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_ PATRIMONIO E MUSEU: HISTORIA E MEMORIAS DA CIDADE’ Zita Rosane Possamai MEMORIA E HISTORIA A meméria é um tema em voga na atualidade, nos mais diversos dominios. Vé-se uma mobilizagdo de todos, sejam grupos ou individu- os, para tudo guardar, tudo preservar. Os “resgates de memoria” se vul- garizam, museus se proliferam no mundo todo, a moda retr6é ganha des- taque nas passarclas, as pesquisas genealdgicas se reproduzem, assim como os memoriais. No ambito académico, a memoria constitui-se num campo de es- tudo perpassado por varias ciéncias. Atividade diretamente relaciona- da a psique humana, ela é objeto de pesquisa da biologia e da neurofi- siologia, no que concerne ao funcionamento cerebral? e a fenémenos como a amnésia ¢ a afasia; da psicologia, que se interessa em ver 0 que élembrado ou esquecido pelo individuo; da pedagogia, que tem nas ati- vidades de memorizacao um dos aspectos da aprendizagem (Lovisolo, 1989, p.16-28). No dominio das ciéncias humanas, o estudo da memoria esta vin- culado a formagao das identidades, a forma de relagdo entre o passado e 9 presente, aos fendmenos ligados a “perda da memoria” ¢ ao esforgo por sua preservaciio. Assim, tanto a filosofia e a sociologia, como a an- tropologia e a histéria fazem esforcos para buscar o entendimento dessa area nebulosa da experiéncia humana e que somente a interdisciplinari- dade poderia abranger. Mas por que se fala tanto em memoria? Pierre Nora relaciona 0 ini- cio dos estudos sobre a memoria no final do século passado — seja na filosofia, com Bergson; na psicanilise, com Freud; e na literatura, com Proust — com o “desabamento do mundo rural” (Nora, 1993, p.17) eo Zita Rosane Possamai ¢ mestra em Historia/UFRGS; coordenadora da Meméria Cultu- ral de Porto Alegre; diretora-secretaria do Comité Brasileiro do Conselho Internacional de Museus; membro do Conselho Consultivo da ANPUHRS. Anos 90, Porto Alegre, n.14, dezembro de 2000 aoe auge do crescimento industrial. E 0 proprio Nora que fala desse senti- mento de ruptura com o passado, de uma “meméria esfacelada”, a partir do conceito de “aceleragiio da histéria” Para além da metéfora é preciso ter a nogdio do que a expresstio significa: uma oscilagdo cada vez mais rapida de um passado de- Jinitivamente morto, a percepedo global de qualquer coisa como desaparecida — uma ruptura de equilibrio. [...] Fala-se tanto de meméria porque ela ndo existe mais. (p.7) O desdobramento dessa sensagéio de incerteza é a busca frenética pelos vestigios do passado, num esforgo concentrado por tudo preser- var. Duvignaud afirma que “esta preocupagdio que dirige a atengdo para a memoria e duragdo, responde, com efeito, a uma ruptura na continui- dade das sociedades européias” (Halbwachs, 1990, p.12). Outro momento de ruptura, desta vez a Segunda Guerra Mundial, também levou Walter Benjamin (1993) a escrever suas memérias de crianga. O fildsofo tam- bém relaciona 0 inicio do periodo moderno com as transformagdes das formas de rememoracao, que podem ser vistas no surgimento do roman- ce moderno (Benjamin, 1986, p.201) Os estudos sobre a memoria, hoje, seriam um indicativo de estar- mos também vivendo, no final do século XX, um momento de ruptura? Qu sera que o fim das “ideologias-meméria” (Nora, 1993, p.8), jogan- do-nos na imprevisibilidade do futuro, nos arremessa para o passado, como forma de buscar as bases para um presente cada vez mais envolvi- do no turbilhdo da modernidade? Segundo hipotese de Marcia D’ Alessio (1995, p.1), “os estudos de memoria respondem a uma necessidade de busca de identidades ameagadas”. A idéia de salvagiio parece guiar os grupos num movimento de tudo guardar, tudo registrar, em uma luta pelo “direito A meméria” (Decea, 1992, p.132), que envolve nao apenas os historiadores de oficio, mas a sociedade como um todo. Mais ainda aque- les grupos que estiveram ausentes da memoria dita oficial. como negtos, mulheres, homossexuais ¢ outras minorias. Como o fizeram outras disciplinas no final do século XIX, hoje a historia volta-se para a memoria. Nao que a tivesse ignorado até os nos- sos dias, mas porque, por muito tempo, se imaginou idéntica a ela. A dis- ciplina histrica se vé envolvida especialmente nos estudos da memé- ria, por obrigar-se a definir seu campo epistemolégico em relagiio a essa. Neste sentido, Pierre Nora (1993. p.9) considera fundamental estabele- cer uma diferenciagdo entre ambas: 24 Anos 90 A meméria é a vida sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela esta em permanente evolugdo aberta & dialética da lem- branea e do esquecimento, inconsciente de suas deformagées su- cessivas, vulnerdvel a todos os usos e manipulagées [...]. A histo- ria é a reconstrugao sempre problematica e incompleta do que ja no existe mais [...], porque operagéio intelectual e laicizante de- manda andlise e discurso crttico. Esta diferenciagdo é necessaria, para 0 autor, porque a historia es- teve confundida com uma determinada meméria histérica ligada A cons- trugdo da identidade nacional, a partir do século XIX. Memoria histori- ca, quase sempre concebida como tinica e homogénea, n&o dando vez nem voz as diferengas sociais, étnicas ou de género. Coma publicagao de Les lieux de mémoire, Pierre Nora c outros his- toriadores franceses, as vésperas do bicentenario da Revolugdo de 1789, tentaram identificar “os lugares onde se alojavam os elementos mais sig- nificativos da meméria republicana” (Decca, 1992, p.129): a bandeira, 0 calendario revolucionario, 0 hino, os monumentos, as comemoragées, os funerais, a pedagogia, as exposigdes. Segundo Edgar De Decca (p.129), antes de ser um sintoma do nacionalismo francés, esta obra tem origem no mal-estar contemporanco decorrente do sentimento de descontinuidade com 0 passado. Para restabelecer a continuidade do presente com este pas- sado “definitivamente morto”, sao construidos os lugares de memoria (Nora, 1993, p.22), marcos referenciais que tam como fungdo guardar a maior significag&o possivel, congelando o tempo. Os lugares de memoria podem ser de ordem material, simbolica ou funcional (p.21). Madeleine Rébérioux (1992, p.49-53), pesquisando os lugares da memoria operaria, enfocou na primeira acepgao os lugares de trabalho, a fabrica, a usina ¢ as praticas ligadas ao oficio; nos lugares de sociabilidade, os cafés e as asso- ciagGes formadas em torno destes; nos lugares simbélicos, o espaco do tra~ jeto dos cortejos operarios ¢ as comemoragées. Para Nora, a idéia expressa no conceito de lugares de meméria esta relacionada a um movimento da historiografia no sentido de sair da era da identidade, quando memoria ¢ historia confundiam-se, ¢ entrar na era epistemoldgica, na qual a memoria é objeto da historia. Apesar de este processo de construgao da meméria ser seu foco, o autor diferencia essa meméria “voluntaria e deliberada”, que é, na verdade, a passagem da meméria a historia, daquela “memoria verdadeira [...] abrigada no gesto e no habito, nos oficios onde se transmitem os saberes do siléncio, nos saberes do corpo [...” (Nora, 1993, p.14) Anos 90 25 = O autor da algumas pistas sobre a passagem de uma meméria espon- t4nea a uma memoria deliberada, que, para cle, ja ¢ historia. Primeiramente, a outorga ao arquivo da fungao de guardar e registrar tudo 0 que nao pode- remos futuramente lembrar (p.17). As lembrancas de familia, a meméria oral, as genealogias, os arquivos particulares disseminam.-se por todos os cantos do globo. Em segundo lugar, ocorre um deslocamento da memoria vivida coletivamente para a meméria individualizada (p.18), processo se- melhante ao apontado por Benjamin, Para Nora, a identidade eo pertenci- mento podem ser encontrados no interior do individuo, num quase retor- no do papel dos “homens-memioria”, aos quais é imposto o dever de lem- brar. Um ultimo aspecto é a distancia assumida pelo passado em relagdio ao presente. De uma vez por todas, foi quebrada a continuidade que nos ligava a um passado que até entiio nao era considerado como tal. Nora (p.19) diz que 0 fim de um principio explicativo tinico, jogando o futuro. anteri- ormente moldado pelo presente, na imprevisibilidade, levou-nos a fragmen- tagaio do passado em uma miriade de memérias. Assim, se tomarmos a definigao de lugares de memoria de Nora, é valido dizer que nos arqui- Vos, museus, monumentos, memoriais ¢ prédios historicos encontra-se no a meméria de um grupo, cidade ou nagdo, mas como uma determinada meméria foi construida pelos atores sociais daquele grupo, cidade ou na giao ¢ adquiriu legitimagao ao longo dos anos. Hoje, se para a meméria os lugares tém um aspecto celebrativo, a histéria busca muito mais compre- ender 0 processo de construgdo dessas memérias. Nessa diregdo, ganha relevancia o aspecto da gestdo da meméria Em regimes autoritarios, principalmente, a omissio de fatos ¢ a censura sobre informagées do passado foram formas utilizadas pelo Estado para administrar exclusivamente a memoria. Porém, como diz Michael Po- Hak (1989, p.4), nos momentos de crise, emergem as memérias subter- rdneas em contraposi¢ao a meméria oficial. Aqui entramos no dominio do cruzamento entre memoria ¢ poder, afinal de contas, como coloca Le Goff (1994, p.426), Tornarem-se senhores da memoria e do esquecimento é uma das grandes preocupagdes das classes, dos grupos, dos individuos que dominaram e dominam as sociedades historicas. Os esquecimen- tos ¢ os siléncios da historia sao reveladores desses mecanismos de manipulagéo da memoria coletiva Baczko (1991, p.159-160) aponta a intersecgaio entre meméria e poder como dimensao essencial das mentalidades sociais. Tratando es 26 Anos 90 pecificamente sobre regimes autoritarios, o autor aponta diversas formas utilizadas pelo Estado ao longo da histéria para administrar exclusiva- mente a meméria, como, por exemplo, a censura sobre fatos do passado, criagdo ou omissao de acontecimentos historicos. atualizagdo de repre- sentagées do passado em fungao de necessidades politicas do presente. Tomando a cidade como objeto especifico, como esta se colocaria a partir da problematica da meméria, a partir das consideragées anterio- res? E ainda Baozko (p.30-31) que aponta o espago da cidade como lu- gar privilegiado para a construgao e disseminagdo dos imaginarios ¢ 0 quanto estes podem estar associados 4 memoria. Conforme o autor [...] Una de las funciones de los imaginarios sociales consiste en la organizacién y el dominio del tiempo colectivo sobre el plano simbélico. Intervienen activamente en la memorta colectiva para la cual, como ya hemos observado, a menudo los acontecimientos cuentam menos que las representaciones imaginarias a las que ellos mismos dan origen y encuadran. (p.30) Sem davida, a construgao dos imaginarios sociais pode ter como base aspectos da memoria coletiva de determinado grupo, pais ou cida- de para tornar-se mais efetiva e eficaz. Mais do que nunca, no espago da cidade, os imaginarios necessitam de baluartes da memoria coletiva para constituirem-se. Através de comemoragées — que celebram a fundagao da cidade e seus fundadores —, monumentos ¢ memoriais ~ erigidos com 0 objetivo de evocar acontecimentos ou pessoas ilustres -, muscus, are- as urbanas inteiras, clevadas ao estatuto de patriménio, so algumas for- mas identificaveis de inscrigdo da memoria de uma cidade no seu pre- sente e que podem ganhar grande forca no scu imaginario. No prosseguimento deste texto serao examinadas duas possibilida- des especificas de construgdo de /ugares de memoria, 0 patriménio ¢ 0 muscu histérico, partindo de um estudo de caso relacionado a cidade de Porto Alegre. PATRIMONIO E MUSEU: POSSIBILIDADES DE ENTENDIMENTO DA MEMORIA DA CIDADE Patrimédnio e museu so objetos pouco focalizados nos estudos his- toriograficos. Investiga-los, porém, pode langar algumas indagagées so- bre a preservagao de determinadas estruturas materiais, que acabam por Anos 90 27 tornar-se consagradas na sociedade e sobre a veiculagéo de discursos subjacentes a selegio do que deve perdurar. Este texto propée-se a apre sentar um estudo de caso envolvendo a conformagao, como patriménio da sociedade porto-alegrense, de um solar do século XIX, nas décadas de 1970 e 1980, pretendendo verificar como esse movimento imbricou- se na trajetoria do Museu de Porto Alegre e quais as implicagdes na pro- dugdo de representagdes ligadas ao patriménio que passaram a ter um espago privilegiado para veiculagdio: 0 museu. Porto Alegre, em meados do século XIX, tinha na sua configura- dio espacial uma colina mais densamente urbanizada, que estendia, pelo lado norte, suas casas residenciais ¢ comerciais até as margens portuari- as do lago Guaiba, e uma extensa area verde raramente interrompida por alguma edificagdo, descendo ao sul. Essa regido, que, desde o século XIX, chamou-se Cidade Baixa, manteve, nesse periodo, o seu aspecto predo- minantemente rural. Uma das chacaras ali existentes recebeu o Solar do comerciante Lopo Gongalves, construido no limite com a antiga Rua da Margem do Riacho (atual Rua Joao Alfredo), no periodo entre 1845 e 1855 (Giacomelli, 1992, p.13). Lopo utilizava-o como casa de campo (Symanski, 1998, p.103) Lopo Gongalves Bastos era portugués e exercia em Porto Alegre ati- vidades ligadas ao coméreio, tendo um armazém de molhados na Praga da Alfaindega e uma loja de fazendas na Rua da Praia, em uma sociedade que mantinha com seu sogro. Lopo também se dedicara a atividades com em- barcagées ¢ era dono de varios escravos, cuja m4o-de-obra utilizava nos servigos domésticos, nas plantagdes da sua chdcara, nas embarcagdes e nas lides comerciais. Foi, ainda, vereador e provedor da Santa Casa de Mise- ricordia. Também foi o fundador, juntamente com os demais comercian- tes da cidade, da Praca do Comércio de Porto Alegre ¢ do Banco da Pro- vincia. Era um homem de posses, proprietario de um dos maiores patri- ménios inventariados entre os diversos membros da sociedade porto-ale- grense e da Provincia do seu tempo (p.97). Fazia parte, assim, da elite so- cial, politica ¢ econémica da Porto Alegre novecentista. Com 0 passar do tempo e com a morte dos descendentes de Lopo, 0 Solar passou por varios proprietarios, estando, na década de 1960, em estado de conservacao bastante precario. E nesse momento que determi- nados grupos, principalmente através da imprensa escrita, iniciam os movimentos para preservar a casa. Quais seriam, entdo, os motivos que levaram a sociedade porto-alegrense da época a preservar aquela antiga casa, praticamente em ruinas? Para compreender a preocupagdio com a preservagao do Solar, no se pode deixar de mencionar um contexto his- 28 Anos 90. térico, no qual poder puiblico, imprensa e intelectuais comecam a voltar os olhos para as edificagdes antigas do municipio. A visdo corrente nos jornais da época e entre os depoentes entrevistados era de que a cidade, ‘em processo de metropolizaciio, ia colocando abaixo os tiltimos prédios que a uniam a tempos mais remotos. Porto Alegre, durante 0 periodo da ditadura militar, foi palco de diversas obras, principalmente vidrias, que trouxeram grande impacto para a sua paisagem urbana (Pesavento, s/d, p.113). Os anos 70 ¢ 80 sao marcados pela construgao de viadutos, ele- vadas, tineis e perimetrais. O velho casar&o comega, entdo, a despontar como um remanescente do passado da cidade, uma das ultimas constru- ges do século XIX, exemplar da arquitetura rural existente na regido que ainda estava de pé. Nesse contexto, pode-se observar, através da imprensa ¢ de entre- vistas realizadas, a presenga de enunciados discursivos de um campo (Bourdieu, 1996, p.261) relativamente autonémo que ira preocupar-se com a construgiio e a difusdo da representagao (Bourdieu, 1989, p.112) de patriménio, estabelecendo discussdes referentes, principalmente. as edificagées que deveriam ser incluidas nesse estatuto, por serem porta- doras de atributos ¢ caracteristicas determinadas. Um bem material, ao ser inserido nessa categoria, exigia praticas que assegurassem a sua pre- scrvacdo, tornando-se inviolavel. O campo do patriménio define-se, as- sim, como “um sistema de relagdes objetivas entre os agentes sociais encarregados das tarefas praticas e simbélicas ligadas ao tombamento € preservacao de bens culturais” (Lewgoy, 1992, p.71). Esses agentes, no periodo estudado, nao séio apenas arquitetos funcionarios de érgao esta~ tai: como prefeitura, governo do Estado e Unido, mas também jornalis- tas, intelectuais ¢ artistas. A nogao de patriménio que até entdo fazia parte das estratégias de consolidagao do Estado-nagao brasileiro, através da elaboragiio do que seria a cultura e a identidade nacionais, na década de 1970, come- gaa apontar para o regional (p.58). Nesse sentido, o movimento de pre- servacao do Solar de Lopo Gongalves sera considerado como um dos pioneiros a instituir em algumas instancias, principalmente imprensa € Orgiios estatais, a discussdo desta idéia em Ambito municipal. Porto Alegre, assim, respondendo aos apelos desse campo, através da pre- feitura, naquela época, colocou-se como um dos primeiros municipios brasileiros a legislar sobre 0 patriménio da cidade. Num primeiro mo- mento, cria o Conselho do Patriménio Histérico e Cultural e, num se- gundo momento, relaciona 47 iméveis “considerados de valor histéri- co ¢ cultural e de expressiva tradigao pata a cidade de Porto Alegre” Anos 90 29 (Porto Alegre, 1977). A casa de Lopo Gongalves foi um dos iméveis arrolados nessa legislagao.5 Na construgéo do Solar como patriménio, outras caracteristicas, ainda, foram levantadas. O fato de ser uma das casas mais antigas de Porto Alegre ¢ uma das caracteristicas apontadas que definem o Solar como Patrimonio. Sendo “antiga”, naturalmente ela desponta ante as demais estruturas arquitet6nicas construidas posteriormente. E importante ob- servar que 0 que era antigo passa a ser patrimdnio. Os jornais aponta- vam, ainda, a importancia do Solar como um exemplar do “autentica- mente lusitano” em oposigao a diversas construgdes arquitet6nicas que vieram posteriormente a esse periodo e que deram um outro perfil para a cidade. Assim, “auratiza-se” a casa, como afirma Gongalves (1988, p.265), associando-a a sua originalidade, a seu carater nico e a uma re~ lago genuina com o passado. Esse é um dos elementos que auxilia a pensar 0 Solar como um lugar de meméria da cidade de Porto Alegre, que, como diz Pierre Nora (1993, p.7), é aquele lugar destinado a reter o maior numero de significagdes possiveis, capaz de estabelecer um elo entre o passado, considerado cada vez mais remoto, neste caso, porque destruido pelo crescimento da cidade, e o presente, convulsionado pelas transformagoes do meio urbano. por isso ameagado pelo esquecimento Sérgio da Costa Franco, ao apelar ao prefeito da época para que o Solar fosse restaurado, evitando o seu desaparecimento. dizia, em sua coluna no jornal Correio do Povo (1975, p.4), que Porto Alegre “sofre de me- méria descontinua, 4s vezes de amnésia”. No velho Solar, assim, para 0 jornalista, a socicdade porto-alegrense aglutinaria a possibilidade de li- gagéo, mesmo que ténue, entre o pasado lusitano da cidade e o seu pre- sente, no qual essas marcas ja no existiam mais ‘Um outro dado, ainda, veio juntar-se as caracteristicas arquitet6- nicas do Solar para a sua consolidagdo como patriménio e sua conseqtien- te preservagao: o fato de ter pertencido ao comerciante Lopo Gongalves, A vinculacdo da residéncia, que, em tempos mais remotos, Manoelito de Ornelas denominara de “Casa das Magndlias”, ao seu antigo propricta- rio, Lopo Gongalves, foi uma ténica na época. Mas. além da ligagdo com aquele que construira, habitara ¢ transferira o Solar a seus descenden- tes, a relag&o da casa é feita com a entidade da qual ele foi membro fun- dador, a Associag&o Comercial de Porto Alegre. Nos jornais, é recorrente a informagao de que, naquele casardo, Lopo Gongalves, juntamente com outros comerciantes da cidade, teria fundado, em 1858, a Praga do Co- mércio de Porto Alegre, que, no principio do século XX, passou a cha- mar-se Associagao Comercial de Porto Alegre.4 A historiografia corro- 30 Anos 90 preocuparam em relacionar os dados biograficos de Lopo Gongalves ¢ a informagao de que ali, na sua casa, teria sido fundada a Associag’io Co- mercial de Porto Alegre. Dessa forma, a memoria do Solar, no contexto em que a sociedade esta lutando para preserva-lo, é construida como es- tando relacionada 4 memoria de um importante personagem ¢ de um de- terminado grupo econémico, ambos legitimados como pertencentes a uma mem6ria da cidade, o que justificava a defesa daquela casa como impor- tante para ser conservada pela sociedade como um todo. Importa pouco, naquele contexto, se as informagées historicas mos- tram a improbabilidade de ter sido no Solar que Lopo Gongalves fundou a Associagao Comercial de Porto Alegre. Instituido como lugar de me- méria, o Solar deixa de ter referentes na realidade, passando a referen- ciar-se nele proprio como um signo em estado puro (Nora, 1993, p.28).° Asseguradas a preservagao e a restauragao do Solar, a municipa- lidade decide sediar ali o Museu de Porto Alegre, instituigdo criada cm 1979 e que estava abrigada em prédio de espago precario. Essa deci- sdo teve conseqiiéncias tanto para o Museu de Porto Alegre como para © Solar Lopo Gongalves. Se, num primeiro momento, interessava ape- nas preservar o Solar, nao importando se este viesse ou nao a abrigar um museu, percebe-se que, num segundo momento, a instalag4o de um museu em seus espagos aumentou a possibilidade evocativa de mem6é- rias que teria o prédio. Dessa forma, a partir do momento em que o Museu de Porto Alegre transfere-se para o Solar, a caracteristica de lugar de memoria passa a set uma marca indelével da instituigdo, o que tera implicagoes nas representagSes que a mesma passara a construir & consagrar nos seus espagos. MUSEU MEMORIA A representagao que foi encontrada neste estudo de museu meméria pode ser entendida a partir das consideragées anteriores sobre a memoria, Neste Ambito, estariam, assim — seguindo o pensamento de Pierre Nora (1993) —, nao apenas as lembrangas do individuo, permeadas por suas emogées, sentimentos, relacionamentos com outros individuos e grupos aos quais pertenga, mas também as operagées de gestdo da meméria cole- tiva, susceptiveis a manipulagées por parte dos atores sociais. A memoria, desta forma, constitui-~se em um constructo social, tanto em nivel das ope- ragGes individuais da lembranga ¢ do esquecimento como das elaboragdes ou reelaboragées do passado no dominio coletivo 32 Anos 90 Assim, chama-se museu memdria aquela representagao elaborada pe- los atores sociais ao desejarem atribuir ao muscu ou aos scus artefatos ele- mentos que fizessem referéncia a construgdes individuais ou coletivas da memiéria. Sao, principalmente, representag6es relacionadas ao Ambito afe- tivo, as lembrangas, aos elos com outras pessoas, que permitem atribuir aos objetos uma capacidade rememorativa e celebrativa. Dessa forma, o objeto adquire um significado simbélico para esses atores, porque cle possibilita lembrar uma época ou alguém, evocar o nome de uma pessoa publica, valo- Tes ¢ virtudes, comemorar acontecimentos, tornar presente um grupo ou ins- tituigao, imortalizar uma pessoa, venerar alguma coisa ou alguém O Solar Lopo Gongalves, inserido como pega de museu (Gourati- er, 1984, p.68), suscita claboragées nesse aspecto, pois passa a ser, como os demais objetos do acervo do Museu, um artefato material trabalhado simbolicamente no interior do campo aqui analisado. Nessa perspecti- va, ao tratar da casa, dois caminhos sao encontrados. De um Jado, a trans- formagao da casa preservada em muscu, na visio dos atores do campo, adquire sua significagao como objeto que representa a propria idéia de patriménio, De outro lado, a utilizago das informagées histricas sobre 0 Solar produz ¢ veicula a memoria de um personagem historico e de um determinado grupo social a ele relacionado nos espagos do museu. A consolidagao do Solar como patriménio, que foi ja analisada an- teriormente, adquire sua plena significagao na idéia de transforma-lo em um museu, Porém, a concepgdo que sc tinha era de uma “musealizacio” completa da casa, conforme as caracteristicas da época em que esta foi construida, O Solar transformar-se-ia, assim, em um museu ambicntado de acordo com as caracteristicas de uma residéncia do século XIX. Embora esse projeto inicial nao tenha sido concretizado, ele expres- sa.as significacdes que cram atribuidas a casa. Fundamentalmente, coloca © Solar em uma posigiio de destaque que passaria a aludir a propria idéia que 0 concebeu, a de ser um patriménio da cidade, ¢ leva ao limite a sua possibilidade de ser um objeto sagrado, quando 0 coloca no ambit do pro- cesso de “musealizagdo”. Sao assim, pode-se dizer, dois processos que 0 transformam em inviolavel: a nogiio de patriménio ea sua inserco como pega de museu. Pode-se observar que a significagao da casa como patri- ménio adquiriu muita forga naquele contexto, sendo, inclusive, percebida nos depoimentos uma confusdo entre a casa como patriménio ¢ 0 Museu de Porto Alegre como instituigdo que ali ocupava os seus espagos Além das caracteristicas relacionadas 4 sua arquitetura, o Solar tam- bém recebe outros elementos que, na visio dos atores sociais do campo, o tornam patrimdénio. Mas que, ao serem trabalhados, reforcam a perspecti- Anos 90 res _ ._ — va do casardo como peca de museu. O Solar passa, assim, a representar também a figura do ex-proprietario, Lopo Gongalves, ¢ a entidade associ- ativa que havia sido fundada por ele. Quanto a figura de Lopo Gongalves, pode ser vislumbrado, principalmente pelos jornais, que so sempre enfa- tizadas as suas qualidades como comerciante, vereador, provedor da San- ta Casa de Misericérdia. Pouco espago é dado para uma visdo mais critica em relago a sua figura e a sua época. Omite-se, por exemplo, o fato de Lopo Gongalves ter sido proprietario de escravos ¢ ter utilizado esta mio- de-obra para construir o Solar Jornal do Comércio, 1981). Nao se pode deixar, porém, de mencionar que a construgéo dessa li- gagiio da casa com o seu proprietario e com a Associagdio Comercial de Porto Alegre é fruto das relagGes entre os agentes do campo ¢ os represen tantes dessa entidade, No momento em que Solar ainda estava em obras, foi possivel a prefeitura adquirir materiais para a restauragio da casa, mais especificamente as tintas para a sua pintura. Apés a transferéncia do Mu- scu para o Solar, essa relagdio continua presente entre o corpo funcional da instituigado ¢ os membros daquela entidade. Essa telagao dar-se-a, entio, em tomo da Sala da Associagtio Comercial. Essa sala reunia em expos! ¢4o uma parte do acervo daquela entidade, objetos e documentos, tais como: retrato de Lopo Gongalves, ata de fundagaio da entidade, maquinas de so- mar, balangas, retratos de antigos comerciantes, livros e objetos de empre- sas. Para os membros daquela entidade, aquele espago passou a ter um carater eminentemente comemorativo e celebrativo da memoria da enti- dade de seus fundadores, Algumas das comemoragées de aniversario da instituigao ¢ homenagens aos seus edificadores tiveram como sede o Mu- seu, mais especificamente a Sala da Associagao Comercial, como os 125 anos (Zero Hora, 1983, p.21) e 130 anos da entidade. Pode-se observar, assim, que 0 Museu aceitou os imperativos liga- dos & gestio da memoria daquela instituigao realizada por seus membros O Museu de Porto Alegre assumiu a possibilidade comemorativa e cele. brativa da memoria de um determinado setor da sociedade porto-alegren- se, mantendo por varios anos uma sala especial, onde 0 acervo reunido reverenciava a memoria da Associagaéo Comercial, de scus fundadores ¢ de estabelecimentos comerciais da cidade. CONSIDERACOES FINAIS N&o se pode pensar no museu ou no patriménio como lugares neu- tros, mas como espagos de relagdes objetivas que se estabelecem entre 34 Anos 90 determinados agentes da sociedade. Esta pesquisa pode mostrar que, como afirma Canclini (1995, p.182), tanto 0 patrimdénio como o museu podem ser caracterizados como “um espag¢o de luta material e simbdéli- ca” em torno da construcdo e veiculagdo de memérias, sejam estas indi- viduais ou coletivas Desta forma, pode-se ver que o museu ¢ 0 patriménio ocupam um lugar especial na gestdo da memoria dos individuos, de grupos e insti- tuigGes sociais. Lugar para lembrar, para comemorar e¢ celebrar e lugar onde se operam as escolhas do que deve ser lembrado ou esquecido, per- petuado para o futuro ou relegado a morte e ao desaparecimento. A re- presentagiio de museu memoria pressupée, ainda, uma determinada for- ma de lembrar que, fundamentalmente, esta ligada as propricdades do sagrado que um objeto adquire no contexto do museu. A peca de museu, © 0 que por ela é evocado, é intocavel, inquestionavel, incriticavel. O museu, assim, ndo apenas constroi significagdes em torno do objeto, mas reforga os sentidos ja previamente existentes antes do objeto ser intro- duzido na institui¢4o, como se deu com o Solar Lopo Gongalves. Generalizando, a partir do momento em que tanto os patriménios como os museus sao criados nas cidades com o objetivo de fazer uma mediago com 0 seu passado, cabe a indagagaio sobre a pertinéncia des- ses espagos como lugares de memdria, celebrativos e evocadores, mui- tas vezes, de memorias homogeneizadoras, que sao reproduzidas na so- ciedade sem qualquer andalise critica. Se este debate pode estar apenas iniciando entre nossos colegas de oficio, talvez a historiografia possa dar a sua contribuigdo inicial, tomando os lugares de memoria como obje- tos de investigagao. NOTAS 1. Parte deste texto compée a dissertagao de mestrado da autora: Guardar e celebrar 0 passado: o Museu de Porto Alegre e as memorias na cidade. Porto Alegre, 1998. Dissertacdo (Mestrado) — PPG em Histéria/UFRGS. 2. Acsse respeito, ver Izquierdo, Ivan. E a meméria que nos da identidade. Porto & Virgula. Porto Alegre, Unidade Editorial, n.22, p.2-9, ago. 1995. 3. O Solar Lopo Gongalves foi primeiramente registrado como patriménio em Porto Alegre. Prefeitura Municipal. Secretaria Municipal da Cultura. Equi- pe do Patriménio Histérico ¢ Cultural. Livro do Tombo Historico. Porto Ale- gre, 1989. fl. 3, n. 4, 21 dez.1974 4. Essa informagao é dada em diversas matérias jornalisticas da época, como, por exemplo, em Cidade ganha Museu de Som e Imagem. Zero Hora, Porto Anos 90 35 Alegre, [s.p.], 8 jul. 1974, Também contém essa informagdo 0 documento Coletanea de legislagdo sobre 0 patrimonio historico: Municipio de Porto Alegre. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1978, p.37. 5. Praga do Comércio. Porto Alegre. Ata de fundagao da Praga do Comércio de Porto Alegre realizada no dia 9 maio 1958. 6. Como coloca 0 autor, os Jugares nao tém referéncia com a historia, esta como disciplina preocupada com a verificagao através das fontes, mas com a me- méria. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BACZKO, Bronislaw. Los imaginarios sociales: memorias y esperanzas colec- tivas. Buenos Aires: Ediciones Nueva Vision, 1991 BENJAMIN, Walter. Infancia em Berlim por volta de 1900. In: Obras escolhi- das II, Sao Paulo: Brasiliense, 1993 O nartador: consideracées sobre a obra de Nicolai Leskov. In: Obras es- colhidas I. $0 Paulo: Brasiliense, 1986. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1996. O poder simbélico. Rio de Janeiro: Difel, 1989. CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas hibridas: estratégias para entrar y salir de la modernidad. Buenos Aires: Editoral Sudamericana, 1995. D’ALESSIO, Matcia. 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