantes que novamente eram copiadas em manuscritos segundo a movéncia discursiva de que Paul Zumthor fala em seus estudos da poesia medieval Baseado em evidéncias da existéncia local de uma cultura de escribas que faziam edpias de poemas, Moreira critica a filologia de Lachmann e Bédier, demonstrando que seus ppressupostos roménticos acerca da autoria ¢ da arte - originalidade, autenticidade, “primeira intengdo autoral”, restituigdo de texto ete. - ndio dio conta dos modos contemporineos da invengio, citeulagéo, consumo ¢ valoragao dessa poesia. Além disso, quando os poemas passaram a ser editados na forma do livro impresso, principalmente a partir do século XIX, a primeira ordenago que tém nos manuscritos quase sempre foi eliminada ou alterada, Moreira demonstra que, nos eédices, os poemas so dispostos segundo uma hierarquia dos géneros que forma um conjunto polilégico, intertextual, com remissdes ¢ citagdes internas que evidenciam os modos contemporineos de produzir, consumir e valorar a poesia. O Conjunto € evidentemente destruido quando poemas so selecionados e publicados na forma impressa das antologias, como a de Varnhagen e as do século XX. Também se destréi a pontuagiio ret6rica deles, indicativa de pausas intensivas da actio deles na oralidade, que & substituida pela pontuago gramatical impessoal e logica, indicativa de fungGes sintéticas*, Esse trabalho & complementado pelo exame dos eédigos lingiisticos que modelam e interpretam as representagdes. Os c6digos lingiiisticos so ret6rico-poéticos ¢ teolégico- A respeitn de cbdigos bibliogréficos, 6 itil lembrar os trabahos de Chartier, Roger. Publishing Drama in Early Modern Europe. The Panizzi Lectures 1998. London, The Bristish Library, 1999; Diaz, José Simon. " El problema de tos impresos literarios pordidos del Siglo de Oro", Edad de Oro, 2. Madrid, Universidad ‘Auténoma de Madrid, 1983; Madrid, Love, Harold. The Culture and Commerce of Texts, Scribal Publication in Seventeenth Century England, University of Massachussetts Press, 1998; Mckenzie, D.F. Bibliography and the Sociology of Texts. London, The British Library, 1986; Hébrard, Jean." Des écritures exemplaires: art du maitre écrivain en France entre XVIe et XVII sideles". Mélanges de l'Ecole Francaise de Rome, 107, 2, 1995; Megane, Jerome J. The Textual Condition. Princeton University Press, 1991; Zumthor, Paul." Intertextualité et mouvance". Literature, 41, 1981; Essai de poétique médiévale. Paris, Seuil, 1972; A Letra e a Vor. A "Literatura" Medieval. Sio Paulo, Comparthia das Letras, 1993. > A tese de doutorado de Marcello Moreira ~ Critica Textualis in Caetum Revocata? Prolegdmenos para una Eadigdo Crittea do Corpus Poético Colonial Seiscentista ¢ Setecentista atribuido a Gregério de Matos Guerra ‘Mimeo, Sao Paulo, Area de Literatura Brasileira- DLCV-FFLCH-USP, margo de 2001- ¢ fundamental para cstudo da manuseritura colonial politicos. No caso deles, a arqueologia € dupla: diacronicamente, relaciona as letras coloniais com sistemas de representagdo anteriores que elas imitam ¢ transformam. Falando muito genericamente, esses sistemas so o que podemos chamar “o bloco greco-latino”, as varias retéricas gregas ¢ latinas e suas diversas versdes patristicas, bizantinas, escolasticas ¢ neoescolisticas, bem como as letras antigas, a poesia e a prosa de diversos géneros. Sincronicamente, a arqueologia relaciona as letras coloniais com 0 campo seméntico geral da cultura de seu presente’ ¢ para isso também examina documentos de ndo-ficgo, como disse, com o fim de estabelecer homologias estruturais ¢ funcionais que possam especificar sua historicidade de modo plaustvel Hoje, depois que varias genealogias ¢ arqueologias do pasado demonstraram que a histria literéria romantica e hegeliana da tradigao iluminista ndo é mais uma evidéncia, as redefinigies do estatuto da historiografia literdria se acompanham da eritica a gencralizagiio transistorica das categorias nacionalistas do continuo teleolgico do século XIX e aos processos neoliberais de desistoricizago do_ presente. As redefinigdes enfrentam uma questo decisiva: a do tipo de historia que se vai fazer com as letras coloniais, supondo-se que ainda haja algum interesse em fazé-la. Como sabem, nos cursos universitirios de Letras essas representagdes nfo so mais estudadas ou tém lugar mais que secundétio de disciplina optativa, pois os modelos evolutivos, formativos e nacionalistas de interpretagio as definem a priori como etapa superada da histéria do pais . Segundo a opinito de muitos colegas de Letras, 0 estudo delas provavelmente deve usar carbono 14 & quem se dedica a ele demonstra a alienago de um antiquirio que coleciona fosseis. Mas, como provavelmente a USP niio é © mundo, podo-se perguntar: a histéria delas deve ser uma hist6ria normativa de sua hipotética primeira legibilidade normativa cujo “The historian seeks to locate and inerpret the artifact temporally ina field where two lines intersect. One line is vertical or diachronic, by which he establishes the relation ofa text or a system of thought to previous expression in the same branch of cultural activty(paintings politicas ,ete). The other i horizontal, or “grmchronte; by tthe assesses the relation of the content ofthe intellectual object to what is appearing in other branches or aspects of a culture at the same tine™( “O historiador busca localizar © interprotar temporalmente o artefato num campo em que dus linkas se interceptam. Um linha é vertical, ot diacronica, pola qual o historiador estabelece a relago de um texto ou de um sistema de pensamento com a expressi0 prévia no mesmo rama de atividade cultural (pintra, politica et). A outra é horizontal, ou sinrOniea; por ela O historiador estabetece a relagfo do contetdo do objet intelectual com 0 que aparece em outtos ramos ou faspectos da cultura no mesmo tempo”. CF. Carl Schorske. Fin-de-sidele Vienna Polities and Culture, New Yori, Cambridge University Press, 1979,p. .XXI-XXIl eit. por Roger Charter, “Histoire intllectuelle et histoire des mentalités ». In Aw bord de la falaise, [.' histoire entre certitudes et ingulétude. Paris, Bibliotheque Albin Mickel, 1998, p.59. conhecimento permitiria exetuir significagées ndo-previstas na invengdo delas? No nosso caso brasileiro, essa histéria nfo deixa de ser pertinente, pois @ primeira normatividade delas, que € normatividade teolégico-politica ¢ retérico-poética, foi sistematicamente climinada e subs tuida, desde o século XIX, por categorias psicolégicas e documentalistas do continuo iluminista, Ou essa histéria deve ser descritiva? Uma histéria descritiva, lembra Hans Ulich Gumbrecht, deveria ser uma histéria de todas as leituras possiveis de um texto determinado, tratando-se de reconstituir as condiges técnicas, materiais ¢ institu mnais em que vi as significagdes foram geradas por leitores cujas disposigdes receptivas possuiam diferentes mediagdes historicas e sociais. Tentando dar conta dessas questées que para mim implicam principalmente a questo teérica ¢ politica dos usos do passado aqui-agora, 0 trabalho de que thes falo pressupée a articulagéo temporal de passado/ presente como a correlagSo” proposta por Michel de Certeau em seu estudo sobre Surin e a mistica francesa do século XVII A correlagéo & um dispositive de encenagio de duas estruturas verossimeis de agio discursiva, 0 presente da enunciagdo da pesquisa feita como trabalho parcial que pressupde a divistio intelectual do trabalho condicionada pelo lugar institucional onde se realiza, a rea de Literatura Brasileira da USP. A outra estrutura ¢ a do passado da enunciagio cnunciados das representagSes coloniais. Por meio da correlagao, ¢ possivel, como disse, constituir a estrutura, a fung#io, a comunicag#io ¢ valores notmativos que elas tinham em. seu tempo. Ou seja, constituir os modelos de seus varios géneros, estabelecendo a relacdo deles com as referéncias simbolicas anteriores e contemporaneas que eles transformam em. situagées de comunicaeao cerimonial © polémica, institucional ¢ informal, segundo virios meios, como a oralidade, evidenciada na manuscritura de folhas avulsas ou, como Marcello Moreira demonstrou que foi costume na Bahia dos séculos XVII XVIII, encadernadas em cadernos grossos que formam cédices como os que hoje estiio depositados na Biblioteca ‘Nacional. Simultaneamente, a correlago possibilita examinar a cadeia heterogénea de suas recepgdes histéricas desde os primeiros roménticos do século XIX, como o cOnego Januério Barbosa, j4 no final dos anos 1820, 0 grupo de Gongalves de Magalhies na revista Niter6i, em 1836, ou o Instituto Histérico e Geografico Brasileiro, a partir de 1838. Aqui, eu ditia que é razoavelmente simples reconstituir descritivamente as cadeias dessas apropriagdes $ CE. De Certeau, Michel. L'absent de l'histoire. Paris, Mame, Repétes,1976, pig 8. 10 para evidenciar a particularidade interessada das interpretagbes roménticas, deterministas, modernistas, concretistas, pis-utSpicas ete. que foram e sto feitas dessas letras, nos termos de Hobsbawm, como invengao de tradigdes nacionais e nacionalistas. Mas a reconstituiggo das préprias leituras coloniais das letras coloniais é quase sempre lacunar, Além de serem materialmente limitadas pelo vazio dos arquivos brasileiros, as proprias evidéncias coloniais de leitores e de leituras coloniais de diferentes mediagbes sociais sio muito raras, ‘© que faz com que a historia descritiva delas também seja bastante rarefeita. Supondo a rarefagao das informagtes sobre as apropriagbes empiricas e os usos provaveis dessas letras na condi¢g0 colonial, acredito que € pertinente. reconstituir a primeira legibilidade normativa que aparece formalizad no contrato enunciativo dos discursos, lembrando que & justamente essa normatividade que foi - e continua sendo - eliminada nas histérias liter: brasileiras e nos cursos de literatura da escola secundaria e da Universidade. Obviamente, a leitura coincide com 0 tempo da enunciagaio do texto, pois o leitor ‘ccupa imaginariamente o lugar do destinatirio, refazendo os atos da enunciagao para ler adequadamente com certa verossimilhanga. No caso das letras coloniais, a particularizagio das normas aplicadas pelos sujeitos de enunciagiio para constituir 0 destinatério como personagem do processo de interlocugdo das representagdes permite descrever os procedimentos téenicos aplicados pelos autores quando inventam ¢ ordenam os ates simbdlicos do “eu” e do “tu’* figurados nelas em estilos diversos. No ato da invengdio do discurso, os autores coloniais se apropriam do referencial colonial- por “referencial”, significo discursos, nao o referente deles. Como disse, os discursos formais das instituigdes portuguesas, como os de ordens-régias e bandos da Coroa, os das ordens religiosas, das camaras municipais, da Inquisigo, dos tribunais, de casas de alfindega etc.- ¢ discursos informais da populagio, legiveis diretamente em papéis que os reproduzem ou indiretamente nas entrelinhas de documentos oficiais. Os autores coloniais apropriam-se do referencial e 0 transformam, citam, estilizam e parodiam. Para fazé-lo, cles imitam determinada auctoritas retdrico-postica, 0 auctor de um género, suas tépicas e seu estilo especificos. Dou um exemplo com Vieira. Nos colégios da Companhia de Jesus no Estado do Brasil ¢ Estado do Maranhdo ¢ Grdo-Pard, 0 grande auctor prescrito como objeto de emulagdes na oratéria sacra 6 Cicero. Neles, oradores como Eusébio de Matos ¢ Vicira aprenderam a imitar o estilo circular e amplo de Cicero, em que o periodo comega por ul subordinago e avanga por meio de prétases ascendentes e apédoses descendentes que acumulam varios membros ¢ incisos. Sabemos que, desde a segunda metade do século XVI, 0 estilo circular jé havia sido criticado e substituido em muitos lugares pela oratio soluta, a orago absoluta ou o periodo imples caracterizado pela brevidade, auséncia de conectivos e transigdes, quase sem ornamentag@o, também chamado de seco ¢ cortado, estdico ¢ lacénico, de Séneca e Técito, propostos como modelos da prosa por Justo Lipsio. Na segunda metade do século XVI, Cicero conheceu nova onda de imitaglio com os ramistas - os adeptos de La Ramée, que havia atribuido a invengio & dialética, propondo uma retérica restrita aos tropos e figuras da clocugao A imitagao de Cicero permaneceu na Companhia de Jesus, como vemos no tratado de retérica de Cipriano Soares, usado pelos jesuitas até sua expulsdo por Pombal no século XVIII principalmente na educago dos oradores sacros, que deviam aprender com Cicero as téenicas do estilo grande que usa 0 periodo circular e 0 periodo composto. Ao lado das imitagdes de Cicero, a imitagfio de Séneca ¢ Técito, valorizando a brevidade, comegou para valer no inicio do século XVIL, principalmente por causa da revalorizagao generalizada do estilo humilde que, desde Roma, vinha sendo chamado de dtico. Mas Cicero, no Orator, no desconhece a possibilidade de usar os estilos breves em géneros como a correspondéncia familiar, em que o sutil, 0 humilde € © gracioso so preseritos. Depois de tratar do sublime, diz: “ (..) outros slo sutis,engenhosos, que ensinam tudo ¢ 0 fazem mais clara que magnificamente e, agudos ¢ Jimados, tém um estilo conciso”(Orator,V,20). Falo dessas possibilidades de usos de estilos diferentes pelos mesmos autores porque é fundamental lembrar que, em artes doutrinadas retoricamente, nao existe a noglo univoca de clareza do cartesianismo e da literatura pés-iluminista, mas clarezas relacionais, diferenciais, caracterizadas por graus distintos de fechamento semintico da elocugiio, aplicadas pelos autores coloniais conforme a variedade dos estilos dos géneros em que compem, Uma grande estudiosa das letras espanholas do século XVII, Luisa Lépez Grigera, demonstrou que o tratado Ecclesiastica Rhetoriea, de Frei Luis de Granada, considerado 0 Cicero espanhol, prescreve os dois estilos, a composigaio simples, correspondente ao que Justo Lipsio propds no século XVI como imitagio de Técito e Séneca, ¢ a composig&o dupla ou composta, que imita Ciccro®. Encontramos essa dupla * Cf. Grigera, Luisa Lopez. Texto lido no Boston Quevedo Symposium, cutubro de 1980, pags. 6-9. 2 possibilidade também em tratadistas italianos, espanhdis e portugueses do conceito engenhoso que circularam no Estado do Brasil e no Bstado do Maranhao e Gro Para, como Emanuele Tesauro, Baltasar Gracin ¢ Francisco Leitdo Ferreira, quando fratam da prosa do sermio ¢ da histéria ou dos vatios géneros poéticos. Frei Luis de Granada diz que a composigio simples nao esti sujeita a lei dos nimeros; no tem periodos muito extensos e é uusada no trato familiar, Sobre a composigao dupla ou composta, diz: “A composigdo dupla, afastando-se dessa simplicidade, usa oragdes torcidas e extensas. Cujas partes e membros & preciso explicar, para que, conhecidas, se conhega facilmente 0 todo que resulta delas. Assim como na mao consideramos a mao mesma como um todo, logo o dedo como membro dela, ¢ enfim os artelhos do dedo...assim advertimos partes semelhantes da ora. Porque sto como artelhos as Comes, que em grego se chamam commata, ¢ em latim caesa ou incisa. Além desses hd uns como membros, que os gregos chamam de Cola ¢ os latinos com o mesmo nome de membra, Hé assim mesmo Perfodos, que os latinos chamam algumas vezes de Ambito, outras Compreensio, outras Circunscrigo, os quais constam de muitos membros"(V,XV1). Assim, quando um autor como Vieira compée um sermio, imita em Cicero a clareza clocutiva ¢ também a sintaxe ou dispositio do periodo, prevendo que a colocagao das palavras no periodo circular e no perlodo composto pressupde 0 numerus, termo correspondente a alterndncia de silabas longas e breves no latim’. No século XVII, os estilos ciceronianos ¢ tacitistas continuam emparelhados, mas adaptam-se aos processos do conceito engenhoso tipico da racionalidade de corte do absolutismo monérquico. Nesses processos, a perspicuitas ou clareza & substituida programaticamente pela obscuridade das metéforas dos “estilos cultos” que emulam, principalmente, a poesia de Géngora e de autores neotéricos latinos e alexandrinos. Na prosa, tanto num ciceroniano como Vieira como num tacitisia como Gracién, as definigdes que La Ramée faz da inventio e da elocutio dos discursos, propondo a inventio como objeto da dialética ¢ a elocutio como objeto da retérica, esto na base do conceito engenhoso que entio se chama ornato 7 Como a longe dura o tempo de 2 breves, & possivel compor vrias espécies de pés métricos e ritmos adequados ao género e as topicas tratadas nele. No caso das linguas vulgares, como o toscano ou o espanol, a idéia de numerus continuou sendo aplicada, mas geralmente se identificando a silaba tOnica da palavra de lingua vulgar com a silaba longa latina e, as subtOnicas e dtonas, com as breves. Frei Luis de Granada dé ‘como exemplo montén, propondo que © espondeu, pé de 2 silabas longas, & apropriado para produzir efeito de lentidio; outro exemplo que dé & o do jambo, como em leén. A breve que comera o termo e a longa que 0 termina produzem uma diversidade agradivel, diz 0 Frei, porque a palavra comega cot ligeireza e termina ‘com vigor. Por iss0, diz, ojambo é um pé muito bom para as sitiras. dialético ¢ que hoje se classifica wolfflinianamente ou neokantianamente como “Barroco” Também Ovidio, Petrarca e Cambes silo imitadissimos na lirica amorosa, assim como Hordcio, Juvenal e cantigas de maldizer e de escérnio na satira etc. Os autores coloniais so politécnicos, sendo capacitados a imitar os estilos de varias autoridades de géneros diversos. A critica brasileira que ignora completamente a retorica e tem sobre cla uma opinio positivista estereotipada costuma propor pseudo-problemas, como o de saber como foi possivel que um autor como Gregério de Matos, que demonstra ungdo religiosa @levagdo na poesia religiosa, tenha composto sitiras tio obscenas ¢ pornogréficas. Para compé-las, 0 poeta aplicou diferentes preceitos técnicos, andnimos e coletivizados como convengées simbélicas do todo social objetivo de seu tempo, podemos dizer. O poeta era doente, tarado, pessimista ¢ ressentido, afirma a critica, acrescentando que sua poesia reflete a crise da infraestrutura do modo de produgdo colonial. Assim, acredito que a constituigdo das categorias © condicionamentos dessas letras no seu presente extinto & necesséria para tomar posigdo aqui-agora. E muito discutivel que essas letras sejam “manifestag&o literdria”, como Antonio Candido e José Aderaldo Castello propdem, fundamentando o uso da express&o com a idéia de que colonialmente nao ha sistema coeso de “autor-obra-piblico”. Devemos concordar com esses eriticos no que toca aos condicionamentos institucionais da produgdo cultural na colonia; ¢ também quando sua classificagio se refere A rarefago dos processos de comunicagio e difusio dessas letras, Mas nfo & 0 caso da propria definigaio dos modos retbricos, poéticos e teologico-politicos ibéricos de entender e definir “autor-obra-publico”. Suas definigdes e fungdes so totalmente sistémicos, como doutrinas retérico-poéticas interpretadas escolasticamente que preserevem a imitagdo ¢ a emulago de autoridades de diversas duragdes, também prevendo diversos usos ptiblicos para as letras. Sendo produtos de préticas fundamentadas na metafisica escoldstica, as letras coloniais néo conhecem a divistio dos regimes discursivos posterior ao Iuminismo. Assim, os elementos do trio autor-obra-piiblico tém outra conceituago, que sempre supde a “politica catélica". Para ‘comegar, a poesia e a prosa nflo stio produzidas como "literatura", no so definidas como “classicismo”, “maneirismo” ou "barroco", ndo pressupdem a autonomia critiea dos autores € a contemplagio estética desinteressada de seus publicos. “Péblico", no caso, ¢ a totalidade do “corpo mistico” figurada nas representagdes como "bem comum'" do Estado. Incluido 4 nessa totalidade, cada destinatério produzido pela representagdo deve reconhecer sua posigdio subordinada: a representagdo reproduz aquilo que cada membro do corpo mistico ji é, preserevendo, ao mesmo tempo, que ele deve ser, ou seja, persuadindo-o a permanecer como 0 que jd é. O espago piiblico figurado nas representagdes como totalidade mistica de "bem comum” € como um teatro corporativista, onde se revela 0 proprio piblico para o destinatério particular como totalidade juridico-mistica de destinatérios’ integrados em ordens e estamentos subordinados, Justamente por isso, impée-se a normatividade ret6rica, que pressupte a repetiggo de modelos. Quando os esquemas retéricos ¢ os temas de discursos contemporaneos encenados no discurso particular so apropriados por piblicos empiricos de diversas competéncias, mas sempre piblicos incluidos nas normas hierdrquicas do "bem comum" dese "corpo mistico", a — recepeao modela-se prescritivamente, normativamente. Por outras palavras, os juizos da recepgdo também sao normativos ou reprodutivos de regras: obedecem a padroes institucionais de ordenagto consumo das representagdes, refazendo, na leitura, na audigio ¢ na visio das representagées, os procedimentos que foram aplicados pelos autores a sua invengabo. Nesse tempo, o tipo capacitado intelectualmente a aplicar ¢ interpretar tais artificios é doutrinado como disereto. A discrigio 6, antes de tudo, uma categoria intelectual caracterizada nuclearmente pelo juizo e pela prudéncia, que tornam a ago politicamente adequada as circunstincias, e pelo engenho, que Ihe dé forma aguda. Entre os autores do século XVII, discreto & 0 tipo que tem a “reta razio das coisas agiveis” (recta ratio agibilium) da Escoléstica, conhecendo a representago conveniente para todas as ocasides da sociedade de corte. Covarrubias, no Tesoro de la lengua castellana, define a “discrigao” como a coisa dita ou ‘com bom senso ou juizo, ¢ atribui ao discreto a capacidade de , isto € @ capacidade de separar uma coisa de outra para néo julgar confusamente. Assim, & discreto quem “sabe distinguir uma coisa de outra”: fazendo um “discemit juizo adequado delas, pondera as coisas ¢ dé a cada uma o seu lugar. Nesses termos, aproxima-se do que Baltasar Gracin considera o perfeito ouvinte/leitor: 0 que sabe distinguir, dando a cada coisa a exata medida que Ihe 6 devida. Tal idéia de discrigaio associa-se a algumas outras faculdades, sejam naturais (por exemplo, a de engenho natural, ‘como inclinago inata do temperamento), ou artificiais (por exemplo, as que decorrem do S Morin, Heine. Publ of ltératur on France au XV sic, Pais, Belles Lettres, 1994, pigs. 385-388, ve aprendizado da etiqueta ou da convivéncia na corte ¢ a boa companhia). O discreto néo apenas conhece as regras do comportamento ajuizado ou adequado, mas sabe a melhor maneira de aplicé-las a ocasio, por isso mesmo muitas vezes contraria a sua interpretagaio literal ou usual, Desse modo, por vezes pode afetar, por conveniéncia, ser 9 contrario da discrig&o, fingindo “vulgaridade”. Io que diz Lope de Vega, em seu texto Arte nuevo de hacer comedias en este tiempo (1608), € 0 que se pode ler em varias passagens da sitira atribuida a Gregério de Matos, Na tipologia de corte do século XVII, 0 tipo intelectual oposto ao discreto ¢ 0 vulgar ou néscio. Define-se como tipo de gosto confuso, sem razo € sem juizo, de modo que se deixa levar pelo “iropel das vistas”, como diz Vieira, isto €, exclusivamente pelas aparéneias sensiveis, sem consideré-las ajuizadamente pela razio ou de acordo com a ocasidi, Nas letras do século XVH, é rotineira a afirmagao de que o vulgar é um tipo que no sabe 0 que fala: "sem mais leis que as do gosto/quando erra", afirma contra os Caramurus da Bahia uma sétira da tradigao gregoriana. A discrigao implica, assim, uma arte do fingimento das aparéncias convenientes a ocasifo. Para usar aqui uma expressfio de Hans Ulrich Gumbrecht, esse fingimento é um dispositive de produgdo de presenga, ou seja, um dispositive teoldgico-politico-retérico de produgio da Presenga divina nas instituigGes coloniais. Os grandes t6picos seiscentistas do “sonho da vida” e do “teatro do mundo”, correntes nas letras do século XVII, so uma cena alegérica que ficcionaliza a iluminagao generalizada do fingimento da fiegdo pela Luz divina. O corpo mistico © glorioso de Cristo € irrepresentivel ou s6 se presenta em figuragées alusivas, que o profetizam ¢ confirmam como substincia espiritual participada nos objetos representados, sem confundir-se com cles. Como idéia de Deus, esta absolutamente fora do tempo e, contudo, no tempo, participando dele com 0 amor do seu ato diretivo. Uma das principais finalidades das representagées coloniais é justamente cencenar essa participago de todos os tempos histéricos na Presenga divina. Como ocorre na figuragdo da gestualidade dramética dos santos de Bernini nas igrejas de Roma ou nas igrejas da Bavéria, de Tunja, Puebla, Querétaro, Pernambuco, Bahia e Minas Gerais, a representagio encena © momento da conformatio, a conformagiio, 0 momento da produgo do afeto no destinatério, Le Brun, em L’expréssion des passions, as conferéneias que fez. em Versailles em 1668, afirma que o fim da representagiio ¢ figurar os movimentos da alma 16 através das atitudes dos corpos para que, vendo as imagens piniadas e esculpidas, 0 espectador exercite a imaginagio, produzindo em si mesmo a presenga de um afeto euja forma deve ser a mais semelhante possivel 4 forma do afeto representado no corpo esculpido ou pintado do santo’. © momento representado como conformagdo é justamente © do instante inefavel e mistico do contato com Cristo ou da recepgio da Gr a, que os tedlogos chamam de conformacdo afetiva, sublinhando seu carter passional. Na escultura religiosa das igrejas coloniais baianas e mineitas, as torsies do corpo, ordenado dramaticamente como uma figura serpentinata pela qual os personagens representados dispdem-se como um S em tomo de um eixo imagindrio que os atravessa da cabega aos pés, So realizadas segundo o célculo cenograficamente exato de uma ago aplicada como deformagio que pée em cena uma paixio da alma. Aedo, deformagao, paixdo: a escultura religiosa figura a conformatio, 0 momento do contato do corpo do santo com 0 corpo mistico de Cristo; as varias posigdes possiveis de dedos, mos, pemas, pés, olhos ¢ boca compéem, no préprio estilo, tépicos apaixonados e o lugar da sua observagio adequada pelo destinatério que recebe o efeito. A escultura prevé a distincia exata; no espago da igreja, o espectador empirico deve ocupar a mesma posigio calculada no estilo da peca para destinatiio para ser persuadido da presenga da luz da Graga e ser edificado com cla, nela € por ela. As letras, poesia e prosa, hoje classificadas como “barroco”, ordenam a forma de maneira equivalente 4 conformatio por meio das agudezas, Ii iti] lembrar que, nesse tempo, “afeto” diferia de “ago” e, como no poema de John Donne em que 0 personagem diz. a Deus que nunca poderd ser livre ¢ casto a menos que Ele o estupre- never shall be free/ Nor ever chaste, except you ravish mee- "estar apaixonado" significava deixar que outra vontade agisse sobte 0 corpo, produzindo nele a presenca deformante de sua forga. Aqui, ‘em chave platénico-agostiniana, tanto 0 discursive quanto o pictérico e 0 plastico so figuragdes da infusio mistica da Luz" e, conforme o modelo da Eucaristia, figuragdes da incorporacao da luz natural da Graga pelos corpos operados como dispositivos de produgio da Presenga. A teologia ¢ politica: as representagdes intensificam a desqualificagao da came insubmissa hierarquia, enquanto exaltam, em signos de posig&o disereta, 0 corpo que se subordina, propondo que o sentido do teatro esté além ou que s6 & autorizado 9 Le Br, Charles. L prin ds patins antes fens. Comsponan. Pass, Dsl Maisonneuve et Laose, 1994, °© . Carer, Giovanni, “El Artista”, In. Vill, Rosasio y ot20s. E/ Hombre Barro. Madsid, AWanzs Editorial, 1993, pig 335 7 quando se representa politicamente como participagiio hierarquizada do corpo individual no corpo mistico da comunidade subordinada ao rei. Obviamente, porque nunca pode apresentar um grau zero de si mesmo, 0 corpo & sempre um objeto semidtico; a representagao dele segundo essa metafisica da Luz & homéloga da figura do “corpo mistico” definido nos tratados dos juristas contra-reformistas difundides pela Companhia de Jesus em seus colégios e seminérios, como De legibus € Defensio fidei, de Francisco Suarez, ou Della raggion di Stato, de Giovanni Botero. corpo individual s6 é visivel e dizivel nas letras ¢ artes coloniais quando sua meméria, sua vontade ¢ sua inteliggncia se integram ¢ subordinam-se nos varios corpos de ordens ou na hierarquia corporativa do “bem comum” do Estado, Nao ha nenhuma nogiio de subjetividade psicoldgica, como ¢ normalizada hoje, nas representagbes dessa subordinagio; por isso, a posigdio do eu nessas priticas ¢ imediatamente a de uma subordinagio da vontade, da meméria ¢ do intelecto em formas do todo social objetivo como livre-arbitrio que pode parecer paradoxal para a nossa experiéncia iluminista, pois é liberdade definida como subordinagdo, Subordinago dos apetites individuais A unidade estdica da trangiilidade da alma dada a ver, ouvir ¢ ler nos signos espetaculares da Luz; subordinagdo da trangtilidade da alma a paecificagao dos apetites em relagio ao todo dada a ver no espeticulo; por decorréncia, subordinagao da vontade, da meméria e do intelecto & paz individual e coletiva, decorrente da subordinagao das partes ¢ do todo ao Ditado divino da Igreja garantido pela Coroa portuguesa. Aqui, a intensa sensorialidade das metéforas evidencia justamente a Presenga que legitima a representago. A sensorialidade é um diagrama do sentido geral dessa integrago fornecido ao destinatério como critério avaliativo do efeito, Em um tempo, em um lugar ¢ em priticas nos quais néo ha “opinido piblica”, mas populagao subordinada e, sempre, plebe que murmura contra os excessos do exclusivo monopolista, ¢ um destinatirio composto como representago que testemunha a representagdo que Ihe é oferecida on imposta. Buscadas & Erica a Nicémaco, as paixdes do corpo so aplicadas ou racionalmente construfdas mesmo quando so irracionais, tal como sua doutrina aparece em varios textos ibéricos, italianos e franceses do século XVII, como é 0 caso do tratado que 0 oratoriano Jean-rangois Senault dedicou a Richelieu, em 1641, De "usage des passions. A mecanica das paixdes ¢ aplicada segundo preceitos retéricos e juridicos ¢ 0 efeito resultante fixa 0 18 étimo em que uma ago deforma um gesto produzindo um afeto, como um instanténeo que congela o movimento selecionado pela meméria em elencos prefixados de gestos: Degli effetti nascono gli affetti, como se dizia em Veneza no século XVII: dos efeitos nascem ox afetos. Sendo construido como varias paixdes sucessivas ou simultineas, a que correspondem caracteres permanentes e transitérios, 0 corpo aparece diverso a cada momento, conforme o regime do artificio aplicado. Quando hé simultaneidade de paixses, imediatamente h4 subordinagaio delas ¢ dos caracteres secundérios a um caréter ou paixto principais, Me interessa referir, aqui, a estase, ou seja, a imagem que congela em um instant&neo a agitago do corpo pela paixdo, como nos santos das igrejas. No corpo efetuado se 1é ou vé também a representagio do processo produtor do efeito, ou seja, a presenga de um mecanismo éptico que recicla as t6picas do ut pictura poesis horaciano e que faz 0 destinatario discreto lembrar-se do elenco de ages € da selegao feita pelo juizo do autor da representagao quando calculou as distincias adequadas para a observagio da imagem, o nimero de vezes que deve ser vista e a maior ou menor clareza correspondente ‘ao estilo aplicado. © mesmo mecanismo se acha nas letras de ent&o, poesia ¢ prosa, como cdleulo dos efeitos. As anamorfoses da pintura correspondem as alegorias enigméticas da poesia e da prosa. Em todos os casos, a representago teatraliza a memoria de usos autorizados que a tomam também autorizada. Em todos os casos, as paixdes nunca s expressivas ou psicologicas, mas retéricas, decorrendo de uma racionalidade formalizada numa técnica objetiva e assimetricamente partilhada de produzir efeitos. Nao se trata nunca de exprimir conceitos, mas de teatrali los. O attificio mobiliza varios saberes, retérica, dialética, légica, arte combinatéria, ética, teologia, subordinando-os @ nogdo generalizada de ordo, ordem, ou ratio, razio, figurada nas representagdes da “politica catélica” portuguesa como presenga da luz natural da Graga inata nos negécios do Brasil do Maranhio e Grao Para. © discreto ou dissimulado, tipo que aplica 0 artificio dos varios decoros da hierarquia, pode fazé-lo porque é capacitado pelo engenho. O termo (do tatim ingenium), tal como se utiliza no século XVII, esté associado a idéia de uma forga natural do entendimento que investiga, por meio da raziio e do discurso, tudo o que & possivel alcangar nos diferentes géneros de ciéncias, disciplinas, artes liberais ¢ mecénicas etc. Assim, 0 engenho pode ser caracterizado como a faculdade intelectual que age com perspicdcia 19 dialética, isto & estabelecendo relagdes profundas ou ocultas entre as coisas © os conceitos, Nao é especifico de um tipo de saber apenas, mas penetra em todos 0s assuntos; primeiro, de modo analitico, separando e definindo os conceitos; depois, de modo sintético, pois é também versdtil, capaz, de representé-los de maneira unitéria e de fornecer imagens breves ou metéforas do seu conjunto harménico, Também é possivel definir © engenho como faculdade que funde a dialética (entendida aristotelicamente como an ou diviséo da invengdo e disposigdo, isto é, dos t6picos e da ordenagao das partes do discurso ou do corpo pintado © esculpido) e a retérica (entendida restritivamente como conjunto dos ‘omatos ou figuras da elocuedo). Neste sentido, 0 engenho é, ao mesmo tempo, analitico € sintético, realiz indo a relagdo mais adequada entre a ordem do discurso ou das partes da pintura ¢ da escultura ¢ a sua omamentago. Assim, também, o engenho é a faculdade que po: pode produzir de prazer (aquilo que ela gera como efeito prazeroso no audi ita a conciliagao entre a utilidade da obra (aquilo que ela ensina, docere) e o que ela 0, Icitor ou espectador, delectare). Do ponto de vista das poéticas do século XVII ibérico, o mais alto produto do engenho a agudeza que se estabelece entre conceitos. Também chamada de conceito, conceito engenhoso, ornato dialético, silogismo retérico, entimema, nos tratados italianos, espanhéis ¢ portugueses que circulam no Estado do Brasil € no Estado do Maranho ¢ Grio Pard por meio da Companhia de Jesus ¢ pela agiio de letrados da administragio portuguesa que estudaram em Coimbra, Evora ¢ Salamanca, a agudeza adotada pelos autores desse tempo é, simultaneamente, motivo de polémicas, pois discordam quanto aos graus, aos verossimeis © aos decoros da sua aplicago. Ii © que ocorre nos ataques de Quevedo 4 poesia de Géngora; na sétira gregoriana ao falar agongorado de mulatos e pseudo-fidalgos baianos; na diatribe do Sermo da Sexagésima, de Vieira, contra os estilos cultos dos pregadores dominicanos. A agudeza € produzida retoricamente pelo engenho, a faculdade intelectual da invengio, sendo um padrio socialmente partilhado como distintivo dos "melhores", os discretos. Quero dizer, com isso, que as letras coloniais sé podem ser consideradas “manifestagées” quando so apropriadas da perspectiva do cdnone literdrio nacional como elementos exeluidos (ou nfo) da Bildung ou formago, generalizando-se transistoricamente as definigdes de “autor-obra-piblico” da sociologia. Particularizo 0 que digo, lembrando que em todos os casos a enunciagio das letras coloniais é inventada © ordenada 20 retoricamente, aplicando tépicas ou lugares-comuns na formalizagio dos caracteres e paixdes dos agentes do processo de interlocugao e na qualificagao dos temas do referencial. Os lugares so “questdes indefinidas”, ou seja, argumentos genéricos, que a meméria dos autores acha em eleneos de autoridades no ato da inveng&o dos discursos. Devemos supor outros modos, alguns realmente extraordinarios, de ordenagdo da meméria, que no caso dos autores coloniais é treinada pelos modelos das artes de meméria gregas e latinas, como as estudadas por Frances Yates. Simultaneamente, quando acham os lugares adequados ao discurso particular que inventam, eles os preenchem ou particularizam semanticamente por meio de questdes definidas, ou seja, temas especificos do seu referencial, os discursos coloniais. O procedimento é generalizado nas letras de entdo, Por exemplo, se comparamos a sétira que circulou amplamente na oralidade e na manuseritura da Behia, entre as duas écadas finais do século XVII até a Academia dos Esquecidos, de 1724, com outras sétiras produzidas em outros lugares, encontramos em Caviedes, que viveu em Lima no final do século XVII, ou em Sor Juana Inés de la Cruz, que viveu em Puebla na mesma época, as -mesmas t6picas epiditicas de vituperagao de vicios ¢ vieiosos, as mesmas virtudes definidas aristotelicamente como meio-termo prudente, os mesmos valores fidalgos da racionalidade de corte ibérica, preenchidos por referéncias distintas, especificas do Peru, do México ¢ do Estado do Brasil. Assim, modelada por lugares-comuns, a enunciagiio € sempre uma intencionalidade ndo-psicolégica que no se expressa, mas que aplica lugares. Ao mesmo tempo que pde em cena tépices jé figuradas por um auctor- por exemplo, t6picas poéticas, como as platénicas da lirica de Petrarea e Camdes ou as imitadas diretamente das Metamorfoses e das elegias erdticas de Ovidio, além de temas recortados do referencial local, a enunciagéo também teatraliza a hierarquia, construindo a representagdo do “eu” como tipo cuja situagio social corresponde a uma posiggo hierdrquica determinada. Dizendo doutro modo, a enunciagdo repete ou aplica padres sociais objetivos de ordenago discursiva do “eu” como tipo necessariamente subordinado ao “corpo mistico” do Império. Simultaneamente, 0 “tu” do destinatério discursivo também é figurado como posigdo hierdrquica sem autonomia critica, no sentido liberal e marxista da formula “autonomia critica”. O destinatério sempre & testemunha, como disse, testemunha que recebe a representago que Ihe é dirigida reconhecendo nela sua propria situagio de destinatério que testemunha sua posiga0 subordinada. Ao compor a enunciagdo ¢ 03 2 enunciados dos discursos, a iniciativa individual dos autores coloniais consiste, basicamente, em fazer uma variagSo elocutiva dos preceitos do género em que se especializam, representando-a como apropriago particular, verossimil © decorosa, dos preceitos da obra emulada e do referencial discursivo formal e informal citado, estilizado deformado. Assim, se consideramos a particularidade do discurso feito como emulagao de autoridades anteriores ¢ contempordneas que compuseram obras do mesmo género, & possivel descrever comparativamente a especificidade da iniciativa individual dos autores coloniais como um diferencial, ou seja, como um uso particular da norma técnica que regula o género € que é seguida por todos os autores que o praticam. Por isso mesmo, também é possivel comparar iniciativas diversas do mesmo género € hierarquizar seu valor attistico Jevando em conta os proprios critérios normativos de sua avaliagdo contempordnea: Vieira ¢ mais apto engenhoso no sermio que Eusébio de Matos ou Frei Anténio do Ros io ou o espanhol Paravicino ou o italiano Cataneo; a poesia atribuida a Gregorio de Matos & mais engenhosamente aguda que a de Manuel Botelho de Oliveira que é mais engenhoso que a versalhada das academias do século XVIII etc. Mas a pocsia de Quevedo, que eles imitam, suplanta a poesia deles em valor artistico, s6 encontrando alguma possibilidade de comparagiio na poesia engenhosissima do portugués D. Francisco Manuel de Melo. Tais critérios avaliativos da qualidade artistica as vezes sfo fornecidos diretamente no discurso, podendo ser imediatamente relacionados aos preceitos expostos nos tratados de retérica contempordneos conhecidos pelos letrados quando estudantes nos colégios ¢ na Universidade de Coimbra. f 0 caso dos tratados de Cipriano Soares, Frei Luis de Granada, Baltasar Gracién, Emanuele Tesauro, Sforza Pallavicino ¢ varios outros. Quando isso néo ocorre, é possivel reconstituir os critérios avaliativos por meio de textos polémicos, em que pelo menos duas posigées entram em choque acerca do verdadeiro decoro do estilo. Caso da diatribe, no sermilo da Sexagésima, contra os estilos cultos dos pregadores dominicanos. Ou dos textos de Quevedo seus contemporaneos, Lope de Vega e Séurcgui, partidarios da unidade aristotélico-horaciana dos estilos, contra Géngora ¢ seus imitadores, partidétios das ret6ricas gregas de Hermégenes, Aft6nio, Longino, Demétrio de Falero e Dionisio de Halicarnasso, que comegaram a circular novamente no Ocidente a partir de fins do século XV propondo por exemplo a possibilidade de um mesmo discurso ter 25 estilos. Comparando 0 uso particular do género com outros usos contemporiineos do 2 mesmo, € possivel estabelecer a especificidade da iniciativa individual realizada como variagdo elocutiva da norma técnica coletiva. Isso também é valido em iscursos cuja enunciagio é auto-referencial, como a poesia lirica, memérias e cartas familiares: a forma do “eu” nfo ¢ psicolégica ou romanticamente expressiva, como propée a historiografia literdria brasileira, porque antes de tudo é a forma da representagdo de uma posigao hierarqui definida juridicamente por preceitos do pacto de sujeiga0 do todo social objetivo do “corpo mistico do Estado”. A t6pica do “corpo mistico” do Estado é fundamental nos discursos coloniais, desde os textos de Nobrega, Anchieta, Luis da Gra e Fernfo Cardim, no século XVI, até os de Tomés Anténio Gonzaga, na segunda metade do XVIII. A tépica também comparece em tratados arquiteténicos que doutrinam modos de ordenar 0 espago urbano como alegoria do corpo politico do Estado. Ou em livros de emblemas, que fornecem os modelos para os omamentos de igrejas ¢ outros espagos hierarquicamente qualificados das cidades ¢ vilas coloniais, como chafatizes, pragas, palicios de governadores ¢ casas da Camara. Duas referéncias principais se fundem na formula “corpo mistico”: uma delas ¢ teoldgica, 0 “corpo de Cristo”, a héstia consagrada pela Eucaristia, e, por extensio, a respublica christiana, a repiiblica crist ou corpo mistico da Igreja Catdliea. A outra referencia Juridica, oriunda da teoria da corporatio, a corporagao romana, ¢ da nogo medieval de universitas, relacionando-se prineipalmente 4 doutrina politica da persona publica, nome dado por Santo Tomds de Aquino & nogdo jurfdica de persona ficta, “pessoa ficticia”, ou persona repraesentata, “pessoa representada”. Durante 0 Concilio de Trento (1543-1563), 6s juristas jesuitas e dominicanos juntaram & nogio de respublica a de corpus mysticum, fundando com ambas a de corpo politico. No final do séeulo XVI ¢ no inicio do XVII, a doutrina suareziana do pactum subjectionis ou pacto de sujeigao do todo do reino como “corpo mistico” de vontades unificadas na subordinago a um s6, 0 rei, fundamenta a centralizagio do poder mondrquico portugués como “politica catélica”, também doutrinando o “bem comum” desse “corpo mfstico” e as empresas coloniais econdmicas, militares e religiosas no Brasil, Maranhio, Africa e Asia, A doutrina que entio define 0 estatuto juridico da pessoa em Portugal, no Estado do Brasil e no Estado do Maranhao ¢ Grio Par pressupe 0 conceito de “corpo mistico”, sendo oposta ferozmente as teses de Lutero e Maquiavel sobre o poder politico. E ensinada nos cursos de Direito da 23 Universidade de Coimbra ¢ divulgada pelos jesuitas em seus colégios do Brasil e do Maranhai . Ela esta na base da educagaio dos letrados coloniais e, a partir do final do século XVI, quando a Companhia de Jesus passa a definir toda representago como theatrum sacrum, teatro sacto ou encenaio dos principias teoligico-politicos do Estado, ela é um dos principais fundamentos doutrindrios das representagdes. Segundo a tese da lex peccati, “lei do pecado”, publicada por Martinho Lutero em Wittenberg, em 1517, 0 poder politico decorre diretamente de Deus, que envia 0s reis para impor ordem a anarquia dos homens corrompidos pelo pecado original. Por meio dos jesuitas, principalmente, a Igreja Catélica combate a tese reformada, decretando que Deus certamente ¢ origem do poder, como causa universalis ou causa universal da natureza e da hist6ria, mas niio causa proxima ou direta do mesmo, pois ele decorre de um pacto de sujeigao. A principal autoridade candnica que os juristas contra-reformistas citam para fundamentar a doutrina do pacto de sujeigao é 0 Comentério do Livro V da Metafisica, de Arist6teles, feito por Santo Tomas de Aquino''. Nele, trata-se da unidade de integragiio do corpo humano, demonstrando-se que a unidade do corpo pressupde a integraglio da pluralidade dos scus membros e a diversidade das suas fungdes como “ordem”. A integragéio harmOnica é instrumento para o prinefpio superior que rege 0 corpo, a alma, Por analogia, propde Santo Tomis, o corpus hominis naturale, © corpo natural do homem assim, definido, & termo de comparagiia para outros objetos passiveis de serem pensados como "corpos”. E 0 caso da sociedade, comparavel ao corpo humano segundo a proporgao cabeca: corpo :: rei: reino. Assim, a doutrina catélica do poder difundida pelas instituigdes portuguesas no Estado do Brasil e no Estado do Maranhio ¢ Grio Paré define a sociedade como um “corpo” de "membros", "partes", "ordens" ¢ “fungdes”; analogamente, o rei é sua “cabega ou "razio suprema". Dirige-a racionalmente, como a cabega comanda 0 corpo, tendo por finalidade 0 “bem comum”, a concérdia a paz do todo. As pessoas do reino, desde os escravos até os principes da Casa Real, so definidas como membros necessariamente subordinados & cabega real. A subordinag2o é sistematizada doutrinariamente no texto 1 Aquino, Santo Tomas. De regno II,2. In Opera omnia. Roma, 1979, t. 42; Tratado de la ley, Tratado de la _justicia, Gobierno de los principes. 5 ed. Trad. y estidio introductivo por Carlos Igndcio Gonzilez, S.J. México, Editorial Porrua, 1996, n. 301 4 Defensio fidei (Defesa da Fé) (1613)", do jurista ¢ tedlogo jesuita Francisco Suarez. O livro combate a tese do “direito divino” dos reis defen la contra 0 Papa pelo rei de Inglaterra, James I, no texto Basilikon Doron, de 1580. Segundo Suarez, a subordinagao da sociedade ao rei nasce de um pactum subjectionis, “pacto de sujeiga0”, espécie de contrato social pelo qual a comunidade, como um ‘inico “corpo mistico” de vontades unificadas, abre mio de todo poder, alienando-o na pessoa simbélica do rei- pessoa mistica (mystica), ficticia (ficta), ideal (idealis) ou representada (repraesentata)- para declarar-se siidita (= submetida). No pacto de sujeigao, a pessoa mistica do rei é soberana. Detendo 0 monopélio da violéncia militar, judiciéria e fiscal, o rei confere os privilégios que hierarquizam pessoas individuais, ordens ¢ estamentos do reino. O rei ndo tem superior, pois nfo ha ninguém que po obrigé-lo a nada: ¢ legibus solutus, “absoluto de leis” (~ “solto”, “absolvido” ou “livre” do poder coercitivo ou imperative das leis). Mas, como é rei catélico, deve necessariamente seguir a forga indicativa da lei natural de Deus para que seu governo seja legitimo. Doutra forma, torna-se maguiavélico ow tirénico, podendo ser destronado e mesmo morto pelos stiditos. Diferentemente do mundo protestante, em que 0 rei € sagrado porque reina por direito divino como enviado direto de Deus para impor a ordem aos homens naturalmente inclinados a anarquia pela lei do pecado original, em Portugal e suas colénias a figura do rei é sagrada porque representa a soberania da comunidade que se alienou dela. A sacralidade da soberania determina que a desigualdade é natural; logo, também implica que cada um deve necessariamente contentar-se com a sorte que Ihe cabe na hierarquia. Cada posigdo social, pessoal e estamental, tem uma forma ou uma representagio sempre adequadas & hierarquia que sempre devem ser dadas a ver por meio de signos exteriores que as constituem, mantém e confirmam como formas subordinadas a0 todo comandado pelo rei. Assim, essas topicas teoldgico-politicas so recorrentes s cartas de Nébrega, no teatro de Anchieta, nos tratados de cronistas como Gandavo ¢ Gabriel Soares de Sousa, na poesia épica de Bento Teixeira, no século XVI; nos textos de género hist6rico sobre as guerras holandesas, na poesia satirica ¢ lirica atribuida a Gregério de Matos, em toda a obra sermonistica, epistologréfica e profética de Vieira, no ‘Suirez, Francisco, $.J. Defensa de la Fé Catélica y Apostélica contra tos Errores del Anglicanismo. Reproduccién anastitica de la edicién principe de Coimbra 1613. Versién espaliola por José Ramén Equillor Muniozguren, $.1. Com uma introduccién General por el Imo. Sr. Dr. Don Francisco Alvarez Alvarez, Pro. Maari, Instiuto de Estidios Politioos- Seccion de Te6logos Juristas, 1970, 4 v 28 século XVIT; ¢ nos textos das academias, como a Academia dos Esquecidos, no século XVII. Ou na prosa narrativa, como a do Compéndio Narrative do Peregrino da América, de Nuno Marques Pereira, Por exemplo, nos sermées bélicos que pregou entre 1641 ¢ 1652, durante as guerras da Restauragao, Vieira afirmava, como outros nacionalistas portugueses, que Portugal fazia uma “guerra justa” contra a Espanha, porque desde 1580, quando o rei Felipe 11 (Felipe I de Portugal) subira ao trono do pafs, os Habsburgos espanhdis tinham reinado tiranicamente, sem que a populagio tivesse feito 0 pacto de sujeigtio com eles. Evidenciando a longa duragao das formas de representagiio do corpo dos siditos da politica catdlica ainda depois das reformas pombalinas, na segunda metade do século XVIII, as mesmas t6picas teol6gico-politicas aparecem na poesia elegiaca e épica de Claudio Manuel da Costa, na poesia encomiastica de Inacio de Alvarenga Peixoto, no Tratado de Direito Natural € nas Cartas Chilenas, de Tomas Antonio Gonzaga, em O Uraguai, de Basilio da Gama, no Caramuru, de Santa Rita Durdo, sendo também legiveis ¢ visiveis no livro de emblemas, Principe Perfeito, imitagio de um livro de Solérzano Pereira publicado no século XVII, que em 1790 foi dedicado ao Principe, 0 futuro D, Joao VI ‘Acho pettinente insistir: a forma da pessoalidade do “eu” da enunciagao ¢ do destinatario textual, além das categorias que classificam as matérias representadas, no so cartesianas e iluministas, mas sempre representacdo definida escolasticamente. Pelo termo ropresentagdo podemos entender, no caso, a forma interposta nas letras como relago de conceito e linguagem que toma suas significagdes convergentes ou dedutiveis de um principio de identidade, 0 conceito indeterminado de Deus, sempre articulado segundo a ‘oposig#o complementar de infinito/finito. Na “politica catélica” ibérica doutrinada e sistematizada no Coneilio de Trento, a identidade desse principio infinito ¢ afirmada como ‘Causa Primeira dos seres ¢ eventos finitos da natureza ¢ da histéria. A doutrina afirma que, por serem criados, existem unidos & matéria criada como anélogos da substincia divina, participando nela por atribuigao e proporgéo; simultaneamente, relacionam-se uns com 03 outros pela semelhanga que os une como diferenga hierérquica de seres criados. Assim, identidade, analogia © semelhanca sio matrizes ¢ articulagdes gerais das categorias teoldgico-politicas © retérico-poéticas que figuram a natureza e a historia nas letras coloniais. Actedito ser ‘itil consideré-las, se ainda houver interesse na hist6ria da primeira 26 legibilidade normativa das representagdes coloniais. De todo modo, a discuss4o dos usos dessas representagdes no nosso presente nao poderia ignoré-las. er

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