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CANDIDO INACIO DA SILVA E 0 LUNDU, Mario de Andrade Ainda no é tempo de tecer num estudo pormenorizado, as varias dezenas de notas sobre 0 lundu brasileiro, que venho ajuntando pelas minhas vidas de folclorista, de leitor sem muito método € de colecionador ocasional de muisicas antigas... Decerto eu imagino que chegarei aos duzentos anos por tudo quanto ainda pretendo fazer, mas a verdade invencivel é que ndo tenho tempo agora para estudo especial do lundu, Porém quero mostrar desde j4 um dos seus marcos histéricos mais notaveis que conhego, € the acentuar a importincia na evolugto da miisica brasileira, 0 marco hist6rico a que me refiro é o lundu de sald Ld no Largo da Sé,' de Candido Inacio da Silva, Em 1930, quando foi da publicagio da minha coleténea das Modinhas imperiais, * impressionado com a beleza de duas modinhas desse artista, chamei sobre ele a atengdo dos nossos estudiosos de musica. Pouco eu sabia sobre ele entio e pouco ista de alguma erudigdo, pois aprendeu com o padre José Mauricio Nunes Garcia, na escola gratuita deste 4 rua das Marrecas. E mais que sei a mais, agora. Foi musi provavel, portanto, que tivesse Francisco Manuel da Silva por condiseipulo, como afirma alguém. Que foi cantor ¢ concertista também eu jé sabia, pois Silvio Romero 0 classifica tenor,’ e Cernichiaro cita um concerto realizado a 10 de jaheiro de 1832 pelo flautista Pierre Laforge, no Teatro Constitucional, de que participavam além de Céndido Indcio da Silva como cantor, 0 clarinetista e negociante de musica Klier, Francisco da Mota, flautista, e mais um pianista que se ocultava sob 0 nome de “um curioso”.* Se dava este nome entio aos amadores que participavam de concertos ‘ional e pliblicos, o que nos prova pelo menos que Candido Indcio da Silva era profiss vivia da sua mésica. E que seu repertorio nfo era amadoristico apenas, e s6 de cantigas brasileiras como as que compunha, verificamos pelo concerto de 1836 em ‘Nota da Edigfo: SILVA, Candido Indcio da. Lé no Largo da Sé: Lundu brasileiro. Rio de Janeiro: Nels da Eigse: ANDRADE, Misi de, Modis inperis, Sto Paulo: 1. Chiari. G, Miranda, que tomou parte cantando um terceto de Guilherme Tell de Rossini, junto com Gabriel Fernandes Trindade e Jotio dos Reis Pereira.* Tis anos depois disso, em maio de 1839, morreu Candido Indcio da Silva, Foi Renato Almeida, na segunda edigiio da sua Histéria da musica brasileira quem nos informou sobre essa morte, trazendo uma achega de importincia para o conhecimento do cantor modinheiro. Candido Indcio da Silva tinha enttio pouco mais de trinta anos e fora um dos fundadores da Sociedade de Beneficéncia Musical. Transcrevo, de Renato Almeida, a parte com substincia, do necrolégio publicado pelo Jornal do Comércio, de 30 de maio desse ano:® A ele devemos uma quantidade prodigiosa de modinhas ¢ alguns Tundus, variagdes e concertos para diversos instrumentos, e, sobretudo a produgao dramética de coros infernais, nos quais ele se afastou da estrada da rotina ¢ do plagiato, aparecendo em cena com uma harmonia nova ¢ um colorido original, que s6 pertencem ao ‘génio; em todas as suas produgdes havia um pensamento melédico que revelava um estilo préprio, ¢ a sua harmonia era manifestada por combinagdes originais, Necrolégio bem brasileiro, em que nos é facil por em divida que o compositor brasileiro pudesse comparecer no mundo da miisica com uma “harmonia nova”, quando os grandes inovadores da harmonia cléssica, um Chopin e um Liszt, estavam na casa dos vinte e completamente ignorados aqui. E que coisa deliciosamente extraordindria para o Brasil do Primeiro Império, isso de acentuar a decadéncia da sua "*miisica religiosa, criando desde logo um especialista em coros infern: Ainda nos seré licito duvidar da “quantidade prodigiosa” de modinhas... Que s modinhas de Candido Indcio da Silva eram célebres nfo ha divida nenhuma, porque foram insistentemente citadas, publicadas em varias edigdes, niio s6 no Brasil como em Portugal também. E é muito sintomatico dessa celebridade que Aratijo Porto Alegre, na meméria transcrita por Debret, entre os “maiores talentos” que § Nota da Edigdo: Idem, ibidem. p. 135. © Nota da Edisto: ALMEIDA, Renato. Histéria da misica brasileira. 2* ed. corr. aum. Rio de Jameiro: F. Briguiet, 1942, p. 365-366, compunham aqui, diga “devo citar entre outros Francisco Manuel e Candido Indcio da Silva”. E noutro passo o diz mineiro e Ihe excetua a voz.” Em todo caso, Candido Inécio da Silva foi célebre apenas no Primeiro Império € quando muito até meados do século. Ja por 1870 a gléria dele devia ser muito vasqueira € s6 sabida de escrevinhadores e compiladores do passado. Melo Moraes Filho em 1900, nos Cantares,* nao the consegue reproduzir uma s6 miisica, ¢ nem Brito Mendes na sua antologia de 1911,’ embora tenham compilado vastamente as suas pegas na imprensa musical do Império. Os modinheiros, sendio mais célebres, pelo menos mais numerosos da copistaria imperial esto todos 14, Noronha, José Amat, o padre Teles, J. J. Alves, Cardoso de Menezes, Xisto Bahia, Trindade, Aragio, Moniz Barreto, Joo Cunha e mais. Até mesmo o paulista José d’Almeida Cabral, provinciano sem nenhuma dilatagdo nacional, que eu saiba, e que era editado aqui mesmo em Sao Paulo, na Imperial Litografia a vapor, de Jules Martin. Mas se cu falei rna data de 1870 para o escurecimento da gléria de Céndido Inicio da Silva, foi porque mais estranhamente ainda, Alberto Friedenthal que bastante nos estudou a musica desse tempo e década seguinte, no the reproduz nada na antologia das Stimmen der Voelker,"” nem o cita no seu livro de estudo dessa misica. Muito embora tenha reproduzido modinhas antigas ¢ se preocupado com elas. Mas no Primeiro Império no ha davida que Candido Inacio da Silva foi muito conhecido e apreciado. Embora acentuadamente “de salio” ¢ semieruditas, com algumas dificuldades de enfeites e emisstio vocal, parece mesmo que as modinhas dele se desnivelaram rapidamente e se difundiram no seio popular. Temos disso pelo menos uma prova importante, que é a citago por Manuel Anténio de Almeida, nas Memérias dum sargento de milicias.da modinha Quando as glérias que gozei, como cantada por gente de infima burguesia e malandros de piqueniques.'' Mais: César das Neves e * Nota da Martias, 1940, p. 108. * Nota da Edigfo: MORAIS FILHO, Alexandre José de Melo. Cantares brasileiros. 2 v. Rio de Fanvio: Livraria Cruz Coutinho, 1900. lota da Edigdo: MENDES, Jilia de Brito. Canes populares do Brasil. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, 1911. Nota da Edigdo: FRIEDENTHAL, Albert. Stimmen der Voelker. 6 v. Berlim: Schessinger’sche Buch and Musikhandlung, (1911) "" Not da Edigdo: ALMEIDA, Manuel Anténio de. Memérias dum sargento de milicias. 2 ed. Rio de Janviro: Livraria Modema, s.d,, p. 135, i¢io: DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca ¢ historica ao Brasil. 2. So Paulo: Galdino de Campos a colheram andnima em Portugal, horrendamente deformada, dizendo que “foi popularissima, principalmente no Brasil”.'? Sem ser a mais bonita das modinhas que conhego de Candido Indcio da Silva, essa foi provavelmente a mais célebre. Além das duas citagdes acima que a nomeiam, pude examind-la em duas edigdes diferentes. Melo Moraes Filho reproduz os versos dela nos seus Cantares brasileiros, volume de textos.'’ Também s6 0 texto, que no consegui saber de quem é, vem reproduzido no segundo volume do Trovador.' Finalmente Vieira Fazenda, pelo que diz Cernicchiaro,"* ¢ nao esta na crénica das Antiquathas ¢ membrias do Rio de Janeiro, em que o grande pesquisador se refere a criagio do Vem cd, Vitu,"® confirma que Quando as glérias que gozei teve tanta popularidade como o Vitu. A reproduzi nas Modinhas imperiais’”. Mas no foi a nica modinha célebre do cantor, nem a mais bonita. Outras duas considero ainda melhores, a Busco a campina serena que também reproduzi na antologia citada, duma pureza de linha digna de mestre, ¢ A hora que te ndo vejo, que Guilherme Pereira de Melo confirma ter sido das mais estimadas no tempo.'* E de fato muito agradavel, com a peculiaridade de apresentar uma melodia particularmente brasileira como cardter — coisa bastante rara nas modinhas do Primeiro Império. Infelizmente ndo a reproduzi na minha coletdnea das Modinhas imperiais, porque nao a conhecia eno. $6 mais tarde a descobri na mixérdia desanimadora, mas que no deixa de ter suas preciosidades, do Brasil Teatro do Dr. Pires de Almeida.? A reproduzo aqui. E mais que provivel que Pierre Laforge fosse amigo familiar de " Nota da Edigiio: NEVES, César A. das; CAMPOS, Galdino de. Cancioneiro de miisicas populares. 3 75 fase, Porto: César Campos, 1893-1898. "Nota da Edigio: MORAIS FILHO, Alexandre José de Melo. Cantares brasileiros. 2 v. Rio de Janeiro: Livraria Cruz Couto, 1900. 45 * Nota da Edigo: SILVA, Candido Indcio da, QUANDO AS GLORIAS QUE GOzEI. In: Trovador: Colleegio de modihas, rectaivos, arias, lndus ete, . 2, nova ed. comigid, 3 v. Rio de Jancro Livraia Popular. 1876, p. 103-104. 'S Nota da Edigto: CERNICCHIARO, Vincenzo. Storia dela misica nel Brasile. Miléo: Fratel Riccioni, 1926. Nas Modinhas imperiis MA eta ap. 131 de Cemiechiaro, onde nfo hi reterncia a Vieira Fazenda Nota da Ediego: FAZENDA, Vieira. ANTIQUALHAS E MEMORIAS DO RIO DE JANEIRO, Revista do Instindo Histrico e Geogréfic,t. 86. Rio de Janeiro, 1919, p. 5463. Em A RUA DO COTOVELO, p. 52, Fazenda cita dots versos de Quando ax glvias que goze ep. 96, reproduc estrofe de Vem ed Vt Nota da Edigio: ANDRADE, Mario de. Modinhas imperiais. Sao Paulo: I. Chiarato/L.. G. Miranda, 1930, 24-25. ** Nota da Edigio: MELO, Guilherme Teodoro Pereira de. A Miisica no Brasil desde os tempos coleniaes aiéo primero decénto da Repiblica, Bahia: Typographia S. Joaquim, 1908. (A p. 134 de Pereira de Mel, indicagao fomecida por Mirio de Andrade nas Modinhcs imperias, noha referencia 4A fora que tendo elo). Nota da Edigto: SILVA, Céndido Inécio da. A HORA QUE TE NAO VEIO. In: Brazil-Theatro, fase. 2. Rio de Janeiro: Typographia. Leuzinger, 1903/1906, p. 704. Poesia de Magalhes. A e6pia de Pires de Almeida provém de P.Laforge e taz 0 acompanhamento do piano. Candido Indcio da Silva... Nao s6 0 escolhia para cantor num seu concerto, como Ihe editava sistematicamente as musicas na sua copistaria, de que sairam muitas cangdes nacionais ainda em Agua-forte, hoje verdadeiras raridades bibliogrificas. Ao menos sei que gravou esta Hora que te ndo vejo, a Quando as glérias que gozei e mais a Batendo a linda plumagem que também possuo e me parece inferior como valor musical A HORA QUE TE NAO VEJO fen gue breve erste Sas ra da de ins-tantes qua breve > Xi3~ Sark gee vida de Da tanies : ‘Também esta pude comparar em duas edigdes diferentes. Melo Morais Filho, no volume de textos dos Cantares brasileiros® ainda reproduz. as modinhas Minha Marilia nao vive bem arcaica ainda, e mais Os ofhos. Esta iltima também esta citada no volume quarto do Trovador, de 1876." Tudo isto nos dé impresstio de que, mesmo ” Nota da Edigfo: MORAIS FILHO, Alexandre José de Melo. Cantares brasileiros, 2 v. Rio de Janeiro” 1 staria Cruz Coutinho, 1900 * Nota da Bdigdo: SILVA, Candido Inacio da. TEU LINDOS OLHOS. Travador: Collecgio de modinhas, secitalivos, dias, lundus ete. nova ed. cor, v. 4. Rio de Janeiro: Livraria Popular, 1876, p. 36-37. se os autores andaram montando uns nos outros, as modinhas de CAndido Inacio da Silva eram apreciadas, porém nunca tao abundantes a ponto de se tornarem uma “quantidade prodigiosa”, como diz o necrolégio. Musicalmente, 0 que CAndido Inécio da Silva representa na evolugdo da modinha brasileira, ainda é um eruditismo imposto e importado. Como arte, 0 nosso é mais Brasil de D. Jodo VI que o compositor é mais colonial que Primeiro Império, de Pedro I. Quero dizer: as modinhas dele ainda representam uma “aristocracia”, no caso, 0 aristocratismo da arte erudita. As cinco obras dele que possuo, ¢ tinicas que conhego, so “dificeis” de cantar, tio dificeis até como a do padre José Mauricio seu professor, e mais que as de Francisco Manuel da Silva, seu condiscipulo, este jé um adaptado, bem primeiro-império. E verdade que Candido Inicio da Silva foi cantor, e suficientemente munido de escola, pois que era capaz de arcar com as dificuldades tenoristas de um dueto dum terceto de Rossini. Mas até nisto, virtuose de concerto que erigava as suas modinhas de dificuldades técnico vocais, até nisso ele se excepcionalizava no aristocracismo da arte “dificil”. Ou pretendia tal, Por certo cla nfo havia de soar cotidianamente nos sales burgueses da Moreninha, de Rosa ¢ do Mogo Loiro. A esta gentinha de Agua-de-flor, o que representava admiravelmente bem era o modinhismo, ise Agua-de-flor também, dos Arvelos, dos Noronhas, quase que necessariamente ban: insuportiveis. Estes é que expressavam na sua sensaboria recatada ¢ pouco franca, a modinha do salio burgués do Império — esse tempo em qué a cangio amorosa brasileira, na distribuigao do trabalho erdtico entre os dois sexos da classe dominante, foi adstrita a mulher. Quando a modinha se desnivelar até 0 povo dos “serenos”, mais bem recolocada socialmente ¢ animalmente, ela ser atribuida a0 homem. Mas os ‘Noronhas ¢ Arvelos € que as sinhds cantaram a beca ¢ ensinaram as suas mucamas e ”? Por mim, 20 ar dos “serenos”, para o desnivelamento e popularizagao, Folclorizagai eu cada vez tendo menos a ver na modinha um objeto folclorico, apesar das razdes que cu mesmo dei para alargar a conceituago cientifica do folclore nos paises novos das Américas. A modinha ¢ hoje, nfo tem divida, uma manifestago muitas vezes anénima, mas sempre popularesca no carder, e insistentemente urbana. E mesmo na cidade, 0 samba, a marcha de rancho, as feitigarias so manifestagées musicais muito mais folcléricas que ela, O canto sexual no dangado, verdadeiramente representativo do folciore no Brasil, é a toada rural. Candido Indcio da Silva era de qualquer forma uma aristocracia. E um colonial também. Dizem que para a aristocracia & mais ficil se... se 0 qué? meu Deus! ... se intimizar e relacionar com o povo, do que o capitalismo burgués... Aos coloniais que eram senhores, jé Antonil aconselhava condescendessem com os brinquedos tradicionais da gente escrava, Candido Indcio da Silva, com seu lundu, parece representar essa maleabilidade maior do nobre e essa condescendéncia astuta do senhor colonial. ‘A mesma colegiio citada do Trovador é a primeira a reproduzir o texto de um lundu, Ld no Largo da Sé, que diz ser de Candido Inicio da Silva.” E dele sim. EA cantora brasileira: Nova colegdo de hinos, cangdes e lundus, que a Garnier publicou, ¢ possuo na edigiio de 19007 e de que o antologista foi Joaquim Norberto de Souza ¢ Silva, nos esclarece que 0 texto é de Manuel Aratijo Porto Alegre.” E ainda gragas indicagao da chegada do gelo, “agua em pedra”, no Rio de Janeiro e gragas ao auxilio de Sérgio Buarque de Holanda,” posso Ihe fixar a data, que € 1834, Dentre os mais razodveis “alguns lundus” do necrolégio do Jornal do Comércio, também foi esse 0 ‘inico que consegui obter nas minhas aventuras de colecionador, numa edigdo ainda em Agua-forte, desses utilissimos editores que foram Fillipone e Tomaghi. Por gentileza da Revista Brasileira de Miisica o fago reproduzir junto, para gozo e estudo. © gozo nfo ser beethoveniano, imagino, embora musicalmente a obrinha seja encantadora, E € rica de ligdes nacionais. E certo que desde o principio, os primeiros lundus de salo que conhecemos, 6 slo muito mais brasileiros que as modinhas. Mas o lundu “de saldo” de Candido Indcio da Silva, é de um populismo incompardvel na miisica impressa dos primeiros anos do Impéri, Como miisica-de salto, entenda-se, porque como miisica folclérica hd o exemplo dado por Spix e Martius, no album de musica que anexaram a Reise in Brasilien2® e de que Francisco Mignone se aproveitou para a CONGADA do seu Contratador de diamantes. 7 Nota da Edigio: SILVA, Candido Inécio da, LANO LARGO DA SE. Trovador: Collecsio de modinhas, ‘ecitatives, dias, lund ete. nova ed. cor, v. I. Rio de Janeiro: Livraria Popular, 1876, p. 114-115. ® “Que a Gamier publicou em 1900, e de que a antropologia foi provavelmente Joaquim Norberto de Sowa e Silva, pois traz nota assinadaJ.N, de S. S”. © Nota da Edigio: SILVA, Candido Inicio da. LA NO LARGO DA SE. A cantora brasileira: Nova colleegao de hinos, eangdes e lundus. Rio de Janeiro: H. Gamer, 1900 * ‘ota da Edigho: Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), historiador. % Mota da Edigio: SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS, Karl Friedrich Philipp von, Reise in Brasiienauf Befehl Sr. Majestat Maximilian Joseph I, Konigs von Baiern, in den Jahren 1817 bis 1820 _genacht und beschrieben, 3 v+ Lalas, Munique: M.Lindauer, 1823/34. No caso de muito maior interesse técnico, do lundu de Candido Inacio da Silva, o fenémeno é outro. Nao se trata nem de longe duma colheita folclérica. E um aproveitamento de elementos populares. E um aproveitamento de curiosa sabedoria atistocritica, pelo mimero de constincias do povo (no caso, negros) que ele, dentre os que conhego, é o primeiro em data a denunciar. Principalmente a sincopa de colcheia no primeiro tempo do dois-por-quatro. Insisto em salientar a sincopa do primeiro tempo apenas, porque a do segundo tempo, distribuiggo racial divertida, sistematizar, sozinha, no fado portugués, que também por esse tempo estava nascendo... no Brasil. Mas observemos com método e anilise as constancias brasileiras desse Lé no Largo da Sé: Em primeiro lugar ressalta, como falei, o emprego jé sistematico da sincopa. Aqui cumpre verificar primeiro que Céndido Inacio da Silva era ja um “sincopado”! E isto nfo apenas nos seus lundus, em que a ascensdo da forma dos negros escravos para a miisica semierudita das salas, j4 sistematizava com efeito a sincopagiio, como se colhe prova no lundu para teclado, provavelmente colonial e para cravo, que reproduzi também nas Modinhas imperiais. O mais notavel e raro ¢ que Candido Inacio da Silva sincopava até nas suas modinhas. Das quatro dele que conhego, duas tém sincopa, embora ainda nfio decisoriamente brasileiras como emprego, mas de seminimas, passando de um para outro tempo, em compassos bindrio e quaternario de dois e quatro-por-quatro.”” ® Nota da Edigdo: Na biblioteca de MA esttio as modinhas de Candido Inécio da Silva: Busco a campina serena (Rio de Janeiro: Filippone e Tomaghi, s.d.; n° 14 da Collecsio de Modinhas Brasileiras e Portuguesas para piano ¢ canto compostas por varios autores); Quando as glérias que -gorei (Rio de Janeiro: Pierre Laforge, s.d.); A hora que te ndo vejo. Poesia de [Goncalves de] ‘Magalhes. (Rio de Janeiro: Imprensa de Miisica de P. Laforge, sd. Esta iltima, em cépia a tinta preta MA que acusa fonte e indica: “(Duas folhas sem capa. Na pagina de rosto, sem impressio alguma, vinha a dedicatéria seguinte: ‘Mrs. Menezes/ Exchange is no robbery! Lisbon 18 July/ 1835." No fim da impressao vinha 0 nome do gravador: P. Laforge Rua do Ouvidor n. 149. (Comprada a modinha por Lea Bach, num alfarrabista de Lisboa)". Trata-se de: ALMEIDA, Pires de. Braz Theatro, (Rio de Janeiro: Typographia Leuzinger, 1901-1909; fase. 2, 1903/1906, p. 704); Batendo a linda plumagem. 10 Este processo de sincopagiio ainda aparece em seu oitavo compasso, no lundu que reproduzo aqui. Mas neste, numa obra que provavelmente ele mesmo intitulou Lundu brasileiro (a indicagio Lé no Largo da Sé vem em letras menores, na edigao que possuo), aqui a sineopa bem brasileira vem copiosamente sistematizada. E até variada, com observagao fina que s6 os compositores nacionais vivos, interessados no trabalho da matéria musical brasileira, haviam de especificar: a antecipagdo sineopada, passando dum compasso para outro, em movimentos cadenciais (comps. 17, 18, ¢ especialmente 20 e 24). Caso rarissimo de que s6 conhego um exemplo discutivel, na musica impressa dos lundus de salfio, da segunda metade do século. Hsté claro que nao afirmo que estes sejam processos exclusivamente brasileiros de sincopagio, mas ninguém discutird, creio, que so ritmos caracteristicamente nacionais, e mesmo particularmente nossos, dentro da sincopagiio negrizante de toda a América atlantica, dos Estados Unidos 4 Argentina, Assim, nio ha divida possivel que certas constncias bem caracteristicamente brasileizas de sincopag%o popular jé existiam nos tempos de Candido Inicio da Silva. Para quem conhece a documentago musical brasileira, mesmo do Segundo Império, Jogo ressaltaré portanto a importincia documental desse lundu, Na infinita maioria a metade do século, a sincopagio é rara e timida dos documentos datéveis da prim fs mais das vezes. Spix ¢ Martius ainda nfo a conheceram na melodia do lundu “popula:” que reproduziram no seu dlbum de miisicas; € os estrangeiros imagino que a estranhavam ¢ repudiavam, mesmo compondo lundus brasileiros, como em dois casos que conhego, um do espanhol José Amat, ¢ outro da muito menos conhecida Eleonora Dorgeau.”* No entanto Candido Inacio da Silva ja sistematiza firmemente a sincopa de colcheia no primeiro tempo do dois-por-quatro, como se fosse um... lunduzeiro do Segundo Império, e, mais que estes, com ouvido fino, as antecipagdes ritmicas do nosso canto popular; é extraordinario. Pois nao é tudo ainda, Também importa observar na melodia francamente em 46 maior, a oscilagdo da sensivel. Toda a gente sabe que outra caracteristica da miisica nacional ¢ a frequéncia do emprego da sétima abaixada, sem significagao modulatéria harménica, Pois observemos essa sensivel, como ocorre em Ld no Largo da Sé. 34 no décimo-sétimo compasso ela se abaixa uma primeira vez para o si bemol. Mas © compositor hesita, diante das regras da harmonia que aprendera na rua das Marrecas. © que vem fazer uma sensivel abaixada em pleno dé maior! E Candido Inacio da Silva se acovarda, e modula para ré menor. Ainda no estribilho (comp. 30°) © artista faz quase 0 mesmo, abaixando mais uma vez a sétima, porém modulando para f% maior. Tudo isto, esta insisténcia em abaixar a sétima para variar modulatoriamente a pega, € muito sintomético numa cangio simples € sem refinamento harm@nico nenhum. Mas o gostinho da sétima abaixada ficara Ihe zoando no ouvido & medida que o compositor estendia a linha do seu lundu. E entio, num. “breque” do acompanhamento instrumental (comp. 25°) com toda a coragem, ele ataca a sétima abaixada, sem nenhum sofisma modulatério, em pleno dé maior. Era a lar brasileira em toda a sua nudez. constincia es E esplendor, por sinal... Com efeito, se toda a melodia do lundu é bem tipicamente brasileira, 0 seu maior brasileirismo linear est nesse pequeno motivo ritmico-melédico com que o artista liga instrumentalmente canto da estrofe ao canto do estribilho: ® Nota da Edigtio: DORGEAU, Eleonora. As mocas da época: Lundu, Poesia de Joaquim Pedro da Silva. Rio de Janeiro: Imperial Estabelecimento Musical de Rocha & Correa, s.d jeretl Nao haveré no mundo um brasileiro “nacional” que nfo reconhea imediatamente como da melhor prata da casa, esse “breque” delicioso e muitas vezes ido até pelos nossos compositores eruditos. CAndido Ind reps da Silva seria também um mulato, como o seu professor José Mauricio? Nao consegui saber, mas a minha curiosidade nao é ociosa, nem deriva de nenhuma preocupagio de negrismo excessive para a nossa gente. Deriva mais da extraordindria “brasileirice” popularesca desse lundu, que the di um interesse técnico de valor creio que basico na evolugdo do folclore musical brasileiro. Os seus ‘numerosos brasileirismos implicam a pergunta: até que ponto esse lundu ndo tera sido apenas uma “colheita”? Ele no sera uma melodia recolhida inteira da boca popular? Como no excepcional do Xiba’? do mestre de capela José d’Almeida Cabral,” cuja melodia também ocorre no Samba de Alexandre Levi?*! Este xiba, que pela sua beleza melédica fago reproduzir aqui, é minha opinido que se trata de misica folelérica, generalizada um tempo pelo menos na provincia de Sao Paulo. Ja o simples fato de estar como “xiba” numa cangdo de Almeida Cabral, ¢ Alexandre Levi a ter recolhido na tematica do Samba, parece indicar isso de maneira deciséria. Niio € nada provavel que o iniciador da nacionalizagao da nossa misica erudita, vindo da Europa, consciente do processo de aproveitamento do folclore com que as diversas escolas, europeias, a russa em principal, estavam se nacionalizando, nfo buscasse um tema popular de negros, os tendo & mao, e fosse aceitar miisica de autor. E pelo seu carter ® ‘Not da Edigio: Xiba, grafado por Mario de Andrade com ch e empregado no feminino, foi atualizado de acordo com a consignagio dos vocibulas musicais no Dicionério Musical Brasileiro. * Nota da Edigdo: CABRAL, José d’Almeida. Se ew fe Amei: Chiba. Poesia de Carlos Ferreira. S.L Imp, ¢ Lith. a vapor de Jules Martin, .d. >" Nota da Edigfo: LEVY, Alexandre. Samba. Suite Brésilienne. Versos de Jiio Ribeiro (ilustraga0 literéria) para piano. a0 Paulo: Levy & Irmao, s.d 3B estranhissimo mas brasileiro, o Xiba de José d’Almeida Cabral, para quem conhece as demais obras dele, (possuo umas dez, modinhas ¢ lundus) no é dele, mas melodia recolhida que ele harmonizou, por the reconhecer a beleza. E harmonizou com bastante insensibilidade... Ora numa época em que a musica propriamente brasileira ainda tinha pouca caracterizagio nacional, porque a fustio dos elementos raciais importados ainda ndo se realizara musicalmente; numa época em que ainda so mais os... acentos nacionais que a gente procura descobrir nas modinhas de salto e na miisica dum José Mauricio: é surpreendente que Candido Inacio da Silva tenha acumulado tantos brasileirismos ritmicos ¢ melédicos num seu Iundu. Nao apenas “acentos” psicoldgicos mais, porém formulas, processos, motivos e carter decisive de melodia, a ponto desse lundu ainda soar brasileirissimo nestes nossos dias de hoje, em que a mésica do folclore traz formas e constincias técnicas bem definidas e muito mais ticas. Mas eu creio inadmissivel a hipétese de que o modinheiro tenha apenas estilizado uma pega popular do seu tempo. Nao sé porque isso no era um costume de entio, mas porque o texto de Porto Alegre, satirico e referente a acontecimentos, alguns dos quais datados, como a chegada do gelo, os cosmoramas ¢ outros, provam que a poesia foi feita ad hoc. Podia-se ainda aventar a derradeira hipétese de que 0 compositor adaptasse mtisica popular tradicional a um texto novo e transitirio, como foi 0 caso do Xiba de José d’Almeida Cabral, que recebeu texto novo ou gramaticalizado, de Carlos Ferreira. Mas também isto eu creio inaceitavel, porque a 4 forma estrofica do texto é francamente erudita, francamente influenciada ainda pelo arcadismo, e aparentada a formas estr6ficas muito ocorrentes nas modinhas de salio ¢ de autor da primeira metade do século, Era impossivel uma melodia popular ser adaptada a semelhante forma estréfica ou dificilimo e cacete. Ficava bem mais fécil criar melodia nova para quem era, como o nosso cantor, compositor profissional também. E por isso que eu suspeito da mestigagem de Candido Inacio da Silva. Lé no Largo da Sé parece indicar que havia no seu criador mais que uma observagaio da coisa popular, observastio a que nada o incitava na musica de entio, antes o distraia. Os acentos tdo brasileiros, jd, de A hora que te ndo vejo, a sincopagio irradiando modinhas adentro, o carter geral € os “brasileirismos” ténicos que o seu lundu dicionariza pela primeira vez, na documentagiio minha conhecida, estio nos egredando a espontaneidade do sangue ¢ do convivio e ndo apenas 0 ouvido, entdio malcriado e classe dominante, do observador. a, uma pena nfo conhecermos mais outros lundus de Candido Inacio da Silva, nem mesmo pela sugestéo dos nomes. Porque este que possuimos tem no entanto um elemento que se ndo é antibrasileiro, é um antilunduismo. O seu assunto discrepa do conceito ideolégico textual em que o lundu, no mais afronegro, mas ja brasileiro, em especial o lundu de saldo, iria se firmar. Mas nisto parece que entrou influéncia do amigo Araiijo Porto Alegre. Falo “amigo” nao s6 por esta colaboragtio entre ambos num lundu, como pelo fato de Porto Alegre ter insistido duas vezes em citar Céndido Indcio da Silva na meméria’transcrita por Debret. Ora Porto Alegre tinha mesmo 0 mau-jeito de fazer textos cOmicos sobre fatos do dia e os amansar na musica dos Iundus. Possuo dele mais outro lundu, provavelmente datado de 1844 ou 45, Fora 0 regresso, por sinal que com misica do Dr. Nunes Garcia, filo do nosso querido 22 Bleigdes, pistoldes, Padre José Mauricio, satirizando costumes de ent homeopatia, litotomias, jornalismo, ete., porque Tudo agiganta 0 progresso ! ‘Viva 0 amor! Fora o regresso ! * Nota da Edigdo: GARCIA, Dr. José Mauricio Nunes. Fora 0 Regresso. Versos de Manoel de Araijo Porto Alegre. Nota da Pesquisa: Na pasta onde colecionou seus lundus, Mario de Andrade possui cépia dda obra do Dr. José Mauricio, manuscrita a tinta preta, acusando a fonte de origem: 240, p. 527. Vale dizer, obra copiada por Mério de Andrade do Brazil-Theatro, fasc. 2, de Pires de Almeida. Rio de Janeiro: ‘Typ. Leuzinger, 1903-1906, p. 527 spor onde se vé, aliés, que “ser do amor” nos nossos dias, vem de tradigao secular... E provavel pois que a veia satirica do Porto Alegre é que tenha desviado Candido Indeio da Silva, do verdadeiro e legitimo “estilo” textual dos lundus. Texto sexual, mas cémico, ou mais geralmente gracioso, risonho, desprovido da tristeza sentimental do assunto das modinhas. O lundu de Candido Indcio da Silva nada tem de amoroso, ¢ muito menos se refere a negras ¢ mulatas sexuais, como é do melhor e mais caracteristico “estilo” do lundu tradicional burgués. Como cardter do seu texto, Lé no Largo da Sé s6 é lundu por encarar risonhamente, o seu tanto satfrico mesmo, 0 assunto. Mais satiricamente risonho que cémico propriamente, o que me parece de grande importincia na psicologia social do lundu burgués, Uma coisa que ressalta muito a quem estuda a formagio da sociedade brasileira nos tempos da Col6nia, e até mesmo toda a primeira metade do século XIX, €a desimportncia do negro nas artes populares do movimento, poesia, canto e danga, Estd claro: no que o negro escravo daqui nao tivesse o seu “folelore” Id dele, tinha vasto e bem caracteristico, mas a sociedade brasileira até bem dentro do século XIX se mostrou impenetravel 4 influéneia afronegra, tanto na miisica como na poesia ¢ danga, embora muito menos nos costumes ¢ nas tradigdes materiais. De maneira que mesmo as palavras afronegras, designadoras de coisas coreogrificas ou musicais, samba, urucungo, marimba, etc., designavam exclusivamente coisas de negros, e niio dos brasileiros em geral. Essa é a observagiio que se verifica ficil. Na festa brasileira colonial, ou jé nacional do Primeiro Império, o branco e 0 negro cram compartimentos estanques na realizago das suas artes, Abundavam desde muito, desde sempre, as misicas negras, as dangas negras com cantorias negras, 08 reis ficticios negros com seus cerimoniais de muita cantoria e dangados, ¢ provavelmente magias também. Desde o primeiro século, os viajantes e cronistas so fartos de indicagdes sobre isso, infelizmente vagas. Porém nada disso se amalgamava na festa do branco; ¢ este apenas condescendia em “envergar” a festa conjunta do negro, as vezes entrando nesta apenas para sublinhar a sua superioridade de senhor dominante. Como no caso da frequente coroagio dos reis negros ficticios pelos padres e pelos... interventores civis. A prova mais impressionante dessa nio-fusio do folclore negro no do branco, Jd salientei noutro lugar: esté no romance picaresco de Manuel Anténio de Almeida, as Memérias dum sargento de milicias. Escritas em pleno meio do século XIX, fartas de indicagdes folcléricas jé brasileiras, as Memérias deixam, no entanto, 0 negro a 16 bem dizer inexistente nessas indicagdes. B verdade que elas pretendem se referir ao tempo colonial do “rei velho”, como dizia o Padre José Mauricio, mas Manuel Antnio de Almeida pouco se importou de um absoluto rigor cronolégico. Os anacronismos niio so raros no romance, Como no proprio caso de ter citado a modinha Quando as glérias que gozei. Pois se Candido Inicio da Silva morre em 1839 com pouco mais de trinta anos, é muitissimo pouco provavel que mesmo no ano da Independéncia, ela jé fosse tio célebre ¢ conhecida a ponto de se desnivelar na boca dos piqueniques da burguesia muito baixa e mesmo diibia, Candido Indcio da Silva teria entdo quantos anos? Uns vinte? Ou menos.. Dois fatos no romance de Manuel Anténio de Almeida provam, a meu ver decisoriamente, 0 quanto a tradig&o folclérica negra ainda nfio se fundira na criagao dos brancos. Um deles é 0 romancista, precisado de feiticeiro, ir buscar na Cidade Nova, nfo um negro, mas um indio (ele fala “caboclo”, sinénimo de indio em nossa_ ia terminologia vulgar). Ainda nao existiam macumbas, e nem mesmo candomblés, conhecidos dos brancos!... Isso no Rio de Janeiro, uma das fontes, embora fonte descaminhadora, da feitigaria afro-brasileira. O outro fato é Manuel Anténio de icar especialmente que entre as Almeida, se referindo ao papa-festas Teotonio, i habilidades que o faziam festejado em toda a parte, estava a de cantar “em lingua de negro”. O que prova que cantar em lingua de negro era entiio ainda uma coisa exética © pagavel, como no lundu do nosso C&ndido Indcio, os cosmoramas, os surucucus, elefantes e modistas franceses da rua do Ouvidor. N&o era a constfincia brasileiramente normal, que mais tarde frequentaria tanto a literatura dos lundus. prova cabal dessa excepcionalidade esté no lundu Xarapim, eu bem estava de Caldas Barbosa, compendiando expressamente brasileirismos vocabulares. utra prova importante dessa ndio-fusdo do folelore negro, no do branco até no século XIX, esté nas nossas dangas dramiticas populares. A bem dizer nfo existe, no ‘empo, nenhuma danga dramética brasileira com fundamento propriamente nacional Pelo contrario, elas se distinguem umas das outras por serem portuguesas umas, como a cheganga de mouros, a cheganca dos marujos e os pastoris; amerindias outras como os caboclos, ou a danga dos meninos indios, ou afronegras como os congos € os teisados. S6 mesmo nos entéo chamados “reisados” se percebe a instncia brasileira, como no Zé do Vale ou no Pinicapau; ¢ mesmo a fustio (nfio colorida, observe-se) de tradig6es europeias e africanas, como no caso do bumba-meu-boi. Mas nfio € isso que importa mais para o fendmeno social que estou analisando. que importa ¢ que n garantidamente os bailados de origem ou inspiragao afronegra s6 eram dangadas por pretos. Nem branco do povo os dangava nem cantava. Ao passo que os de inspiragio amerindia ja deviam ser forgosamente realizados com grande percentagem de brancos, pelo simples fato de néo haver indios vivendo normalmente de vida urbana em nossas cidades importantes, 0 Rio de Janeiro, o Salvador, 0 Recife. © branco, mesmo de classificago popular, j4 condescendia certamente em fingir de indio, em se mascarar de indio, mas se negava a fingir de preto. A ndo ser, as vezes, nos personagens Mateus € Birico, do bumba-meu-boi. Mas estes eram personagens cOmicos, coisa que tem importincia sintomatica, como se verd mais adiante. Fsta tendéncia social popular tem sua parceria idéntica na literatura erudita do Romantismo, particularmente com José de Alencar. Com o Romantismo, jé 0 ipia aceitando a sua mesticagem ¢ a colaboragio duma raga nio-branca brasileiro pri na sua sociedade. Mas da mesma forma que as dangas dramaticas, sé aceita 0 indio, que, para aceitar, superioriza em her6i, coincidindo com uma das modas europeias do tempo. Esse fendmeno assume importincia de muito cardter com José Alencar. Ainda recentemente o escritor Florestan Fernandes salientava, com muita acuidade, 0 caso de José Alencar, que com os seus romances teve incontestavelmente a intengao consciente de abarcar a sociedade brasileira num painel ciclico, nfo apresentar nenhum heréi negro.** Alids, cumpre ainda reconhecer que se Castro Alves ja aceita 0 negro na realidade brasileira e o canta imortalmente, na verdade ele advoga uma causa de oprimidos, 0 que também se dava nos Estados Unidos e na Inglaterra. Como se vé, isso nio implicava a integragdo da mestigagem negra na sociedade brasileira. Nao & possivel negar: havia um problema negro na sociedade brasileira tanto da Colénia como do Império, muito embora ndo atingisse a infiimia duma linha-de-cor. Nao era linha, era tinha... Ora sucede que, desde os tltimos tempos setecentistas da Col6nia, uma forma caracteristica do folclore negro, porventura a mais caracteristica entio, ¢ certamente a mais generalizada, vence o fingido desinteresse das classes dominantes e invade sem convite a festa do branco.*' £ 0 lundu. Para isso, ele sobe de nivel, esté claro. E ® Nota da Edigto: FERNANDES, Florestan, © ROMANCE ALENCARINO. Folha da Manha. Sto Paulo, 13 jul. 1944, * Sem convite. Isto me parece de importincia social decisiva no caso do lundu brasileiro para o Brasil. Parece que certas dangas usadas em Portugal, no séc. XVIII e antes, a fofa e 0 sarambeque, eram de influéncia negra pelo menos na coreografia. Tiveram alguma pequena repercussio na sociedade branca do Brasil colonial. Mas além de entrarem especialmente nos grupos licenciosos dos farristas, entraram convite", como estrangeiros de passagem, sempre considerados conscientemente estranhos € sem alimpado primeiro, e perfumado a cravo... de tecla, como no documento delicioso que reproduzi nas Modinhas imperiais. Até 0 lundu, nfo hé davida que popular pelo espirito, ¢ livre de qualquer cacoete ou perfume “de saldo”, recolhido por Spix Martius, 6 surpreendentemente instrumental, Nao sé nao traz texto, 0 que ainda poderia-se alvitrar desleixo dos dois grandes viajantes - desleixo absurdo pois que ndo s6 de todas as modinhas, mas dos cantos indigenas, eles se esmeraram em registrar alguns textos possiveis - como porque a escritura ¢ instrumental mesmo, € até implicando processos de execugio de instrumentos exclusivamente europeus, de teclado, ou de cordas dedilhadas. Mas se este lundu grafado, pelo menos grafado, instrumentalmente por Spix € Martius, se conserva tipica miisica de danga, como 0 era entre os afronegros daqui, j co lundu instrumental de saldo que reproduzi nas Modinhas imperiais nada tem de coreogréfico, nem como espirito nem como ritmica, Por certo que nao era dangado. Devia ser uma pega de tocar “pras visitas”, dessas que a burguesinha preparava com cuidados ¢ inguietagdes do professor, para papagaiar no dia do seu aniversirio cor de rosa, Porém seria s6 assim, instrumental e muito descascado de sua cor e perfumado demais, que 0 lundu subiu para os niveis brancos? Nao. f 0 que nos segreda o Lé no Largo da Sé, ¢ os textos dos lundus do Primeiro Império. Sobe mais populistamente com texto também. Mas vai virar cangio. Dangar as embigadas dos pretos, Deus te livre! Pois se a danga do maxixe ainda fazia escAndalo grosso em 1905! Nao. Também the deitam pé-de-arroz. na coreografia ¢ ele sera dangado por todo o Império, mas a0 populismo dos passos, vao Ihe preferindo francamente o populismo de ajuntar um texto cancioneiro e solista. E 0 lundu subiu, mas sublimado mais normalmente em angio. A misica impressa de todo o século XIX prova isso com abundancia. Mas cangio com que espirito? Cangiio cOmica, cango sempre risonha. Isto me para a compreensio do fendmeno que ele representa na parece de importinci sociedade brasileira. O lundu, pela documentagdo que eu conhego, & a primeira forma musical afronegra que se dissemina por todas as classes brasileiras e se torna miisica suns se lntegrarem na realidade folel6rica portuguesa. Fendmeno idéntico a milietas de outros, como © cake-walk aui e Carmem Miranda nos Estados Unidos. E 0 tango argentino ¢ a rumba entre nés. E como ainda o fendmeno do proprio lundu brasileiro, o “doce lundu chorado”, em Portugal. A fofa e 0 sararmboque, se negrizantes, foram de qualquer forma exotismos, sem a menor integrasio nacional -oasciente, tanto em Portugal como, sobretudo, no Brasil. Como esta se vendo, o fenémeno do lundu no Brasil & totalmente outro. O cake-walk, a fofa, a rumba, o sarambeque so modas de cernaeionalismo, © lundu foi pra nés um imperativo de nacionalidade, “nacional”. f a porta aberta da sincopagdo caracteristica, da sétima abaixada. E, mais importante ainda, é a porta enfrestada do texto cantando sexualmente 0s amores “desonestos", as mésalliances, ¢ se especializa na louvagio sobretudo da mulata, Canta a negra também, mas é mais raro, Porém nao é nada raro, devido a sua frequeza sexual muito maior que a da modinha, a distribuigao do trabalho erético the trazer assustadoramente, no assunto, os brinquedos do negro com sua sinhé branca. Ja Caldas Barbosa fazia isso, dizendo as nhanhas e mesmo “portuguesas abrasileiradas” que “o seu moleque sou eu”; ¢ ninguém ignora o “Mestre Domingos” nacionalmente familiar, apesar da sua burguesa indecéncia, Imaginem uma ianqué cantando esse texto que viveu na boca das nossas mies, shocking! E verdade porém que o lundu muitas vezes cantava comicidades cagoistas ¢ sempre viveu risonho. A comicidade, a cagoada, 0 sorriso, era o disfarce psico-social que Ihe permitia a difusto nas classes dominantes. Cagoavam, ou pelo menos sorriam, condescendentemente com os amores da terra. A mulata principiava, ¢ a negra eo negro, sendo literariamente consentidos nas classes da alta e da pequena burguesia, como objeto de vazio sexual. Mas, ao contririo de um poeta de combate, como Castro Alves, o lundu retirava deles qualquer dor ¢ qualquer drama, Deles. © homenzinho alvissimo € que sofria por causa delas, das mulatinhas do carogo,”> um sofrer risonho. E também a repudiavam como “amor”, com a dignidade dos seus sentimentos acompanhantes, ¢ como forga social constitutiva da familia, Pura evasdo sexual. E um fendmeno idéntico ao aparecimento italico da dpera buffa, em que o personagem do povo foi consentido dentro da aristocracia da épera, com seus herdis miiticos e histéricos da Grécia ¢ de Roma, mas consentido pela comicidade. também a criago da farsa medieval, dentro da aristocracia religiosa das paixées ¢ dos mistérios. E da mesma forma que com as farsas e a dpera buff, se as pretas, pretaranas e moleques eram convidados a frequentar 0 texto dos lundus, também entravam com eles a sua linguagem ¢ a sua musica... Com o lundu entravam os erros de gramatica conscientes os “meu bem esté mal com eu”, os “mecé jé nao me gosta”... E mais uma vez neste mundo de repetigao, a aristocracia da miisica erudita se tetemperava no sangue vermelho da misica popular. O lundu, danga colonial do afronegro do Brasil, nao era afronegro mais, por esses tempos da agonia do dominio Portugués e do Primeiro Império. Rugendas o desenha duas vezes, uma dangado por * Nota da Edigdo: Alusdo 20 lundu andnimo Mulatinha do carogo no pescogo. 20 pretos, outra por gente branca do povo.*® Ao contato do colono portugués, o Iundu era, entéo, frequentemente affo-brasileiro j4, como prova o exemplo, bem especificado “VOLKSTAN2”, por Martius no seu Album. Essa europeizagao da miisica afronegra 20 contato do nativo branco ¢ dos portugueses, se define nitidamente, niio mais apenas por uma coineidéncia dos sons vindos da Africa com os sete sons do dé maior europeu, mas por uma aceitagdo de todas as consequéncias cadenciais ¢ modulat6rias da tonalidade harménica, exclusiva dos europeus do Cristianismo. O lundum de Spix ¢ Martius ainda no traz nem a sincopa no primeiro tempo do dois- por-quatro, nem a sétima abaixada, Mas a gente deve ter presente sempre que, quanto A ritmica, os dois viajantes s6 registraram a linha da melodia e nfo a percusstio acompanhante, Deste ponto-de-vista, carece no esquecer também que 0 Xé Aratina de vida intensa e mesmo histérica entre os negros de 1871 a 80, no Rio de Janeiro (e que eu inda me colhi, inteiramente folclorizado no Nordeste em 1929; e que minha mae cantava na infncia) néo tem nenhuma sincopa, nem sequer no piano acompanhante, com que o reproduziu Friedenthal.*” Década de 1870 a 1880... Epoca que eu hoje tenho ja como indiscutivel, da fixacio popularesca (nfo ainda nas classes burguesas, entenda-se, mas de gente farrista) do maxixe... E como efeito, 0 X6 Aratina, apesar de trazer texto, € um maxixe bem caracterfstico — chamado “tango” por Friedenthal, tui palavra que de fato foi a mais generalizada, e ainda subs ‘maxixe” na propria terminologia de Ernesto Nazaré e Marcelo Tupinambé. Mas 0 processo, m sincopagao, do acompanhamento do X6 Aratina, seré efetivamente um lugar comum frequentissimo no acompanhamento pianfstico dos maxixes publicados. Porém jé O bilontra n° 2, assim como 0 Quem comeu do Boi, do mesmo album excelente, (também chamados “tangos” e mal qualificados “NEGERTANZ” por Friedenthal, pois io cram exchusivamente afronegros como concepsio, ¢ tinham autor) nio trazem * Nota da Edigto: RUGENDAS, Maurice. Viagem pitoresca através do Brasil. Tradusto de Sérgio Millet 2* ed. S20 Paulo: Livraria Martins, s.d.(pranchas 4/17 e 3/13, respectivament). * Nota da Bdigdo: Albert Friedenthal (Op. cit. n° 67, v. 6, p. 21) explica, em nota, que X% Aratina, vando acompanhada por instrumentos de percussio, fizia com que todos em volta dangassem catnssam @, devido a coreografia obscena, teria sido proibida pelo govemo por volta de'1875. A ‘verso colhida por MA nfo foi localizada em sua obra editada ou em seu arquivo. No mesmo album do suioealemo, hi duas pega chamadas Bilontra. A primeira (Op. cit, n° 66, p. 16), eomposta por Gomes Cardin altura de 1888. A outra, & qual se refere MA, foi recolhida no Rio de Janciro no mesmo ano e, segundo Friedenthal, podia ser escutada até 1890. Também entre 1870 e 1890 esteve em voga Quem comex do boi?, eomposta por J J. Barata (Op. cit, n* 65, p. 14). 2 textos — caréter distintivo da manifestagio que nfo é folclérica, mas apenas popularesca e urbana, do maxixe, Me perdi... Mas como est se vendo, o fato da melodia do lundum de Spix € , nfo o descaracteriza em nada. E um lundu, é misica Martius nfo ter sincopag brasileira, é popular e mesmo foleldrico, apesar da sua interpretago instrumental. ‘Mas, em compensagao, da mesma época ou mais antigo mesmo, j4 possuimos o lundu para cravo, que reproduzi na minha antologia citada. E este, embora gentilissimamente mozartiano em alguns passos da sua melodia, j& contém sincopagio, e bem caracterizadamente nacional. E no entanto, com ainda maior caracterizagio ¢ de maneira indiscutivel, é uma obrinha “classe dominante”. ‘Virulentamente classe dominante. Lundu... mas de sal. A miisica popular afronegra consentida no cravo da aristocracia. A “nacionalizagio” duma forma afronegra, depois afrocolonial, que enfim, é a primeira em nossa miisica, conquistava foros de nacionalidade, aceita e permanente em todas as ragas, mestigagens e classes do pais. Por tudo isto o lundu, e por causa dele 0 Ld no Largo da Sé de Candido Inacio da Silva, assume uma importincia histérica e sociolégica bem grande na formago da sociedade brasileira ¢ sua musica, & ele a primeira forma musical que adquie foros de nacionalidade. Nao € mais de classe. Nao é mais de raga, Nao é branco mas jé nfo negro mais. E nacional. Revista brasileira de misica, v. 10. Rio de Janeiro, Escola Nacional de Misica, 1944, p. 17-39. 2 ere

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