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Pedagogia do Esporte CONTEXTOS E PERSPECTIVAS Roberto Rodrigues Paes Livre-Docente da FEF-UNICAMP. Diretor da Faculdade de Educagao Fisica da UNICAMP Hermes Ferreira Balbino Doutor em Ciéncias do Desporto pela UNICAMP. Docente na Faculdade de Educagéo Fisica da UNICAMP e Faculdade de Educagao Fisica do Instituto Adventista $40 Paulo ~ UNASP cuanasarad xoocan No interesse de difusio da cultura e do conhecimento, os autores ea editra envidaram 0 maximo esforgo para localizar os detentores dos direitos autorais de qualquer material Uutlizado,dispondo-se a poss(veis acertos posteriores caso, inadvertidamente, a idenifica- iio de algum dels tena sido omitida CIP-BRASIL. CATALOGACAO-NA-FONTE, SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RY. Plasp Paes, Roberto Rodrigues edagogia do espone: contexts e perspectivas ‘Roberto Rodrigues Paes, Hermes Ferrera Balbino. - Rio de Janeiro : Guanabara Koogan, 2005 il Incluibibliografia ISBN 85-277-1061-7 1. Bsportes - Estudo e ensino, 2. Educagio fisiea - Estudo e ensin. 1 Balbino, Hermes Ferreira IL. Titulo. 05-1642, cpp 796.07 DU 796007) 2405.05 30.05.05 10342 Eaitoragio Eleunica: Gann Direitosexclusivos para Kinga portuguesa Copyright © 2005 by EDITORA GUANABARA KOOGAN S.A. ‘Travessa do Ouvidor, 11 Rio de Janeiro, RI — CEP 20040.040 Tel: 21-3970-9480 Fax: 21-2221-3202 gbk@eitoraguanabara.com br ‘wonweditoraguanabara.com.br Reservados todos os direitos. proibida a duplicago ‘u reprodusfo deste volume, no todo ou em pare sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrnico, mecinico, gravagio, fotoeépia, Aistribuigdo na Web, ou outros) sem permissio expressa da Edit Pedagogia do Esporte na Infancia e Complexidade Wilton Carlos de Santana >>» Considerac¢ées iniciais Preocupeime neste texio em inter-relacionar a pedagogia do espor- te com 0 pensamento complexe. Como pano de fundo, um fenémeno social: @ iniciagéo esportiva, Por um lado, pontuei o fato de que esporte @ educaso so fenémenos indissociéveis e de que, co longo da historia da educasao fisica brasileira até os dias de hoje, a pedagogia do esporte, em grande parte, pouco se preocupou em educar consideran- do, @ até mesmo respeitando, a complexidade das pessoas e dos fend- menos sociais. Defendi a idéia de que, em se tratando de iniciagéo esportiva, essa maneira simplista de pensar e praticar 0 ensino do espor- te encerta, entre outros, alguns agravantes: (a) reduz a sua praxis a inervengées focadas apenas no que é racional, {b) despreza outras, dimensdes humanas sensiveis, como, por exemplo, a afetividade, a mo- ralidade, a sociabilidade, © beleza, 0 prazer, as emogses, (c) desconsi- era no processo de entendimento da iniciagdo esportiva unidades coe xistentes @ geradoras em potencial de uma,série de evidéncias de com- plexidade que precisam ser tratadas pedagogicamente, (d) inclin-se para © estabelecimento, « prior, de uma génese, na qual hé um ponto de chegada ~ 0 modelo de aleta a ser alcangado ~ e, por exlensdo, 0 que os criangas devem reunir e fazer para atender a essa demanda. De outro lado, apresentei 0 raciocinio de que a iniciagéo esportiva um fendmeno complexo, carregado de sensibiidade, que ndo permite, a priori, « fixagéo de uma génese, pois contempla uma série de unidades coexistentes 8 quais se interrelacionam e desencadeiam uma quantida- de generosa de implicacdes que interferem no processo de desenvolvi- mento humano da erianga esportista. Propus, a partir dessa assertiva, 2 >» pedagogic do Esporte na Infancia © Complexidade uma rede de evidéncias de complexidade. Em iltima anélise, esta de- nuncia 0 fato de a iniciag&o esportiva consfituirse num fenémeno que no admite reducionismos de qualquer parte. Outrossim, com 0 intito de contrapor o pensamento simplista que em geral permeia a pedago- gia do esporte na infancia, olém de sugerir alguns principios, agreguei alguns autores que sinalizam com idéias para a construcéo de uma pedagogia do esporte que eduque & luz do paradigma da complexida- de. A meu ver, as idéias dos autores consttuem um cabedal de tendén- cias pedagégicas que merece os olhares dos pedagogos esportivos. >>» Pedagogia do esporte e educa¢do Nao obstante a divisdo conceitval encontrada em Tubino (1996) atribua ao esporie trés diferentes dimensdes (educacéo, participagao rendimento), penso que o esporte 6, independentemente da esfera que se manifesie, educacional. Basta considerar que “a educacdo tem co- réter permanente (FREIRE, 1991, p. 28)" para ratificar que néo poss vel escapar dela ao se fazer esporte, ao se assisir ao esporte, ao se plonejar esporie. Portanto, néo apenas 0 esporie desenvolvido no siste- ma educacional ou de forma assistemética, entre criangas e adolescen- tes, educa, mas também o esporte de rendimento e o esporte chamado de pariicipacéio. Assumir o contrério @ reducionista, pois implicaria desprezar a relagdo entre as diferentes dimensées esportivas e suas implicagées concretas e simbélicas para a vida das pessoas. Sendo, vejamos. O esporte de rendimento ou espetéculo ou profis: sional (PAES, 2000) néo influencia’ a vida em geral de criangas, ado- lescentes e trabalhadores? Como negar o seu poder de comunicagéo {mensagens explicitas e subliminares que enseja), de entretenimento {quantos, a0 vivo ou pela “telinha”, se entretém com os jogos?) e de seducdo (quantos so atraidos para a prética esportiva?). Bosco (1995, p. 104) comenta que durante a preparacdo, no transcorrer e apés os grandes eventos, 6 significa- tivo © ndmero de jovens que correm atrés de clubes e instituicSes comerciais 1a expectativa de se tomar um atlea profissioncl e com isso ascender na vida social com o peso das vitbrias e do dinheiro conquistado, Em se tratando de esporte participacdo, este no 6 um campo féril para que os trabalhadores s¢ eduquem? O simples foto de o esporte reunir as pessoas néo se consti numa apo social relevantee precursora, em polencial, da melhoria da qua- lidade de vida dos praticantes® Aproveitar o fempo livre no é sinal de edu- cago e condigdo para se viver melhor? Bosco (1995, p. 101) acrescenta 'O préprio Tubine [2000, p. 252) reconhece a influéncia do esporte de rendimento nas outras dimensées esportivas seu impacto na educacdo da sociedade. Pedagogia do Esporte na Infancia e Complexidade ««« 3 {que o esporteppartcipasio "6 a possiblidade de superacao da condigdo de ‘massa’ em direpdo 6 consrugio da propria cidadania”. Assim sendo, esporte e educagao esto inexoravelmente associa- dos. E assim foi ao longo da histéria da educagio fisica brasileira. Entretanto, 0 que se pode discutir é que nem sempre se elegeu uma pedagogia que se preocupasse em educar considerando a complexi- dade de se educar. Nas palavras de Freire e Scaglia (2003, p. 137), insistimos na idéia de “[...] ver 0 mundo como ele nao é |...) orientando 1G nossa pedagogia por essa crenca miope”. Para refletir: o que se pretendeu com a educagao fisica em geral e a pedagogia do esporte fem particular quando das suas fases higienista, militarista, biologista fisicodesportiva (CASTELLANI FILHO, 1988; PEREZ GALLARDO et al., 1998)2, O que pretende a educacéo fisica atual, resguardadas as excegées, além de transformar 0 Brasil numa poténcia olimpica? Em considerando que a educagao “[...] ajuda a pensar tipos de homens (BRANDAO, 1989, p. 11)", infere-se que o esporte pretendeu, € em muilos casos pretende, educar as pessoas a partir de um paradig- ma reducionista: ov para que sejam mais saudaveis, ov para que sejam mais bem preparadas para um determinado fim, ov para desen- volver capacidades fisicas, ou para competirem, ov para se tornarem atletas olimpicos. Nao que essas coisas nao tenham relevancia, mas 1ndo podem ser vistas de forma isolada, imperativa e, sobretudo, disjun- tas de necessidades e possibilidades da maior parte das pessoas. Em particular, suponho que essa maneira de pensar, reducionista, encontra refigio, salvo excecdes, nos professores de esporte de crian- 608. Por conseqiiéncia, infiro que, em alguns casos, a pedagogia do esporte educa as criangas mais para a consecugéo de metas de treina- mento preestabelecidas e menos para a autonomia, a descoberta e a compreensdo de si mesmas, denunciando um desequilibrio pedagégi co entre o racional e o sensivel. Em sendo 0 esporte um elemento da cultura atraente @ presente cada vez mais na vida das pessoas, o que se pretende daqui para frente € discutir uma pedagogia do esporte na infancia que rejeite o pensamento simplista ~ que separa o parte do todo, isolando e hierar- quizando os elementos de um dado sistema e considere o paradigma do complexidade - que sabe que 0 todo é maior que a soma das partes, que reconhece a relevancia de se conhecer as partes, mas & medida que isso auxilia na compreensao e didlogo com o todo. >>» Reducionismo Penso que a elaboracéo de uma pedagogia do esporte que tenha ‘como pano de fundo a idéia de complexidade se incline, entre outras 4 yy» Pedagogia do Esporte na Infancia ¢ Complexidede coisas, a provocar uma desordem no que se vé hoje em grande parte dos programas de iniciagéo esportiva. © objetivo dessa desordem 6 provocar uma nova ordem. A meu ver, isso que em parte ai esté contri bui muito pouco para o bemestar da maioria das criangas. Mas, ao ave particularmente me refiro? Em linhas gerais, a sustentacéo de uma pedagogia que: 1. despreza dimensées sensiveis como a moralidade, a afetivida- ‘We, a sociabilidade e privilegia a dimensao racional (avaliagéo treinamento}; . elege um modelo de atleta ideal a ser (per) seguido; 3. compartilha da preocupagdo mercadolégica da revelagéo de talentos; . tem uma tendéncia & especializacéio esportiva precoce; . seleciona criangas para o esporte a fim de compor equipes de competicéo; 6. reproduz modelos de eventos competitivos do esporte profis- sional; 7. elege a competig&o como o principal referencial de avaliagéo. on Logo, é uma pedagogia que deve ser transposta. Penso que essa maneira racional de pensar alimenta a falsa crenga de que 0 esporte cobedece a um processo linear de desenvolvimento com come¢o, meio € fim, Ou seja, estabelecese, a priori, uma génese em que 0 final da linha & 0 ideal de alleta pretendido. logo, as criangas basta perpassa- rem as diferentes etapas de treinamento e submeteremse ds suas oxi géncias. O fato 6 que esse lipo de pedagogia tende a eleger principios € procedimentos de ensino reducionistas como os acima relacionados. Por exemplo, suponho que das interfaces modelo de atleta ideal/de- sempenho/selecdo esportiva resultaré, além de alguns talentos, na ex- clusée de uma grande parte das criangas que procuram os diferentes esportes. Recorrerei a algumas declaragdes? que ratificam o pensamento simplificador a que me refiro: Com base em nossa experiéncia, aconselhamos aos outros paises que valiem @ sua atengio para as equipes de base, pois aqui enconira-se o segredo do sucesso, AS selegdes adultas, nada mais sé0 do que conseqiéncia dos rabo- thos realizados anteriormente (FILIN & VOLKOY, 1998, p. 191) No que pese a relagio estreita entre a composigéo de equipes adultas @ © que se faz nas categorias menores, pergunto: sera que as *Retiradas de Vladimir P, FILIN & Vladimir M. VOLKOY, Selecdo de Talentos nos Despories. Pedagogio do Esporte na Infincio © Complexidade «44 5 coisas obedecem a esse determinismo’? Quais sGo as implicagées des- sa moneira de pensar para a pedagogia do esporte? Os supostos falentos de hoje s80 os ailetas profissionais do futuro ou poderdo acon- tecer imprevisios? Encontrei em Lewis (1999) um conlraponto. Para o autor, essa maneira de pensar esté relacionada a um modelo organicis- ta de desenvolvimento. Ele se apéia na crenga de que & possivel prever, de que hé um ponto de chegada, de que os eventos iniciais determinam (8 eventos posteriores e de que, portanio, as pessoas fém 0 seu futuro, fem pare, selado. Lewis apresenta-nos Willian James e, com ele, uma outta teoria de desenvolvimento: © contextualismo. Esse iltimo questiona <@ idéia determinista de progresso até um ponto de chegada; « perspec- tiva histérica e a relagio linear de que os eventos passados tém o poder de predizer os futuros. No contextualismo, o desenvolvimento nao 6 unidi- recional; © sujeito aparece como alive, concreto, contextvalizado, cons- trutor; a ordem légica do realidade objetiva & questionada. A oposi¢ao do contextvalismo sobre o determinismo levame a pensar sobre aquelas criancas que séo diagnosticadas como talentosas @, ainda que submetidas ao treinamento sistematizado em longo pro- 0, néo chegam & desejada fase dos resultados superiores. Param, por assim dizer, no “meio do caminho". Ora, evidentemente que fatores diversos concorrem para essa mudanga de rumo o que, de certa forma, ratifica que o desenvolvimento & passivel de miltiplas possibilidades. Uma outra declaracéo: Uma caracterstica particular do atual periodo de desenvolvimento dos des ports, 6< busca universal, cientificamente fundamentada, de jovenstalento- S08, que so capazes de receber grandes cargas de treinamento e elevados ‘itmos de aperfeicoamento desportvo (FIUN & VOLKOY, 1998, p. 13-4). Ainda que cientificamente fundamentada, procede a preocupa- so “universal” de se encontrar a criangs tolentosa® Por conta dessa maneira de pensar, quais os procedimentos de ensino que sero desen- cadeados pelos professores de esporte de criangas? Quando leio afr- magées como a levantada pelos autores, que sem divida sinaliza para procedimentos de selecdo e orientagdo esportiva, penso que hé uma inversGo de valores: 0 desafio « ser vencido pelos professores em geral deste pais ndo é 0 de encontrar a criangatalentosa, mas o de fazer com que todos as criangas tenham acesso ao esporte , em o pratican- do, oprendam-no bem, aprendam mais do que isso e aprendam a gostar dele (FREIRE, 2003). O desafio, por conseguinte, néo 8 o de selecionar as criangas mais talentosas, mas ensinar esporte para todas as criangas! °Determinismo, segundo o Novo Dicionério Aurélio - Século XXI, 6a “relagSo entre os fendmenos pela qual estes se «cham ligados de medo t80 rigoroso que, 0 um dade momento, todo fenémeno esté completamente condicionado pelos que o precedem e acompanham, ¢ condiciona com © mesmo rigor os que lhe sucedem” ‘6 me Pedegogia do Esporte na InfSncia e Complexidade Ainda uma éltima declaragéo: As dificuldades da selecdo so ogravadas pelo fato de que no é somente necessério saber sobre © modelo final do campedio ou recordista, mas tam- bém como formou-s o ideal esportivo e que caracteristicas apresentova em cada etapa de operfeicoamento. © conhecimento do processo de aperfsico- ‘mento permite Ireinar os jovens ailetas de forma racional e dirigide (FILUN & VOIKOY, 1998, p. 15) \“Evidentemente que ensinar esporte exige racionalidade, mas o preconizado pelos autores - de se conduzir 0 treinamento de forma racional e dirigida para se atender um modelo de campetio - outra idéia por demais perigosa num pats como o nosso. Leva-me & seguinte questo: que tipos de relagdes serdo estabelecidos entre professor e crianga para otender essa demanda? Que tipo de moral ~ para citar apenas uma das dimensdes humanas sob © dominio de racionalidade — resulta de uma pedagogia que investe na idéia de modelagem? Com © palavra Filin (1996, p. 53): (© métedo de conviego tem sua importéincia na formas de conhecimento moral. Um dos métodos de educarao é o castigo, expresso pela censura pela avaliogio negativa das aces e procedimentos dos allelas. Séo muitos 6s fipos de castigos. O incentive o castigo devem ser uilizados no como procedimentos casvais, mas como resultado de todos os procedimentos Em tempo: no se trata de menosprezor éreas de conhecimento ue se encarregam de clarficar, por exemplo, os niveis de desenvolv- mento motor, os periodos sensiveis para desenvolver os capacidades motoras, as fases da aprendizagem motora, as caracteristicas maturo- cionais, as implicagées fisiolégicas, a periodizagéio do treinamento. O pensamento complexo no exclui conhecimentos. Tampouco exclui o surgimento de criangas tolentosas ou desconsidera que os equipes de base contém possiveis criangas que chegaréo co esporte profissional Tratase de levantar 0 fato de que néo dé para reduzir a ago do pedagogo esportivo apenas & consideragao desses e de outros fatores sob 0 signo da racionalidade. Hé outras dimensdes humanas, como 0 afetividade, a sociabilidade, o desenvolvimento moral, e toda uma série de evidéncias de complexidade relevantes ~ que mais para frente serdo relacionadas ~ que em geral néo so considerades quando da iagéo esportiva Por conseguinte, ainda que em geral isso passe despercebido, os elementos que se afetam na iniciagdo esportiva - professores, técnicos, pais, dirigentes esportivos, diretores escolares, familia, midia, érbitros (SANTANA, 2004) ~ criam um tipo de paradigma para a crianga que Ihe reserva apenas a tarefa de alcangar © maximo de rendimento esportivo, atendendo, na maior parte dos vezes, apenas, aos inleres- ses desse proprio sistema. Sobre isso, basta uma citagéo de Bento (1989, p. 16): Pedagogia do Esporte na Inféncia e Complexidade «44 7 As estruturas, hd longo tempo criadas para o desporto de alto rendimento (e geradoras de confit}, implicam uma prética de desporio de rendimenio pelas criancas, que no se justifca por mais fempo. Orientado pela finalid- cde de prodvzie rendimento desporivo,o sistema do desporto conduz a que o desporista perca a sua posigdo de sujet da atividade, se transforme em objeto, num produto visivel, mensurévele valorével, que © seu corpo se rans- forme em insumento de opresentacéo do rendimento do sistema (racionali- dade objetiva, tenocracia pura). ‘A mensagem subliminar (e, por vezes, explicita) que esse tipo de pedagogia propaga & a de que se tem um ponto em que todos devem chegar e aqueles que nao atingirem o resultado final séo incompetentes e fracassados. De certo modo, esse tipo de mensagem chega a ser irresponsdvel e demagégico. Iresponsdvel, por conta de negligenciar um conjunto de unidades e de forcas que interferem no processo de desenvolvimento da crianga no esporte; demagégico pelo fato de ocultar as ambigdes @ ansiedades dos adultos (NISTAPICCO- 10, 1999). Isso posto, pareceme que, em se tratando de iniciagdo esportiva, 08 objetivos em geral jé estio devidamente estabelecidos: @ crianga deve ser selecionada e educada num tipo de esporte ao longo de femporadas, a fim de passar por diferentes momentos do treinamento, aprender a competir, a conquistar as vitérias @ a superar os obstéiculos que a transformardo no ideal de atleta pretendido — 0 talentoso, o que suporta as cargas de treinamento, o “clone” do modelo. Ora, o que se pretende com esse paradigma? O que se esconde por detras dessa maneira de pensar? Seré que & possivel controlar e racionalizar a frajetéria do crianga esportista? Sera que se deve investir na idéia de que as coisas sGo assim to previsiveis e isoladas? Seré que os elemen- tos esto de fato tio associados que basta transité-los para desenca- dear o resultado pretendido? E quanto as complicacdes, aos desvios, as casvalidades? logo, penso que néo dé para assumir, unilateralmente, um tipo de iniciago esportiva alicergada no reducionismo. Hé idéias boas, mas também outras que precisam ser questionadas. Hé outras, portanto, que precisam ser incluidas. £ muito pouco, resumir a pedagogia do esporte na infancia ao cumprimento de elapas e premissas de um freinamento que se preocupa com quem treina apenas com 0 objetivo exclusive de uma preparagdo futura. Aravjo (2002, p. 93) tece comen- trios sobre « educagdo atual que, a meu ver, se estendem & pedago- gia do esporte tradicional “...] encontrase alicergada em uma forma simples de compreensdo da realidade, pavtada em principios de disjun- so, redugGo e abstragéo”. As palavras de Aratjo desvelam a fragilidade dessa pedagogia implicam uma significativa pista de qual paradigma se pretende ex- por: © paradigma da complexidade. nena 8 9» Padagogio do Esporte no Infncia © Complaxidade bb» Complexidade Pora explicar 0 que & complexidade, recorro novamente a Araijo (2002, p. 93}, para quem de acordo com Morin, « complexidade é um fenémeno quantitative, ov me- hor, um fenmeno que possui uma quantidade extrema de interacdes e inter- feréncias estabelecidas entre um grande nimero de unidades. Compreende, + porém, néo s6 grandes quontidades de interacdes e unidedes que desafiam nossas possibilidades de calculo, mas também incertezas, indeterminagdes e fendmenos aleatérios. {As idéias do pensador francés que inspiraram 0 pedagogo brasileiro me remetem @ iniciagdo esportiva: um fenémeno absolutamente complexo, permeado de unidades, de relacdes entre essas unidades, de imprevisios, de incertezas, de casvalidades e de diferentes significados. O proprio Morin (2001b, p. 8) disse que “...] € complexo 0 que ndo pode |... reduzirse a uma lei ou a uma idéia simples”. Simples, como, por exemplo, a idéios da pedagogia do esporie que, tradicionalmente, elege o mode- lo ideal de atleta esportivo, promove a selecdo esportiva e projeta sobre a8 criangas a tarefa de chegor as selegdes futuras. A complexidade se caracteriza por um emaranhado de acdes e de interacdes, a exemplo do que ocorre com a iniciagdo esportiva, que objeto de estudo de diferen- tes éreas de conhecimento e reine diversos segmentos da sociedade como professores, técnicos, pais, dirigentes, psictlogos, médicos, joralistos, Por conseguinte, penso que a crianga esportista pode, ao longo de temporadas, entre outras coisas, continuar no esporte e atingir, inclusive, 0 profissionalismo. © fato 6 que em geral hé a crenga de que esporte 6 coisa de quem fem talento, ainda que este seja a minoria. Por conta disso, quantas criancas t8m sido submetidas a um tipo de pedo- gogia que néo respeita as diferengas, que elege os resultados em curto prazo como o maior objetivo, « pressa como oliada e apenas a compe- tigdo como referencial de avaliago? Quantas criangas séo coagidas alcancar resultados que satisfacam os desejos desse ov daquele profes: | s0¥, OU pai, ou quem quer que seja? ‘As indagagdes acima sinalizam para uma pedagogia reducionis- ta. E assim se faz quando ignora o todo em detrimento das partes; que ignora, por exemplo, que a crianga que se interessa por esporte 6 a mesma que se relaciona com os amigos, com a familia, com a escola, que tem necessidades de brincar despretensiosamente, de se divert, de ser aceita, de transpor limites, que imagina ser esse ov aquele craque, que tem desejo de jogar, que precisa aprender a conviver, ¢ cooperar e a construir autonomia, Portanto, a crianga que faz esporte no 6 apenas o atleta em potencial que alguns procuram, pois acalen- ta em si e fora de si uma sociedade de fatores que nem sempre atende- Go 0s desejos unilaterais de um pensamento simplista. Pedagogie do Esporte na Inféncio « Complexidade «44 9 Araijo (2002, p. 14), ao comentar sobre 0 pensamento complexo © © cotidiano escolar, descreveu um exemplo que me parece pertinente para explicar, « partir de uma maneira simplista de pensar, a comple- xidade. O exemplo 6 cléssico: pedese aos profestores, em uma reu- niéo pedagégica, que justfiquem a indisciplina de um determinado aluno. Escreve 0 autor: ‘Aparecem em minha meméria determinados encontros com professores em ue, questionando a causa de um comportamento indisciplinado de um alu: no, alguém sempre aparecia com uma resposta “magica”: ele esté assim ‘porque as pais dele estéo se separando. Ouito colega, enti, intereria © Pedogogia do Esporte na Inféncio © Complexidade >>» A tarefa da pedagogia do esporte Seria possivel sinalizar com uma tarefa para a pedagogia do esporte na inféncia? Penso que sim. Talvez © primeiro procedimento para definir uma possivel tarefa para a pedagogic do esporte seja reconhecer « complexidade do mundo em que vivemos. Para tanto, seré necessério eleger uma nova maneira de se pensar que desenco- déié novas maneiras de se agir. Uma forma complexa de se pensar a realidade. Morin (2001, p. 11) encaminha uma misséo para 0 ensino, e, portanto, para a pedagogia, que julgo pertinente, isto 6, “(...) transmi- tir no © mero saber, mas uma cultura que permita compreender nossa | condigéio e nos ajude a viver, e que favorega, ao mesmo tempo um | modo de pensar aberto e livre”. Portanto, a pedagogic do esporte deve cultivar um modo de pensar e agir comprometido com a condigéo humana das pessoas. Isso néo exclui desenvolver as capacidades © | ensinar as habilidades, Vai clém: o tarefa da pedagogia é a de favore- cer o bemestar das pessoas e a sua vida social. Freire (2001, p. 1) | ratifica as palavras de Morin ao afirmar que “[...] no vale a pena j ‘oprender se no for para viver melhor individualmente e em socieda- de”. Logo, aprender esporte, seja qual for, é bom quando 0s contetidos | | propostos em uma avla (treino), independentemente do cenério (se escola ou clube), se generalizem para a vido. Penso que a pedagogia do esporte deve investr n de que as pessoas s60, por exceléncia, seres planejadores e consirulores. Dei, serem capazes de estabelecer suas proprias metas e alterar o curso das suas vidas. Nos palavras de Lewis (1999, p. 99], “Mentes pensantes, planejadoras e ativas”. Por conseguinte, penso que outro procedimento de uma pedago- gio que invista na idéia de uma educacéo comprometida com a com- plexidade seja trator diferentemente 0 esporte. Sugiro, minimamente, alguns principios: 1. trator pedagogicamente a competicéo, de modo que ela apéi ‘© desenvolvimento infantil; 2. buscar 0 equilibrio entre o racional eo sensivel; 3. dialogar e negociar saberes com o sistema humano que orienta @ iniciagéo esportiva; 4. investir em aulas que reconhegam as diferencas entre os iguais; j 5. investir em métodos de ensino comprometides com a participa- j gG0 e a construgéo da autonomia; / 6. investir numa pedagogia sedutora (lidica); j 7. capacitar (educagao de habilidades e desenvolvimento de capo- j cidades) e formar (educagao da atitude) Pedogogie do Esporte na Infancia « Complexidade 444 11 Relevante considerar que esses principios nao tém maior ov menor grau de importancia, néio acontecem isoladamente e tampouco que a sua soma configura todo. Desse ponto de vista, a idéia da revelacéio de tolentos, to almeja- da por uma parte dos professores de esporte, pode ser uma conseqiién- cia (néo hé garantial) e néo deve ser causa. A luz do paradigma da complexidade, a iniciagdo esportiva é relevante para desenvolver ca- pocidades motoras e para educar para a autonomia; para educar as habilidades especificas e para investir em aulas que sinalizem para o fato de a crianga aprender a gostar de esporte; para ensinar as habili dades taticas para introduzir uma cultura de lazer esportivo; para introduzir a competi¢ao para socializar conhecimentos; para avaliar @ condi¢&o motora e para fortalecer a autoestima... >>» Unidades e evidéncias de complexidade Fig. 1.1 Unidades do Iniciagdo esportva. Talvez, 130 ou mais difcil que explicar © que 6 complexidade — hé coisas que eu néo sei explicar, apenas as sinto — seja evidenciéla. Inicio por eleger, minimamente, algumas unidades que interagem entre si na iniciagGo esportiva e que a configurariam (Fig. 1.1): professor, tecnico, 12m» Pedagogia do Esporte no Infancia © Complexidade Fig. 1.2 Evidéncios de crianga, pais, diretores escolares, dirigentes esportivos, midia, pedagogia da escola, pedagogia da rua, pedagogia do clube, ciéncia, competicio. Essas unidades interagem entre si (por isso 0 tipo de seta). © que resultaré dessas interagSes & imprevisivel, dada 4 complexidade de cada unidade. Observe que as diferentes unidades séo distribuidas aleatoria- mente. A idéia da figura é mostrar que num sistema complexo todas as unidades interagem, 6, se afetam. Portanto, esse sistema & dinémi- co (esté em movimento), complexo (8 medida que contempla vérias unidades e uma quantidade imprevisivel de interagdes entre essas unk dades que, por sua vez, produzem uma série de evidéncias de com- plexidade) © sem hierarquia. Que evidéncias de complexidade resulta. riam das possiveis interagées acima descritas? Certamente, se nos pro- puséssemos a exercitar, uma quantidade generosa de evidéncias de complexidade. Prestei-me, ainda que de forma generalizada, a esse exercicio (Fig. 1.2). Recorti a Bosco (2004) para me auxiliar nessa Pedagogia do Esporte na Inféncio © Complexidade «44 13 farefa. Elaborei a figura em rede, de modo que desse a impresséio de coisas entrelagadas. Esta rede, a meu ver, merece os olhares dos pe- dagogos esportivos, 4 medida que sinaliza para a necessidade de ampliar a visdo @ 0 tratamento que se dé a iniciagdo esportiva. Por conseqiéncia, so muitas as relagdes que o pedagogo espor- tivo tem de considerar quando do ensino do esporte. E ingénuo pensar que 0 esporte na infancia se resume apenas & aprendizagem de gestos tecnicos, habilidades taticas e o desenvolvimento de capacidades fisi- ‘cas. Assim como considero reducionista a crenca de que ao se educar essas particularidades ndo se educam atitudes e valores ou de se dedi- car mais & formagéo do que 4 capacitagao. Desenvolvimento técnico cidadania, aprendizagem tatica e autonomia, desenvolvimento das capacidades fisicas e desenvolvimento moral nao sGo contetidos exclu: dentes. Outros reducionismos que percebo so as disjungdes feitas en- tre competicao e cooperagio, esporte e educagao, esporte e familia, esporte e escola, aprendizagem e brincadeiras, corpo e mente, pensa- mento © ago, razéio e emoséo, inteligéncia e afetividade. Talvez, repito, 0 primeiro passo para o professor de esporte na Infancia seja elaborar uma pedagogia que reconheca a complexidade da iniciagéo esportiva: suas unidades, a inexoravel fusdo e dinamismo entre estas @ as possiveis evidéncias resultantes de suas interacdes. >bb Os desafios da pedagogia do esporte A narrativa acima sinaliza para o desafio de se aprender a pen- sar complexamente, isto 6, de acordo com as palavras de Morin (2001b, p. 8), de aprender a “[..] exercer um pensamento capaz de tratar 0 real, de dialogar e de negociar com ele”. As palavras do autor so ainda mais desofiadoras, pois, em geral, a maneira como aprendemos @ tralar © real exclui a discussio de idéias, o estabelecimento de trocas, «a comunicagéo, @ procura dialégica de conceitos que levem ao enten- dimento e & harmonia. Sobretudo, pareceme que o real é reducionisia. Por exemplo, um fenémeno social como a iniciagdo esportiva 6, para muitos, uma realidade reducionista. Logo; & realmente desafiador pen- sor complexamente. Contudo, Morin (2001a, p. 89) afirma que “& preciso substtvir um pensamento que isola e separa por um pensamen- fo que distingue e une. E preciso substituir um pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento do complexo, no sentido originério do ter- mo complexus: 0 que 6 tecido junto”. Para discorrer sobre 0 que entendo da relevéncia de se aprender @ pensar complexamente, de tratar as evidéncias de complexidade do esporte infantil, recorrerei a seguinle pergunia: se a tarefa da pedago- gio que se orienta pelo poradigma da complexidade é contribuir com 14 Pedagogie do Esporte na Infancia e Complexidads uma cultura que eduque as pessoas para que se conhegam e apren- dam a viver melhor, qual 6 0 objetivo do professor de esporte? Educor habilidades? Desenvolver capacidades? Educar atitudes? Contribuir para @ construgéo da autonomia moral? Propiciar o prazer? Promover a socializagéo de conhecimentos culturalmente construidos? Favorecer a autoestima? Facilitar a sociabilizagéo? Capacitar? Seduzir? Motivar? Reconhecer as diferengas de desempenho © a conseqiiente revelacéo de talentos? Nenhum em particular e todos em geral. E teriam outros? Sim: dialogar e negociar com as evidéncias anteriormente citadas. Mas entio o professor de esporte precisa eleger uma pedagogia que dé conta de todas essas coisas? Sim. Por isso, trate-se de um desafio. Caso contrério, os resultados serdo, em parte, os mesmos [6 conhecidos: selecdo esportiva, especializagdo precoce, coacéio de par te dos pais sobre os seus filhos e de parte dos adultos sobre as criancas, incompeténcia de parte dos dirigentes esportivos, reprodugtio explicita de parte dos professores do comporiamento de técnicos do esporte profissional, modelos de competisio eliminatrios impostos és criangas, inconcebiveis brigas entre pais @ professores, professores e arbitros, pais e drbitros, provocagées entre pais torcedores, saturagdo esportiva, estresse de competicéo e outras fragilidades De outro lado, estaria a predisposigio de os professores em consi derar a inter-relac&o entre esporte na infancia e complexidade. Dai, mediante 0 estudo e a construgéo de uma nova maneira de pensar, recorrer @ afitudes pedagégicas novas e, por conseqiéncia, que enca- minhem resullados desconhecidos. Foi o que Freire (2002, p. 97) relo- tou: “[..] se queremos chegar a algum lugar que néo conhecemos, femos que percorrer um cominho desconhecido” Logo, qual o tratamento pedagégico que se deve dar ao esporte « fim de que ele respeite e diologue com a complexidade? A meu ver, possiveis sugesiées surgem & medida que definimos para 0 esporte algumas tendéncias. >>» Tendéncias pedagdgicas Tendéncia é uma inclinagéo de algo para um determinado fim logo, chamarei os estudos adiante citados como tendéncios pedagégi- cas para a iniciagéo espottiva & luz do paradigma da complexidade, isto 6 a maneira de pensar dos autores selecionados, nao desprezan- do alguns elementos na explicagéo e no entendimento da iniciagao esportiva, se inclina ao pensamento complexo. Esse cuidado & por conta de esses autores ndo se referirem em seus estudos ao tema por mim obordado, Recorri a alguns autores brasileiros que sinalizam com estudos que déo um tratamento pedagdgico para o esporte convergente com Pedagogia do Esporte na Inféncia ¢ Complexidede «ae 15 as idéias até aqui defendidas. Entendo que eles investiram esforgos na construsdo de uma pedagogia — ndo que tenham reconhecido isso — que possam atender, na iniciag&o esportiva, a demanda da comple- xidade. Nao posso deixar passar despercebido que discutir principios & procedimentos para ensinar esporte na inféincia que considerem a com- plexidade e contraponham outros preocupados apenas com a forma- gGo de atletas e a revelagdo de talentos tem Ié as suas dificuldades. Vejamos. Seria assim tao simples deixar de pensar e utilizar 0 esporte na inféncia apenas como prérequisito para o esporte de rendimento? Deixar de pautor as aulas de esporte na reproduce do que se vé em equipes competitivas? Sistematizar o ensino do esporte na infancia, respeitando os interesses, necessidades e possibilidades de cada faixa etéria? Considerar e tratar com as evidéncias de complexidade ante- riormente mencionadas? Absolutamente ndo. Paes (1999, p. 34) j@ alertou para isso: "Um dos desatios metodolégicos mais significativos esté em compreender © esporte como um fenémeno sociocultural e desenvolvélo, considerando sua pluralidade de manifestacdes, signifi cados, agées, ambientes © personagens”. Para tentar dar conta disso (discutir uma pedagogia compromet da com a idéia de complexidade), inicio por Bosco (1995, p. 98), para quem o esporte deve ser de tal forma que venha “[...] proporcionar 0 prazer, a evolugdo da consciéncia, a construgao da cidadania e a introdugo de uma Cultura de Lazer". Esta assertiva, se lida despreten- siosamente, poderé deixar passar despercebido o seu significado. Observe que proporcionar o prazer sinaliza para aulas de esporte que veiculem o componente lédico - em parte esquecido pela pedagogi propiciar a evolucdo da consciéncia exige procedimentos que valori- zem a consciéncia sobre 0 que se faz, 0 que exigiré, nas aulas de esporte, espaco para a reflexdo, para o didlogo e para as perguntas; facilitar @ construgdo da cidadania exigiré criar um ambiente pedagé- gico que se incline para o tratamento de temas transversais, como. por ‘exemplo, a ética, a moral; e introduzir uma cultura de lazer -e ev ‘acrescentaria lazer esportivo - sugere o envolvimento em sitvagées par- ticipativas, nas quais se construa a idéia dé que o tempo livre é para ser dedicado ao entretenimento, & cultura, ao lazer. Enfim, so possi- veis decorréncias pedagégico-didéticas dessa maneira de pensar. Freire (1996) defende a idéia de que as teses constutivistas sd0 melhor opedo para ensinar esporte. A seu ver, ao se refutar a selegiio natural e a transmissdo cultural e se eleger as relacdes como fonte produtora de conhecimento, © construtivismo democratiza o esporte, isto 6, toma saber esporte acessivel a todas as pessoas. ‘A partir dessa concepsio, tornam-se duvidosas algumas idéias pedagégicas, como, por exemplo: 16 »» Pedagogic do Esporte na Inféncio @ Complexidade * De que basta « pedagogia propiciar um ambiente adequado & diversificado e dar liberdade ao aluno, que este, naturalmente, se desenvolveré e manifestara todo © seu potencial geneticamen- te herdado. * De que basta a pedagogia investir no ambiente externo, na onipoténcia do professor, em tecnologia, que 0 aluno se desen- volver e aprenderd tudo © que se queira transmitr. © construtivismo, ao investir nas relagées, cria perspectivas peda g6gicas interessantes quando se pensa no ensino do esporte: todos os alunos tém condigdes de aprender. Logo, © professor deve se preocupar em ensinar a todos. Para Freire (1996, p. 81) “[...] somente uma meto- dologia que leve em conta, tanto a alividade interna da pessoa, quan- fo as condigdes ambientais pode vencer o desafio de uma educacéo desportiva integrada”. Para © autor, o desafio de gorantir que o ensino do esporte néo se resuma t8o-somente 4 pratica pela pratica pode ser vencido por uma metodologia que privlegie o “processo de tomada de consciéncia (FREF RE, 1996, p. 82)". Nesse ponto, Freire e Bosco convergem, mas 0 primeiro dé dicas (FREIRE & SCAGLIA, 2003) de como proceder pedago- gicamente, a fim de provocar a tomada de consciéncia, Escreve Freire (1996, p. 82) que “o que traz a ago externa para o mundo interior do sujeito € a questéio que ele faz para si mesmo”. Por conseqiiéncia, o professor deve provocar nas suas aulas de esporte sitvagées geradoras | de conflitos e reflexivas. Essas situacdes sdo provenientes, por exemplo, de “[...] algo novo em uma afividade conhecida, (na qual) © aluno precisa se perguntar o que ndo deu certo, o que esté errado, o que se faz agora e assim por diante (..) @ partir da pergunta do professor... partir de conversas com os colegas (FREIRE, 1996, p. 82)". © autor acredita que “[...] esporte educacional seja a pratica que invista exclusivamente no desenvolvimento da autonomia”. E essa auto- nomia “[...] nasce da compreensdo que © aluno possa vir a ter sobre sua prética (FREIRE, 1996, p. 83)’. NislaPiccolo et al. (1999) trazem propostas pedagégicas para o ensino do voleibol, do futebol, da gindstica ritmica, da natagéo e da gindstica. Respeitandose as diferencas entre as modalidades, algumas preocupagées pedagégicas sé comuns, como, por exemplo, o trata- mento pedagdgico que se dé ao esporte, a preocupactio com que faz esporte, a face educacional do fenémeno esporte. Certamente, melhor do que eu, os préprios autores clarificam a sua pedagogia para a iniciagdo esportiva: © maior desafio era fazer da GRD um contetido acessvel aos alunos... (VE- \ARDI, p. 31); [..] sempre que nos referiemos a processos de aprendizagem de modalida- des esporivas (.] parece fundamental que as caractersicas dessos atvido- Pedagogia do Esporte na Inféncia © Complexidade «44 17 des no sejam imposias com base em modelos estereotipados; que surjam como descobertas, como parte da solucdo de problemas @ da vivéncia do >» Pedagogic do Exporte no Inféncia © Complexidade Escreve 0 autor que "Leste procedimento pouco contribui para o desenvolvimento do homem e da cidadania, uma vez que sua prética se limita a olguns movimentos ex pressados por gestos técnicos especifcos, reduzindo os possbilidades do esporte a repetices de movimentos @ execucto dos fundamentos de forma fechada com o fim em si mesmo [PAES, 1996b, p. 85).” Como contraponio & especializagéio de movimentos, Paes propde dois recursos pedagégicos: a diversificagdo e 0 jogo possivel. A seu ver, a diversificagéo de movimentos oferece “[...] aos alunos a possibil- dade de ampliar seu vocabulério motor, dandolhes a oportunidade de conhecer vérias modalidades esportivas, proporcionando © conheci- mento do esporte com maior abrangéncia e permitindo, assim, sua pratica com consciéncia e reflexdo (PAES, 1996a, p. 430)". Tratese, portant, de uma estratégia pedagégica que caminha na directo de ‘ampliar os possibilidades de atvecéo da crianga no mundo, Qutrossim, © autor v8 no “jogo possivel” "...] um recurso indispensé+ vel para ensinar esporte, tanto como referencial melodolégico quanto como referencial socioeducativo (PAES, 1999, p. 36)”. Mas 0 que caracterizaria ‘© jogo possivel e como esse recurso pedagégico poderia ser utilizado na pedagogia do esporie? Escreve © aulor, que © “jogo possivel” [1 permite edaptacdes relativas a0 espaco fisico, ao material, és regras, possibiltando a partcipocao de um grande nimero de alunos, pois rala-se de uma prética de incluséo e ndo de exclusdo; dé oportunidade ao aluno de cconhecer @ compreender a lbgica técnica e a tética do jogo coletivo; busca Lum equiibrio entre « cooperacéo e a competicdo; amplia os movimentos dos ‘alunos e acentva a ludicidade de sua prética. |...) um faciltader para 0 resgate da cultura infantil (PAES, 1999, p. 36). Em estudo mais recente ~ e este 6 0 segundo momento -, Paes (2002, p. 95) pondera que a pedagogia do esporte deve proporcionar 268 alunos, além da aquisigéo de habilidades basicas e especficas, [..] 0 desenvolvimento das inteligéncias |...) trabalhor a auto-estima (refor- » Pedagogia do Esporte ne Infancia « Complexidade Seria possivel reunirmos a esséncia do que os autores expuseram, de modo a criar um possivel sistema de tendéncias pedagégicas para © esporte na infancia? E 0 exercicio que me proponho a fazer no seqiiéncia. >bb Sistema de tendéncias pedagdégicas ~” Por conta da anélise do que os autores expuseram, criel um siste- ma de tendéncias pedagégicas (Fig. 1.3) para a pedagogia do espor- te na inféncia que se oriente pelo paradigma da complexidade. Neste, entrardo alguns dos elementos pedagégicos abstraidos dos discursos dos autores: valores, comunicagdio, cidadania, brincadeiras, lazer, cuk tura, prazer, consciéncia, convivéncia, autonomia, cooperago, auto- estima, criatividade, participagdo, contetdos acessiveis, emancipagio, fantasia, coeducagéo, ludicidade, inteligéncia. Estes so os elementos Fig. 1.3 Sistema de tendéncias pedagégicas. Pedagogia do Esporte ne Infancia e Complexidade 44 21 que circundam a pedagogia do esporte. Em algum momento se equi- valem, como, por exemplo, valores e autonomia, cooperacéo, emanci- PacGo e outros; brincadeiras e ludicidade. Esse fato apenas ratifica a convergéncia de idéias entre os autores. ‘A Figura 1.3 aponta para uma premissa: a iniciagdo esportiva 6 um fenémeno de miltiplas possibilidades pedagdgicas. Quantos equi- vocos poderdo ser evitados se 0 professor em particular e em geral 0 sistema humano que orienta a iniciagao esportiva cultivarem uma cons- ciéncia que se oriente pelo pensamento complexo? Se houver a percep- G0 de que as coisas so tecidas juntos? >>» Consideracées finais Como foi visto no transcorrer do texto, posicioneime a favor de uma pedagogia do esporte na inféncia que se oriente pelo paradig- ma da complexidade e contra uma pedagogia que se oriente por um paradigma reducionista. Penso que aquela maneira de pensar o es porte favorecerd, entre outras coisas, (a) um pensar auténomo, livre, mas autoregulado moralmente, isto 6, referenciado no outro; (b) a comunicagao entre as unidades que compdem a iniciagdo esportiva; (¢) © tratamento pedagogico das evidéncias de complexidade resul- tantes das interagées entre as diferentes unidades; (d) a interacéo da crianga com tudo © que a cerca @ (e} « desvinculacéo de um fenéme- no estéril como a especializagao esportiva precoce. Por isso, os exerci- cios propostos de reconhecer algumas unidades que interagem entre si nesse periodo, as possiveis evidéncias de complexidade resultantes dessas interagdes e a proposicéo de um sistema de tendéncias pe- dagégicos. ‘Mas, para que uma pedagogia do esporte na inféncia? Para educar crianga como crianga, falo que nem sempre acontece; para se contrapor a reducionismos e mutilagées. Alguém poderia dizer que cabe & pedagogia do esporte educar na crianga a sua motricidade. Concorde. Desde que educar @ motricidade infantil signifique educar do apenas copacidades e habilidades motoras, mas a inteligéncia, a sociabilidade, a moralidade, as atitudes (FREIRE & SCAGLIA, 2003). Por conseguinte, o esporte - que comumente se preocupa com o treino, ‘© competic&o, 0 atleta, o rendimento esportivo (KUNZ, 2000) - muda de paradigma. Contrapondo esse sfafus quo, objetiva ampliar as possi idades e os horizontes dos pessoas. Entretanto, como fazer isso se fecharmos 0 nosso pensamento em idéias reducionistas? Este 6 0 ponto: mudar a maneira de pensar. Iss0 posto, suponho que os desafios sao 0 de aprender a pensar complexamente e 0 de dialegar com as evidéncias de complexidade. Pareceme que ha uma conexGo irrefutavel entre aqueles: apenas quem 22 > Pedagogia do Esporte na Inféncia © Complexidade ‘oprender a pensar complexamente aprenderd a dialogar com as evi- déncias de complexidade. Foi visto que aprender a pensar complexamente implica um pen- samento aberto, agregative, que trate da reolidade, que reconheca as diferencas, que aproxime, que reconheca « unicidade, Entretanto, para Freire (2002, p. 8) “[..] ter olhos para a complexidade exige bem mais que um certo esforgo de mudanga. Somente « ruptura com poradigmas cléssicos @ © surgimento de outros que os substituam podem permitir (2) enxergar © mundo, talvez, como ele seja de foto” De minha parte, estou convicto de que a iniciacéo esportiva no 6 como muitas vezes © senso comum e a propria ciéncia, em alguns casos, apregoam: um fenémeno simplista. Ao contrério, € complexo. Compéem iniciagéo esportiva unidades que precisam ser tratadas pedagogico- mente, Resultam de interagées entre essas diferentes unidades evidéncios que precisam ser tratadas pedagogicamente. Portanto, hé muitos des- vios, imprevistos e incertezas no dmago da iniciag&o esportiva. logo, sugiro que as pessoas que esto envolvidas com o esporte na inféncia reconhegam a sua complexidade. Se como disse Lewis (1999, p. 99] "... a vida no é orientada e nem previsivel (...) No verdade |.) a vida & complexa e emergente”, rendome ao fato e, por iss0, acredito na necessidade de se investir em uma pedagogia que dialogue com essa complexidade. >bb ~Referéncias bibliogrdficas ARAUJO, Ulisses Ferreira de (2000). “Escola, democracia e a construgao de personalidades morais’. In: Educagao e Pesquisa, Séo Paulo, v.26, n.2, p. 93. (2002). A Construgdo de Escolas Democraticas: hist6rias sobre com- plexidade, mudangas e resisténcias. Sao Paulo: Moderna. BENTO, Jorge Olimpio (1989). A crianga no treino e desporto de rendimento. Kinesis.v.5, 9. 1,935. BOSCO, Jodo (1995). Aprender a aprender fazendo: educacdo Rsica, esporte, lazer. Londrina: Lido. (2004). Metodologia da educagaio isco, da seducdo. 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