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Profanagées ererateenican Oe ners eee eee Ree eet ees eta Sete eee ne en Re eee ee diferengas de classe, mas uma sociedade que soubi eee ue ees eens Giorgio Agamben }! — ofonagoes. de Gioggio Agamben, dé continuidade ‘na rflesbes acerca do capitalismo, das revelugbes ‘ecnnllgieas madernase da inseguranea juridiea ss suetrales onitemporaneas, O autor segue as ‘owlicagiex se Walter Benjamin, quando este azalisa one sévulo XIX cade que 6a saa de visita ‘ones bunjuesia faz os seus negécios”. Enquanto sliyeute norms no Parlamento, a8 verdadeiras eee tomadas nos corredares. A decisto éa Fonna politica do exercivio do governo eaptalista, o emquee poder necessita destaner-se lie Decidir signifies estabelever quais partes ralulade do homem eda mundo ae encontraan lh seyulago do direito, nada mais eseapande ao ues diserieiondria deum soberano, Desaparece Aotingaw entre ointimo, 0 pabice € 0 privade, tudo rte wr obyeta de deciso, ‘hyfanges eolere- ne 208 interstcios da cultura ‘opitoiota qual ve express a ltrapassagem da node menado pela sociedade de mercado, ivernalizagiodo Fendmena do fetichisma pela ‘10 aun eatrutura dentealizante. Ndo por aeaso, ‘onecalo XIN 6 simultancamente, odo progresso ‘oe wala proliferagio do espiritismos nele, Inde coineidem e se identifiesm. Fantantnane modern sora eseapa das mos que sivam, denne de ser produto, expiritos ‘nina ge wepararn de wun aubstancia propria 6 pasaann adonrinaron vvos, adguirinde wna “olyjoividade empeetral com via independlente nen, Hou mundo sem homens e sean ‘non, “ajudanten”, "imbos" & “pai 8 Livro ~canattuem uma reserva He proegan da eatera explrito contra otmpacto da PROFANAGOES PROFANACOES GIoRGIO AGAMBEN stradugdo e apreremtagio Selvino J. Assmann ta bert ou fa ert, Genius da bora, ote Real, tela de 1755. 1 Knstal, Hambgo Bere mee Copyighe © Giorgia Aguen, 2005, ‘Copyright deta eg © Boitempo Faincl, 2007 Coordenasio erat ra Jokings Ebior adie Joo AleandeePeschaski ira entree Soa Pela Casella Tindcto « precntcie Selina J Assmann Edy de exteAlosanda Sedchlag Fernandes (prac) Joortan Busco (vis) trite debice Raquel Sllabemy Bio Cope David Atel ‘ac ide Ged dni, dey Zy Prodapa Mea ha CCIP-BRASIL. CATALOGAGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Anlp ‘Aguben, Giorgi, 1942- TYofinaée / Glongio Agamben; sido «apraenaio de Seino Jos ‘Asmenn,» So Pala Bolempo, 2007 (Marxinmo « terse) “indus de: Prfeesion! ISBN 978-85-7559.093-5 1, Esta 2, Are Elo, 3, Plo ean ~ Stel XX. 1 Thal 07-1420 cpp: 195 cpu: 145) “Todorov ios ssradan: Nenbuona pare dete io poe ser ‘sleds ow cepodssida ce a expres sutecz da elton, 1s eg: mio de 2007 AOITEMPO EDITORIAL Jlnkins Editres Asociados Ua on Enclds de Anda, 27 Ceres Fells (11) 34757250 1 38 \Gbolempordi ew hokey Sumério Apresentagito, Seino J Assmann © ota 90 UFR HOGI DA PROTANAGAD {06 S118 MINUTOS MAIS BELOS DA HISTORIA DO CINEMA Iniice dos prencipais nomesetermercitades Sobre vauter a a a ® 3 Apresentagao ‘Gionyiy Agamben — um dos mais importantes e mais lides pensadores curo- Jade ~ torma-se eada vez mais conhecido entre nés. Independen- 1 clecomo se queim casifcé-lo— como continuador de Walter Benjamin Martin Heidegger, ou de Michel Foucault, Jacques Derrida, Emile weniste © de Guy Debord, ou como alternativa 20 pensamento anglo- «de Richard Rorcy — Agamben & um intelectual instigante, exigente ¢ impestivo, em meio & tamanha produsio bibliografica contemporines, Inpressiona a qualquer letor o fato de ele procurar chaves ou pistas de leitura sly situagio atual andando sinuosamente entre uma mirfade de autores antigos \como Avistételes), medievais, modernos e contemportineos, ¢ em varios cam- da Filosofia (Filosofia politica, ética, estéri- 4. metafisica) & literatara © & teologia. Agamben vai consolidando em sua pos de saber, da fllologia ao di ‘olvia uma corajosaleicara do pensamento politico concemporineo, recorrendo 1 patadigmas extremos como o “campo de concentragio” ou o “estado de exce- a0", ¢ sobretudo falando da biopolitica como luta da vida e das formas da vid contra © poder, que procura submeté-las a seus fins por meios muitas vores ilegitimos. Em um mundo onde eudo parece tere tornado neceeciria © inevitivel, sagrado, Agamben procura resistr, des-eriar 0 que existe, tentando ser mais Forte do queo que esti a, como o fir 0 escriturério Bartleby de Melville (Ypre- Feriria nfo!”). Isso equivalea ir em busca da infincia, ou seja, de nossa capaci- dade de jogar e de amar, a saber, de viver na intimidade de um ser estranho, rao para fizé-lo conhecido, e sim para estar a0 lado dele sem medo de ficar centre 0 dive eo indizvel equivale perseguirsinaisefresas de contingén- 7 cia, de “absoluta contingéncia", ou sea, de subjetividade, de iberdade huma na, de cesuras entre um poder-ser ¢ um poder-no-ser, Insista-se: um mundo em que tudo é necesstio e nada € possivel €um mundo sem sujeito, um mun- do sem liberdade, sem possibilidade de eriagéo. ‘Nessa perspectiva, tornam-se importantes na obra de Agamben os textos em que rediscute 0 conceito de poréncia. Na companhia de Aristbteles, ele chama a atengio para o fato de que nos acostumamos a pensare a agit pensan- do que a poténcia sempre acaba quando passa 20 ato, quando se realiza: uma, cr1anga que tem a poténcia de ser adulto detearia de ter essa potencla quando se torna adulto. Mas hé também, inclusive para Aristételes, outra importante compreensio de poténcia: um pianista no ato de executar Chopin nfo acaba ‘com sua potncia de pianista, Pelo contrério, quanto mais exccutar as sonatas do compositor, mais teri conservada e aumentada a poténcia de artista. Ao ‘mesmo tempo, tera poténcia de pianista equivalea poder executare poder néo ‘executat as obras, De forma semelhante, © de mancira ainda mais ampla, “an centicamence livre, nesse sentido, seria nfo quem pode simplesmente cumprit este ou aquele ato nem simplesmente quem pode no o cumprir, mas quiem, :mantendo-se em relagio com a privagio, pode a prépria impoténcia". A pas- sagem a0 ato no anula nem esgota a poténcia, masa conserva no ato como tal «, marcadamente, na sua forma eminente de poténcia de nio (ser ou faze). (©u, melhor ainda: “Se uma poténcia de no ser pertence originalmente a toda poténcia, serd realmente potente sb quem, no momento da passagem ao ato, néo anulay simplesmente a pripria potincia de ndo, nem adetsar pava trds cam respei- 10 ao ato, mas a izer passa integralmente a el como tal, ou sea, puder néon pasar ao ato” Esta €a grandeza ea mi jada poténcia humana que se trata de cultivar € de promover, ¢€esta grandeza ¢ miséria do ser humano que se encontra prati- camente anulada na forma de vida que sc extabelecca, rosnande a nosis vide tuma “vida nua”, E isso a biopolitica que se consolidou como dominio sobre a vida, E écom a profanagio que se pode resistira tudo isso, e que se pode tentar ‘Ls potenaa del pensero Vieeraa, Neti Pozza, 2005), p. 282. Ihidem, p. 285, rifos do autor. wine nova politica, une nove ser humano, sina nova comunidade, pensande e promovenda o avesso da vida nna, a poténcia de vida, ea vida humana e potdncia de ser e de no set, Agamben termina texto intivalado "A poténcia slo pensamenta”, que di titulo a0 livro ji referido, com as seguintes afirma es, que servem come um programa em tealizagso por parte do autor: “Deve vindla medic todas as conseqiiéneias dessa figura da poréncia que, ao se Ho si mvesnna, se salva e eresce no ato. Hla obriga-nos a repensar na sua toralidale nao apenas a relagio entre poréncia e ato, entre o possivel o real, 1 coniderar de mode neve, na estédea, 0 estatuto do aro de “rhavanre dobre, na polities, o problema da conservagia do poder constituinte » wales constitufdlo, E, porém, toda a compreensio do ser vivo que deve ser pour em xeque se for verdade que a vida deve ser pensada como poténcia que Incessaneemente excode as suas formas e as suas reaizagées”, Nese contexto, a lta pela étea nfo &, como se costuma afirma uta pelo ‘unsprimento da norma existente, nem pela realizagio desta ou daquela ess 1 deste ou daquele destino, desta ou daquela vocagio histérica ou pivitual, Embora nao se trate de negar que. ser humano tenba uma tarefa a veallvatt lta pela ética &a luta pela iberdade, ou sea, Iuta para que possamos perimentar nossa “prépea existéncia como possibilidade ou pottncia”, *po- Wéncia de ser e de nfo ser’, 1 assim qui esse italiano, nascido em Roma (erst pagét!) em 1942, assu- ‘nc explicitamente como tarefa “alargar 0 trabalho de jichel Foucaule”, Ele o lar, tecendo(¢ profanand) vitis fis, vérios conceitos, andando por diferen- ‘es campos de saber. Contudo, nas sendas de Foucault, Agamben abre cami- tho por dois tet Srios em queo pensador francés praticamente esteveausente, 1 dincito ea weologia, Para ficar com o terrtério da teologia, mais préxima do tema da sagrado ¢ do profano, basta embrar © conjunte de obras que tem por lo geral Homo sacer (, IT ¢ ID), incluindo a mais recente, publicada no inicio de 2007, If regno e la gloria: per una genealogia teologica delleconomia e el governo (Homo sacer, 11,2). “Ibidem, p. 286 {La conmind che viene (Toring, Bollati Boringhieti, 2001), p. 39. ° Vindo mais diretamente & obra que aqui procuramos apresentar sos lite res, potlemos afirmar que a profanagio € um tema recorrente en Ayainben. Por isso, Prafanarées pode se visto e seguido como um fio condutor na textura Ccomposta nos vitios textos jé publicados. De forma geral, poderiamos dizer aque cle dedica toda a sua andlise ilséfica,filol6gica, histbrea, stécica, a pro- fanar o sagrado, ou melhor, 2 procurar devolver & comunidade humana aquilo ue historicamente foi subtzaido ao uso comum através da sacralizagio, Profa- ‘nar —conceito otiginalmente romano ~ significa tirar da tempo (fantom) onde algo fol posto, ou retirado initiahuemte du uso € da propricdade dos seres hhumanos. Por iso, a profanagio pressupée a existéncia do sagrado (1ace7), 0 ato de retirat do uso comum. Profanar significa, assim, tocar no consagrado para liberté-lo (e libertat-) do sagrado. Contudo, a profanagio nao permite ‘que o uso antigo possa ser recuperado na integra, como se pudéssemos apagat impunemente o tempo durante © qual o objeto esteve retirado do seu uso comum. O que se pode fazer é apenas um novo uso. Assim, por exemplo, apoiando-se em Benjamin, para quem 0 cap ‘Agamben insiste em apresentar “a profanagéo do improfandvel” como “a tarefa politica da geragio que vem: tata-se de procurarmos libercar-nos da asfixia cconsumista em que estamos metidos, e se trata, a0 mesmo tempo, de afastar- lismo ¢ visto como religio, nos da sactalizagio do eu soberano de Descartes, ¢ chamar a atengio para 0 impessoal, o obscuto, o pré-individual da vida de cada um de nbs, Isso inclui igualmente a tarefa de profanar 2 prépria atividade do autor, transformando 0 ato de conhecer e de escrever em parddia da vida mesma: “Viver com Genius significa, nessa perspectiva, viver na intimidade de um ser estranho, mantet-se constantemente vineulado com uma zona de néo-conhe- cimento”?. Ou entéo: “Escrevemos para nos tornarmos impessoais, part nos tomarmos geniais, ¢, contudo, escrevendo, identificamo-nos como autores desta ‘ou daqusla obre, dictenciamo nos de Genius, que nunca pode ter a forma de tum Eu, e menos ainda a de um autor” E hi duas possibilidades, segundo ‘Agamben: “Frente a Genius, nfo ha grandes homens; todos sio igualmente pequenos. Alguns, porém, sio suficientemente ineonscientes = ponto de se 5 Ver adiante, p17. © Idem, p. 18. Jcivareny abalar € attavensar por cle até que caiam aos pedagas, Outros, mas 2s, mas inenios felizes, rejeitam personificar o impeswal, emprestar os pri pins Libis a uma vor que nao thes pertence”. Agamben quer siuarse entre «sem meio de ser menos feliz, mas persistent em querer profs ‘nae o inprotinivel nos temposde tanta seralizagio, que & tempo de secular sim, qqie © deslocamento do sagrado de um hugar para outro, de fora da utile para denito do mundo, e née profanagio... /omscen ols puabliceda em 2004, refine uma dezena de textos de tama lcventes, esctitos em momentos anteriores ou posteriores @ outros livros slo aun Dificil defini lieratiamente os textos: sia en: , sio prosa. Sio fuayentos, ef ow Ik quase aforismes, Mas é um liveo sobre a agéo politica politica possivel e um livto possivel em uma época em que o irracio- nal onsa apresentar-se como racional, Ninguém melhor do que 0 préprio au- nportincia © 0 significado da agéo de profanar: “O que ‘oni qealmente em questi 6, na verdade, possibilidade de uma agéo humana aque se situe fora de toda relagio com 0 diteito, agio que nio ponha, que néo scte ow que no transgrida simplesmente © diteito, Trata-se do que os 1s tinham em mente quando, em sua luta contea a hierarquia ecle- Jisica,veivindicavam & possibilidade de um use de coisas que nunca advém 1. «que nunca advém propriedade, E talver ‘politics’ seja 0 nome desta imensii que seabrea parti de tal perspectiva, 0 nome do livre uso do mun- «lo, Mas tal use nao €algo como uma condigéo natural origindtia que se trata sle restaunat, Hla est mais perto de algo de novo, algo que é resultado de um ‘pe corpo com os dispositives do poder que procuram subjetivar, no di- ‘eito, as ayes humanas. Por isso tenho trabalhado recentemente sobre 0 con- city de 'profanagi® que, no dirsito romano, indicava 0 ato por meio de qual » qe havia sido separado na eafra da tligitre do sagrade woleava a ser resti- Awd 90 livre uso do homer’® Fara vealizar a atividade de profanagéo, Agamben circula entte a sistema- tiidade e seu abandono. A esctitura & em si mesma uma propasta profana, Wem, p19 Fevista eoncedida 3 otha de Poul, 18/10/2008. 0 movenslo-se conscientemente entre o dizivel ¢ 0 indizivel, Hi paradoxos, hd imetéforas, hi palavras eruas que profanam que parecia teoricamente sagra- do, Agamben profana com uma eserita intensa, cheia de vida, dil, mesmo sendo sinus, esurpreendente. Por iso, pede um leitor atento, diante da feigéo dligressiva e fragmentéria em que se conjugam conccitos anttéticos como 0 profano eo sagrado, a pornografa ea politica, a tligio ea forografia,o judas io e. publicidade, o espeticulo midiético e o dia do juizo final, a parsdiaco inferno, até chegar a0 cendrio dos “seis minutos mais belos da histéria do cinema’. "Todos os conecitox parecem sce faces de prismaa quelevam aexperién vidade, joutias vers Ficamos surpresos até perplexos € confusos, e temos que voltarao cia a linguagem ao limite. As veres ficamos deslumbrados pela cri inicio do texto, Cheios de referéncias a outros autores, nem sempre tio familia- tes, todos 08 textos se apresentam como faces ¢ fases de uma “ontologia do presente", como queria Michel Foucault, Em cada texto, portanto, um elogio da profanago: mostrando a forografia como “dia do juizo universal”, ou apresen- tando o ajudante Pinéquie como “arquétipo da seredade e da graga do inumano”; ‘ou entao declarando que s6 existe uma possibilidade de set feliz: a de erer no divino ¢, no entanto, néo aspiraraalcangi-lo. O di geralmente tio separados, parecem aqui colapsar-se. Ou entéo, frente ao capi- talismo como religito moderna por excelénca, que se tornou o improfandvel »,ohumano, 0 natural, absoluto para todos nés, ou frente destruigéo moderna de qualquer experién- cia, com a exaltagio contemporinea do espetéculo, Agamben convoca & “pro- fanagio do improfandvel” como “o dever polit dla préxima geragio”. Ese desejo de profanar parece encontrar inspiragio em dois grandes ami- {g0s:0 cineasta Pier Paolo Pasolini ca esritora Elsa Morante, esta capar de trans- formar a parédia em personagem de romance. Ea parédia torna ridiculo, cdmico ou grotesco 0 que para outros é sério. Dito de outra maneira: quando se quer atingiro mi cde manter vivaatensio dual presente na realidade, no préprio ser. “Sea ontologia, a relagio [..] entre linguagem ¢ mundo, a parédia (.] expressa a impossibi- Tidade da lingua de alcangar a coisa, ea da coisa encontrar seu nome”. ia, inenarrival, s& nas resta apolar para a parédia, dinico modo © Ver adiante, p. 47. 2 Fsobrennde no capitulo intitulado "Elagio da profinagio” que se tee mais Laramente wi Fin que wura de certa forma todos os textos do livte. Todos les procutam profanar, ou seja, devolver 0 que esté consagrado a0 livre uso omens; on ao aso comum dos homens, Profanae éasumie a vida como Jingu que nos tra da esfera do sagrado, sendlo uma expécie de inverséo do snes Canvislande-nos a profinar, Agamben alerta para o ito de termos povlidis a ante de viver, que éa da infincia, lugar primeiro da mais séria profi vote sa vida, vio fi fora anunelado pelo Zaratustra de Nietasche, ereroma- fjord emer For Eeweflen,cxtswcnca al aapte ‘01 seu “inessianismo imanente”: as erfangas sabem jogar e brineat, enquanto vos alulios séHi0s, perder a capacidale de ser migicos ede fazerem milagres. Rea vando © que dissemos antes, refazemos a pergunta: € possivel eudo toon dante da Forga © da normalidade da excegéo, diante da impetiosa nor- ‘vlidace da vida nua em que estamos ou fomos metidos? Ou entéo, o que é Jpossivel fiver? O que nos resta fazer? Quen Ie os livtos de Giorgio Agamben se sente interessado em saber mais «mello que para ele 6, ou so, “o ser que ver’, “o set humano que vem’, “a politics que ve "", “a ética que ver", “a comunidade que vem”, Tudo 0 que «ter «ver com “o messas que vem. C& el parece haver o preniin- ‘in on aniincio de algo novo, de algo desejado, experado em meio a0 desespero pporante wma normalidade peseda que nao parece deixar nenhuma pos- wle senio uma vida nua, (© que rests fazer? Em primeiro lugas, abandonar as solugdes que foram vjescntadas na modernidade; abandonat, por exemplo, a visio otimista da 1 humana; abandonar a aposta de que tudo pode ser resolvide através swnprimenta da norma. ¢ por isso abandonar também 3 aposes ne “estado slieito”, Poderiamos dizer que, nesse sentido, Agimben radicaliza a deniin- ‘in le que ficamos de mios vazias, de que caimos defi ivamente no nilismo, «tuuls vestaa fazer Se fosse asim, porém, por que insistit com “a comunidade ‘que vom”, “a polftica que vem, “o homem que vent"? Vs além de todas as profanagées jéefetuadas por Agamben, ¢ de todos os anincios ja insinuados por ele, avez nos caiba, como letores, usufivir da 1B companhia instigante e privilegiada deste autos, ¢ tentar aceltar a convite para {que também nds ouseros “Viver com Genie’. Tentando pensst, pensando, também nés nos colocamas em jogo, « podemos, quem sabe, contribuir para «que “a politica que vem” ¢ “o ser humano que ver” estejam uum pouco mais perto como poténcia da vida, poténcia de ser ¢ de nio-ser. Selvino J. Assmann abril de 2007 GENIUS. Now my charms are all oerthrown, And what srength I haves mine own, Prispero ao piiblico (Os latinos chamavam Genius ao deusa que todo homem é confiado sob tutela nur hora do nascimento, A etimologta &transpatente, ¢ ainda évisfvel na Kingua Willan sna aproximasio entre genio [genio] © generare [gerar]. Que Genius lis, evidente, pelo fato de 0 objeto por exceléncia nial” cer sco, para os latinos, a cama: genialis lectus, porque nela se realiza 0 store poravio, Fe sagrado para Genius era 0 dia do nascimento, motivo pelo ‘qual sind o slenominamos genetliaeo, Os presentes e os banquetes com que lostcjans 0 aniversivio so, apesar do odioso ¢ jf inevitivel refiéo anglo- 1 lembranga da festa e dos sactificios que as familias romanas any a Genius no aniversirio de seus membros. Horicio fala de vinho » ee dois meses, de um cordeiro “imolado”, ou seja, salpicado v1 «salsa para o sacificio; mas parece que, originalmente, sé havia incenso, sllisiosss cueas[fatee] de mel, porque Genius, © deus que preside a0 dle sicificios stagrentos ‘CHhama se meu Genius, porque me gerou (Genius mens nominatur, quia ‘ne gomnit).” Mas nao basta. Genius no era apenas a petsonificagio da enegia Claro que cada ser humano macho tinha seu Genius, ¢ cada mulher a nifestagio da ferundidade qive geea © perpetuaa vida. Mas, © ovidente no termo ingenium, que designa a soma das qualidade fsicas m est para nascer, Genius era, de algum modo, slivinizasio da pessoa, o principio que rege e exprime a sua existéncia inteia, Por ese motivo, consagrava-se a Genius a fronte, @ néo 0 pitbis; © 0 gesto de fronte, que fazemos, quase sem nos dar conta, nos momentos de slestnimo, quando parece que quase nos esquecemos de nés mesmos, lemba 0 15 esto ritual do culeo dhe Genius (unde nenenantesdewn tanginns onsen). E dado que esse deus é, de cctta forma, o mais intimo e proprio, é nevessirio aplaci-lo tél bem favorivel sob todos os aspectos ¢ em todos os momentos da vida Hi uma expressio Latina que exprime maravilhosamente a relagio secreta que cada um deve saber cultivar com o proprio Genius: indulgere Genio. F preciso ser condescendente com Genius ¢ abandonar-se a ele; a Genius deve- mos conceder tudo 0 que nos pede, pois sua exigéncia € nossa exigéncia: sua Rlicidase, nossa felicidade, Meamo que suas nossa! protensSco possam parecer inaceitaveis e caprichosas, convém aceité-las sem discussio, Se, para excrever,tendes ~ tem! — necessidade do papel amarelinho, da caneta especial, til dizer que se precisamos exatamente da luz fraca que desce da esquerda, qualquer canera cumpresus tarefa, que qualquer papel e qualquer luz sio bons. Se nio vale a pena viver sem a camisa de linho celeste (mas, por favor, no a bbranca com 0 colarinho de funcionétio)), se nao parece possivel continuar vivendo sem os cigarros compridos envoltos em papel preto, de nada serve ficar repetind® que sio simples manias, que seria hora de criar juizo. Genéum suum defiandare— fraudar 0 proprio génio significa, em latim, tomar tristea ‘proptia vida, ludibria asi mesmo. E genialr— genial —€ 2 vida que distancia ‘da morte © olhar e responde sem hesitagio 20 impulso do génio que o gerou. ‘Mas esse deus muito intimo e pessoal € também o que hi de mais impessoal tem nés, 2 personalizagio do que, em nés, nos supera e excede. “Genius é a nossa vida, enquanto no foi por nés originada, mas nos deu origem.” Se cle parece identificar-se conosco, é s6 para desvelarse, logo depois, como algo mais do que nés mesmos, para nos mostrar que ns mesmos somos mais © ‘menos do que nds mesmos. Compreender a concepgio de homem implicita com Genius equivale a campreender que n hamem née é apenas Fur ¢ conscidne cia individual, mas que, desde o nascimento até & morte, ele convive com um clemento impessoal ¢ pré-individual. © homem é, pois, um sinica ser com duas fases, que deriva da complicada dialésica entre uma parte (ainda) nio idencificada e vivida, © uma parte jé marcada pela sorte e pela expesiéncia individual. Mas a parte impessoal e nfo identficada nao é um passado erono- légico que uma vez por todas deixamos para tris, e que podemos, cventual- 16 mente, chamar de volta com a meméra; ela esté presente até agora, em nds e conosco ¢ junto de nis, no bem e no mal, inseparivel. O rosto de jovem de Gonins, suas longas etrémulas asa signficam que ele née conhece o tempo, «que o sentimos bem perto em nés, estremecendo de frio como quando éramos ‘sans, respitando ebatendo as emporas febris como um presente imemorivel. Vor isso, 0 aniversério nfo pode ser a comemoracio de um dia passado, mas, unc tadasecindeie ea atelier ee aan eee eee, ‘1 presenga imaproximével que impede que nos fechemos em uma identidade uistancial, & Genius que rompe com a prerensio do Eudebasmr seat me:ino. \ cspititualidade ~ afiemou-se ~ é sobretudo, essa consciéncia do fato de ue 0 ser identifieado no esté totalmente identificado, mas ainda contém va carga de realidade néo-identifieada, que importa néo apenas conservat, ‘ns também tespeitar , de algum modo, honrar, assim como se honram as | iprias dividas. Genius, porém, nao é 36 espivitualidade, nfo tem a ver ape- nis Com as coisas que estamos acostumados a considerar mais nobres ¢ eleva- «lis, Todo @ impessoal em nés é genial; genial é, sobretudo, a forga que move o sngue em nossas veias ou nos fiz cait em sono profundo, a desconhecida ppotencia que, em nosso corpo, regula ¢ distribui tio suavemente a tibieza e dlssolve ou contral as bras dos nossos misculos. f Genius que, obscuramen- \e, apresentamos na intimidade de nossa vida fisiolégica, li onde o mais pré- prio éo maisestranho ¢ impessoal,o mais préximo &0 mais remoto ¢indomdvel. Se no nos abandondssemos a Genius, se fossemos apenas Eu e conscitncia, nunca poderfamos nem sequer urinat. Viver com Genius significa, nessa pers- pectiva, viver na intimidade de um ser estranho, manter-se constantemente vineulado a uma zona de nfo-conhecimento. Mas tal zona de néo-conheci- mento nfo é uma temogio, no transfere nem desloca uma experigncia da conscincia para o inconsciente, onde ela se sedimenta como um passadlo in quietante, pronto 2 reaparecer em sintomas e neuroses. A intimidade com uma zona de nio-conhecimento é uma pritiea mista cotidiana, na qual Ea, numa forma de esoterismo especial ¢ alegre, assiste sortindo a0 proprio desmante: Jamento e, quer se tate da digestio do alimento, quer da iluminago da men- te, €testemunha, inerédulo, do incessance insucesso préptio. Genius € a nossa vida, enquanto nao nos pertenee, Devemos, pois, olhar para o sujeito come para um eampo de tensive, cujos pilos amtitéticas sio Genius ¢ Eu, O campo é atravessado por duas foryas conjugadas, porém opostas; uma que vai do individual na diregio do impesoal, © outta que vai do impessoal pars o individual. As duas forgas convivem, entreeruzam-se, separam-se, mas néo poder nem se emancipar integralmente uma da outra, nem se identificar perfeitamente. Qual é, entio, pata Eu, 0 melhor modo de testemunhar Genius? Suponhamos que Eu queira escrever. Eserever nfo esta ou aquela obra, mas simplesmente escrever. Tal desejo signi- fica: Eu sinta que Geninsexietrom algir Ingat, qe hi em mina uena poréncia impessoal que impele a escrever. Mas ailtima coisa de que Genius necessita é de uma obra, ele que nunca pegou em alguma caneta (e menos ainda em com- putador). Escrevemos para nos tornarmos impessoais, para nos tornarmos ge- niais, e, contudo, escrevendo, identificamo-nos como autores desta ou daquela ‘obra, distanciamo-nos de Genius, que nunca pode ter a forma de um Eu, € menos ainda a de um autor. Toda tentativa de Eu, do clemento pessoal, de se apropriar de Genius, de obrigi-lo a assinar seu nome, esté necessariamente dlestinada a frécassar. Nascem dat a pertinéncia ¢ 0 sucesso de operagbes irbni- ‘eas como aquelas das vanguardas, nas quais a presenga de Genius é testemu- nnhada descriando, descruindo a obra. Se, porém, s6 uma obra revogada e desfeita pudesse ser digna de Genius, seo artista realmente genial é sem obra, o Eu- Duchamp nunea poders coincidir com Genius e, na admiragto geral, vai pelo mundo afora como a prova melancblica da pr6priainexisténcia, como 0 por- tador famigerado da propria improdutividade Por isso, o encontro com Genius € tertivel. Se, por um lado, é paética a vvida que se leva na tenséo entre o pessoal e o impessoul, entre Eu € Genius, por outro € pinico o sentimento de que Genius venha a exceder-nos ¢ superar-nos sob todos os aspectos, que nos acontesa algo infinitamente maior do que nos parece ser suportivel. Por isso, a maioria dos homens foge aterrorizach frente & parte impessoal prépria, ou procuta, hipoctiamente, redusi-la& prépria esta- tura miniiscula, Nesse easo, pode acontecet que o impessoalrejeitado volte a saparecer em forma de sintomas e tiques ainda mais impessoais, de trejeitos ainda mais exagerados. Mas tio ridiculo ¢ Fw tro com Genius como um privilégio, © Poaa que faz pose © se dé ares de é também quem viveo encon- 18 importante, ou, pior ainda, agradece, com fingids humildade, pela graga rece brida, Frente a Genius, nao hé grandes homens; todos sio igualmente peque nos. Alguns, poréim, séo sufcientementeinconscientes a ponto de se det abalar eatravessar por ele até que caiam aos pedagos. Outros, mais sérios, mas menos flizes,reeitam personifica o impessoal, emprestar os proprios libiosa uma vor que nio Thes pertence. Hi uma écica das relagbes com Genius que define a classe de cada ser. A classe inais baixa inclui aqueles que ~e as veues se trata de autores celebérrimos ~ contam cam @ prbptio gio como se forte um bruso pessoal (“eado messi $0 bem!"; “se eu, génio meu, no me abandonas..”). Muito mais amével e sébrio 0 gesto do pocta que, pelo contritio, menospreza csse sérdido ciimplice, porque sabe que "t auséncia de Deus nos ajuda!” ‘As ctiangas sentem um prazer especial em se esconder. E nao para serem escobertas no final. Hi, no proprio fato de flcarem escondidas, no ato de se refsgiarem na cesta de roupa ou no fundo de um armério, no de se encolherem num canto do sétéo até quase desaparecer, uma alegria incomparivel, uma palpitaglo especial, a que nao estio dispostas a renunciar por nenhum motivo. dessa palpitagio infantil que provém tanto a vohipia com que Walser garan- teas condigbes da sua ilegibilidade (os microgramas) como o desejo obstinado cde Benjamin de néo ser reconhecido, Eles sio os guardas da gléria soitdria, que sua toca um dia revelou Acrianga. De fro, 0 poeta celebra seu ciunfo no nio- reconhecimento, exatamente como a crianga que se descobre trepidando como genius loci de seu esconderijo. Segundo Simoncon, a emogio é aquilo por meio do qual entramos em contato com o pré-individual. Emocionar-se significa sentir 0 impessoal que esti em nds, fazer experidncia de Genius como angistia ou alegria. seguranga ou tremor. No limiar dazona de nfo-conhecimento, Eu deve abdicar de suas propric dades, deve comover paixio é a conda estendida entre nés e Genius, sobrea qual caminhz a vida funimbula. O que nos maravilhae espanta antes mesmo do mundo fora d= nds, é a presena, dentro de nds, dessa parte para sempre imatura, infinitamente adolescente, que fica hesitante no inicio de rr qualquer identificagio. E & essa crianga elusiva, esse prer obstinad, que nos Jmpele na diregio dos outros, nos quis procuramos apenas a emogio, que em 1nés continuou incompreensivel, esperando que, pot milagee, no expelbo do outro, esclarega-se¢ se clucide. Se a emocio suprema, a primeira politics, é olhar © prazer, a paixtio do outro, isso acontece porque buscamos no outro a relagio com Genius que no conseguimos alcangar sozinhos, a nossa seereta delicia ea nossa nobte agonia. Com a tempa, Genie dupliesse 6 comepa sabtuinis uma colomgio Seca As fontes,talver por influéncia do cema grego dos dois deménios de cada hhomem, filam de um génio bom ¢ de um genio mas, de um Genius branco (albus) c desum preto (ate). O primeito nos leva erecomenda 0 bem, 0 segun- do nos corrompe € nos inclina 20 mal. Horécio, provavelmente com razio, sugere tratar-se de fato de um s6 Genius, que, porém, é mutdvel, oa cindido, ora depravado, Observando bem, iso significa que fra tenebroso, ora sil quem muda nio é Genius, mas nossa relagéo com ele, que passa de luminosa e clara a opaca € tencbrosa, Nosso prineipio vital, © companheizo que orienta © toma amével nossa existéncia,transforma-se assim, de repente, em um silencioso clandestino, que, como sombra, nos persegue a cada passo, conspirando secre- tamente contra nés, Assim, 2 arte romana representa, um ao lado do outro, dois Geni: um segurando na mio uma tocha acesa, e outro, mensageira de morte, derrubando a tocha, Em su tardia moralizagio, o paradoxo de Genius emerge em plena luz: se Genius €1 nossa vida, enquanto rie nos pertence, entia devernos responder por algo pelo qual no somos responsiveis; nossa salvacio © nossa nuina apre- sentam um rosto pueril, que é € nie nosso rosto. Genius encontra uma correspondéncia na idéiacrsti do anjo da guarela — ‘ou melhor, dos dois anjos; um bom ¢sent0, que nos guia pata a salvagio, eum ‘mau € pervetso, que nos empurra yara a condenagio. Mas é na angelologia irdnica que ele encontra sua mais linpida e inaudia formulagio. Segundo tal doutrina, quem preside ao nascimento de caca ser humana é um anjo, chama- do Daena, que tem a forma de um belisima jovem. Dacna 0 aiquétipo celeste a cuja semelhanga o individue fei erado e, 0 mesmo tempo, éa muda » testemunha que nos espia e acompank em codos os instantes da nossa Contudo, 0 rosto de anjo no continua igeal no tempo, mas, como o retrato dle Dorian Gray, vai se transformando impztceptivelmentea cada gesto nosso, «cada palavra, a cada pensamento. Assim, no momento da morte, a alma vé seu anjo, que Ihe vem ao encontro transfigurado, dependendo da conduta da sua vida, ou numa eriatura ainds mais bes, ou nam demdnio hocrivel, que sussurra: “Eu sou tua Daena, aquela que os teus pensamentos, as tuas palavras ‘© 0s teusatos formaram”, Com uma inversio vertiginosa, nossa vida plasma e Jesenha o arquétipo cin cuja imagers fumes cxiados, Todos fazemos, em alguma medida, um pacto com Genius, com aquilo «que em nés niio nos pertence. O modo como cada um procura livrar-se de Genius, fugit dele, constitui seu cardter. Ble € a careta [rmorfid] que Genius, cenquanto foi exquivado ¢ deixado inexpresso, imprime no rosto do Eu. O estilo de um autor, assim como a graga de cada criatura, depende, porém, nfo tanto de seu génio, mas daquilo que nele ésenco de génio, de seu cariter. Por {ss0, quando amamos alguém, nao amamos propriamente nem seu génio nem veut carter (e muito menos seu Eu), mas a mancira especial que cle tem de cscapar de ambos, seu desenvolto ir evir entre génio e caréter. (Por exemplo, a ssraga pueril com que o poeta em Népoles degustava os sorvetes ou 0 jeito «ansado como o filésofo caminhava de ld para cd pelo quarco enquanto falava, pparando de repente para fixaro olhar em um Angulo remoto do teto.) Surge, contudo, para cada um 0 momento em que deve separar-se de Genius, Pade ser de noite, de improviso, quando, ao som da brigada que passa, ouves née sabes por qué, que teu deus te abandona. Ou entio somos nds que 6 despedimos, na hora lucidssima, extrema, em que sabemos que hi silva, n-que Py mas nés jf nfo queremoe cer salune Vi embora, Ariel a hora pe ro renuncia seus encantos sabe, com a forga que Ihe sobr « leima estagdo, tardia, em que o artista velho quebra o seu pincel © 60 pla. © qué? Os gestos: pela primeira ver 56 nossos, completamente liberi le ‘qualquer encanto. Sea vida, sem Ariel, certamente perdeu sei std Hie ‘no assim, dealgum lugarnos ¢ feito saber que sé agora nos cae, (ue 40 apiea ‘comegamos a viver uma vida puramence humana e cerrens, enti & Vill que a ‘nfo. manteve suas promessis pode agora, por fso mesmo, dar-nos infnita- mente mais, £0 tempo exausto e suspenso, a brusca penumbra em que come- gamos a nos exquecer de Genius; é@ noite esperada. Porventurs alguma ver existiu Ariel? O que é essa milsica que se dilui-e se distancia? S6 a despedida é vverdadeira,s6 agora iniciao longo desaprendimento de si. Antes que a vagaeo- sactianga volte experimentar, uma um, osseus rubores; uma a uma, imperio- samente, a5 suas hesitagSes. 2 MAGIA E FELICIDADE Honjamin disse, certa vex, que. primeira experincia ques crianga tem do mun. lo nfo é de que “os adultos séo mais fortes, mas sua incapacidade de magia”, 1 alltmagio, proferida sob o efeito de uma dose de vinte miligramas de mesca. lina, no & por isso, menos exata. E provavel, aids, que a invencivel wistezg syne Ss vezes toma conta das tiangas nasga precisamence dessa consciéncia de sno setem capazes de magia. © que podemos alcancar por nossos méritas¢esforgo ssw pode nos vornar realmente flizes. é a magia pode faz, Tss0 nfo passoy “lespereebido a0 génio infantil de Mozart, que, em carta @ Bullinges,vislumbrou ‘un preciso a secretasolidariedade entre maga flicidade: “Viver bem e vivep Ilr sia duas coisas diferentes segunda, sem alguma magia, certamente ni ve tocard. Paraiso, deveria acontecer algo verdadeiramente fora do natural” As eriangas, como os personagens das fabulas, sabem perfeitamente que, vara serem felizes, precisam conquistar 0 apoio do génio na garrafa, guardar 10 casa © burrinho-fia-dinheiro [asino eeabaiacchi] ou a galinka dos ovos de vo. E, ema todas as ocasibes, conhecer o lugar e formula vale bem mais do 1c sforgat-se honestamente para atingir um objetivo. Magia significa, preci. ‘wente, que ninguém pode ser digno da felicidade, que, conforme os antigos shin, feliedadeS medida do homem & sempre Aybris, ésempre prepardncig ‘© ovcesso, Mas se alguém conseguir dobrar a sorte com o engano, sea felicida. Je depender nfo do que ele é, mas de uma noz encantada ou de um “abre-te. \san", entio, e 85 entéo, pode realmente considerar-se bem-aventurado. ‘Contra essa sabedoria pueril, que afirma que a felicidade néo & algo que s poss merecer, a moral colocou desde sempre sua objegio, Fo fez com ay 23 palavras do flésofo que, menos do que qualquer outro, compreenclew a dife- renga entre viver dignam enve ¢ viver feliz, “O que em ti tende ardorosamente para 2 Felicidade”, escreve Kant, “éainclinagio; 0 que depois submete tal incli- nagio & condigio de que deves primero ser digno da felicidade € tua rari” ‘Mas de uma felicidade de que podemos ser dignos, nés (ou a crianga em nés) nfo sabemos o que fazer. E uma desgraga sermos amados por uma mulher porque 0 merecemos! E como é chataafelicidade que é prémio ou recompensa por um trabalho bem fico! Ne antiga méxima segundo a qual quem se di conta de sr feliz jf defzou de sé-lo, mostra-se que o estreitamenta do vinculo entre magia efelicidade no & simplesmente imoral, ¢ que ele pode até ser sinal de uma étiea superior. A felicidade tem, pois, com seu sujeito uma relagio paradoxal. Quem é feliz nto pode saber que 0 & 0 sujeito da felicidade nao é um sujeito, nfo tem a forma de ‘uma consciéncia, mesmo que fosse a methor. Nesse caso a magia faz valer sua cexcegiio, a inica que petmitea um homem dizer-e ou considerar-se feliz, Quem sente prazer de algo por encanto escapa da Aybris implica na conseigneia da felicidade, porque a felicidade, embora ele saiba que a tenha, em certo sentido ano & sua, Assim, Japitet, que se une’ bela Alemena, assumindo as feig6es do consorte Anfitrio, nio sente prazer com ela como tipiter. Nem sequer, apesar as aparéncias, como Anfitrio, Sua alegriapectence totalmente a0 encanto, ¢ se semte prazer, consciente e puramente, s6 com 0 que se obteve pelos cami- rnhos tortuosos da magia, Sé 0 encancado pode dizer sorrindo: “eu”, ¢ 36 a felicidade que nem sonharfamos merecer é realmente merecida, Essa éa razdo tltima do preceto segundo o qual s6 existe sobrea terra uma, possibildade de felicdade: cre no dvino ¢ nfo aspraea aleangé-lo (uma vatidvel 6 em conversa de Kafka com Janouch, a afiemagio de que hi esperan- 49, max nde para nis). Foca tte aparentemente ascltica 16 se corns intelighvel se entendermos 0 sentido do néo pare nar. Néo quer dizcr que a felicidade este reservada apenas a outros (flicidade significa, pecisamente: para nés), mas que ela s6 nos cabeno ponta em que nao nos estava destinada, no era para nés. Ou seja, por migia. Nesse momento, quando a arrebatamos da sorte, cla coincide inteiramente com o fato de nos sabermos capazes de magia, com 0 gesto com que afsstamos de uma ves por todas, a tistens infant a Se for assim, se ngo houver felicidade a no ser sentindo-nos eapazes de mitica definigio dada por ‘magia, entéo se corna transparente também & Kafka sobre a magia, 0 escrever que, se chamarmos.a vida com 0 nome j la vem, porque “esta é a esséncia da magia, que nio cria, mas chama”. Tal Ulefinigio esti de acordo com a antiga tradigéo que cabalistas € nccromantes seguiram escrupalosamente em todos os tempos, segundo a qual a magia é, cssencialmente, uma cigneia dos nomes secretos. Cada coisa, cada ser, tem, slém de seu nome manifesto, um nome escondido, a0 qual nfo pode deixar de responder Sec nmye significa conbever eevocar ene aiyuinuinie, Diss ascent »sintermindveis listas de nomes ~ diabélicos ou angélicos — com as quais 0 nnccromante garante para si o dominio sobre poténcias espirituais, © nome wereto 6 para ele apenas a sigh de seu poder de vida e de morte sobre eriatura Hi, porém, outra e mais luminosa tradiglo, segundo a qual o nome secreto nao 6 tanto a chave da sujeigio da coisa & palavra do mago, quanto, sobretudo, + monograma que sanciona sua libertagéo com relagéo & linguagem. © nome reto era @ nome com o qual a crlatura havia sido chamada no Eden, ¢, 20 jwwmuneti-lo, os nomes manifestos ¢ toda a babel dos nomes acabaram em ppalagos. Por isso, segundo a doutrina, a magia chama por Felicidade. O nome -ereto &, na relidade, 0 gesto com o qual a criatura é restituida 20 inexpresso. Pin iltima instdncia, a magia ndo é conhecimento dos nomes, mas gesto, des- vin em relagéo ao nome. Por isso, a criangs nunca fica to contente quanto undo inventa uma lingua secreta propria. Sua tristeza néo provém tanto da ‘ynonincia dos nomes migicos, mas do fato de nao conseguir se desfuzer do swe que lhe fot imposto, Logo que 0 consegue, logo que inventa um novo ‘nome, ela ostentard entreas méos 0 passaporte que a encaminha & feicidade, Jor um nome é a culpa. A justiga é sem nome, assim como a magia. Livre de swome, bem-avencurada, ¢ eriacura bate & ports da aldeis dos magos, onde 8 se {ala por gestos Autores do Nouveau Roman: Alain Robbe Gilet, Claude Simon, Claude Mauriac, Jerome Lindon, Robert Pinget, Samuel Becket, Natale Saraute Claude Oli, {otografados por Mario Dondero em frente das Editions de rut, em Pats, © DIA DO JUIZO (0 qjue me fascina e me mantém encantado nas forografias que amo? Creio que ‘rata simplesmente disso: a forografia € para mim, de algum modo, o lugar Is Juizo Universal ela representa o mundo assint como aparece no ilkimo dia, 1 Dia da Célera, Certamente néo é uma questio de tema; néo quero dizer as forografias que amo sio as que tepresentam algo grave, sério ou mesmo tnjyieo. Nios a foro pode mostrar um rosto, um abjero, um acontecimento ualquet. £0 caso de um fordgrafo como Dondero, que, assim como Robert spa, sempre se manteve fel a0 jornalismo ativo € muitas vezes praticou o que + poderia denominar a flénerie (ou o “andar & deriva") fotogréftea: passeia-se om meta e se forografa tudo 0 que aparece, Mas “o que aparece” —o rosto de sluas mulheres que passam de bicicleta na Escécia, a vitrina de uma loja em huis ~ € convocado, & citado para comparecer no Dia do Jutzo [Um exemplo mostra com absoluta lareza que isso € verdade desde o inicio «ls histdria da forogeafia. Cercamente &conhecido o célebre daguerrestipo da Jouleoard du Temple, considerado a primeita fotografia em que aparece wma figura humana. A chapa de prata representa o bowevard du Temple fotografado por Daguerre da jancla do sea estédio, em hordrio de pico. O houleuard deve- ria estar cheto de gente e de carrogas ¢, contudo, porque os aparelhos da époce necesstavam de um tempo de exposicio muito Longo, nZo se vé absolutamen- te nada de toda ests massa em movimento. Nada, a nfo ser uma pequena silhueta preta sobre a calgada, embaixo ¢ & esquerda na foto, Trata-se de um hhomem que se fia engraxar as bots e que, por iss ficou imével bastante tem- po, com a perna mal e mal erguida para apoiar 0 pé sobrea caixa do engrexate a Fu ndo conseguiria fantasiar uma irmagem mais adequada do Juizo Univer sal. A multidio dos humanos ~ als, a humanidade inteira ~ esté presente, mas nio se ve, pois 0 juizo refere-se a urna s6 pessoa, a umasé vida: exatamente Aquela, e nfo a outra, Ede que mancita aquela vida, aquela pessoa, foi colhida, apreendida, imortalizada pelo anjo-do Ultima Dia— que é também o anjo da fotografia? No gesto mais banal e ondinirio, no gesto de fazer-se engraxar os sapatos! No instante supremo, 0 homem, cada homem, fica entregue para sem- prea seu gesto mais infimo e cotidiano, No entanto, gragas objetiva forogr- fica, © gesto agora aparece carregado com o peso de uma vida intcira; aquela aitude irrelevante, até mesmo boba, compendia ¢ resume em si 0 sentido de toda uma existéncla Acredito que haja uma relagio secreta entre gesto e forografia. © poder do sgesto de condensar e convocar ordens inteiras de poténcias angélicas consti se na objetiva fotogeifica, ¢ encontra na fotografia seu focus, sua hora tépica. (Cera vez, Benjamin escreveu, a propésito de Julien Green, que ele representa seus personagens em um gesto carregado de destino, que os fixa na ierevo~ sabilidade de um além infernal. Creio que o inferno, que aqui esti em jogo, seja um inferno pagio,e no crstéo, No Hades, as sombras dos mortos repetem. av infinite © mesmo gesto: Isiéo far sua rods giras, as Danaides procuram inucilmente carregar égua em um cone furado, Néo se tata, porém, de uma ppunigéo} as sombras pagis nfo sio dos condensdos. A eterna repetisio éaqui a chave secreta de uma apoketatass, da infinita recapizulagio de uma existéncia. essa natureza escatoligica do gesto que o bom fotégrafo sabe colher, sem, porém, diminuie em nada a historicidade ea singularidade do evento forogra- fado. Penso nas correspondéncias de guerra de Dondero ¢ de Capa, ou na Fotoptafla de Beilin oriental drada do teto du Aeieyag uu dis antes da queda do muro. Ou em uma fotografia comoaquela, justamente famosa, dos autores do nowvean roman, de Sarraute & Beckett, de Simon a Robbe-Grile, tiada por Dondero em 1959, dante da sede das Editions de Minuit. Todas essas fotos contém um inconfundivel indiio histérico, uma data inesquecivel e, contudo, gragas a0 poder especial do gesto, cl indicio remete agora 2 outro ‘tempo, mais atual ¢ mais urgente do que qualquer tempo cronolégico. B Ti, pon 1 Fotografias que amo, que nie gostaria de , omc aspee ilemviar de modo algum. Tratase de uma exigéncia: » sujeito forografado exi 1 alo de nds. Prezo especialmente 0 concsita de exigencia, que no deve ser volundido com uma necessidade factual. Mesmo que a pessoa foragrafada hhoje completamente esquecida, mesmo que seu nome fosse apagado para ‘pte da meméria dos homens, mesmo assim, apesar disso — ou melhor, Jsstoumente por isso — aquela pessoa, aquele rosto exigem o seu nome, exi- ot jue no sejam esquecides. Honjamin devia ter em mente algo parecldo quando, a propésito das foro- sls le Cameron Hl, esereve que a imagem da vendedota de peixes exige 0 swine ea mulher que, durante algum tempo, estava viva. E calves seja porque ‘oon conseguiam suportar essa muda apéstrofe que, diante dos primeitos “Iayuerteétipos os espectadores deviam desviar o olka ese sentiam, pot sua sv olhadas pelas pessoas cettatadas, (No estidio onde trabalho, sobre um ive a0 lado da escrivaninha, esté a fotografia — aliés, bastante conhecida — ‘rosto de uma menina brasileira que parece fixat-me severamente, ¢ sei com shvolata cereeza que €¢ seré ela a julgar-me, tanto hoje como no iltimo dia.) Dondero manifestou uma ver cera distancia em relagéo a Cartier-Bresson Sebastid Salgado, dois fordgrafos que, néo obstante, admira, No primeira, & excesso de construgéo geométrca; no segundo, excesso de perfigio ext &. Ope a ambos sua concepsio do rosto humano como uma histétia a con- ‘ur ou uma geografia a explorar, Na mesma perspectiva, também penso que a ‘xigencia que nos interpela pelas forografias nada tem de estético, Trata-se, snes, de uma exigéncia de redengio. A imagem forogréfica é sempre mais que vuma imagem: €o lugar de um descarte, de um fragmento sublime entre sensivel co inteligive, entre a cépia ea realidaele, entre a lembranga e a esperanga A respeito da ressurteigio da came, os cedlogos cristios se perguntavam, sem conseguir encontrar respostasatsfiréria, se 0 corpo iri ressuscitar na condi- ‘io em que se encontrava no momento da morte (quem sabe velho, calvo € sem uma pera) ou na integridade da juventude. Origenes abreviou tas dis- cussGes sem fim afitmando gue néo serd 0 corpo que ied resuscitar, mas sua figura, seu eidos. A fotografia, nesse sentido, é uma profecia do corpo glorioso, » Wa por todos os Sabe-se que Proust tinha obsessio pela fotografia ¢ proce icios ter as focos das pessoas qui amava e admirava, Um dos rapazes por quem estava apaixonado quando tinha 22 anos, Bdgar Auber, dew-the de pre- sente, a parti de seu insistente pediido, 0 proprio retrato, No verso da fotogea- fia, esereven & guisa de dedicatéria: Look at my face: my name is Might Have Been; am also called No More, Too Late, Farewell (Olhe pata meu rosto: meu some é Poderia Ter Sido; me chamo também Nao Mais, Tarde Demais, Adeus). A dedicatéria certamente pretensiosa, mas expressa perfeitamente a exigéncia que anima todas as foros ¢ capta o real que esti sempre no ato deze perder para romné-lo novamente possvel. De tudo isso, a forogeafia exige que nos recordemos; as foros so testemuc inhos de todos esses nomes perdidos, semelhantes ao livro da vida que o novo anjo apocaliptico ~o anjo da fotografia ~ tem entre as mios no final dos dias, ou seja, todos os dias. OS AJUDANTES los womances de Kafka, deparamo-nos com eriaturas que se definem como sjusantes” (Gebifen). Mas parecem ineapazes de proporcionar ajuda. Nao niendem de nada, néo tém “aparelhos”, 38 conseguem aprontar bobagens © vuniidades, so “molestas , As vezes, até “descaradas”e “luxuriosa”, Quanto 1 aspeeto, so to semelhantes que se distinguem apenas pelo nome (Artur, vias), assemelhando-se entre si ‘como serpentes”. Contudo, sio observa- lores atentos, “égeis,"soltos";tém olhos cintilantes¢, contrastando com seus ‘wodlos pueris, ostos que parecem de adultos, “de estudantes, quase”, e barbas Jnygise abundantes. Alguém —néo se sabe direito quem—os confiou pars nds, ‘sso ¢ fel livrar-se deles. Em suma, “nao sabemos quem sia"; talver sejam vwviados” do inimigo (o que explicaria por que insistem em ficar& esprcita e ae), Mesmo assim, assemelham-seaanjos, a mensageiros que desconhecem ‘conteiido das eattas que deve entregat, mas cujo sorrso, cujaolhar cujo ‘odo de caminhar "parecem uma mensagem”. ‘Cada um de nés conheceu tais criaturas que Benjamin define como “cre- rusculares” e incomplecas, parecidas com os gandharva das sages indianas, vuctade génios celestes, metade deménios. "Nenhuuma tem lugar fixo,feigdes Iaras e inconfundiveis: nenhuma que née. pareca prestes 4 subir ou a eaie; vvenhuma que no se confunda com seu inimigo ou com seu vizinho; nenhu- va que no tenha completado sua idade € que, no entanto, néo seja ainda imacura; nenhuma que estja profundamente exausta, ¢, contudo, ainda no inicio de uma longa viagem.” Mais inteligences e mais dotadas do que nossos ‘outros amigos, sempre absortos em imaginagBes ¢ projetos para os quiais pare- «em dispor de todas as qualidades, nfo conseguem, porém, concluir nada, © 3

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