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A teoria do minimo existencial mantém relagies estrei- tas com 0 direito previdencidrio e com o direito da assistén- cia social,” este dltimo pouco desenvolvido no Brasil © direito civil € importante para a fundamentagio do direito 20 minimo existencial nas relagSes entre privados. 6.2.5. Disciplinas nio-juridicas © esquems tedrico do minimo existencial deve se apoiar também na reflexio interdisciplinar. E imensa a importancia da Ciéncia das Financas para a compreensio do fendmeno do minimo existencial, princi- palmente nas suas vertentes mais novas como a Public Choice. ‘Também a Ciéncia Politica contribui efetivamente para © estudo do minimo existencial, principalmente pela suas colaboragdes no campo das politicas pablicas e sociais, clusive da recente discussao sobre a judicializagio das pi ticas ptiblicas. A Ciéncia Econémica, com os estudos sobre a pobreza, a miséria e o desenvolvimento humano traz igualmente sig- nificativo aporte para o fortalecimento do minimo exis- tencial. 87 Cf, LEHNER, Moris. Einkommensteuerrecht und Sozialtilferecht Tabingen: Mohr, p. 1, WALTER G. LEISNER, Existencsicherung... cit, p. 218, a4 Capitulo fT O CONCEITO DE DIREITO AO MINIMO EXISTENCIAL 1, CONCEITO DE MINIMO EXISTENCIAL 1.1. Direito minimo Os minimos sociais, expresso escolhida pela Lei n° 8.742/93, ou minimo social {social minimum), da prefe- réncia de John Rawls," entre outros, ou ménimo existencial, de larga tradigéo no direito brasileiro ¢ no alemao (Exis- tenzminimum), ou direitos constitucionais m{nimos, como dizem a doutrina e a jurisprudéncia americanas, integram ‘também o conceito de direitos fundamentais. Hé um direi- to as condices minimas de existéncia humana digna que nao pode ser objeto de intervencao do Estado na via dos tributos (= imunidade) € que ainda exige prestagées esta- tais positivas.? O direito € minimo do ponto de vista objetivo (univer- sal) ou subjetivo (parcial). E objetivamente minimo por 1A Theory of Justice cit., p. 370. 2 Cf. TORRES, Ricardo Lobe. O Minimo Existencial ¢ os Direitos Ps ta de Direito Administrative 177: 29-49, 1989. 35 coincidir com o conteaddésencial dos direitos fundamen- tais e por ser garantido 2 todos os homens, inde- pendentemente de suas condicées de riqueza; isso aconte~ ce, por exemplo, com os direitos de eficécia negativa e com direitos positives como o ensino fundamental, os servigos de pronto-socorro, as campanhas de vacinacao piiblica, ete. Subjetivamente, em seu status positivus libertatis, € mini. ‘mo por tocar parcialmente a quem esteja abaixo da linha de pobreza 1.2. Direito existencial Nao € qualquer direito minimo que se transforma em minimo existencial. Exige-se que seja um direito a situa- gves existenciais dignas. Sem o minimo necessério A existéncia cessa a possibili- dade de sobrevivéncia do homem e desaparecem as condi- Ges iniciais da liberdade. A dignidede humana e as condi- Ges materiais da existéncia nao podem retroceder aquém de um minimo, do qual nem os prisionciros, os doentes mentais € os indigentes podem ser privados. O mfnimo existencial nio tem dic¢do constitucional propria. Deve-se procuré-lo na idéia de liberdade, nos prin- cfpios constitucionais da dignidade humana, da igualdade, do devido processo legal e da livre iniciativa, na Declaragao dos Direitos Humanos e nas imunidades ¢ privilégios do cidadao. 86 os direitos da pessoa humana, referidos a sua exis- téncia em condicées dignas, compdem o minimo exis- tencial. Assim, ficam fora do ambito do mfnimo existencial 0s direitos das empresas ou das pessoas jurfdicas, a0 contré- tio do que acontece com os direitos fundamentais em gera O direito a existéncia deve ser entendido no sentido que the dé a filosofia, ou seja, como direito ancorado no 36 set-af (Da-sein) ou no ser-no-mundo (in-der-Welt-sein)? Integra a “estrutura de correspondéncias de pessoas ou coi sas", em que afinal consiste 0 ordenamento juridico.t Nao se confunde com 0 direito a vida, que tem duragéo conti- nuada entre o nascimento ¢ a morte ¢ extensio maior que o de existéncia, que € situacionalte nao raro transitéria.> A Corte Constitucional da Alemanha define o minimo exis- tencial como o que “é necessério a existéncia digna” (ein menscheniirdiges Dasein notwendig sei) § 2. A DUPLA FACE DO MINIMO EXISTENCIAL O minimo existencial é direito de dupla face: a) aparece como direito subjetivo e também como nor- ma objetiva; b) compreende os direitos fundamentais originérios (direitos da liberdade) e 05 direitos fundamentais so- Ciais, todos em sua expresso essencial, minima e irre- dutivel;” 3 HEIDEGGER, Martin, Sein und Zeit. Tubingen: Max Niemeyer Verlag, 1967, p. 114 4 MAIHOFER, Werner. Von Sinn menschlicher Ordmumg. Frank: furt: Vittorio Klostermann, 1956, p. 64: “Orduung ise ein gefiige von Entsprechungen von Dingen oder Personen”. CF. tb, FECHNER, Erich, Rechusphilasophie. Tabingen: JCB. Mohr, 1962, p. 233. 5 CE.W.G. LEISNER, Existenzsichenmg, cit,, 138. 6 BVexfGE 82,60; 99,216. 7 SORIA, José Martinez. Das Recht auf Sicherrung dés Existenzminimims, Juristen Zeitung. 60 (13): 652, 2005, distingue en- tre 0 “diceito fundamental 2 seguranga do minimo existencialfisiol6g <0 (physiologischen Existenzminimuom), fundado na garantia da dignida 3 c) do ponto de vista da efetividade apresenta 2 duplici- dade do status negativus e do status positivus liberzatis. 3. DIREITO SUBJETIVO E OBJETIVO © minimo existencial, na qualidade de direito funda- mental, exibe, como este, as suas facetas de direito subjeti- yoe de norma objetiva.® Como direito subjetivo investe 0 cidadio na faculdade de acionar as garantias processuais ¢ institucionais na defe- sa dos seus direitos minimos.® Do ponto de vista objezivo o mfnimo existencial apare- ce como norma da declaragio de direitos fundamentais,}° de humana, ¢ 0 “direito (simples) & seguranga do minimo existencial sécio-cultural (sociofundturellen Existenzminimum), concretizado pelo princtpio do Estado Social de Diteito 8 CE ALEXY, Robert. Grundrechte als subjektive Rechte und als objektive Normen. Der Staat 29 (1): 49-68, 1990. 9 PONTES DE MIRANDA, Francisco. © Acesso a Cultura como Direito de Todos: Tese. Rio de Janeiro: V. Conferéncia Nacional da Ordlern dos Advogados do Brasil, 1974, p. 31: "F preciso que se cri, para todos, o dircito subjetivo 4 educagio, Porém, néo 36 0 direito subjetivo. Também a pretensio, 3 agdo e 0 remédio juridico proces- sual"; TACITO, Caio, Edi Cultura ¢ Tecnologia na Cons cio. In: CRETELLA JR, J. et al. A Constitnigdo Brasileira 1988, Interpresagdes. Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 1988, p. 418: “o acesso a0 ensino obrigatério € gratuito ndo serd apenas uma Faculdade ‘ou regalia. Importa, em virtude de norms expressa, em direito piblico subjetivo, ase traduzr, portanto, na vabilidade de prestacio jur nal” 10 Cf, BOCKENFORDE, Ernst-Wolfgang. Grundrechte als Grund- satznormen, Der Siaat 29 (1): 4, 1990, ressalta o “cariter de valor objetivo do direito fundamental", resultente de decis6es de valor (Wer- tentscheidungen) 38 que deve cobrir « campo mais amplo das pretensdes da cidadania. Mas, sendo pré-constitucional, nfo Ihe prejudi- ca a eficdcia a circunstincia de se encontrar implicito no discurso constitucional. 2 4, DIREITOS FUNDAMENTAIS. 4.1, Direitos da liberdade O direito as condigées minimas de existéncia digna constitui o contetido essencial dos direitos da liberdade, ou direitos humanos, ou direitos individuais, ou direitos natu- rais,"! formas diferentes de expressar ¢ mesma realidade. Aparece explicitamente erm alguns itens do art. 5° da CF de 1988, sede constitucional dos direitos humanos. Procla- mam-no a Declaracéo Universal dos Direitos do Homem, (1948), no art. 25, ¢ a Declaracdo sobre 0 Direito a0 De- senvolvimento, como j vimos. O minimo existencial exibe as caracteristicas bésicas dos direitos da liberdade: é pré- constitucional, posto que inerente 2 pessoa humane; cons- titui direito publico subjetivo do cidadao, nao sendo outor- gado pela ordem juridica, mas condicionando-9;"? tem vali- dade erga ommes, aproximando-se do conceito ¢ das conse- qiiéncias do estado de necessidade;!? no se esgota no elen- co do art. 5° da Constituicéo nem em catdlogo preexisten- te; é dotado de historicidade, variando de acordo com 0 11 Cf. BRUGGER, Winfried. Menschenrechte im modernen Staat, AOR 114 (4): 572, 1989, 12. Vide p. 54 13 CE. NEVES, Nuno Santos. © Estado de Necessidade no Direito Civil. Vitéria: Escola Técnies, 1958, p. 178. 39 contexto social,"* ¢ indefinivel, aparecendo sob a forma de clausulas gerais e de tipos indeterminados'® e universal, no sentido de que toca a todos os homens, inde- pendentemente de suas nacionalidades ou das classes so- ciais e econdémicas a que pertencam; € negativo, pois exibe © status negativus que protege 0 cidado contra a constri- 40 do Estado ou de terceiros; cria também o status positi- tus libertatis, que gera a obrigacdo de entrega de presta- es estatais individuais para a garantia da liberdade e das, suas condigdes essenciais; postula garantias institucionais € processuais que provocam custos gerais para o Estado, plenamente justicisvel; independe de complementacio le- gislativa, tendo eficdcia imediata. 4.2. Direitos fundamentais sociais 4.2.1. A problemstica da jusfundamentalidade dos direitos sociais A filosofia social, politica e juridica dos nossos dias vol- toua se preocupar com a responsabilidade pela garantia dos tiscos da existéncia, 14 Cf ZACHER, H. F. Chancen und Grenzen des Sozialseats. Rol und Lage des Rechts. In: KOSLOWSKI, Peter, KREUZER, Philipp & LOW, Reinhard (Ed.). Chancen wid Grenzen des Sozialstaats. Tabine igen: J.C. B. Mohr, 1983, p. 80. 15. CE. ISENSEE, Joseph. Das Grundrecke auf Sicherheit. Zu den Schutzpflichten des freiheittichen Verfassungsstaais, Berlin: Walter de Gruyter, 1983, p. 47. 16 HOLMES, Stephen & SUNSTEIN, Cass R. The Cost of Right. Why Liberty Depends on Taxes. New York: W. W. Norton, 1899, p. 48 dizem que “todos os direitos sto direitos positivos” (AUl rights are posi- ve rights) € que “todos os direitos sio custoses (costly), porque todos ‘les pressupéem os aportes dos contribuintes para manter a maquinaria para monitord-los esealizé-los™ 40 © homem, pelo fato de estar-no-mundo, enfrenta ris- cos ligados a liberdade ¢ as vicissitudes da propria existén- cia: a doenga, a velhice, a incapacidade fisica, a pobreza e a miséria, O Estado de Direito, desde os seus primérdios, cuidou de garantir a liberdade. Mas quem deve se respon- sabilizar pela protecio contra os Ascos da existéncia: 0 pré- prio cidadao ou o Estado? Esta temética hoje se projeta pars a discussdo em torno das relaces entre 0 minimo exis- tencial e os direitos sociais. Examinaremos, pois, a questdo de saber se ¢ em que medida os direitos sociais, correspondentes 4 cobertura dos riscos da existéncia, exibem 2 jusfundamentalidade que permita estender-thes a logica, a retorica ¢ a eficécia dos direitos da liberdade, Parece-nos que a jusfundamentalidade dos direitos so- ciais se reduz a0 mfnimo existencial, em seu duplo aspecto de protecdo negativa contra a incidéncia de tributos sobre 08 dircitos sociais minimos de todas as pessoas e de prote- io positiva consubstanciada na entrega de prestacoes esta- ‘ais materiais em favor dos pobres. Os direitos sociais mé- ximos devem ser obtidos na via do exercicio da cidadania reivindicatéria ¢ da pratica orcamentéria, a partir do pro- cesso democratico. Esse é 0 caminho que leva a superagao da tese do primado dos direitos sociais prestacionais (ou direitos a prestagdes positivas do Estado, ou direitos de crédito — droit eréance — ou Teilhaberechte) sobre os di- reitos da liberdade, que inviabilizou 0 Estado Social de Di- reito, ¢ 20 desfazimento da confusio entre direitos funda- mentais € direitos sociais, que néo permite a eficécia destes iltimos sequer na sua dimensdo minima. Pretende-se analisar o problema da metamorfose dos direitos sociais prestacionais em minimo existencial, isto é, 41 a transformagdo dos direitos da justica em direitos da liber- dade sob a perspectiva dos valores e dos princfpios funda- mentais, estruturais ¢ legitimadores do ordenamento juri- dico, hipétese na qual o Estado seria o garante dos riscos da existéncia. Os direitos sociais se transformam em mfnimo exis- tencial quando sio tocados pelos interesses fundamentais ou pela jusfundamentalidade, A idéia de minimo exis- tencial, por conseguinte, coincide com a de direitos funda- mentais sociais em seu mticleo essencial Extremamente intrincada a metamorfose dos direitos sociais em minimo existencial, eis que referida sempre a0 relacionamento, também nao muito claro e as vezes cam- biante, entre os valores éticos ¢ juridicos (liberdade, justi- a, seguranga, solidariedade ¢ felicidade), os principios fundamentais (dignidade humana, cidadania, democracia e soberania), os principios estruturais (Estado Liberal, Esta- do Social ¢ Estado Democritico de Direito) e 0s principios de legitimacéo (ponderacio, razoabilidade e igualdade), matéria que examinamos no Capitulo TV. Os direitos sociais, que surgem com maior intensidade a partir do infcio do século XX, caracteriz: reitos a prestagées positivas ou direitos-de-crédito,”” sujei- -se como di- 17 dureito & prestacfo positive € chamado por GEORGES BUR- DEAU (Les Libertés Publiques, Paris: LGDJ, 1961, p. 21) de droit eréance, por opesicio 0 droit-protection, que guarnece a liberdade; a dloutrina lems emprega aexpressio Teilhaberecht, que significa dreito 2 partcipacdo nas prestag6es estatas sociais, que no se confunde com Teilnahmerecht, que se define coma direito & participacio politica (ct HAVERKATE, G. Reckesfragen des Leistungsstaats. Tabingen: J.C. B. Mohs, 1983, p. 3; WEBER-FAS, Rudolf. Grundrecice Lexikon. Tubin- gen: Mohr Siebeck, 2001, p. 191) a2 tos & “reserva do possivel”!® ¢ 4 concessao do legislador, e se positivam na CF nos arts. 6° ¢ 7°, além de outros. Inte- ressam-nos aqui os direitos sociais prestacionais, sendo desnecessdrio 0 enfoque do seu eventual perfil de direitos de defesa. Em torno das relagées entte direitos fundamentais e direitos sociais formam-se trés teses principais: a) a da simbiose dos direitos fundamentais com os so- Ciais, defendida pelos socialistas e pelos adeptos da so- cial-democra b) a da indivisibilidade dos direitos humanos, que com- preenderiam os direitos fundamentais e os sociais, ado- tada pelas correntes favordveis ao intervencionismo es- tatal ¢ a0 comunitarismo; ©) a da reducio da jusfundamentalidade dos direitos sociais a0 minimo existencial, de corte liberal, que per- mite a translagao da légica, da retorica e da eficécia dos direitos da liberdade para os direitos fundamentais so- ciais em seu conteddo essenci: Passamos a analisar cada qual dessas posicées. 4.2.2. A tese do primado dos direitos sociais A tese do primado dos direitos sociais sobre os funda- mentais foi defendida pelos adeptos dos socialismos e da social-democracia. Entrou em refluxo a partir do final da década de 70 do século XX. 18 Vide p. 104, 3 Entre os socialistas acreditava-se na superioridade dos direitos do proletariado com referéncia aos direitos natu- rais, considerados estes tiltimos como direitos eminente- mente burgueses."” A Constituicdo da extinta Unido Sovié- tica continha longa enumeragao dos direitos sociais (prote- ao da satide, amparo a velhice, direito a habitagio e 3 edu- cacdo gratuita), rompia com o principio da nfo-identifice- go dos deveres com os direitos fundamentais e vinculava a fruigdo dos direitos sociais aos programas de desenvolvi- mento. A corrente da social-democracia, principalmente na Alemanha, radicalizou também 0 seu discurso, para defen- der 0 primado dos direitos socivis. O notével grupo de constitucionalistas germfnicos que pontificou nas “décadas de ouro” do século XX (1950 a 1970), quando o Ocidente assistiu ao extraordindrio incremento da riqueza das na- Ges, defendia a prevaléncia dos direitos sociais mediante algumas teses bisicas: 19 Cf. PASUKANIS, E. Teoria Geral do Direito # Marxismo. Coim- bra: Centetha, 1972, p. 89. 20 A Constituigdo da extinta Uni no art. 65, "o dever de respeitar os direitos eos interesses lexitimos de otras pessoas, ser intransigente com atos anti-socis e contribu em tudo porn» manutengio da orcem piblica"; no art. 39 dia dios da URS gozam plenamente das liberdades e dos direitos socisis, econdmicos, politicos e pessoais proclamados e garantidos pela Const tuigio da URSS e pelas leis sovigticas. O regime sociaistaassegusa a ampliagdo dos direitos ¢ das liberdales e 0 constante melhoramento das condigdes de vida dos cidadios 8 medida que se cumprem os pro- gramas de desenvolvimento social, econdmico e cultural” (traducéo de Edigdes Progresso, Moscou, 1981). Para o significado dos sacial rights ‘no constitucionalismo soviético, cf. SCHLESINGER, Rudolf, Soviet Legal Theory. lts Social Background and Development. London: Row tledge & Kegan Paul, 1951, p. 82. 221. Sovietica, de 1977, estabelecia, 44 a) todos os direitos sociais sio direitos fundamentais sociais;?* b) 0s direitos fundamentais sociais so plenamente jus- ticiéveis, independentemente da intermediagio do le- gislador;22 2 6) 08 direitos fundamentais sociais sfo interpretados de acordo com principios de interpretagdo constitucional, tais como os da maxima efetividade, concordéncia pré- tica e unidade de ordem juridica.® A Constituigio portuguesa de 1976 estabelecia, em texto ulteriormente modificado (1982, 1989 ¢ 1997), que incumbe a0 Estado a obrigacio de "promover o bem-estar € a qualidade de vida do povo, a igualdade real entre os portugueses ¢ a efetivacio dos direitos econdmicos, sociais € culturais, mediante @ transformagao das estruturas eco- némicas e sociais, designadamente a socializacio dos prin cipais meios de produgio, ¢ abolir a exploracio e a opresséo do homem pelo homem". Coube ao jurista J. J. Gomes Canotilho captar a mensagem dos constitucionalistas da Alemanha social-democrata ¢ introduzi-la em Portugal, para a interpretacdo do texto da Constituicao de 1976; 21. Cf. HABERLE, Peter. Die Verfassung des Pluratismus. Konigstein ‘Athenium, 1980, p. 181: "Todas as diferengas sio de erau: por exem- plo, todos os direitos fundamentsis sao direitos fundamentais sociais (oziale Grundrechte) em sentico amplo" 22. Id, ibid., p. 185 desloca o principio da reserva de lei formal, quan to a0s direitos sociais, para uma difusa reserva de processo, 23 Importanttssimas foram as contribuigbes de SCHNEIDER, Peter. Prinaipien der Verfassungsinterpretation. Verdffentlicungen der Ve- reinigung der Deuischen Staatsrechtslehrer 20; 1-52, 1963 ¢ de EHM- KE, Horst. Prinzipien der Verfassungsinterpretation, ibidem, p. 53- 102, 1963. 45 defendia o insigne jurista a idéia de uma Constituigao Diri- gente, que definiria direitos a prestagSes originérias, que valeriam independentemente da interpositio legislatoris.* Posteriormente 0 constitucionalista lusitano modificou as suas opinides basicas, como veremos adiante. No Brasil a influéncia do pensamento germinico se fez sentir sobretudo através das tradugdes e referencias feitas por Canotilho. A doutrina brasileira dos anos 80 passou a defender © primado dos direitos sociais e a sua plena efeti- vidade. Paulo Lopo Saraiva falou em mandado de seguran 62 dos direitos sociais.*> Celso Anténio Bandeira de Mello defendeu a materialidade da idéia de igualdade. Eros Grau’? ¢ Paulo Bonavides** fundaram as suas idéias sobre 0 Dirigente e Vinculagao do Legislader. Coimbra Coimbra Ed., 1982, p. 371: “direitos subjetives publics, socias, eco- bmicos eculcurais, mesmo na parte era que pressupsem prestacses do to Constitucional, Coimbra: Almedina, 1981, p. 193:" do cidadio pressupae, de forma inequivoca, 0 direito a ias (saide, habitagio, ensino, etc. Origindre Leis. ungsansprichen) 25 Garantia Constitucional dos Direitos Sociais no Brasil. Rio de Ja- neito: Forense, 1983, p. 28: “O direito social constitucional é um direi- sem o exerefcio deste, jamais poder§ realizar seus minimos objetivos". 26 _Eficécia das Normas Constitucionais sobre Justica Social. Revista de Direito Publica 57/38: 255, 1981: “todas as normas constitucionais ‘concernentes & justica social” geram direitos que “sio verdadeiros direi- tus subjetivos na acepcao mais comum da palavre”. 27 Direitos, Conceitos ¢ Normas Juridicas. So Paulo: Ed, Revista dos Tribunais, 1988, p. 126: “Sustento, nestas condicbes, que as normas cconstitucionais programdticas, sobrctudo — repita-se — as atributivas de direitos sociais © econdmicos, devem ser entendidas como direta mente aplicdveis e imediatamente vinculantes do Legislativo, do Exe- cutive e do Judiciério” 28 _Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense, 1980: “O Estado de Direito do constitucionalisimo social precisa de absorver a programa- 46 os direitos sociais na tese da efetividade das normas progra- miiticas. Sugestiva obra sobre o tema desenvolveu-a, a par- tir do final dos anos 80, Luis Raberto Barroso, apoiando-se em quatro vetores principais: a) a plena exeqiibilidade das, normas definidoras de direitos sociais” b) a Fungio eman- cipadora da interpretagéo juridigy;® c) a viabilidade do mandado de injungio para @ garantia dos direitos sociais ticidade das normas constitucionais" (p. 197}; “Nao se deve por outro lado esquecer que a progeamaticidade das normas constituctonais nasce ada & tese dos dircit ais. Os direitos sociais, revo cionando 0 sentido dos direitos fundamentais, conferiu-Ihes nove di mensio, tendo sido inicialmente postulados em bases programsticas” (p. 208). © Professor cearense mantém até hoje essas idéias — cf Curso de Direito Constitucional. Sio Paulo: Malheieos, 2000, p. 211 ¢ seguintes. 29. Direito Consttucional e a Bfetividade de suas Normas. Limites ¢ Possibilidades da Constituigao Brasileira. Rio de Jenciro: Renovar, 1990, p. 97: 'Modernamente jé nfo cabe negar 6 ardver ju gis. E puramente ideol6gica, ¢ nio cienifice, «resistencia que ainda hoje se opie 8 efetivagSo, por via coercitiva, dos. 30 Interpretagdo ¢ Aplicagae da Constituigdo, Fundamentos de Dogmdtica Constitucional Transformadora, Sio Paulo: Saraiva, 1996, p. 260: "O legislador constitucional é invariavelmente mais progressista que 0 legislador ordinério. Daf que, em sua perspectiva de avango so- cial, devem-se esgotar todas as potencialidades interpretativas do Tex- to Constitucional, o que inclu 3 a eta das normas constitu- No seu livro ulterior, intitulado Political Liberalism, John Rewls aprofundou diversos aspectos de sua A Theory of Justice, inclusive os relacionados com. © minimo social. Deixou claro que o “primeiro principio referente aos dire tos e liberdades bésicas ¢ iguais (equal basic rights and liberties) pode ser facilmente precedido por um princ{pio 31 32 33 54 55 56 lexicamente prioritério (a lexically pior principle) reque- rendo que as necessidades basicas dos cidadaos (citizens’ basic needs) sejam gerantidas, pelo menos na medida em que a sua existéncia (their being) encontre 0 necessério para a compreensio ¢ a fruigao daqueles direitos e liberda- des”.** Desenvolve Rawls a idéia de fundamentos constitu- cionais (the Idea of Constitutional Bssentials).*7 Diz que “a esséncia constitucional (constitutional essential) é que abaixo de um certo nivel de bem-estar material e social (material and social well-being) e de instrucio e educacao, as pessoas simplesmente nao podem tomar parte na socie- dade como cidadios, muito menos como cidadaos iguais’.»* Rawls distingue entre os fundamentos constitu- cionais (constitutional essentials) ¢ as questées de justica bisica (questions of basic justice); os fundamentos const tucionais compreendem: a) os principios fundamentais que especificam a estrutura geral do governo e 0 processo poll tico e b) 08 direitos e liberdades bésicas e iguais da cidads- nia (equal basic rights and liberties of citizenship), que as maiorias parlamentares devem respeitar, tais como o dire to de votar e de participar da politica, a liberdade de cons- ciéncia, a liberdade de pensamento e de assaciacio, ber como a protesio da rule of law.*" Esclarece Rawls que “o minimo social referente as necessidades bisicas de todos os cidadaos também é essencial” (social minimum providing for the basic needs of all citizens is also essential). A seguit tece diversas consideragdes para explicar “porque a liber- 56 _ Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 1996, p.7. 87 Ibid, p. 227. 58 Ibid., p. 166, 59 Ibid. p. 227. 60 Ibid. p. 228 37 dade de movimento, a escolha da ocupacéo ¢ um minimo social (Social minimum) cobrindo as necessidades bésices dos cidadaos conceituam-se como fundamentos constitu- Cionais (constitutional essentials) enquanto o princi oportunidade eqiitativa (fair opportunity) ¢ 0 principio da diferenga, nao” ”! ‘A concepsio de Rawls sobre © minimo social tem ex- traordinéria importdncia para o pensamento juridico nas Siltimas décadas. Marca o corte com a concepcio utilita ta da justica social, que pretendia promover a utépica re- istribuicdo geral de recursos entre as classes sociais, sem instrumentos politicos adequados, sem limitagées quanti- tativas e sem a indicagio dos benelicisrios, b) Alexy Robert Alexy propés o modelo de ponderagéo (Abwa- gungsmodell), distinguindo entre 0 mfnimo existencial (Existenzminimum) ou direitos jusfundamentais sociais minimos (soziale grundrechtliche Mininalrechte) e os direi tos fundamentais sociais, como veremos.# Na teoria de Alexy, os direitos fundamentais sociais prima facie, que sio principios que contém exigéncias nor- mativas, se transformam em direitos definitivos pela inter- mediacao do legislativo, pois “um legislador que cumpre principios jusfundamentais (grundrechtliche Prinzipien) si- tuados além do dominio do definitivamente devido cum- pre normas de direitos fundamentais (Grundrechtsnor- men), mesmo que a tal no esteja definitivamente vincula- do e, por isso, no possa ser obrigado por um Tribunal Constitucional”.© Ibid, p. 230. Vide p. 88, 63 Ibid., p. 472, 58 ©) Habermas No pensamento critico de Habermas nio hé espaco para uma Teoria da Justiga, mas, apenas, para uma Teoria do Direito, que se desenvolve dentro da viséo do ordena- mento juridico. As questdes orgumentérias ¢ financeiras so resolvidas a partir dos direitos fundamentais, que tem dilargados os seus limites Nesse passo a concepgiio do sociéloge germénico se aproxima da de Rawls, para quem o primeizo principio da justiga versa sobre a liberdade, Na construgdo de Haber- mas 0s direitos fundamentais exibem cinco categorias ou status, “1°: direito a igual liberdade de agir; 2°: status do cidadao em associagao livre; 3°: direito A protegio judicial; 4°: direito a participagao em igualdade de chance (Chan- cengleichheit Teilnahme) no processo de formacao da von- tade e da opinido, pela qual se exerce a autonomia politica € se legitima o direito; 5°: direito a garantie das condicoes de vida (Lebensbedingungen), que sao asseguradas no cam- po social, técnice e ecoldgico, na medida em que isso for necessdrio em determinados relacionamentos para fortale- cer, em igualdade de chances, os direitos civis (biirgerli- chen Rechte) elencados de (1) a (4)".* stes Gltimos direitos fundamentais — as condicbes de vida — sio garantidos pelo Estado de Seguranga, que supe- 120 Estado Liberal e 0 Estado Social, pelo novo ajuste entre 05 poderes do Estado, pela nova relacdo entre saber e di- nheiro® e pelos principios do discurso ¢ da democracia Mas, como adverte Habermas, devem-se compatibilizer as garantias das condicbes de vida com a liberdade juridica, 64 Faktizitat und Geltung. Bettrage zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechisstaat. Frankfurt: Suhrkamp, 1992, p. 155. 65 Ibid., p. 525, 59 pois “um Estado Social providencial distribuidor das chan- ces da vida (ein firsorgender, Lebenschancen zuteilender Sozialstaat), que garanta a cada um a base material para ‘uma existéncia humana digna através do direito ao traba- Iho, seguranga, sade, habitacao, educacio, lazer, consti tuicdo de um patriménio e condicdes naturais de vida, cor- teria o risco de prejudicar, através de suas intervencdes antecipadas, a propria autonomia que ele deve proteger, preenchendo os pressupostos féticos de um exercicio, em igualdade de chances, das liberdades negativas.® Critica Habermas tanto o paradigma do direito liberal quanto 0 do Estado Social, que cometem o mesmo erro, ou scja, “en- tendem a constituicdo juridica da liberdade como distribu’ io (als Distribution) € a equiparam ao modelo de reparti- ao igual de bens adquiridos ou recebidos”.*” Quanto aos direitos que desbordam os aspectos das condigdes de vida inclufdas entre os direitos fundamentais, ou seja, os direitos de participacao fundamentados de modo relativo (relativ begriindeien Teilhaberechte)® ou os direitos a prestagdes sociais (sozialen Leistungsrechten),°° devem ser realizados, segundo o paradigma procedimental na via do discurso que possa assegurar a solidariedade so- cial. Esse paradigma do direito, simplesmente form: nao garante, segundo Habermas, “um determinado ideal de sociedade, urna determinada visio da vida boa ou de uma determinada opcao politica” (“ein bestimmtes Gesellschaft. sideal, eine bestimmte Visio des guten Lebens oder auch nur ein bestimmte politische Option”).” 66 Ibid., p. 490, 67 Ibid., p. 505, 68 ibid, p. 157, 6 ibid, p. 491 70. ibid., p. 536, E, portanto, bem nitida, no sistema de Habermas, a distingao entre os direitos fundamentais a garantia das condigses de vida (Grundrechte auf die Gewahrung von Lebensbedingungen) e os direitos as prestagoes sociais (Tei thaberechte), j& que estes tltimos sao relativos e se realizam com base na solidariedade. O esqyema se assemelha 20 de Rawls, que distingue entre basic needs ¢ basic justice (vide item 4.2.4.1.a). d) Van Parijs O filésofo do direito ¢ moralista Philippe Van Parijs vem procurando divulgar a obra dos liberais ¢ dos comuni- taristas americanos na Europa. Diz-se um liberal solidaris- ta influenciado por John Rawls.” Van Parijs iniciou o seu livro “Salvar a Solidariedade”, dedicado a Rawls”, com a observacio de que “o pensamen- to de esquerda de nosso tempo ser rawlsiano ou nao sera de esquerda”.” As idéias de tolerancia e solidariedade, pre- sentes na obra do fildsofo americano, e os principios de diferenca ¢ do maximin (maximizagio do minimo), todos balizados pelos direitos fundamentais, fornecem a base do liberalismo solidarista, a0 qual também se filia o morelista beiga. Ser de esquerda — no sentido de igual solicitude em face dos interesses de todos —- implica a oso pela mudanga do status quo, na tomada permanente de posico ‘em favor dos trabalhadores e contra 0 capital, e na luta para 71 Sauver la Solidarieté. Pris: Les Editions du Cerf, 1996, p. 30. 72. Ibid., p. 7. A dedicatéria tem 0 seguinte teor: “A John Rawls, imcontournable allis pour penser la gauche de notre temps” 13 Ibid. p. 9: “La pensée de gauche de notre temps sera raulsienne ou ne sera pas 74° Ibid., p10. al ampliar o papel do Estado e reduzir 0 do mercado.’ Mas 0 rawlsianismo de esquerda muitas vezes ultrapassa as teses do proprio Rawls.” ‘Anota Van Parijs que existe também uma direita rawl- siana, que se caracteriza pela defesa da redugio da pressio fiscal e parafiscal sobre os detentores das rendas méveis clevadas ¢ pelo ataque aos aspectos universais do Estado- Providencia, especialmente no dominio das prestacdes de satide e de educacao.”” rawlsismo de esquerda, liberal-solidarista, apoia-se em trés componentes decisivas: alocagio universal, globali- zagao democritica e patriotismo solidarista.’ €) Outras teorias Diversos outros autores examinam o problema do mini- mo existencial, ao qual reduzem 0s direitos sociais susceti- veis de plena eficicia, embora nio abram muito espaco para a questio, Dworkin diz que as democracias présperas esto longe de gerantir um minimo de vida decente (a decent minimal life) e que o desafio consiste em determinar a igual distri- buigéo de riqueza para todos. Isso porque se se admite que os membros da sociedade que se encontram em situacéo confortével nao tém obrigacbes de igualdade com relacio aos que se encontram em posicéo desconfortével, mas que apenas |hes devem um padrao de vida decente minimo (de- cent minimum standard of living), entio & permitido fixar a questio essencialmente subjetiva de quantificar 0 stand- 75. Loc., cit. 16 Ibid, p. 23. 77 bid, p13. 78 Vide p. 262. 82 ard decente, ¢ a hist6ria contempordnea registra que é im- provdvel que os que se encontram em situacao confortével déem uma resposta generosa a questio.” ‘Alguns sociGlogos separam os direitos civis dos direitos sociais de cidadania, mas no se aprofundam sobre a ques- tio da eficdcia de uns e outros, cymo acontece com Mars- hall, que, assimilando o mfnimo existencial 8 nogio de di- reitos sociais bésicos, retira-Ihe a eficécia propria dos dirci- tos fundamentais.® O neoliberal Jodo Carlos Espada" defende os direitos sociais da cidadania ow os dircitos sociais basicos, que se aproximam da idéia de minimo existencial, embora 6 autor no use a expressio, mas que ndo exibem a eficécia carac- terfstica dos direitos fundamentais, permanecendo no campo da justiga e da atitude paternalista quanto as desi- gualdades sociais. 79 Sovereign Virtwe. The Theory and Pratice of E Harvard University Press, 2000, p. 3 ja, Classe Social e Status. Rio de Janciro: Zahar, 1967, p. 93: °O Estado garante um minimo de certos bens e services essenciais (tais como assisténcia médica, moradia, educacio), ou uma renda no- ‘minal minima (ou salério minimo) a ser gasto em bens ¢ servicos essen- 81 _ Direitas Sociais de Cidadania Lisboa: Imprensa Nacional, 1997, 264: “Por igualdade de direitos socias, entende-se aqui universalida- de de direitos sociais, um conjunto de regalias comuns 2 todos que cconstitui um cho comum. Porém, acima deste chio comum, podem proliferar as desigualdades”. JOSE CARLOS VIEIRA DE ANDRADE (Os Direitos Fundamentais na Constituigdo Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 2007, p. 392) também distingue, com clareza, entre 0s direitos fundamentsis¢ 05 sociais: "Nie se aplica, por isso, em Principio, aos direitos socisis 0 regime especifico dos diteitos,liberda- des e gorantias, justamente porque este pressupée, ou na medida em ‘que pressuponha, a determinabilidade do conteddo dos preceitos 20 nivel constitucio lity. Cambridge 6

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