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z ° Reser n Reitor: José Goldembere Vice-Reitor: Roberto Leal Lobe e Silva Filho Obra co-editada com 2 EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO. Presidente: Jodo Alexandre Barbosa Comissao Editorial: Presidente: Joao Alexandre Barbosa, Membros: ‘Antonio Brito da Cunha, José E Mindlin, Luiz Bernardo F. Clauzet e Oswaldo Paulo Forattini ANTONIO CARLOS ROBERT MORAES Departamento de Geografia, FFLCH, USP A GENESE DA GEOGRAFIA MODERNA EDITORA HUCITEC EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO Sao Paulo, 1989 ©1987 de Antonio Carlos Robert Moraes. Direitos de publicagio reservados pela Esitorade Humanism, Ciéncia e Teenologia “Hucitec” Lida., Rua Gedrgia, $1 (04399 Sto Paulo, Brasil. Telefone: (011) 241-0888, ISBN 85.271.0107-6 Foi feito 0 deptsto legal Dados de Catalogagao na Publicagdo (CIP) Internacional (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Moras, Antnio Carlos Robert, 1984 ‘A ginese da geograria madera / Antonio Carios Ropert Moraes. —- S89 Paulo ; MMOETES : Editors da Universidade de Sio Paulo, 1989, —- [Geagratia. Teo- 9eN 85-271-0107-6 4. Geografaa - Filosofia 2. Geografia - Hsaténia 3. Humbelat, Alexander von, 1769-1859 4, Ritter, Carl, 1779-1998 1. Titulo, TI, Série 00-910,9 29-1093, =210,01 Indices para catélogo sistematico: 4 moderna : Filogofia 919.01 2) Geogra Sumario Nota introdutéria . re wmmcameieveee 1S 1A particularidade hist6riea da Alemanha e a génese da Geografia moderna .........eccseeeeeeees 15 A sistematizacao da Geografia moderna... 15 A particularidade histérica do desenvolvimento do capi- talismo na Alemanha ...... 26 © pensamento alemao no século XIX. 50 A Geografia na histéria da Alemanha 66 2 AGeografia Fisica de Humboldt ....0.005000.000006 77 Dados biograficos ¢ bibliograficos de Humboldt ...... 80 Os fundamentos filoséficos do pensamento de Hum- boldt anne OF Cosmologia e Geografia: a questio dos rétulos .. 98 O objeto e o método da Geografia segundo Humboldt .. 108 © posicionamento politico e as concepedes socials de Humboldt .. a Consideragdes sobre a Geografia de Humboldt 3 A Geografia Comparada de Ritter .. 135, Dados biograticose bibliogrficos de Ritter 138 As bases filos6ficas do pensamento de Ritter... 148, Teologia e Geografia: a questao do finalismo +. 162 O objeto e 0 método da Geografia segundo Ritter...... 170 Sociedade e natureza na Geografia de Ritter +. 187 Consideragdes sobre a Geografia de Ritter. 198 Consideragies finais . 203 Nota Introdutéria Ootume gue ora publicamos apresenta parte do texto de nossa dissertagic de mestrado defendida no segundo semestre de 1983, ne Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas da Universidade de Sao Paulo. A pre- sente edigio traz parte do primeiro capitulo e, quase na integra, © segundo e terceiro, tendo sido suprimidos 0 quarto capitulo, “Ratzel ¢ a Antropogeografia”, a Introdug&o, a Conclusio e os itens iniciais referentes as dificuldades de periodizar e classificar © conhecimento geogrifico. Esta tiltima discussio aparece num texto que escrevemos posteriormente, “Epistemologia e Geogra- fia", publicado na revista Orientacdo, n° 6 (Instituto de Geogra- fia da USP, 1985). O capitulo sobre Ratzel serviu de base para a redagio do texto introdutério da coletinea a respeito desse autor, que organizamos para a colegio “Grandes Cientistas Sociais", aconvite do prof. Florestan Fernandes (Editora Atica, no prelo). Assim, com a edigao do presente volume completamos a divul- ‘ga¢do dos resultados obtidos no trabalho de mestrado, Por ser um livro dedicado a um piblico amplo, decidimos su- primir nessa edicao algumas avaliagdes por demais especificas que tornavam a leitura muito arida. Pelo mesmo motivo tiramos do texto as notas de identificagao das inimeras citagbes dos anto- res analisados; a forma de exposigao adotada (buscando utilizar a0 maximo as proprias palavras de Humboldt e Ritter) tornou sua uantidade bastante elevada. Tais notas sé interessariam ao leitor especializado, e este pode buscar o texto original da dissertaglo nas bibliotecas do Departamento de Geografia ¢ do Centro de Apoio a Pesquisa Historica da Faculdade de Filosofia, Letras ¢ Ciéncias Humanas da USP, da Associagiio dos Gedgrafos Brasi- leiros — nticleo Sao Paulo. Sao Paulo, setembro de 1986. 13 Capitulo 1 A Particularidade Histérica da Alemanha e a Génese da Geografia Moderna A SISTEMATIZACAO DA GEOGRAFIA MODERNA Ni siteratura a ist6rin do pensamento geogrifico é quase undnime 0 estabelecimento do marco inicial da Geografia mo- derna na publicagao das obras de Alexandre von Humboldt e de Karl Ritter. Nao ha controvérsias em colocé-los como os pioneiros do processo de sistematizagao dessa disciplina; a discordancia, quando aparece. diz respeito énfase dada a um desses autores em detrimento do outro. Humboldt e Ritter sao, sem diivida, os pensadores que dao o impulso inicial & sistematizagao geogrili so cles que fornecem os primeiros delineamentos claros do di minio dessa disciplina em sua acep¢ao moderna, que elaboram as primeiras tentativas de Ihe definir o objeto, que realizam as pi meiras padronizagdes conceituais, ¢ constituirae 0 objeto do pre- sente estudo. Antes de iniciar a avaliagdo dos pressupostos histéricos mais genéricos, cabe fazer uma adverténcia: desse processo de sistema- tizagao da Geografia, iniciado com a publicagao das obras de Humboldt e Ritter, nao emerge uma Geografia sistematica, isto €, um estudo voltado para a compreensio de um fendmeno (ou classe de fenémenos) particular. Emerge, isto sim. uma Geogra- fia sistematizada que, apesar de assumir-se como campo autd- nomo de conhecimento cientifico, no chega a formular uma pro- Posta de estudo sistematico, isolando um objeto especificamente seu. Ao contrario, tal Geografia toma como elemento de sua iden- tificagdo esta caracteristica assistematica, propondo como legit magio de sua especificidade a diferenciagio introduzida pela erspectiva assoeiativa ou sintética, que trabalha com uma varie dade enorme de fendmenos estudados, cada um, pelas mais dife rentes cincias. Esta adverténcia, mesmo sendo bastante simples, incide sobre questo da maior relevancia, pois o carater nao siste~ Is mitico da Geografia proposta vat trazer toda uma problematica especifica para o Ambito da discussio metodolégica dessa disci plina. A necessidade de reafirmar continuamente sua autoridade € identidade, e as dificuldades (muitas vezes légicas) de realizar essa tarefa, acompanharo a trajet6ria da Geografia modema até a atualidade. Posta essa adverténcia, pode-se retornar ao eixo da discussao, qual seja, os pressupostos histéricos da Geografia mo- derma, As condigdes para a erup¢Zo da sistematizagao da Geografia vao-se compondo num proceso lento calcado em muiltiplos con- dicionantes, tanto hist6rico-estruturais, remetendo a um deter- minado grau de desenvolvimento material das sociedades, quanto vinculados & formulacao de determinados postulados cientificos ¢ filoséficos. A génese da Geografia modema necessitou, assim, de uma série de condigdes historicas para poder objetivar-se. Essa ‘magio nao encontrar4, provavelmente, contraditores entre os que aceitam a tese da determinagio histérica do pensamento hu- mano, logo, da origem socialmente dada das formulagées cienti- ficas.! Os pressupostos histéricos do processo de sistematizagao da Geografia foram se objetivando no movimento de constituigao do modo de produsao capitalista. Assim. tal disciplina deve ser vista como produto relativamente recente do desenvolvimento his- torico da humanidade. As condigdes para sua gestagao foram ge- radas no longo processo de transigao do Feudalismo para o Capi- talismo, proceso esse que implicou o estabelecimento de uma * Os fundamentos de tal concepeio encontramse originariamente formu lados nas obras de Mars ¢ Engels, autores que dizem: “A produgao das idéias, ide representagbes, da consciéncia, esti, de inicio, diretamente entrelacada com 8 atividade material © com o interedmbio material dos homens, como a ‘guagem da vida real. O representar, o pensar, o intercimbio espiritual dos ho- mens, rparecem aqui como emanagao direta de seu comportamento material. ‘mesmo ocorre com a produgdo espiritual, tal como aparece na lingvagem da po- litien, das leis, da moral, da religido, da metafisica, ete., de um povo. Os ho- ens slo os produtores de suas representagdes, de suas idéias, ete. mas os ho- mens resis, tal como se acham condicionados por umm determinado desenvol mento de suas forgas produtivas e pelo intereimbio que a ele corresponde até chegar is suas formagies mais amplas. A conseiéncia jamais pode ser outta cot sa do que 0 ser consciente, e o ser dos homens & 0 seu processo de vida real” Ldcologia alema, Grijalbo, Sio Paulo, 1977, pp. 36/7. Sobre esta questdo, ver também a entrevista de Lukées, inttulada “Ser e conseiéncia”, em Holz. W., Kofler, L. ¢ Abendrotk, W. — Canversando com Lukées, Paz. ¢ Terra, Rio de Janeiro, 1969) 16 historia universal. Nao seria 0 caso de relembrar aqui todos os movimentos e significados histéricos de tal processo, nem mesmo de se discutir suas implicagdes no plano do desenvolvimento das idéias, ou ainda de se tentar fazer uma pequena historia do surgi- mento das cigncias modernas; sobre esses assuntos existe rica e vasta bibliografia, Apenas tentar-se-4 apontar, nas linhas seguin- tes, algumas condigdes mais gerais que interessavam diretamente a0 surgimento da Geografia moderna. Frisa-se 0 diretamente, pois, no mais, a génese de tal disciplina obedeceu a todas as de- {erminagdes que tequereram as ciéneias modernas em seu con- junto. ‘ pressuposto mais fundamental da Geografia moderna era 0 conhecimento efetivo de todo o planeta, isto é que o “mundo conhecido” atingisse a total extenstio da Terra, Assim, a condigao de realizagio desse pressuposto calcava-se na constituicao do es- aco mundial de relagdes. A consciéneia da magnitude real da superficie terrestre (em termos de sua forma, dimensio, subdivi- sio ¢ limites) representava 0 patamat minimo para o afloramento da reflexio sistematizada sobre esse espaco concreto, Tal apreen- sdo mais elaborada sobre a Terra requeria conhecimento fatual considerdvel estabelecido e a possibilidade da aferigao empirica de uma visio de conjunto do globo. A objetivagdo dessas condi- ‘gdes comeca a emergir com 0 inicio da expansio européia no qui- mhentismo. A descoberta e incorporacao de novas terras, as pri- meiras viagens de circunavegagdo e as expedigdes exploradoras vio propiciar 0 estabelecimento de uma representagao realistica do planeta ja em meados do século XVII. Os grandes descobri- mentos inauguram a possibilidade desse processo de constituigao do espago mundial, que a expansio mercantil vai substantivar, fazendo com que oecimeno passe, no decorrer de alguns séculos, aabarcar toda a superficie terrestre. Até entdo, a possibilidade de conseigncia espacial do mundo limitava-se aos espagos restritos das sociedades que empreendiam tal reflexao; a Geografia dos gregos.ou dos arabes no poderia ir além do espaco de relagdes, em que transitavam esses povos. O estabelecimento de uma eco- nomia planetaria e de um espaco de relages global, com a expan- sto das relagdes capitalistas de produgio, € que vai alterar esse quadro fragmentiirio. A possibilidade dessa consciéncia mundia- lizada foi, sem duivida, o patamar fundamental da sistematizagao geografica. A expansio maritima, os descobrimentos, a posterior apropriagio de novas areas do globo, inscrevem-se como parte ativa do processo de transicZo do Feudalismo para o Capitalismo, a ce manifestam um momento de alargamento do horizonte espacial (e comercial sobretudo) europeu. A constituigao da economia mundial implicava ir além da sim- ples descoberta, remetendo, a necesséria apropriagio dos novos ios, sua incorporagao efetiva ao sistema produtivo do cen- tro difusor. Essa apropriagao vai ocorrendo lentamente, desagre- gando os modos de vida locais ¢ colocando essas novas freas, abrangidas pelo avanco, sob 0 dominio das relagdes de producao engendradas e regidas pelos interesses dos estados europeus. A sedimentacao dessa economia mundializada se faz com o progres- sivo estabelecimento de atividades produtivas nas novas terras, © que coloca os agentes de expansao em contato com realidades espaciais bastante distintas (com relagdo a seu quadro referencial europeu) ¢ diferenciadas entre si. Com o progresso da exploragao colonial, o levantamento de informagées das particularidades en- contradas vai sendo executado de forma cada vez mais criteriosa © detalhada; 0 avango na apropriagio dos territérios alimenta esse acervo, onde se vdo avolumando os dados sobre numerosas reas, de condigdes naturais ¢ populagées totalmente diferenciadas. Nesse processo, o conhecimento do mundo passa a ser, mais do que o simples saber da existéncia de outros territérios, um conhe- cimento efetivo das condigdes ali reinantes. A possibilidade de uma visao planetéria na representagio do mundo vem somar-se a formagao de um cabedal de informagées sobre lugares singulares iocalizados nos mais variados pontos da superficie da Terra. A fermagio desse cabedal € vista aqui como uma segunda con- digo para o aparecimento da Geografia moderna. A condigao de sua realizacdo ligava-se & inexorabilidade da expansao capitalista (expansao que esté na esséncia mesma de tal modo de produgao) que, em seu avanco espacial, gerou a necessidade de conhecer e 0 conhecimento das varias partes do globo. O levantamento de in- formagdes avangava pari passu com 0 dominio e a sedimentagio das atividades produtivas nas colénias. Tanto o levantamento ‘como a sua posterior catalogagio vao sendo efetuados de modo cada ver mais ordenado; basta pensar que das expedicdes explo- radoras do século XV chega-se as expedigdes cientifieas do s culo XVITT, todas financiadas diretamente pelas coroas euro- péias, Também a fundagao das sociedades geograficas e dos eseri- trios coloniais atesta 0 interesse fundamental dos Estados por essa coleta de informacdes. Decorre desse interesse um revigora~ metito das descrigdes. que pela pratica se vao aprimorando. fato que & extremamente relevante para a irrupgao da Geografia me 18 derna, O actimulo das descrigdes fornece base empirica para a comparagao entre as Areas, niicleo germinador das indagagdes associadas na sistematizacdo geogrdfica. Na verdade, a Geografia do século XVIII foi fundamentalmente a elaboragao (padro: zagio, catalogacio, classificagdo) dese material acumulado, ¢ representou a base imediata da emersdo da sisiematizagio geo- grifica R. Figueira elabora uma expressao precisa ao dizer que tal Geografia tentava “a reconstituigio racional do espaco da aventura mercantil”.’ ‘Além desse actimulo de informagées ¢ do aprimoramento das descrigées subjacentes ao avango da expansao mercantil, ha outro elemento, que se gesta associado aos mencionados, que deve ser lembrado. Trata-se do desenvolvimento dos meios de representa- ‘ho cartografica, que se constituem no instrumental, por excelén- cia, do trabalho do geégrafo. O avango da linguagem da Carto- grafia ocorre caleado nas exigéncias praticas da intensificagao das relagdes comerciais; era fundamental para a navegagio estabe- lecer, da forma mais aproximada possivel, a representagio das rotas e a localizagao das terras e dos portos. Também a amplia- 40 do trafico terrestre, envolvendo distancias maiores e trocas mais regulares, demandava esse aprimoramento. Finalmente, as necessidades de conhecer a extensio real das coldnias, assim como de lhe demarcar 05 limites, incidem sobre 0 desenvolvi- mento da Cartografia. O uso dos mapas vai popularizar-se com a descoberta ¢ aprimoramento das técnicas de impressio. Estas permitem a difusao das cartas, melhoradas pela sferigoempirica reiterada na intensificacao das viagens. O instrumental cartogra- fico vai agregar-se, como meio privilegiado de representacao, as téenicas de deserigao, dando-Ihes, jé, uma tonalidade propria: mente geografica nas crdnicas dos viajantes naturalistas do sete- centos. Assim, dos relatos ocasionais ¢ intuitivos dos exploradores © aventureiros passa-se, com a evolugdo da propria empresa co- lonial, as descrigdes ordenadas ¢ imbuidas do espirito objetivo das ciéncias modernas nascentes. Pode-se dizer que tal situaco, plenamente alcangada no século XVIII, é jé 0 anteato imediato do processo de sistematizagio da Geografia. 2 Essa questo & bem discutida na obra de M. Quaiti, A construgao da -eeografia humane, Paze'Terra, Rio de Janeito, 1985, 3 Figueira, R. — Geografia, ciéncia humana, Centro Editor da América Latina, Buenos Aires, 1978, Introdugto, p. 18. 19 Vé-se que os pressupostos gerais mais diretamente vinculados 4 possibilidade de surgimento da concepcdio moderna de Geogra- fia se realizam no préprio processo de efetivagao do dominio das relacdes capitalistas. A possibilidade de conceber e de efetuar uma representagao ordenada de todo o planeta e a existéncia de um cabedal de informagies precisas sobre numerosos pontos da superficie terrestre eram os imperativos elementares da sistema- tizacdo geogrifica. Esses dois condicionantes articulavam a ques- tao basilar dessa diseiplina: a busca de uma relacao teérica entre a unidade da superficie terrestre ¢ a diversidade dos lugares. O primeiro ponto remetia a uma consciéncia mundializada, € 0 se~ gundo. a consciéncia de composigies diferenciadas nas singulari- dades locais. Tais pressupostos estario plenamente realizados em mieados do século XVIII. Porém, a sistematizagao da Geografia nfo flui mecanicamente da existéncia dessas condicdes materiais para sua aparigao. Tais condigdes eram pressupostos € nao esti- mulos diretos; além do mais, as necessidades praticas correspon- dia uma perspectiva igualmente pratica de tratar os temas geo- graficos. Nao havia uma preméncia utilitaria de se propor uma Geografia para realizar os interesses em pauta, pois tais interesses ja cram supridos, em termos imediatos, pelo trabalho pratico que se fazia sem 0 concurso deste rétulo. Para que a Geografia moderna viesse a ser formulada havia ainda necessidade de uma outra classe de condigdes, aquelas refe- rentes diretamente & evolucao das idéias, isto é, a discussao autd- noma e unitaria do temério geografico deveria ser referendada pelo pensamento filoséfico e cientifico. Assim, existiriam uma série de pressupostos intelectuais para a eclosiio da Geografia mo- derna. A simples existéncia dos pressupostos materiais nao tece mecanicamente a explanagao geografica, sendo necessério um determinado arcabougo légico filoséfico, ja estabelecido, que pro- piciasse a formulagao dessas postulagées. Neste caso, a condicao de realizacdo passa a ser ndo apenas um desenvolvimento hist6- rico material, mas o desenvolvimento da historia das idéias. Aqui, a relagio dialética entre a base material e a consciéncia mani- festa-se de forma mais mediatizada, diferenciando-se nas conjun: turas especificas ¢ nas particularidades do desenvolvimento hist6- rico de cada pais. Das ilagdes diretas do processo de constituigao do espago mundializado, passa-se para o cendrio de movimentos mais especificos (ainda que nesse primeiro momento sejam discu- tidos de modo genético). A afirmagao do modo de produgio capitalista demandava a 20 superagao politica das instituigSes feudais; isso implicou uma luta ideol6gica com o sistema de idéias que dava legitimidade a tais, instituigdes. Em fungao disso, o perfodo de transigao entre os dois modos de produgdo apresentou um grande alargamento do ho zonte do pensamento humano. A necessidade, posta para os pen- sadores burgueses, de superar as relagdes feudais levava ao esta- belecimento de uma postura critica frente ao existente e frente as interpretagdes que sustentavam tal ordem. Uma postura critica, como se sabe, & o estimulo principal de qualquer avango sub: tantivo do conhecimento. Além disso, 0 carter hegeménico da proposta que veiculavam, que representava a instalacao do novo, permitia que os intelectuais burgueses formulassem considera- ‘gdes universais.* Foi nesse ambiente que se forjaram as ciéncias modernas, como armas de combate ideoldgico da burguesia nas- cente em busca da consolidacao de seu projeto politico. As condi- ‘Bes para a eclosao do processo de sistematizacao da Geografia se gestaram, como parte integrante, desse movimento. Um dos pon- tos destacados de tal movimento ideol6gico residiu na afirmacao ‘de uma concepgao racionalista do mundo. A ordem feudal legiti- mava-se numa interpretacao teoldgica do mundo, em que a essén- cia dos fendmenos era vista como incogniscivel, pois repousava na teleologia divina. Contrapondo-se a essa ordem, © pensamento burgués vai valorizar as possibilidades da raz4o humana. Tal pos- tura jé aparece no cerne das formulagdes mais progressistas dos filésofos da Renascenga. Estes aceitavam a existéncia de uma or- dem na manifestagao dos fendmenos, passivel de ser apreendida pelo entendimento humano e de ser enunciada de forma sistema- tizada, De explicagdes de fundo teol6gico, baseadas na crenga da origem divina da agdo dos eventos, passa-se para uma visio que defende a observagdo sistematica em busca de constincias, ritmos € relacdes entre os fendmenos. Tal passagem nao se faz de ime- diato, ao contrario, avanga por formas conciliatérias exemplif civeis na idéia do “impulso inicial” de Newton ou da “mao invi- sivel” de Adam Smith. De qualquer forma, tal trausito represen- tou um progresso inerivel do conhecimento humano. Justificava- sea busca de uma explicagao racional do mundo, no bojo da qual se constituem as ciéncias modernas. 4 sobre este assunto pode-se consultar: Lukics, G. — Marxismo e teoria da literatura, Civlizagao Brasileira, Rio de Janeiro. 1968. ensaio: “Marx ¢ 0 problema da decadéncia ideologica’ 3 2 © campo principal, sobre o qual incide a maioria das inda- ‘eagdes das ciéncias nascentes, vai ser 0 dos fendmenos naturais As varias ciéncias dedicadas ao estudo da natureza conhecem um desenvolvimento fantastico no decorrer dos séculos XVII e XVIII. Os avangos explicativos com relagdo aos fendmenos naturais ex- pressos na paisagem foram dos mais significativos. A Botanica, 12 Zoologia ¢ a Geologia sistematizam-se nesse periodo, alimen- tadas, em muito, pelas informagdes oriundas das novas terras. Apesar de se desenvolverem sobremaneira as pesquisas de fené- menos especificos, o pensamento desse perfodo nao isola os estu- dos em compartimentos estanques. Ao contrario, a tnica sinté- tica e integradora domina a producao do conhecimento. Deveu-se isto. em primeiro lugar, a0 ndo-distanciamento entre Ciéncia e Filosofia. Tais formas de pensamento encontravam-se, nesse mo- mento, intimamente entrelagadas; na verdade, buscava-se 0 co- nhecimento do mundo para municiar as argumentacdes especula- tivas; a pesquisa empirica ndo era oposta a divagacao abstrata, antes se integravam num discurso unitario. Por esse motivo, ra 220 e natureza também nao eram antagOnicas; ao contrario, con- cebia-se a razio como natureza humana, reflexo no homem da harmonia natural. Buscava-se compreender a natureza para se compreender a natureza humana, de forma a ajustar a ela as ins tituigdes sociais. Dessa forma, a visio sintética necessaria para a motivagao politica do processo se sobrepunha ao mével mera- mente utilitario do desenvolvimento de tecnologia, ao nivel da manipulagao dos fendmenos especificos. Isso implicow um ince: tivo @ propostas académicas de disciplinas sintéticas. A Historia Natural, a Fisiologia, a Anatomia inscrevem-se entre estas tenta- tivas, aS quais perfilar-se-4 a propria Geografia. O desenvolvi mento das cigncias naturais sisteméticas e dessas ciéncias sinté- ticas foram alimentadores diretos do proceso de sistematizagio da Geografia. As primeiras forneceram-lIhe conhecimentos orde- nados sobre os fendmenos singulares presentes em seu temério: classificagdes, teorias particulares, etc. As segundas forneceram a possibitidade logica de formulagao de uma cincia nau sistems- tica. Assim, a formulacao explicita destas ciéncias constituiu-se objetivamente em pressupostos da Geografia moderna. ‘A Geografia encontrou, porém, fora do campo das ciéneias da natureza, outras colocagdes impulsionadoras de sua sistematiza- 40, Ao nivel do conhecimento filoséfico propriamente dito, en- contram:se varias vias de legitimagio do debate dos temas geo- grificos. © pensamento iluminista, principalmente, releva, em 2 suas formulagdes, um dos temas mais destacados do universo de preocupagdes da Geografia moderna, qual seja: a questo da re~ lagdo da Sociedade com o territério. Esse tema, de tradigio no pensamento politico desde a Renascenga, vai ocupar um papel de destaque nas formulagdes de varios pensadores da Ilustragio. Sao ‘bastante conhecidas, por exemplo, as colocagdes de Montesquieu, relacionando as formas de relevo com a indole dos povos, ou as colocagées de Rousseau, relacionando as formas de governo com a extensio dos territérios. O debate do temario geogrifico, efe~ tuado ao discutirem as questdes centrais da sociedade, veste-se de ‘uma legitimidade social, ganhando forga a justificativa de se pro- por um estudo especifico de tais preocupagdes. Nao era apenas na filosofia iluminista, porém, que os temas geograficos afloravam. ‘Também as obras filos6ficas de sintese, proprias do periodo, as que expressavam grandes “‘sistemas filos6ficos", vio dar guarida em seu seio aos temas da Geografia. A tematizagio de virios as- suntos, englobados posteriormente no mbit dessa disciplina, aparece, por exemplo, nas paginas de Kant, de Hegel ou mesmo de Comte, todos formuladores de grandes sistemas. Essas obras, que culminam com proposigées éticas e politicas, tentam dar conta de toda a realidade num discurso unitario e integrativo, nao sendo estranhos a este saber enciclopédico alguns problemas no- dais do pensamento geogrifico, Tais consideragées aparecem entao como antecedentes filoséficos da sistematiza¢ao geogrética, fato que transparecerd na citagao dos gedgrafos pioneiros desse rocesso que se remetem amitide a tais discussbes, efetuadas no plano da Filosofia, para obterem legitimagdes para suas formula- Ges. Existiu, assim, uma anterioridade de explicitagao de algu- mas questdes centrais da Geografia no nivel filoséfico, em relacao ‘a set estudo sistematizado € agrupado nesse rotulo cientifico. Poder-se-ia lembrar ainda algumas obras especificas de Filosofia da Histéria ou de Filosofia da Natureza que atuaram no mesmo sentido (basta pensar na produgao de Herder entre as primeiras, ena de Schelling entre as segundas). De modo geral, a producao filos6fica do periodo (século XVIT, XVIII c até meados do véculo XIX) referendou 0 temario geogritico, fornecendo uma base de autoridade para propostas que veiculassem sua discussio unitaria ¢ integrada numa disciplina auténoma. ‘Do que foi apresentado, sucintamente, pode-se depreender ‘que no inicio do século XIX ja se colocavam, ao nivel do pensa- mento, uma série de condicionantes que permitiam o afloramento da sistematizagao da Geografia. O desenvolvimento das ciénci 23 naturais sistematicas, tematizando os variados fendmenos da pai- sagem, a existéncia de ciéncias sintéticas, visando fornecer expli- cagies de conjunto, e a legitimagao filoséfica das questies geo- grificas (seja pela insergao de tais questdes em sistemas amplos, seja pela explicitaga0 de seu contetido politico) propiciwvam o surgimento da Geografia moderna. Seu temario ja estava referen- dado, assim como estavam dadas as possibilidades légicas para sua formulago enquanto disciplina auténoma. Caberia ainda apontar um ultimo conjunto de formulagées que impulsionaram diretamente a irrupcdo da Geografia moderna ao trazer as ques- tes de seu temario para a ordem do dia do debate cientifico do século XIX: trata-se daquelas teses que veiculavam a proposta evolucionista, Tal conjunto foi gerado contemporaneamente ao proceso de sistematizagao da Geografiae, sem diivida, forneceu- Ihe argumentos e bases de sustentagio. As teorias evolucionistas davam um destaque fundamental as questdes que constituiam 0 temArio geografico (para se lembrar apenas um exemplo, pode-se mencionar a problemética da influéncia do meio sobre a evolugio dos organismos, expressa com clareza por Lamarck); além disso, apresentavam conceitos ¢ teotias que auxiliavam diretamente na ordenagao dese temério (pense-se no conceito de meio ou de organismo). Os prineipais autores do evolucionismo vaio aparecer com destaque nas obras dos formuladores pioneiros da sistemati zagho geogrifica; Lamarck, Haeckel e Darwin, entre outros, sao figuras presentes nas paginas de Humboldt e Ritter. A teoria da adaptagao dos organismos as condigdes externas, 0 conceito de associagio de elementos, a apresentagio do. desenvolvimento como estimulado pela diversidade ambiente, enfim toda a teori- zagho desenvolvida pelos evolucionistas apontava para um sis- tema de explicagio do mundo onde a problemética geografica aparecia num lugar centrale vital. A articulacdo dos elementos apresentados se constitui na reali zagao das condigdes intelectuais para o surgimento da Geografi moderna. Tais condigdes, que se configuram num ambiente cul: tural propicio e capaz de engendrar tal formulacdo, também se substantivam como uma face de processo de afirmagao des rela- ses capitalistas, qual seja, a da luta ideol6gica empreendida pelo pensamento burgués em busca de hegemonia politica. Observa- se que, no findar do século XVIII, a malha de condigdes mate- riais ¢ intelectuais estava suficientemente tecida para engendrar uma proposta de Geografia unitéria ¢ auténoma que buscasse uma explicagiio, indo além das nomenclaturas exaustivas e dos 24 relatos de viagens que imperavam sob este rétulo. N. Werneck Sodré, autor que aponta bem este processo, diz: “Com o alastra- ‘mento das relagbes capitalistas e correspondente declinio do me- dievalismo e com a revolugdo burguesa na Inglaterra e inicio do processo que a efetivardé na Franca nos fins do século XVIII, pode ser aceita a convengao do encerramento do longo periodo inicial, preliminar, preparatério da Geografia, sua pré-historia por assim dizer"® Na verdade, os pressupastos histricos necessérios para a eclo- sio da Geografia moderna representavam o ““pano de fundo” de tal proceso. Nao desembocavam, porém, em si, diretamente no imperativo de uma proposta de sistematizagdo. Eram condicio: nantes necessarios para seu surgimento, mas nao Ihe determina- vam diretamente a génese. Em suma, quer-se dizer que a sistema- tizagdo geogrifica nfo seria uma resultante mecinica da real zagao de seus pressupostos. Havia necessidade, para que tal oc resse, que existisse um impulso vital, para se pensar o temdi geografico na pratica social de algum povo, que tivesse realizado 08 pressupostos elencados (que houvesse participado do processo de sua realizagdo). Assim, aponta-se a necessidade de um esti- mulo social mais direto para a génese da Geografia moderna. Nesse plano, 0 proprio desenrolar-se da histéria dessa disciplina jf indica com uma clareza meridiana 0 caminho a ser trilhado pela investigagio. A génese do processo de sistematizacao da Geografia possui uma origem bem particularizada expressa numa nacionalidade bem especifica. Tal proceso foi obra do pensa- mento alemao. Humboldt e Ritter eram prussianos, assim como quase todos os principais geégrafos do século XIX. Por essa ra- Zio, o estimulo direto para a eclostio dessa disciplina deve ser b cado na particularidade histérica do desenvolvimento do capita- lismo na Alemanha. E apenas na anilise da especificidade desse pais que se podera apreender as razdes que levaram esta socie- dade a valorizar a reflexio sobre o temario geogrifico. FE essa anélise que se passa a expor no préximo item. 5 Sodré, N. W. — Introducdo a geografta. Geografia e ideologia, Vores Petrépolis, 197, p. 25. 25 A PARTICULARIDADE HISTORICA DO DESENVOLVIMENTO DO ‘CAPITALISMO NA ALEMANHA 0 processo de constituigio do Estado Nacional moderno, manha, apresentou, em relagio ao quadro curopeu ocidental, um itinerdrio bastante singular. Basta observar que tal proceso 86 se efetivou no iiltimo quartel do século passado, mais especi- ficamente a 18 de janeiro de 1871. Até entdo, a Alemanha restou como “o pais eternamente inacabado”.* Esse carater tardio, € toda a peculiaridade dele decorrente, do processo de unificagao nacional também implicou uma lentiddo com respeito ao desen- volvimento das relagdes capitalistas nesse pais. G. Lukées, numa expressio sintética, afirma: “O destino, a tragédia do povo ale- mio, consiste, falando em termos gerais, em haver chegado de- masiado tarde no processo de desenvolvimento da moderna bur- guesia"’” Este traco particularizador vai marcar profundamente todos os planos da historia da Alemanha, das relagdes econdmi- cas, passando pela organizacao politica, até as formas de pensa- mento. E nele inclusive que residem as determinagdes histéricas especificas explicativas do afloramento pioneiro do proceso de sistematizagao do pensamento geogrifico nesse pais. Para bem compreender a problematica da “‘miséria alema", deve-se retro- ceder bastante no tempo, ao processo de desmembramento do império carolingio e & subseqiiente formagao do Sacro Império Romano-Germanico. 0 Sacro Império Romano-Germanico, que se estabelece em 962 e que formalmente s6 é destrufdo em 1806 pela vitéria napo- leGnica, na verdade representava mais um compromisso confede- rativo de defesa dos valores da cristandade frente as ameagas das hordas asiaticas ¢ do Ista, do que uma unidade nacional fede- rada. Sua estruturagao dava-se pela agregacao de unidades poli- ticas bastante autonomizadas e diversificadas, tendo por princi- Pal elemento de aglutinagao ¢ legitimagao da autoridade central a “igreja imperial”. Assim, a autoridade real nao se efetivava ple- namente, aparecendo, como o foi muitas vezes, mais honorifica (diplomatica, com a coroa sendo ocupada por um rei estrangeiro que atuava como mediador nas disputas internas) do que subs- 6 Koller, L. — Contribuicin a rortu, Buenos Aires, 1974, p. 406 Lukas, G.— El asata ala razén, Grijaltvo, Barcelona, 1976, p. 29 Astoria dela socieded burguese, Amor 26 tantiva. A perda da chancela religiosa, a partir das disputas dos séculos XI ¢ XII, vem reforgar ainda mais a fragilidade do poder central. Segundo Ganshoff: ‘a ‘questo das investiduras’ reduziu, consideravelmente a autoridade do rei sobre os bispos e compro: ‘meteu gravemente a prépria estrutura da igreja imperial; quando, aproveitando-se desta mesma questdo das investiduras, os mar- ‘queses © os condes se transformaram quase completamente em principes auténomos, conseryando muito pouco do seu cardter de funciondrios puiblicos, foi necessirio encontrar outros elementos de apoio da autoridade real". Tais elementos foram buscados num reforgo significativo da estrutura institucional feudal, num ‘momento em que noutras regides da Europa o processo de afir- magio dos Estados nacionais se desenvolvia num sentido inverso, isto 6, de reforgo do poder central. Essa situaco, ainda segundo Ganshoff, tornou “difictlima, senao impossivel, & coroa a consti- ico de um territério proprio importante. A Alemanha feuda- lizava-se inteiramente; sabe-se que a realeza, com os Hohienstau- fen € os seus sucessores, nao conseguiu manter a seu servigo as instituigdes piblicas desta maneira transformadas: dai resulta- ram os principados territoriais donde sairam os estados alemaes da época moderna e contemporanea e, especialmente, os princi- pais dentre eles: Austria, Prissia, Baviera, etc." E dentro dessa situacdo descrita que a Alemanha vai vivenciar © periodo da expansdo mercantil da Renascenga e, principal- mente, da Reforma: desmembrada em unidades politicas pratica- mente auténomas, ¢ articuladas apenas por lagos, ténues e for- mais. L. Febvre, em seu estudo classico sobre Lutero, escreve: “A Alemanha de 1517: terras férteis, recursos materiais poderosos, cidades orgulhosas e espléndidas, trabalho por todas as partes, iniciativa, riquezas; porém nenhuma unidade, nem moral nem politica’’; e conclui: “A Alemanha era um pafs sem unidade: isto €0 essencial’”” Em 1532, quando o imperador Carlos V promulga seu cédigo penal conhecido como “Carolina”, tentando padroni- Zar as legislagdes absolutamente auténomas dos principados, a Alemanha conta com mais de trezentos Estados-membros. A di- versidade entre estes membros é também considerdvel: principa- 8 Ganshot, F. L. — Que é 0 feudalismo?, Evropa-América, Listoa, 1968, pp. 214 218, 9 Febvre, L. — Martin Lucero, Fondo de Cultura Econémi 1986, pp. 95.9. México, 27 dos, feudos eclesiasticos, reinos, cidades livres, ete. Tal diversi- dade incide no s6 no tipo de organizagao politica de cada uni- dade, mas também em seu grau de identidade, na sua extensio territorial ¢ no seu poderio militar. Além disso, essas unidades se inter-relacionam através de acordos (associagdes, ordens e ligas) que seccionam a unidade maior. Enfim, € nesse quadro que a Alemanha vai vivenciar a expansio mercantil, a Reforma ¢ as, guerras camponesas. Quanto ao primeiro ponto — o ineremento mercantil que flo- resce por quase toda a Europa a partir do século XIV — observa se que a Alemanha, ou, melhor dizendo, algumas regiées alemas, participam vivamente desse processo: é 0 caso das cidades do nor- teda Alemanha, que através da Hansa dominam 0 comércio do mar do Norte do Baltico, constituindo-se em uma unidade poli- tica através da liga hansedtica; é também o caso de muitas cida- des do vale do Reno, assim como de todas aquelas que se consti tufam em entroncamentos de rotas comerciais. Tais cidades, atra- vés do pagamento de tributos ou de direitos ou favores adquiridos (no que pesam significativamente seus efetivos militares), apare- cem no cendrio politico como cidades livres, portadoras de auto- nomia. L. Febvre faz uma arguta andlise das conseqiiéncias de tal estatuto. Coloca ele em destaque, em primeiro Tugar, 0 fato de inexistir uma capital ou uma cidade que se sobressaia no territ6- rio alemao: ao contrério, existe uma profusio de centros com a ‘mesma importdncia e densidade, e mais, desagregados e muitas vezes competitivos entre si, Nas palavras de Febvre: “Vinte capi- tais, cada uma com suas proprias instituigdes, suas industrias, suas artes, seu costume, seu espirito”, e adiante: “As cidades ale- mas so egofsmos furiosos em Iuta sem quartel contra outros egoismos”.!° Tal fato tem implicagdes politicas extremamente amplas para o desdobramento posterior da hist6ria alema, pois esse localismo impediu a formacao de uma vigorosa burguesia, que se apresentasse & agio politica como classe nacional. Conti- nuando na avaliagdo de Febvre, hé outro ponto bastante impor- tante ali enfocado: trata-se da disparidade entre a realidade “mo- derna” vivida por esses centros comerciais € 0 “‘atraso” feudal predominante na vida agréria dos territ6rios que os circundam, Febvre chega a definir a vida citadina como “civilizagdes de 04- tal a falta de conexao existente entre os dois mundos. Nas 29 Idem — Ibidem, pp. 98 € 101 suas palavras: ““As cidades (...) so o orgulho da Alemanha. E também sua debilidade. Situadas em meio aos dominios princi- pescos, perfuram-nos, desgarram-nos, limitam sua expansao, im- pedem-nos de se constituir fortemente. Podem estender-se clas proprias? Nao. Federar-se? Tampouco. Em volta de suas mura- Ihas, o pais todo: campos submetidos a um direito, cuja negagzo €0 direito da cidade (...) Estas cidades so prisioneiras, conde- nadas ao isolamento, acossadas pelos principes e afastadas umas das outras”."" Vé-se que o desenvolvimento urbano, que noutros paises europeus representou nesse periodo um elemento impul- sionador da unidade nacional, no caso alemao apenas complica mais 0 quadro fragmentirio, Como observa Engels, a presenga urbana atuava como elemento impeditivo da sedimentacao de uma federagio de principes (pois, como visto, também contava, ‘com forcas militares); “Essa democracia de nobres era impossivel na Alemanha do século XVI. Impossivel porque j4 existiam na Alemanha grandes e poderosas cidades" 2 Os dois outros movimentos sociais do século XVI, que influl- ram decisivamente no destino da Alemanha, foram a Reforma e as guerras camponesas. O primeiro deles, de contestagdo 4 autc- ridade do papa, e, conseqiientemente, da Igreja catdlica, teve n> territério alemao um dos seus mais importantes focos de difusao = ‘num alemao um de seus mais destacados formuladores: Martinho Lutero. A guerra camponesa, movimento mais amplo, de abran- géncia quase continental, se bem que temporalmente descontinuo de pais a pais, na verdade foi na Alemanha 0 desdobramento dical das propostas da Reforma; para usar a expresso de Engels: “O raio que Lutero langara caiu no barril de pélvora. O povo alemao se pos em movimento”. Nao cabe aqui penetrar na andl desses movimentos (a qual pode ser encontrada na bibliografia citada), apenas ressaltar suas nuancas e resultantes que interes- sam ao desenvolvimento posterior da Alemanha. Nesse sentido, a conclusdo é a mesma: tanto a Reforma quanto as guerras campo- nesas serviram para sedimentar a fragmentagao alema. A pri- meira atua nesse sentido por semear a discdrdia no seio dos domi- nantes alemies, & medida que os virios Estados posicionam-se ré ou contra as idéias de Lutero, num processo que culmina com. 4 guerra entre os principes “protestants” e Carlos V, imperador 1 Idem — Thidem, pp. 99 ¢ 100. 1 Engels, F. — As guerras camponesas na Alemanka, Grijalbo, Sto Pau. 16, 1977, 71 % do Sacro-Império Romano-Germanico. A “paz, de Augsburgo’ que poem fim ao conilito em 1555, implicou um fortalecimento da indepenééncia dos principes que, além de assegurarem a pro- priedade das terras secularizadas da Igreja, conseguem a prerro- gativa da liberdade de culto. Nesse processo de luta, alguns Es tados vao afirmar-se, ou mesmo formar-se — como é o caso da Prdssia, que é declarada reino hereditario por Alberto de Bran- Genburgo em 1525, grio-mesire da Ordem Teut6nica (formada nas Cruzadas), que aderiu ao luteranismo ¢ apossou-se dos bens da ordem. Assim, da Reforma emergem os sujeitos que domina- lio a politica alema no futuro. “Também as guerras camponesas atuaram nesse sentido de bombardear a unidade alema e reforgar relativamente alguns de seus membros. Como bem aponta Engels: “O principal efeito das guerras camponesas foi agugar ¢ consolidar a divisio politica da ‘Alemanha, esta mesma divisio que havia sido a causa de seu fra- casso”.!? Entretanto, como nao deixa de mostrar o autor, na dis- ‘cussio desse movimento a questao das classes sociais vem & tona com um peso determinante. Enquanto a Reforma pode ser inse- tida num amplo proceso de arranjos ¢ reajustes das classes domi. nantes deste periodo de transigao (ainda marcadamente ligadas & ordem feudal, a saber, nobreza e clero), as guerras eamponesas inserem-se num movimento de ascensio e afirmagao das novas relagies mercantis. Assim, este movimento, com todas as media~ des que ele implicou, expunha-se mais claramente como um em- bate de classes, num sentido preparatério do estabelecimento de relagdes burguesas. Como jé foi apontado, porém, a burguesia alema era débil, imersa em seus interesses € horizontes locais, sem articulagao nacional, vitima, ela mesma, da fragmentacdo © da dispers2o. Engels vai creditar a esta debilidade, que se traduz em vacilacio na luta, uma das causas da derrota da guerra cam~ ponesa. Fie vai ainda mostrar que esta disperso se fez presente no proprio desentrosamento, pratico e de propésitos, entre as fi- Iciras populares. Engels também aponta, entre as causas da der rota, a fala de um centro geogrfico que representasse 0 poder real, cuja tomada desmembraria 0 conjunto do império (como foi ‘caso de Paris na Revolugéo Francesa). De todo modo, 0s efeitos da derrota foram por demais claros e significativos: Em primeiro lugar, o fortalecimento dos principes que comandaram a reagio, e que assim, além da vit6ria frente a Igreja, contabilizam uma vi- Adem — Mbidem, p. 114, t6ria frente as forgas progressistas (classes populares e burgue- sia). Em segundo lugar, o explicitar da capitulagao da burguesia, que vai enterrar definitivamente os ideais progressistas ¢ a possi- bilidade mesmo de uma real revolucio burguesa na Alemanha. Lukécs considera, por essa razdo, a derrota das guerras campo- nesas 0 “‘ponto de inflexdo da historia alema”. Essa capitulacao da burguesia acompanhar4 decisivamente 0 futuro politico da ‘Alemanha, marcando, de forma profunda, a via do desenvolvi- mento das relagdes capitalistas nesse pais. Em terceiro lugar, no ‘que toca as classes populares, a derrota dos eamponeses implicou um revigoramento das relagdes de servidao, que da félego para tais relagdes persistirem ainda por séculos em muitas re alemas. ‘Assim, em termos genéricos, tanto 0 desenvolvimento comer- cial e urbano quanto a Reforma e as guerras camponesas, que em outros paises da Europa atuaram no sentido da consolidagao do poder central e do Estado nacional, na Alemanha reforcaram a fragmentacao e a aristocracia feudal, revigorando relagdes sociais tipicas do feudalismo, como a servidao e a vassalagem. Tem-se aqui o trago particularizador da historia alema: os elementos por- tadores da nova ordenagao social desenvolvem-se sem eliminar, antes fortalecendo, estruturas préprias da antiga ordem. Nas pa- lavras de Kofler: “Isto significa que na Alemanha as forcas feu- dais conservam dentro da sociedade uma preponderancia muito maior que em qualquer outra parte; que sua vontade e espirito penetram em todos os intersticios da vida nacional, estabelecem um monopélio exclusivo sobre 0 Estado, e toleram a economia burguesa unicamente enquanto podem usé-la como instrumento do regime politico feudal”. Lukées apontou com clareza a relagio entre tal situacao e 0 destino das guerras camponesas, ao dizer: “A revolugio camponesa pretendeu fazer 0 que o Império era incapaz de realizar: a unificagdo da Alemanha, a liquidagio das tendéncias centrifugas, absolutistas-feudais, cada vez mais acen- tuadas. E a derrota dos camponeses acabou por revigorar, toda- via, mais ainda, estas forgas. O particularismo puramente feudal foi substituido’ por um feudalismo modernizado: os pequenos principes, como vencedores e usufrutudrios das lutas de classes, foram os encarregados de estabilizar o desmembramento da Ale- manha. E assim, como consegineia da derrota da primeira grande onda revolucionaria (da Reforma e da guerra dos campo- neses), do mesmo modo que a Italia por outras razdes, a Alema- ha viu-se convertida em um impotente conglomerado de peque- a nos Estados formalmente independentes e, como tal, em objeto de disputa da politica do mundo capitalista nesse tempo nascente, das grandes monarquias absolutas”. Engels, enfocando mais diretamente a questo do desenvolvimento mercantil, também chega ao mesmo veredicto: “Enquanto que na Franga ¢ na Ingla- terra o desenvolvimento do comércio e da industria acarretou a criagio de interesses gerais no pais inteiro, e com isso, a centrali- zacao politica, 2 Alemanha nao passou do agrupamento de inte- resses por provincias, em torno de centros puramente locais, 0 que trouxe consigo a fragmentagao politica que logo se estabili zou pela exclusio da Alemanha do comércio mundial. A medida que decaia o Império puramente feudal, decompunha-se a uniao dos paises e os grandes vassalos transformavam-se em principes quase independentes. As cidades livres e os cavaleiros do Império formavam aliangas e guerreavam entre si, ou contra os principes ¢ oimperador. O poder imperial comecou a duvidar de sua propria missio e vacilava entre os diferentes elementos constitutivos do Império, perdendo paulatinamente toda a sua autoridade”’. E nese quadro de dispersio que os Estados alemies vao viven- ciar os séculos seguintes, cada um trilhando caminhos proprios. ‘AS cidades comerciais vo sentir um refluxo de sua prosperidade, ‘com o movimento mercantil europeu migrando significativamente para a érbita do Mediterraneo. A propria auséncia de um Estado central forte, que defendesse seus interesses, é um dos elementos de explicagdo do decréscimo do comércio alemao, num universo mercantil europeu basicamente monopolizado pelas coroas, atra- vés das companhias nacionais. Também o particularismo, im- pondo barreiras alfandegarias internas entre os principados, atuou impedindo 0 livre fluxo das mercadorias. Nos Estados alemaes orientais, aqueles em que a estrutura feudal permanece- mais intocada, a atividade econdmica seguiu um caminho diferente. Estes Estados vaio conhecer uma prosperidade econdmica advinda da mercantilizagao da producdo agricola. Tais regides passam a desempenhar, no quadro europeu, uma fun¢io complementar de ‘abastecimento alimenticio dos centros mais desenvolvidos, que se teforca conforme vai avancando a atividade industrial nestes cen- tros. Vao se constituir assim em celeiros da Europa, areas produ- toras de artigos primarios. Isso vai redefinir a estrutura da produ- do agrdria, que, em termos de destinacdo, passa a assumir uma. 14 Koller, L. — Ob. cit, p. 408; Lukées, G.— Ef asalto la razén, ob. cit., p. e Engels, F. — Ob. cit. p. 26. 32 finatidade mercantil, 0 que implica uma insergao dessas regides no coméreio mundial, rompendo com a marginalizagdo em que até entdo se encontravam. Entretanto, se em termos externos ocorreu essa “moderniza¢ao”, em termos da estruturagao interna das relagdes de producfo assistiu-se a uma recrudescéncia ¢e si- tuagdes tipicas do feudalismo com a afirmagio do processo conhe- cido como “‘a segunda servidio”," isto é, as relagdes de trabalho servis, que ja se encontravam num proceso de dissolugao (com 0 trabalhador agricola se aproximando de uma tipica situagao cam- ponesa), revigoram-se em face do afa comercial. A propriedade feudal manteve-se intacta, apenas agora produzindo para o mer- cado. ‘Vé-se a conciliagao de uma produgio em moldes capitalistas embasada em relagdes de produgdo pré-capitalistas: agricultura comercial, latifiindio e servidao. Kofler, discutindo a evolucdo da Priissia que, juntamente com a Polénia, seriam exemplos claros da situacao descrita, afirma: "“Apesar de sua atividade comercial, a nobreza prussiana seguiu sendo uma auténtica nobreza feudal primitiva, segundo um estilo essencialmente medieval, ¢ 0 foi de maneira tanto mais pura, quanto no campo prussiano a servidio eas fainas obrigatérias chegaram tarde a seu apogeu € persisti- ram em formas diversas até meados do século XIX”. Assim, em tais regides, principalmente do leste alemao, observa-se de forma meridiana o desenvolvimento de um proceso de “modernizagao conservadora", para se utilizar a expresso de Barrington-Moore, que estabelece um “feudalismo modernizado” cujo assentamento se prolongou até o século XIX. Restaria ainda mencionar, dentro do quadro de diversidade dos caminhos de evolugao historica per- corridos pelos vérios Estados alemies, aqueles cuja situagdo geo- grafica tornou mais permedveis as influéncias do desenvolvimento das nagdes européias ocidentais. Seria 0 caso, por exempio, da Rendnia, cuja proximidade com a Franga, 0s Paises-Baixos ¢ a Suiga, implicou o estabelecimento de lacos, no s6 econdmicos ‘mas principaimente politicos e culturais, com esses paises. Poder- se-ia dizer que tais regides participaram mais vivamente da con- lemporaneidade da vanguarda européia do periodo. A atividade mineradora e a relativa industrializagio a ela subjacente seriam também elementos explicativos dessa situagdo particular no con- 1S Ver: Dobb, M. — Evolugdo do capitaliomo, Zahar, Rio de Janeiro, 1974, pp. S6e 57, Ver também Kofler, L. — Ob. cit. p. 409. 1 Kofler, L. ~ Ob. cit., p11 texto alemao; assim como a fungao de “‘regiio-relée”” no comércio com o ocidente. Enfim, a diversidade das situagdes vivenciadas pelos diferentes Estados germAnicos era bastante acentuada. Tal diversidade reforcava a fragmentagao nacional. E na situagio deserita que a Alemanha vai vivenciar a Revo- lugdo Francesa e 0 periodo napolednico. Tais acontecimentos, ‘como se sabe, tiveram repercussdes continentais e, no caso ale- mao, fizeram aflorar as diferengas hist6ricas acima mencionadas. A reagio dos alemaes, frente A Revolucgio Francesa, variou bas- tante regionalmente, em fungo dos distintos interesses e poderio das classes em cada membro do Império, que formalmente ainda subsistia. A burguesia da Rendnia e da Vestfélia aclamou com entusiasmo as transformagées politicas que ocorriam na Franca, assim como a intelectualidade progressista em geral. Lukécs fala que “importantes setores da vanguarda da intelectualidade bur- guesa” assumiram essa postura, citando as figuras de Kant, Her- der, Burger, Hegel e Holderlin, e completa dizendo que “certos testemunhos da époea, como, por exemplo, os relatos de viagem de Goethe, demonstram que esse entusiasmo nao se limitava, de ‘modo algum, aos representantes mais destacados e conhecidos da burguesia, e sim que suas raizes penetravam em amplos setores dessa classe”. Entretanto, para a nobreza agréria das regides orientais, e, principalmente, para as monarquias absolutas mais consolidadas e poderosas (Pnissia e Austria), 0 movimento fran- és foi visto como um eminente perigo que colocava em risco toda a ordem social (dominada por resquicios feudais) em quese assen- tava o poder politico nessas regides. Tanto que esses Estados vo se unir na repressao aos possiveis desdobramentos da Revolugao Francesa em territérios alemaes. Nesse antagonismo, a fragili- dade politica dos setores burgueses mostrou-se, mais uma vez, evidente: como observa Lukécs: “o movimento democratico revo- luciondrio no péde se estender sequer a parte mais desenvolvida da Alemanha, ou seja, ao Ocidente. Quando Mogiincia aderiu & Repiblica francesa, encontrou-se completamente isolada e caiu nas maos do exército austro-prussiano, sem que sua queda desper- tasse 0 menor eco no resto da Alemanha"."” Essa situagio tornou- se ainda mais clara, quanto a diferenga de posicionamento assim 1 Lukées, G. — ET asalto a fa razén, ob. cit. p. 34. O levante de Mo- iincia foi comandado por Georg Forster, filho de J. R. Forster, autores que. como seri visto, possuem relagBes com a Geografia e com os gedgrafos, prine palmente com Humboldt 34 como quanto ao poderio de cada posi¢ao, nos desdobramentos seguintes do perfodo napoleénico. Antes de iniciar essa discussio é importante localizar-se clara- mente 0 papel histérico do perfodo napolednico. Napoledo Bona- parte centraliza © poder, que se havia diluide no processo revo- lucionério, objetivando um programa de ordenagao do Estado e da sociedade no sentido dos interesses do dominio das relagdes alistas. De certo modo, representou a implementagao dos frutos da vitéria de 1789, por exemplo tra adequacao do aparetho de Estado as novas circunstancias ¢ fungdes. Assim, 0 periodo napolednico manifesta um momento de organizacdo da sociedade da burguesia recém-instalada no poder. Nas palavras de Marx: “Napoledo, por seu lado, criou, na Franca, as con quais ndo seria possivel desenvolver a livre concorréncia, explorar a propriedade territorial dividida e utilizar as foreas produtivas industriais da na¢ao que tinham sido libertadas; além das frontei- ras da Franga ele varreu por toda parte as instalagdes feudais, 4 medida que isso era necessério para dar a sociedade burguesa da Franga um ambiente adequado e atual no continente eu- ropeu””* PVe-se que o projeto napelefinico se antagonizava, em esséncia, com a estrutura politica dominante nos Estados alemaes mais poderosos militarmente, exatamente aqueles onde as sobrevi- véncias da ordem feudal eram mais vigorosas. Daf, a inevitabili- dade do confronto militar que oporia a Franca a Prassia © a Aus- tria. Entretanto, como observa Lukées, “Napoledo logrou en- contrar partidarios e aliados no ocidente ¢ no sul da Alemanha, € em parte também na Alemanha central (Saxdnia)". Com essa galvanizagio, Bonaparte conseguiu enterrar definitivamente a ‘ténue alianga formal do Sacro Império, pois estabeleceu um novo lago exclusivo entre seus aliados: a “Confederacao do Reno”. Nessa unidade, Napoledo implementava reformas objetivas que acabam por varrer totalmente os velhos resquicios feudais, ¢ que ‘yao ser um dos alicerces posteriores dos movimentos unicionistas. E preciso assinalar, entretanto, como o faz Hobsbawn, que as guerras napolednicas “produziram mudangas no 6 através das conquistas francesas, mas também pela reagio contra clas”."* 18 Marx, K.— Dezoito Brumério de Luis Bonaparte. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1974, p. 18 19 Hobsbawn, E, — Las revoluciones burguesas, Guadarrama, Madsi, 1976, pp. 153 167, as Esse autor analisa esse processo de “reforma por reacdo" na Prussia, que em 1806 é fragorosamente derrotada por Napoledo (sofrendo grande fragmentagio e perda territorial) e que, em 1813, retorna a guerra. Lukées, apoiando-se em Engels, também sustenta que esse Estado vai conhecer uma “transformasaio do absolutismo prussiano (...) em uma monarquia bonapartista”.”” No bojo dessas transformagées, a tese da necessidade da unifi- cagao nacional também vai se reforgar no campo da reagdo ao avanco francés. Nas regides antinapolednicas comegou a tomar corpo nesse periodo um movimento romantico nacionalista, que tentava na idealizagdo dos “tragos alemaes” construir uma iden- tidade nacional que se opusesse & hegemonia francesa. Herder € Fichte, entre outros, poderiam ser definidos como eminentes idedlogos de tal movimento. Lukécs observa que, mesmo entre “os idedlogos progressistas”, no aparecem grandes simpatias pela “unificagtio napolednica da Alemanha, pela liquidagio dos vestigios feudais a cargo da Franga © periodo napolednico representow para a Alemanha uma explicitagao de sua real situagao: as diversidades vieram a tona, 0 Império foi rompido, na pratica, em sua unidade formal, a dis- perso expressou-se no real com as coligagdes excludentes © anta~ gonizadas no conflito. Os Estados-membros da Confederacao do Reno conhecem um desenvolvimento social e econdmico que esta- belece relagies tipicas capitalistas. A Prissia moderniza-se nou- tro sentido, acabando com 0 monopélio das corporacdes ¢ libe- rando o comércio, porém sem conhecer uma alteragio substancial na estrutura de poder; despética, dominada pela aristocracia Junker. § Austria toma consciéneia clara de seus interesses extra ‘germinicos. Assim, ocorrem mudangas que, na verdade, vio acentuar as diferengas; nas palavras de Lukées: “como o poder de Napoledo nao bastava para converter toda a Alemanha numa dependéneia do Império francés, a Gnica coise que com ele se conseguiu foi acentuar e aprofundar ainda mais o desmembra- mento nacional’. Mesmo que por vias dispares, porém, a idéia da unidade nacional comega, pela primeira vez, a aparecer com cla- reza na historia moderna da Alemanha. 2 Lukes, G. — Realistas alemanes del siglo XIX, Grijatbo, Barcelona 1970, p. 8, O terme bomaparcista € ull por Max uw Desviey Brumiris de Luis Bonaparte, nto implicanda um domiaio militar francis sobre a Prissia. O ‘uso desse termo, para denominar uma forma especifica de dominagao avtor tiria, fol também consagrada por M. Weber; ver: Ensaios de sociologia, Zaha, Rio de Janeiro, 1974 36 Com _a derrota definitiva de Napoledo em 1815, a historia alema vé revigorada sua tOnica conciliadora e autoritaria, com reforgo daquele processo que Lénin denominou de “via junker’ imento do capitalismo.2! O malogro, em termos de manutengio do dominio politico, da empresa napoledniea repre- sentou, numa eseala continental, um avango das forgas da rea- io; basta pensar na restauragdo do governo dos Bourbons na Franga, que manifestou um claro recuo da propria burguesia frente aos ideais demoeréiticos de 1789. Qbserve-se que tal pro- cesso ocorren mesmo na Franca, pais em que a burguesia havia sido “guia intelectual do periodo da Ilustragao militante”, em que as relagdes de produgio modernas estavam plenamente sedi- mentadas, se bem que, por isso, “a Restauracdo se vé forcada economicamente a aceitar socialmente 0 capitalismo”.* Se tal ‘ocorreu num pais de vanguarda, o que dizer da Alemanha, onde ‘0 resquicios feudais eram ainda muito presentes? Na verdade, os Estados alemdes mais comprometidos com uma via progressista de desenvolvimento do capitalismo, os integrantes da Confede- ragio do Reno, haviam sido derrotados. A coalizao que derru bara Napoledo tinha carter fundamentalmente aristocratico, realizou um reordenamento politico da Europa em moldes con- soantes com os interesses das casas reais. No que toca aos Estados alemaes, a Prissia e a Austria saem fortalecidas do conflito. Os interesses prussianos foram defendidos pela Inglaterra temerosa das pretens6es francesas sobre territérios alemaes. A Prissia re- cebe parte da Renania, parte substancial da Poldnia e da Sa- xnia, emergindo assim ao lado da Austria como uma poténcia ica no contexto europeu. Existiu, assim, uma efetiva concen. tragéo dos Estados alemies: das 234 unidades politicas agregadas no Sacro Império em 1797, passou-se a menos de quarenta no periodo pés-napolesnico. Além desse fortalecimento das grandes monarquias, deve-se mencionar que a restauragao implicou um retraimento ainda maior da ja politicamente débil burguesia ale- ma. Como comenta Hobsbawn: “Em muitas revolugdes bur- guesas subseqiientes [a Revolucdo Francesa], os liberais mode- rados foram obrigados a retroceder ou a pasar ao campo conser- vador apenas iniciados os embates. Por isso, no século XIX en- contramos (sobretudo na Alemanha) que esses liberais se sentem 21 Ver: Lenin, W. 1. U. — Etprogeama agrario dela socialdemocracia en {a primera revoluciin ruse de 1905-7, Progreso, Moscou. .d., PP. 27 € segs. 2 Lukes, G, — La novela histérica, Bra, México, 1960, pp. 17 © 25, pouco inclinados a iniciar revolugdes por temer suas incalculéveis conseqiiéncias, e preferem chegar a um compromisso com 0 rei € a aristocracia’. Assim, as possibilidades de uma real revolugdo burguesa na Alemanha se esvanecem. Por outro lado, porém, a idéia da unificagZo havia ganhado corpo, tanto nos setores pro- gressistas, que viam ma unidade nacional o caminho para a reali zagdo das aspiragdes democraticas, quanto nos préprios setores conservadores, animadas por propésitos imperiais. _ Eom meio # esse qoadro que a sorte da Alemanha, nas pré. ximas décadas, € decidida no Congreso de Viena, em 1815. A toda a intrincada trama da diplomacia européia vem a tona: na verdade, todas as grandes monarquias se temem, e, em funcdo disso, a Alematha permanecera desmembrada. A Prissia € con- templada com varios territ6rios (entre eles a rica regizio de Ruhr) porém vé frustrada sua tentativa de capitanear a unificagao ale- ma. A proposte prussiana que é assumida com reservas pela pro: pria aristocracia junker, foi derrubada pelo ministro austriaco Metternich. A Austria, cujas anexagées se voltaram para terri- trios nao germanicos (para os Balcas ¢ a Itélia especificamente) € que se estruturou como um Império a parte, nao interessavam a unificagao e muito menos as pretensdes hegeménicas da Prussia E a proposta confederativa austriaca que sai vitoriosa no con- reso, com o estabelecimento da ‘Confederagao Germanica”, congregando trinta e nove Estados soberanos como membros. Na verdade, os lagos de unidade continuavam bastante ténues e for- mais, pois cada membro mantinha sua identidade propria e uma total autonomia juridica de organizagao interna. Assim, alguns Estados da Alenanha do sul (Baviera, Bade Wurtemberg, entre outros) convocam assembléias € promulgam constituigdes; ou: tros, como a Prissia ea Austria, mantém a monarquia absoluta: outros ainda, como os principades do norte (como Handver, Saxe, entre outros), tentam implantar situagdes intermediérias. Dessa maneira, a unidade nacional & absolutamente formal: como observa Duroselle: "O Ato de Confederagao, de 10 de junho de 1815, que criou 0 ‘Deutscher Bund’, nio era em nada uma constitui¢do, pois o seu 6rgao tinico, a Dieta Germanica, nao era eleito mas composto de plenipotenciarios"” Observa-se que 0 agrupar-se na confederacdo nao implicava qualquer aproximagao efetiva entre as condigdes politicas, eco- > Duroc, J. B — A Europa de 1815 cos nowos dis, Pion Paulo, 1976, p. 9 “ron Prone, Ste 38 ndmicas ¢ sociais dos paises-membros, que, ao contrario, prosse~ guiam em suas linhas evolutivas particulares. Nas palavras de Hobsbawn: “Austria, Prassia e a grei dos pequenos Estados ale- ‘mies espiavam-se uns aos outros dentro da Confederacao Germé- niea, ainda que a prioridade da Austria fosse reconhecida. A mis- sho mais importante da Confederacdo era manter os pequenos Estados fora da érbita francesa dentro da qual tendiam a gra- vitar’. A diversidade existente era significativa, tanto no que diz respeito as idéias politicas, quanto no que toca as relagdes econd- micas. Em termos de politica, conviviam dentro da confederagao desde a vanguarda radical da burguesia que coloca K, Marx como editor da Gazeta Renana, até a aristocracia junker gestora de uma politica absolutista, policial e semifeudal. Essa diferen- ciacdo possuia expressio regional, mas, no geral, como observa Hobsbawn, Na Alemanha nenhum Estado de importancia dei- xava de sentir hostilidade para com o liberalismo”. Assim, os le- vantes liberalizantes sao todos espacialmente circunscritos, ¢ fa- cilmente reprimidos pelas forgas da teac3o (assim ocorreu em 1820 e 1832). Em termos econdmicos, convivem atividades indus- triais e relagées servis, também se manifestando essa distingao em uma base regional. Entretanto, vai-se forjando um dinamismo maior no comércio interno, processo que se desencadeara a partir do bloqueio continental napolednico. Enfim, é nessa situacao que ‘2 Alemanha transitou a primeira metade do século XIX: desmem- brada e sofrendo a disputa de hegemonia entre a Austria e a Pris- sia. Em tal disputa, este dltimo Estado toma a dignteira ao efe- tivar uma unido aduaneira, a ““Zollverein”, em 1834, que excluia os austriacos. Essa unio foi, sem divida, um passo no sentido da unificagdo, pois representava o fim dos entraves & circulagdo in- tema e, conseqiientemente, o estreitamento dos lagos comerciais, entre os Estados-membros. Sobre esse processo, afirma Lukécs “objetivamente assiste-se a um proceso de ineorporagio da Ale manha ao capitalismo, com um lento, porém inevitével, cresci- mento da unificag’o aduaneira, base econdmica da unidade alema”.* ‘A vaga revolucionaria européia de 1848 vai delinear com con: tornos nitidos as possiveis vias de efetivagdo do processo de unifi cacao nacional da Alemanha. Nesse ano, assistiu-se em toda Eu- ropa a levantes populares de inspiragao democratiea, que tiverar: nas lutas travadas em Paris sua expressao de vanguarda. Cabe 1 Lukics, G. — Realistas alemanes del siglo XIX, ob. cit. B. 6. 39 avaliar, mesmo que'em linhas gerais, 0 significado de tal movi mento. Pode-se dizer, de forma sintética, que as insurreigdes po- pulares de 1848 representam o fim do “periodo herdico” da bur- gucsia, isto 6, aquele em que essa classe se apresentava na cena politiéa como revolucioniria, propondo um projeto hegeménico para a sociedade. Inicia-se ai uma fase defensiva dessa classe, que passa a lutar pelo seu dominio, ja estabelecido no plano econd- mico pela plena maturacin das relagies capitalistas, Nas palavras de Lukées: ‘As batalhas de junho do proletariado parisiense pro- duziram uma importante modificagao na situagao da burguesia, uma extraordindria aceleragio do seu processo interno de modi- ficagdo orientado para a transformagao da democracia revoluci naria em um liberalismo comprometido”; num outro trabalho este mesmo autor conclui: “A antiga democracia burguesa peri- clita e se desgasta continuamente depois de 1848 (...) 0 libera- lismo se transforma em um liberalismo nacional de cardter con- servador”’. Assim, esse ano pode ser apontado como um marco na histéria da sociedade burguesa, pois representa a explicitagao do contetido da luta de classes no modo de producao capitalista (En- gels fala na “primeira grande batatha entre 0 proletariado e a burguesia”)* sua plena maturacdo pelo aparecimento em cena de sua negagao: o proletariado organizado enquanto “classe para si”. Em todos os pontos em que eclodiu, a insurreigdo foi derro- tada. Como diz Hobsbawn, “as revolugdes de 1848 surgiram © quebraram-se como uma grande onda", porém deixam atrds de si uma realidade renovada pela afirmago das forgas politicas da sociedade moderna. A propria derrota era reveladora, como observou Marx: “Ao transformar a sua sepultura em bergo da Repiblica burguesa, o proletariado obrigara esta, ao mesmo tempo, a manifestar-se na sua forma pura como Estado, cujo fim confessado é eternizar a dominagto do capital e a escravidao do trabalho". A vaga revolucionéria curopéia de 1848 vai manifestar-se em varios pontos da Confederagao Germanica: no Saxe, na Baviera, 25 Idem — La novela histOrica, ob. cit., p. 207: Existencialismo ow mar- -xismo, LECH, Sao Paulo, 1979, p. 33 e Engels, F. — “Profiicio & edigao inglesa ‘de 1985 do Manifesto comunista”, em Marx, K, e Engels, F. — Cartes loss {fieas e outros esertos, Grijalbo, Sto Paulo, 1977, p. 73. 28 ‘Hobsbawn, E. — A era do capital, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977, pide Marx, K.— As lutas de classe na Franca, em Marx, K. © Engels, F. — ‘Teuos, vol. 3, Ed, Sociais, S20 Paulo, p. 131 40 e sobretudo em Viena ¢ Berlim, onde ocorrem significativos le- Vantes, Também aqui as insurteigdes sio derrotadas, apesar d= Rlgumas conquistas parciais como a promulgagdo da constituicao austriaca elaborada pela assembléia, em substituigdo a outorgada pelo imperador. As particulares condigSes do desenvolvimento Eas relagaes capitalistas na Alemanha vao redundar em que de- terminadas conseqiiéncias ocorram aqui com vigor impar. Em primeiro lugar, a capitulagao da burguesia frente a seu proprio Joedrio atinge proporgio descomunal, se bem que consoante com sua mencionada debilidade politica. Como afirma Lukacs: “O Fracasso da Revolugio de 1848 amortiza a luta da burguesia em prol de uma revolucdo democratica, quer dizer, de uma radical Gemocratizagao da Alemanha; ou mais, poder-se-ia inclusive di yer que tal luta desaparece”. O temor frente As agdes populares aproxima os setores burgueses da proposta autoritaria aristocr’- tica, e nesse processo esta classe abre mao de suas bandeiras clis- sicas e do proprio comando da politica. Tal trajetéria é bem apontada por Kofler: “Nao somente na Alemanha, mas também outros paises, o horror que inspira o proletariado sedicioso foi fundamento das tradigdes da burguesia. Porém, em nenhuma par- te foi tio grande, como na Alemanha, a autonegagdo da bur- guesia”. Por conseguinte, reforga-se a via das “transformagdes pelo alto” na evolucao da sociedade alema. Porém, a revolucio também ocasiona uma ampliagio da propria dtica dos setores autoritarios, que tomam consciéneia da necessidade de forjarem ima institucionalidade baseada num minimo de consenso, enfim, de proporem uma politica que, pelo menos formalmente, d:a- Jogue com 0 conjunto da sociedade. Essa conseqiiéncia € clara- mente colocada pot Hobsbawn, ao dizer: “Os delensores da or- dem social precisaram aprender a politica do povo. Esta foi a maior inovagio trazida pelas revolugoes de 1848. Mesmo os mais arqui-reacionirios dos junkers prussianos descobriram, naquele ‘ano, que precisavam de um jornal que pudesse influenciar a ‘opi- nido piiblica’ — conceito em si préprio ligado ao liberalismo ¢ incompativel com a hierarquia tradicional. O mais inteligente dos arqui-feaciondrios prussianos de 1848, Otto von Bismarck (1815- 1898), mais tarde demonstraria sua licida compreensdo da natu- reza da politica na sociedade burguesa e scu magistral dominio de suas técnicas".” DP Lukacs, G. — Realistas alemanes del siglo XIX, ob. cit. p. 7, Koller L.— Ob. cit, pe 424 ¢ Hobsbawn, E, — A era do capital, ob. cit., Ps AS, aL No que toca diretamente ao processo de unificagdo, as resul- tantes acima apontadas da revolugao articulam-se na solidifi- cago de um bloco histérico reacionirio, comandado pelos setores aristocrdticos, que passam a dominar as iniciativas no sentido da tunidade nacional. A necessidade de centralizagio do poder passa a ser vista com maior clareza pelas diferentes classes do bloco dominante. A unificagao, proposta presente no ideario revolucio- nario, passa também a ser posta como um imperativo pelas forgas da reacdo. Estas tentam redefinir 0 patriotismo revolucionario contido na proposta de unificagao num nacionalismo chauvinista contra-revoluciondrio; nessa proposta, os problemas sociais so escamoteados na questio nacional. De todo modo, o bloco reacio- nario sedimenta-se, tanto por um alargamento de visio politica (a busca de uma hegemonia), quanto pelo espago que se abre pela inexisténcia de contendores que possuissem projetos alternativos. Assim, com a capitulacao burguesa, a preponderancia dos setores reacionérios tornou-se absoluta; nas palavras de Lukacs: “Os se- tores plebeus da Alemanha nao tiveram, durante esse periodo, a forga necessaria para impor seus interesses pela via revolucio- naria, Deste modo, os progressos econdmicos e sociais inevitaveis se fizeram (...) como resultado das transagdes das classes domi- nantes", No seio do bloco dominante, acirram-se as contradigdes entre a Austria ¢ a Prissia pela direcao politica desse proceso, os dois reinos buscando a hegemonia no interior da futura nacao. Este fator, é, sem divida, a razio maior de a efetivago da uni dade alema ainda se arrastar por mais algumas décadas. Como alirma Hobsbawn: “A unificagéo da Alemanha levantava trés questées: que a Alemanha exatamente era para ser unificada, como se jamais as duas maiores poténcias, que eram membros da Confederagao Germanica, Prisssia e Austria, deveriam integré-la, © 0 que iria acontecer com 0s numerosos outros principados, que iam de médios reinos a pequenos territorios de 6pera bufa”” 2 Tal disputa, como sera visto, foi vencida pela Prissia, Assim, cabe analisar algumas peculiaridades do desenvolvimento deste Estado Para depois retomar a discussdo sobre o processo de unificagao alema. A Prissia aparece singularizada no contexto dos membros da Confederasio Germénica. Seu papel de abastecedora de cereais, 2 Lukes, G.— £1 asalto ala razén, ob. cit, p. 4, Hobsbawn, E. — A era do capital, ob. cit. PBB 42 para a Europa Ocidental, propiciou uma passagem sem rupturas, a nivel politico, do feudalismo para a insergao na economia mun- dial comandada pelo capitalismo nascente. A ‘modernizagao” fortaleceu a classe dos proprietirios de terras: a aristocracia Junker. Estes, com controle da direcdo politica e econdmica da sociedade, desenvolvem um aparelhe estatal orientado em seus propésitos. A coesio em torno do Estedo, militarizado e burocra tizado, foi o que proporcionou uma base de recuperacao do p: apés a “guerra dos trinta anos”. Na avaliagdo de Kofler: “En- quanto que a Polénia seguiu sendo, até bem pouco tempo, um pais agririo, oriental, a Prassia, que nao estava tio isolada como a Polonia, buscou imitar os paises ocidentais e superar a de- presso em que havia caido apés a guerra. Comegou a germinar a idéia de que o Estado prussiano poderia servir-se da indistria das cidades, para efetuar sua reconstrucio, de modo semelhante a0 que havia ocorrido em paises vizinhos. A manufatura que nasceu entdo estava orientada, nao somente num sentido estatal egoista neofeudal, como num sentido aristocratico prussiano; também 0 mercantilismo prussiano recebeu o carater barbaro e medieval proprio da atitude da vida espiritual do feudalismo”. Esse forta- lecimento do Estado e o papel ativo da aristocracia feudal-abso- lutista, “que se vé obrigada a intervir, ativamente e tomando as, rédeas, em apoio do desenvolvimento capitalista””, € 0 que singu- lariza a Prissia no contexto da Confederagao Germanica.” Aqui, o capitalismo assentou-se tendo por agente uma no- breza feudal e um Estado absolutista, gerando um arranjo conci- liat6rio que articulava relagdes econdmicas capitalistas com uma estrutura de poder feudal. Se tal quadro é valido para toda a Ale: manha, 0 destaque dado ao Estado particulariza a Prassia. O Estado apresentou-se aqui como manifestagao da ‘‘yontade cole- tiva”’ da aristocracia junker, € que, por isso, dispunha de um poder substantivo acima dos localisnos. Um projeto imperial embasava 0 poderioestatal, cujos imperativos se sobrepunham as ontades individuais”. Tal projeto expressou-se na expansio territorial prussiana que, salvo breves perfodos de retraimento territorial, avangou num crescimento continuo. Além de capit: near esse processo anexionista, com um eficiente aparelho mili tar, o Estado também se apresentava como 0 "“demiurgo do pro- % Kofler, L. — Ob. cits, p. 413 e Lukies, G. — El asalto a la razén, ob, cit. p38, 43 gress”, fazendo uso da forga para criar as condigdes sociais para © desenvolvimento capitalista. Ao agit como impulsionador de processos, que as condigdes sociais reais ainda nao propiciavam, coloca a burguesia a scu reboque, como dependente da agdo es- tata. Além disso, a ténica absolutista ¢ 0 uso cotidiano da vio- lencia sobre as massas garantem umia estabilidade total da estru- tura da sociedade. E nessa situagio que a Prassia vai vivenciar 0 século XIX, no qual, aps um rapido recuo com a derrota para Napoledo em Jena (que propiciou um interregno liberal que. sem mudar o essencial da estrutura de poder, moderniza um pouco as feigdes institucionais do pais), avanga para uma situac%o de poténcia: condigaio em que participa dos movimentos da diplo: macia européia, onde se posiciona sempre com as forgas conser- yadoras. Segundo Hobsbawn, a populacao da Prissia duplicou “entre 1800 e 1846, ocorrendo também, nesse periodo, um grande desenvolvimento industrial.” Este é 0 quadro da Priissia em meados do século XIX, quando seu monarca, Frederico Guilherme IV, recusa a coroa da Ale- manha, que the é oferecida pela Assembléia de Frankturte em 1849, ¢ tenta articular uma “unido restrita’” de soberanos em Olmutz no ano seguinte. Tal propésito é barrado pela aco aus: triaca, inaugurando um periodo de franco conilito entre os dois reinos. Segundo Duroselle, existiam trés possibilidades de unifi cagio da Alemanha: A primeira, derrotada pela atitude acima mencionada do monarca prussiano de nao aceitar um poder de base popular, seria unido pela vontade popular representada pela Assembléia de Frankfurte: a segunda era a unio em torno da Austria, incluindo os territérios nao germanicos do império ‘austriaco, era a proposta da “Grande Alemanha”; a terceira era a unio em torno da Prissia com a exclusio de todo 0 territ6rio austriaco (mesmo o germénico), proposta conhecida como “Pe~ quena Alemanha”. A classe dominante prussiana, cultora da ter- ceira hipdtese, comeca a trabalhar para que o processo caminhe na diregdo desejada, aceitando o conflito com a Austria como inevi- tavel. Assim, inicia uma agdo visando este fim no plano dipio- matico e militar, que se reforga quando, em 1862, seu represe tante maximo, Bismarck, assume 0 posto de primeiro-ministro, Este amplia a unidade aduaneira, reforca o aparelho militar realiza uma politica diplomitica de isolamento da Austria, No 3 Hobsbawn, E. — Las revoluciones burgwesas. ob. ct. pp. 109, 302€ 306. plano externo, Bismarck executa uma politica agressiva de ane- xagllo que expande o territério prussiano ao norte, envolvendo-se em varios confiitos; Hobsbawn fala das “guerras rapidas ¢ deci- sivas através das quais 0 Império alemdo estabeleceu-se entre 1864 e 1871", No plano interno, Bismarck realiza uma politica de repressio iis organizacdes populares, de minimizagao do legisla tivo (ignorando o parlamento de maioria liberal), enfim uma ges- tio ditatorial do Estado. Por outro !ado, incentiva a economia, acelerando a industrializagao, estimulando a produgio artesanal (com a abolic2o total do controle das corporagées), criando infra- estrutura (como a construcdo de estradas de ferro). Finalmente, em 1866, apés um intrincado xadrez diplomatico e militar, ocorre ‘a guerra austro-prussiana, Com 2 vitoria da Prassia na batalha de Sadowa, a sorte da unificagao da Alemanha esta definitivamente selada. Na verdade, proceso de unificagao da Alemanha, nes mo- mentos finais de sua consolidagao, manifesta-se enquanto se da uma prussianizacho de toda a Alemanha. As caracteristieas pre- sentes no desenvolvimento da Préssia so maximizadas e expan- didas, a saber: a militarizagao, a onipresenga do Estado ¢ 0 con- trole politico aristocratico. A capitulagao da burguesia ¢ a maru- tengio dos privilégios da nobreza fundiéria sero elementos deci- sivos no devir alemao; nas palavras de Likées: “O caminko prus- siano de desenvolvimento da Alemanha traz consigo conseqiién- cias diretas e imediatas. Este modo de nascer a unidade econd- mica do pais fez com que, em amplos setores capitalistas, se ma- nifestasse, desde o primeiro momento, uma atitude de superesti- magio do Estado prussiano, a tendéncia a compactuar constan- temente com a burocracia semifeudal, a perspectiva de que era possivel fazer valer os interesses econdmicos da burguesia em pa- Cifica alianca com a monarquia prussiana”. Assim, o Estado prussiano vai penetrando em todas as regides da confederagio subjugando as formas politicas existentes a sua Iogica central zaciora. A submis da sociedade ao Estado, a militarizagio das relagdes hierdrquicas, o sentimento servil de dever (em detri- mento dos direitos da cidadania), 0 apego a ordem, a fossilizagio da estrutura social, enfim todos os elementos presentes no quadro da vida prussiana sao apresentadas como elementos da consti- tuigdo da unidade nacional. Homogeneiza-se a Alemanha tendo por parimetro a realidade prussiana, Os setores progressistas, principalmente a burguesia, capitulam frente a esse processo, abandonam suas bandeiras, apostando no Estado aristocratico, 4s “que haveria de compartilhar 0 poder com ela". O projeto im- perial latente, que legitima a ditadura ¢ seu carter bélico, age como argamassa desse arranjo, promovendo 0 desenvolvimento econdmico industrial. E nesse contexto que se inserem as guer- ras com a Dinamarea ¢ « Franya, aimbas de cunho imperia~ lista, cujas vitérias solidificam a unidade alema sob hegemonia prussiana, Assim € que, finalmente, em 1871, no proprio pago de Versalhes, Guilherme I € coroado imperador da Alemanha, constituindo-se de fato a unificagdo nacional sob a égide da Pris- sia e de Bismarck: a prussianizagao fundindo @ nacionalidade. Marx vai definir a Alemanha nacionalmente unificada como: “um despotismo militar salvaguardado por um biombo de for- mas parlamentares, mesclado com doses de feudalismo, j4 in- fluenciado por uma burguesia, ¢ burocraticamente assentado” 9" Como aponta Lukées: “A existéncia da Prissia sempre consti: tuiu, objetivamente, o maior obsticulo para a verdadeira unidade nacional, e, sem diivida, essa unidade se efetiva gragas as baio- netas prussianas” Essa Alemanha tardiamente constituida enquanto Estado na- cional paga um alto tributo ao passado nao superado. No plano interno, reforca-se o carater despético da dominagio politica: a institucionalidade € garantida pela violencia institucionalizada do Estado. O governo dos junkers reforga a estrutura social apoiada em privilégios estamentais e no monopélio da terra. O Estado, posto como mediagao unificadora acima da sociedade, penetra em todas as esferas da vida social, expandindo-se, buro- cratizando-se e centralizando cada vez mais 0 poder: 0 “bonapar- tismo bismarckiano", para utilizar a expresso de Engels, seria 0 exemplo concreto mais proximo do “leviata” antevisto por Hob- bes. Além dos jurtkers, o projeto conservador bismarckiano gal- vaniza 0 apoio social dos préprios setores burgueses, cujos repre- sentantes politicos diretos (os “liberais”) eram olimpicamente desprezados por Bismarck, que governava a despeito do parla- ‘mento, onde tais liberais possufam formalmente a maioria. Como observa Kofler: ““O burgués inédio alemao do século XIX, nio obstante suas fanfarronices materialistas e suas frases liberal zantes, seguiu fiel a suas inclinacdes prussiano-conservadoras”. ‘Além disso, a prosperidade econdmica estimulava tal arranjo, 31 Mar, K. — Critica del Programa de Gotha, Progresso, Moscov, 1977, p28. 46 definido por Kofler como : ““A alianga da disciplina racional da maquinaria do lucro com a disciplina irracional da bota militar’. Tragtenberg vai lembrar ainda um outro aspecto da questo; ao ‘afirmar: “Nos fins do século passado e inicio do século XX, pas- saa Alemanha por um arrangue industrial dirigido pela buro- cracia bismarckiana, pela estruturacao de um proletariado com conseiéncia para si, e por uma burguesia dependente de sua asso- ciagio com a classe junker temerosa das reivindicagdes operd- rias”. Assim, também o temor as massas impele os setores bur- gueses para o bloco reacionério, tanto que-nao ocorrem protestos quando, em 1879, Bismarck coloca o partido social-democrata na ilegalidade. Em termos de uma politica de massas, Bismarck arti- cula a repressio com um carter assistencialista do Estado, atra~ vés de uma legislagao social em moldes corporativos. Sinteti- zando, pode-se definir 0 quadro politico interno alemao com as palavras de Kofler: ‘‘um Estado governado de forma ditatorial com a ajuda da burguesia”. No plano externo, a situagao alema é contraditéria com seu desenvolvimento econémico interno, principalmente pelo fato de este pais nao ter participado da partilha colonial. Assim, a Ale ‘manha nao possuia, como as demais poténcias européias, um im- pério colonial que Ihe permitisse realizar uma acumulagio adi cional, fora de seu territorio. Essa situagdo vai marcar profunda- ‘mente a evolugao posterior da Alemanha, com 0 expansionismo definindo-se como o objetivo latente do Estado e, pelo conse~ giiente carter bélico, como um miével de sustentagiio do desen- volvimento industrial do pais. O militarismo exacerbado mantém ataxa de crescimento do grande capital ligado a indistria mono- polista. Assim, a politica exterior agressiva reforga o papel do Es- tado e a organizacao policial da sociedade. Lukées diz que “*nes- tas condigdes entra a Alemanha na época imperialista. Como se sabe, este movimento é acompanhado de um grande auge econd- mico, de uma extraordindria concentracao do capital, etc. A Ale- manha se constitui no Estado que marcha frente do imperia. lismo na Europa, e, a0 mesmo tempo, no Estado imperialista mais agressivo e que pressiona de modo mais violento por uma nova reparticlo do mundo”. O desenvolvimento econdmico alcangado nese esquema é realmente considerivel. Castronovo, 3 Kofler, L.— Ob, cits, ps 431 ¢ Tragtemberg, M. — Burvcracia e ideo logia, Atiea, Sto Paulo, 1974, p. 108; ver também pp. 37/8, 47 analisando a questo, afirma: “Na Alemanha, sem diivida, as sobrevivéncias estruturais e poiiticas de natureza feudal haviam obstaculizado 0 arranque da revolugdo industrial (...) De fato, 0 processo de industrializac3o na Alemanha se iniciaria muito mais tarde, por volta de 1850-1860, depois que a unido aduaneira e a construgo das estradas de ferro tivessem aberto caminho; po- rém, em compensac&o, chegou a maturagdo no transcurso de poucos anos # com caracteristicas fortemente monopolistas e cen- tralizadas; tanto que superou, j4 em 1886, em determinados se- tores — da siderurgia & quimica — os niveis produtivos alcan- ados pela Franca." Alguns dados sao expressivos para ilustrar a intensidade dese processo de creseimento econdmico: em 1877, a0 atingir trinta mil quilémetros, a rede ferrovidria da Alemanha se torna a mais extensa da Europa; a populagao de Berlim cresce de 378 mil habitantes em 1849 para quase um milhao em 1875; s6 na cidade de Colnia “o mimero de pessoas que viviam de renda e Pagavam imposto sobre elas cresceu de 162 em 1854 para seis- centos em 1874".™ Enfim, a politica exterior imperialista alimen- tava essa incrivel expansao industrial, a qual agilizava um nao ‘menos yasto crescimento do mercado finaneeiro. Entretanto, tal desenvolvimento, em fung3o mesmo de sua base politica, ndo altera a situacdo agréria, ainda submetida a a estrutura de produg4o onde dominam relagées nao capita- listas, Hobsbawn acentua esse trago, ao dizer que: “Até a década de 1870, as grandes cidades da Alemanha industrial, tais como Colénia e Dusseldorf, alimentavam-se com os mantimentos tra- zidos ao mercado semanal pelos camponeses das regides circun- vizinhas". Tragtenberg alerta, com justeza, para o fato de esse desnivel, entre produedo industrial e producao agricola, colocar a Alemanha como nacdo industrial porém’ importadora de ali- mentos, trazendo a baila a necessidade de mais terras. Assim, instala-se um circulo vicioso que tem no imperialismo sua mola fundamental; dai tode a ideotogia que seri forjada em torno da questo da expansao territorial (que seré analisada no item se- guinte). Em termos praticos, além do expansionismo praticado no proprio continente europeu, em 1882 0 principe von Hohen- lohe-Langenberg funda a Sociedade Colonial Alema. Trés anos 3) Lukaes. G. — Fl asalto a ia razin, ob. cit, p. SA e Castronovo, V. — La resoluctin industrial, Nova Terra, Bareelona, 1975, p. 88. 34 Hobsbawn, E.— A era do capital, ob. cit.,p. 247 48 mais tarde, Berlim vai ser a sede da Conferéneia Colonial, que fixa as normas de partilha da Africa; antes a Alemanha j4 havia instalado guarnigdes no Togo, no Camarées, no sudoeste africano © em algumas ilhas do Pacifico. De qualquer modo, a prioridade dos interesses imperiais alemaes concentra-se na propria Europa (orientagao que em parte se altera com a demissio de Bismarck, em 1890), As anexagdes obtidas nas guerras com a Dinamarca ¢ com a Franga, principalmente esta que brindou a Alemanha com as ricas regides da Alsdcia e Lorena, estimulou sobremaneira 0 projeto imperial, imprimindo-o como o traco marcante da evo- edo histérica desse pais na virada do século. No plano ideols- gico triunfa o nacionalismo chauvinista. E esta Alemanha que inicia o século XX, industrialmente de- senvolvida, atrasada na estrutura agraria, firmemente estabele- cida em termos militares entre as poténcias mundiais, com uma economia bastante dominada pelos grandes cartéis, sem colénias, com uma institucionalidade amparada na forga, com um expan- sionismo latente e um nacionalismo exacerbado. Na avaliagao de Poulantzas: “JG aqui comeca a desenhar-se claramente a fra- queza da Alemanha como elo da cadeia imperialista. Essa fra- queza salienta-se do conjunto das contradigdes da formacao so- cial alema, nas suas revelagdes com os outros paises da cadeia imperalista’”.® O desenvolvimento das contradigdes presentes vai desembocar na guerra de 1914-1918, onde a Alemanha foi uma das principais protagonistas. A derrota nesse conflito vai encerrar esse primeiro periodo, imperial, da historia da Alemanha consti- tuida enquanto Estado nacional. A esse periodo vai se seguir 0 interregno democritico da Repiiblica de Weimar. As particula- ridades apontadas vio seguir atuantes no processo hist6rico ale- ‘mao, sendo altamente explicativas do advento da ascensio do na- zismo na Alemanha. Entretanto, tais perfodos esto fora dos inte- resses do presente estudo; para os fins almejados interessam, ‘obviamente, as determinacdes gerais da historia alema, mas com destaque para aquele intervalo que vai aproximadamente da Re- volugaio Francesa no anteato da unificagao. O substrato histérico °S Poulantzas, N. — Fascismo ¢ ditadura, Martins Fontes, Sd0 Paulo, 1978, p. 31 38 Sobre essa passagem © esse periodo, pode-se consultar: Gay, P. — A cultura de Weimar, Pxz e Terra, Rio de Janeiro, 1978 € Klein, C. — De los ‘espartaguistas al nazismo: la Reptiblica de Weimar. Peninsula, Barcelona, 1970, 49 desse periodo ja esta apresentando. Cabe, entao, passar para a analise no desenvolvimento das idéias na Alemanha do século XIX. 0 PENSAMENTO ALEMAO NO SECULO XIX A particularidade histérica do desenvolvimento do capitalismo na Alemanha — seu cariter tardio e sua t6nica conciliatéria — vai marear profundamente as formas de pensamento ali engen- dradas. Seria impossivel, no ambito do presente trabaiho, pre- tender apresentar um quadro completo do tema em foco; a biblio- grafia utilizada, de certa maneira, cumpre essa tarefa. Aqui inte- ressa apontar os tragos mais significativos da evolucao intelectual alema no século XIX, destacando aquelas questdes ¢ aqueles au- tores que aparecem com maior peso na fundamentagdo filoséfica de Humboldt e Ritter. Cabe ainda mencionar que @ exposigio, que seré efetuada, é meramente indicativa, tentando-se apenas localizar as determinagdes mais gerais € 0s movimentos, concep- es € autores mais expressivos. Assim, o estudo nao tem ne- nhuma pretensao interpretativa, avangando com uma biblio- grafia clissica e nao exaustiva. Visto isso, pode-se passar para a discussao do tema. A centralidade da problemtica do pensamento alemao re- pousa no descompasso entre as questies discutidas e a realidade vivenciada, isto é, 0 pensamento alemao participava de uma dis- cussdo que nao fluia da pratica da sociedade alema; o temério abordado nao correspondia & realidade social existente; os pontos enfocados nao revelavam a situagao real vivida. Enfim, a filosofia alema encaminhava seu debate num plano absolutamente ideal € abstrato, pois argiia sobre situagdes que nao existiam em sua realidade. Nas palavras de P. Arantes: “O presente politico € so- cial, de que se ocupa a teoria alema nao sendo também o seu, impoe-Ihe, visado assim, & distancia, a formulagao de conteddos de experiéncia, cuja urgéncia histérica no pode partilhar”.” Tal 37 Arantes, P. E, — Ida eideotogla. A propésito da critica filosotica dos anos 1840 (alguns esquemas), em Discurso, 6, Departamento de Filosofia da FELCH-USP, 1975, p. 27. Esse autor vai dizer que “o cendrio alemao” esta ‘compreendido entre dois presentes”. p. 33. 50. situagdo advém daquilo que este autor denomina como 0 “duplo presente” vivenciado pelo pensamento alemio. Este, por um lado, vivencia, em fungo de sua localizagao, a contemporanei- dade européia no plano das idéias. Assim, defronta-se com as questées € assuntos postos pela vanguarda do pensamento inglés e francés. Por outro lado, vivencia um quadro social e politico alemao onde os resquicios do passado dominam a cena e sua pri- pria possibilidade de transformacio. Dessa maneira, o pensa- mento alemAo discorre sobre temas que nao s4o os seus. Aquilo que para os pensadores ingleses aparece como questdes emer- gentes da pratica social, para os alemaes se coloca como pro- blemas tedricos abstratos. Marx ironiza isso ao dizer: “Em pol tica os alemées pensaram 0 que 0s outros povos fizeram. A Ale- manha eta sua consciéncia teérica”." E dentro deste contexto que o pensamento alemao vai se defrontar com a Revolugao fran- cesa e com o idedrio iluminista. Como foi observado no item anterior, a Revolugdo francesa é recebida com entusiasmo por amplos setores da intelectualidade alema. Entretanto, ja 0 desdobramento politico imediatamente posterior, as guerras napolednicas, nao encontra essa receptivi dade e sim posi¢des opositoras. A figura de Fichte ilustra bem tal itinerdrio: aplaude a Revolucdo entusiasticamente em sua obra Contribuigées para a Retificagao dos Juizos do Piiblico sobre a Revolugao Francesa, publicada em 1793, para, menos de vinte anos depois, em 1808, se colocar radicalmente contra a a¢do na- polednica em seus inflamados Discursos 4 Nagdo Alema. Nesse transito, do qual Fichte foi tomado apenas como exemplo, mas que na realidade atinge os principais representantes do pensa- mento alemao do periodo, ja aflora aquele que ser4 um dos tracos marcantes desse pensamento: a questao da nacionalidade. Os dsofos alemaes, que nao vivenciavam a existéncia do Estado na- cional na prética, vo alocar o problema da unidade da nacao no centro de suas preocupagdes. Tal postura acarreta um posiciona- mento de principio em defesa da Alemanha e, em decorréncia disso, uma total falta de critica frente a situagdo real do pats. Essa situagdo ora era idealizada e elogiada como virtude da alma alema, ora era absolutamente desprezada por uma discussaio due trafegava num plano totalmente logico, sempre em argiligbes que 34 Mars, K. — Critica da filosofia do direito de Hegel — Introdugao, em Temas de Ciéncias Humsnas, 2, LECH, Sto Paulo, 1977, p. 7. SL perseguiam saidas para a consolidagio da identidade da nagao: objetivo almejado tanto por Herder quanto por Hegel ou Fichte. Essa busea, como observa Lukécs, permeard todo 0 petisamento alemao do periodo enfocado: “A luta pela unidade nacional pre- side, na verdade, todo o desenvolvimento politico e ideol6gico da Alemanha no século XIX”, Esse trago particularista, de — apesar da sua nao tematizagio direta — assumir as raizes locais, leva a uma singular leitura, por parte dos alemies, da literatura iluminista. A filosofia da Tu tragdo, que na Franga e na Inglaterra refletia processos social ‘emergentes, na Alemanha vai ser discutida como assunto “pura mente filoséfico”. Os ideais ilustrados, fundamentos do libera- lismo politico, quando nao sto diretamente combatidos (como corre, por exemplo, nas formulagdes de Herder e Novalis), sto bastante deturpados por uma leitura que sofre as limitagdes de possuir vinculos praticos estreitos com 0 absolutismo imperante. Apesar das diferencas internas encontradas entre 0s autores ale- mies no que toca a avaliacdo e assimilacao das formulagdes ilu- ministas, alguns tragos vao marcar tal discussao como um todo. 5 dois elementos ja apontados — descolamento entre tematica € realidade ¢ defesa de uma identidade nacional — por exemplo, perpassam as diferentes posi¢des implicando importantes carac: teristicas deturpadoras. A ética nacionalista vai comprometer se- riamente 0 universalismo ¢ 0 cosmopolitismo contidos na pro- posta ilustrada. A perspectiva doméstica localista, da qual, se- gundo Hobsbawn, apenas Kant escapa, faz com que esses pontos permanegam no discurso de uma forma meramente retérica, Marx e Engels, ap6s realizarem uma extensa analise da filosofia alema, afirmam ao final da /deologia Alemd: “‘De novo tivemos ‘ocasido de ver, nesse artigo, as concepgies limitadamente nacio- nais sobre as quais descansam 0 suposto universalismo e presu. mido cosmopolitismo dos alemaes (...) Esse reino etéreo dos so- nhos, o reino da ‘esséncia do homem’, € 0 que os alemaes opdem ‘aos demais povos com imponente orgulho, como a meta e a consumagao de toda a historia universal; em todos e cada um dos campos, consideram suas imaginagdes como o juizo final e defi- nitivo acerea dos fatos das outras nagdes, e, como em tudo Ihes toca somente 0 papel de espectadores € de observadores, acre- ditam estar autorizados a avaliar 0 mundo inteiro e a falar em iiltima insténcia sobre a histéria da Alemanha. J4 tivemos repe- tidas ocasides para ver que essa inflamada ¢ superabundante so- berba nacional corresponde, no terreno dos fatos, a uma pratica 52 totalmente mesquinha, de vendeiros e artesdes. E se a mesqui- nhez nacional € sempre em todas as partes repelente, na Ale- ‘manha resulta nauseante, ja que aqui, com a ilusio de estar aci- ma da nacionalidade e de todos os interesses reais, ela se opde Aquelas nacionalidades que confessam abertamente sua limitagao nacional e sua fundamentagao sobre interesses reais”.” ‘A avaliagao acima dispensa maiores comentarios, pois coloca claramente 2 questéo: 0 nacionalismo alemio nao se apresenta, pelo menos nao por enquanto, com sua feig&o real, mas sim tra- vestido numa roupagem abstrata universalizante. A afirmagdo de além da questao do nacionalismo, os © falseamento ret6rico e a ética abs- trata, Esses componentes se articulam em toda a discussio do iluminismo efetuada pelos alemies. Discussio que, enfatize-se mais uma vez, nao fluia da pratica da sociedade alema; ao con- trério, vinha de fora, de temas importados. Kofler aponta bem essa questo ao dizer que a ilustraeo alema foi reflexiva, dai o distanciamento do real que ela introduz em suas consideracdes. Nas palavras desse autor: “No pensamento dos intelectuais ale- mies a ciéricia da natureza se transforma no contrario do que foi para os ide6logos franceses ¢ ingleses da Ilustragdo — a base para a transformacao da realidade; converte-se em assunto puramente filos6fico e estético. O racionalismo alemao do século XVIIT nao tem nada de original nem de revolucionério, repousa em fer- mentos romanticos. Os melhores espiritos tendem a voltar as cos- tas para a realidade ou bem dissolvé-la de modo idealista me- diante a especulagao abstrata”. Esse universalismo retérico, esse cardter falseador da esséncia do discurso e essa tOnica abstrata, ao tratar as questées, mani- festam-se com uma clareza impar naqueles autores que explici tamente se contrapdem ao idedrio da filosofia iluminista. Tais oposigdes concentram-se priotitariamente na escola romantica alema do final do século XVII. Para muitos comentaristas, ori- ginar-se-ia nesses autores o nacionalismo autoritério que domi naria o pais a partir da segunda metade do século passado. Sey- ferth, por exemplo, diz: “As raizes desse nacionalismo estdo con- tidas na obra de alguns autores do romantismo alemao, nao tanto pelo fato de terem sido realmente nacionalistas, mas porque seu 3 Mare, K. e Engels, F. — La ideologia alemana, Grijalbo, Barcelona 1974, p. S65. 53 movimento literario foi marcado por uma busca de valores na ‘comunidade ‘folk’ medieval — ou seja, no passado legendario do Sacro Império Romano-Germanico — e pela valorizagio da pai- sagem, dos costumes e da lingua alema”. Segundo ainda essa autora, os mais eminentes representantes dessa gloificagao do pasado teriam sido: os irmaos Schlegel. Grimm, Novalis, Herder, Fichte e Schelling e, com excegao de Fichte, os outros nao teriam dado uma conotacio politica as suas formulagdes. Entretanto, R. Romano mostra outra faceta desses autores romanticos: 0s elementos autoritérios contidos em seus discursos; pot exemplo, na naturalizagio apologética da guerra efetuada por Novalis ¢ ‘Schlegel, ou em seus discursos de endeusamento do “Principe”. Esse pensamento roméntico, que teve uma de suas maiores expresses no movimento “Sturm und Drung”, possuia, como observa Kofler, um papel ideolégico fundamental em. seu antiilu- minismo, o de explicitar uma tentativa de “diregio moral” da aristocracia, que, como foi visto na pratica, dominava a socie- dade alema. Os temas levantados por esse movimento permane- ‘ceram como uma via de discussao em toda a evolucao posterior do pensamento alemao: a valorizagio da comunidade como unidade fundamental da andlise social, a busca de uma apreensfo totali- zadora, entre outras. No plano eminentemente politico, esses autores buscaram argumentar no sentido da desqualificagio da democracia, erigindo a hierarquia religiosa como modelo maximo de gestio da sociedade. ‘Nesse particular, a figura de Herder me- rece destaque por sua singular modalidade de “idealismo teologi- zante”.*" Esse autor que, como seré visto, aparece como um dos influenciadores dos primeiros gedgrafos, desenvolveu 0 conceito central de “‘espirito do povo” e definiu com clareza a idéia da uni- dade nacional apoiada na identidade lingtistica. Assim, a dtica desses pioneiros romfnticos era a da nagioe nio a do Estado, e a questo da unidade nacional nao se convertia diretamente num projeto politico. Tal explicitagao s6 vai ocorrer quando a invasio napolednica acirra os animos nacionalistas, principelmente apés a derrota de Jena. Fichte, segundo Seyferth, seria o autor que ‘mais claramente realiza essa passagem, ao colocar diretamente & “© Seyferth, G. — Nacionalismo e identidade éimica, F.C. C., Floriand- polis, 1982, p. 13 e Romano, R. — Conservadorismo roméntico. Origem do Totalitarismo, Brasiliense, Sao Paulo, 1981, pp. 67 ¢99 ‘8 Koller, L. — Historia y dialecrica, Amorrortu, Buenos Aires, 1974, p 2 s4 problemitica do Estado. Segundo a autora, esse filésofo inaugura a visto da sociedade como intermedidria entre 0 individuo e © Estado, e chega mesmo a formular originariamente 0 conceito de “espaco vital’ (que sera retomado pela discussdo geografica do final do século XIX). A dominacio francesa, entretanto, nao apenas explicita politi- camente © nacionalismo dos romanticos, mas, como foi mencio- nado, também suscita esse sentimento nos préprios circulos li- berais que. como visto, possuiam uma ténue fundamentagao. Tal atragdo poderia ser bem ilustrada com 0 itinerario politico-tebrico de Hegel, que ainda permanece com um juizo positive de Napo- leo mesmo com a dominagdo, mas para assumir, mais tarde, a idéia da Prisssia como condutora dos destinos alemaes.* Como foi observado, esse liberalismo ndo recuperava as posturas mais avancadas do iluminismo (o materialismo principalmente), antes diluia 0 idedrio politico no idealismo, tornando seus postulados, muitas vezes, meramente retéricos. Hobsbawn fala do “mode- rado liberalismo alemao”, afirmando: “os lugares-comuns liberais — materialismo ou empirismo filos6fico, Newton, andlises carte- sianas, etc. — desagradavam muito a maior parte dos pensadores alemaes; ao contrario, o misticismo, o simbolismo e as vastas ge- neralizagdes sobre os conjuntos organicos os atraiam visivel- mente, talvez por uma reagio nacionalista contra a cultura fran- cesa predominante no século XVIII, que intensificava 0 teuto- nismo do pensamento alemao”. Esse liberalismo moderado refle- tia, sem diivida, a apontada debilidade da propria burguesia na Alemanha, incapaz de articular um projeto nacional. De todo modo, as transformagdes impetradas no periodo napolednico dao um alento aos horizontes liberais, pois, mesmo na Prissia, centro nevralgico também do pensamento alemdo, ocorrem reformas modernizantes que, mesmo muito ténues, estimulam sua dis- cussio. E este um periodo de intenso debate, poder-se-ia dizer 0 pice da “Filosofia classica alema", que gera um ambiente inte- lectual capaz de propiciar elaboracdes magistrais, como a obra de Hegel, Schelling, Schopenhauer, ¢ Feuerbach, entre outros. Mais, ‘uma vez a discussio se faz muito além do propiciado pela reali dade social alema, descolada das questdes postas na pratica so- cial. © estimulo das transformagées. modernizantes resultou numa resposta teGrica que alarga o fosso entre pensamento ¢ rea- 42 Ver Konder, L. — Hegel ea praxis, em Temas de Ciéncias Humanas, 6, LECH, Sa0 Paulo, 1979. 55 lidade. Falando desse periodo, Marx ironiza a “revolugio sem igual da Alemanha” que teria ocorrido “no dominio do pensa- ‘mento puro” Cabe, antes de prosseguir na anélise da evolugao do pensa- mento alemio, apresentar algiumas consideragies a respeito das formulagdes geradas nesse perfodo (primeira metade do século XIX). Seria desnecessério enfatizar a importincia e 0 significado dessa produgao no cenario ¢a historia da Filosofia; o nome dos autores mencionados basta para se inteirar disso. Tal relevo, entretanto, poderia levantar a idéia de um possivel paradoxo com © que foi apresentado até aqui sobre a debilidade do iluminismo e do liberalismo alemao. Se 0 pensamento filos6fico deslizasse numa linha continua evolutiva, seria, de fato, um paradoxo. Nao € isso, porém, 0 que ocorre, pois o pensamento avanga por mean- dros contraditorios, mediagdes, que s6 a dialética consegue des- lindar. Assim, a debilidade (0 cardter retorico) do pensamento alemao foi o seu trunfo. © descolamento da realidade permitiu conhecé-la melhor. P. Arantes, seguindo a andlise de Marx, diz que “o descompasso da miséria alema condena igualmente o pensamento, nisto fiel ao duplo presente que a caracteriza, & Dia- lética, ou seja, & Ardua tarefa de acertar 0 passo com as coisas e as idéias que o cercam aquém e além-fronteira”. Dessa forma, se- gundo ele, a “inadequagao das idéias” agin como “forca de sub- verso"; as colocagdes liberais formais, ao serem postas como re- torica, revelaram aqui o que realmente eram: aparéncias, forma. Assim, “‘o duplo presente em que se comprime 0 anacronismo alemao faz as vezes de filtro”, a fraseologia possibilitando a transparéncia. Arantes conclui que, pela “critica da retérica”, a0 assumir-se como 0 que efetivamente é, “a fraseologia especulativa ganha em forca explicativa". Hobsbawn, sem tal profundidade analitica, também aponta essa relagdo, ao afirmar: “Por outra parte, desde o principio, sua posigtio & margem da zona de impe- tuoso avango liberal-burgués, e talvez sua completa incapacidade para participar dele, fez. os pensadores alemaes muito mais cons- cientes de seus limites e contradigdes”.* Desa maneira, sao essas condigdes especiais vivenciadas pelo ambiente intelectual alemao que propiciam uma explicag4o para o afloramento, em 4 Arantes, P. E, — Ob. cits pp. 26, 31, 27 € 33, respectivamente & Hobsbawn, E. — Las revoluciones burguesas, ob. cit., p. 445. Ver também ‘Arantes, P. E. — O partido da inteligencia (notas sobre a Ideologia Alema), em Almanague, 9, Brasliense, Sao Paulo, 1979, 56 seu seio, do préprio pensamento marxista. Este, insere-se numa tradigdo radical bem sedimentada na Renania e na Vestfalia (que se reforga no periodo napolednico), movimento este que na ver- dade também se filia a filosofia classiea, notadamente a obra de Hegel. As formulagoes desse fil6sofo vao sofrer, na geracao ime- diatamente posterior, duas leituras distintas, ambas elegendo-o como o seu inspirador. O pensamento de Marx forma-se no inte- rior de uma dessas correntes — o hegelianismo de “esquerda”, € tem na superagao (negagdo-assimilacao) de seus postulados 0 seu “salto de qualidade”. Mas, voltando ao eixo da exposigdio, deve-se apontar que o pereurso efetuado pelo pensamento alemao, percurso nao linear e ndo unitério, foi, na interpretaco de Kofler, aquele entre o “‘{dealismo subjetivista” e 0 “idealismo objetivo”, cujo saldo mais significativo foi a possibilidade de romper com o principal limite do primeiro: “a rentincia — se bem que no confessada — a cog- noscibilidade do mundo exterior”. Entretanto, tal avango nao implicou uma secularizagao da filosofia alema, uma aproximagao com uma tematica mais terrena. Ao contrario, conforme se estrei- tava na pratica 0 espaco politico dos sujeitos sociais mais avan- cados (entre eles, os proprios liberais moderados), 0 pensamento de vanguarda mergulhava num debate cada vez mais abstrato; a ponto de a tematica central dos “jovens hegelianos” vir a ser a critica da religido, Assim é que a critica de Marx vai incidir com radicalidade até mesmo sobre alguns autores, como Feuerbach, gue ja se colocavam numa posi¢do gnosiolégica materialista (0 que nao implicava um rompimento com a perspectiva abstrata). Falando desses autores da vanguarda (cujas formulagdes refuta na Sagrada Familia © na Ideologia Alema), Marx diz: “A ne- nhum desses fil6sofos ocorreu sequer perguntar pela relagao entre a filosofia alema e a realidade da Alemanha”.“ Dessa maneira, 0 descompasso entre 0 pensamento € a reali- dade social se acentua, a0 mesmo tempo em que, no plano pra- tico, a reagdo avanga seu dominio politico, acumulando vitérias no Congresso de Viena, e na repressao aos movimentos democra- ticos de 1830 e 1848. Nesse proceso, as regides mais avangadas econdmica e politicamente vao sendo subjugadas-na drbita da Prissia. O setor liberal acaba por se cindir: uma vertente capitu- 4 Koller, L. — Historia y diatéctica, ob. ci F. — Laideotogia alemana, ob. cit. p. 18. p15 e Marx, K. e Engels, 37 Jando abertamente, outra radicalizando-se, acabando por ser iso- lada e neutralizada politicamente (apés 1848, os lideres mais eminentes do pensamento radical alemao estao todos no exilio). Pode-se denominar esse proceso, como o faz Seyferth, de “‘fa- Kéncia do pensamento liberal alemao”, cujas causas podem ser creditadas A debilidade de sua sustentagio nas condigdes sociais, coneretas vivenciadas no pais e, dentro desta, a incapacidade da débil burguesia ¢ a inadequagao do projeto liberal naquele con- texto. De toda forma, vivencia-se, apés 1848, um pleno dominio do pensamento conservador e do projeto autoritério. Marx, escre- vendo na propria época, diz: “Sim, a histéria da Alemanha gaba- se de um movimento pelo qual ndo passou nenhum povo do fir- mamento historico, e nem passara depois dela. Nés, alemies, compartilhamos das restauragSes das nagdes modernas sem que tenhamos participado de suas revolugGes”, ¢ concluiu que, por isso, essa situag2o combina “os defeitos civilizados do mundo dos Estados modernos, cujas vantagens no possuimos, com os de- feitos bérbaros do “Ancien Régime’ que possuimos em sua totali- dade”. Esse avango a restauraco (que, na verdade, aqui nunca ha- via perdido 0 peder) na Alemanha, em meados do século pas- sado, faz-se acompanhar dé uma total capitulagdo da burguesia frente a seus estandartes hist6ricos de luta. Essa classe abre mio de qualquer tentativa de direeao moral da sociedade, entregando seus destinos a0 comando da aristocracia. Para se ter idéia do efeito de tal recto no plano ideolégico, basta dizer que até mesmo as postulagdes cléssicas do pensamento liberal sobre o “‘direito natural” séo abendonadas; isso aparece claramente, por exem- plo, nas colocagies de Haller, um idedlogo desse periodo, que diz: “O Estado nao se funda no direito, e sim na forga”."* Esse recuo politico da burguesia, além de jogar a “‘p4 de cal” sobre qualquer pretensdo do liberalismo, vem acompanhado de uma ampla “atrofia iceologica”, que chega a atingir a consciéncia das massas, gerando, segundo Kofler, 0 caldo de cultura da “onda chauvinista” posterior. A burguesia passa a expressar elevados 4S Mary, K. — Critica da fllosofia do Direito de Hegel, Inteoduci, ob. Lit, pp: 3 e 10, No preficio da primeira edie de O eupitul, Mars fala: "Somos atormentados pelos vivos e também pelos mortos”. Ob. cit. livro I, vol I, p. 5. 46 Citado por Koller, L. — Contribuicién a la historia de la sociedad bur- guesa, ob. cit, p. 421. 58 sentimentos para com o Estado ¢ a Patria, um novo alento nacio- nalista vem a tona, com uma roupagem claramente autoritaria. E nesse periodo que ocorre a expansdo dos tracos prussianos: a adoragio servi da ordem, o culto do sentimento do dever, a mili- tarizag2o das entidades sociais, etc. Na avaliaglo de Lukécs, esse momento, além de “campo de batalha para os interesses imperialists”, a Alemanha se torna também “polo de atraco das ideologias reacionérias” “” O romantismo reaciondtio vai ser retomado, assim como a leitura conservadora da obra de Hegel. Nessa vai ser buscade principalmente a discussao sobre o Estado, ilustrando j4 o que sera também uma t6nica do pensamento do periodo: @ sujeigao da sociedade ao Estado, na-anilise da his- téria. Enquanto 0 nacionalismo do inicio do século pensava na “unio dos alemaes", o ideal nacionalista em pauta propunha claramente a constituigdo de um “Estado Nacional”. -~ ‘A dominancia das teses conservadoras, além de recuperar al- guns nédulos do pensamento autoritario alemao anterior, vem agora associada com alguns novos tracos ideol6gicos originarios da situagdo de plena viggncia da ordenagio capitalista da vida econdmica. O extraordinario crescimento da atividade industrial, na 2! metade do século XIX, vai dar um vigor significativo a esses tragos. A ordem econdmica capitalista consolidada demanda uma contrapartida superestrutural que afirme a ordenagao exis- tente, que veicule uma visio de positividade do real, enfim, con- cepsdes afirmativas que legitimem 0 quadro vigente. O “idea- lismo transcendental” ¢ 0 “‘romantismo clissico”, por sua pré- pria ténica abstrata, nao propiciam tais qualidades. Daf o aflora- mento de novos elementos ideolégicos, dentre eles uma posigao gnosiolgica materialista. Porém, como aponta Kofler, trata-se de um materialismo bastante peculiar, pragmatico, utiitarista, apologético da técnica e da ciéncia. Um materialismo de acen- tuada tendéncia naturalista e empirista, que possui pontos de forte paralelismo com o positivismo francés. De acordo com Ko- fler, 0 afloramento dessa posi¢ao vincular-se-ia com “o fato de ‘que a concepcio rigida, dogmética — quer dizer, mecanicista da historia — absolve 0 alemao da responsabilidade ativa, democra- tica, e justifica 0 automatismo burocritico, que entende a historia como se ela transcorresse segundo uma ‘legalidade natural’ inde- pendente da vontade”. © Lukées, G.— Realistas alemanes del siglo XIX, ob. cit. p. 10, 39 Essa nova postura filoséfica vai buscar sua base de susten- tagio, principalmente, na Filosofia da Natureza que, além de possuir uma tradi¢ao de debate na Alemanha, havia conhecido uma grande impulsio pelo inerivel desenvolvimento das ciéncias naturais nessa época. No passado, a tradig’ic de debate sobre a natureza havia-se pautado por uma forte ténica especulativa ¢ abstrata (em Goethe, Schiller e Schelling, por exemplo). Agora, frente aos novos interesses, tal debate reveste-se da “cientitici- dade” da Histéria Natural. Ocorre, assim, algo que € comum & maioria das correntes filosGficas desse periodo, e que enconira no positivismo comtiano sua expressao lapidar, a aproximagio do debate filoséfico dos resultados das cigncias. Hobsbawn observa ‘que as cigncias sociais traziam questes inoportunas para os ale- maes, € que: “Pelo contrario, a hist6ria natural era simpatica, pois representava o caminho para a espontaneidade da verda- deira e incorruptivel natureza (...) O mesmo ocorreu na Alc- manha, onde o liberalismo classico era débil: uma ideologia cien- tifica rival da clissica, a filosofia natural, ganhou ripida popula- ridade”. Essa filosofia da Natureza, na yerdade, vinha em so- corro de toda uma argumentacao ideoldgica que nao se furtava, antes priorizava, o debate das questdes sociais. Ela propiciava uma interpretagao naturalizante da hist6ria humana, que se ade- quava inteiramente aos interesses do projeto politico dominante. A concepgao naturalista da histéria, como foi apontado, elimina a possibilidade de agio ativa dos homens, sua colocagae como edade"", vai molda-los tai como deveriam ser os ss — obedientes ¢ fatalistas, seguindo as ordens dos “naturalmente” bem dotados, sem se oporem ao “curso natural” dos acontecimentos. Também 0 militarismo, decorrente do expan- sionismo latente do Estado alemdo, ¢ justificado por tal con- cepgao, num argumento onde a Geografia estard no centro das atengSes, pela naturalizagio da violéncia como atributo humano da difusto como intrinseca a natureza dos Estados. O natura- mo ainda vai fornecer sustentacao para legitimar a ideologia da specificidade germanica”, bastando lembrar a idéia das carac~ teristicas “‘naturais” das ragas. Tudo isso consagrando-se pela “apreensio racional e objetiva” da “Ciéncia”, num momento em que o cientificismo domina todo o ambiente cultural europeu. Deve-se lembrar que a Alemanha contava com todo um aparato de transmissao do conhecimento que fornecia condigdes materiais parao bom éxito de uma ampla difusio desse projeto ideol6gico: apenas para ilustrar, a Alemanha possuta dezessete mil universi- 60 térios em 1870, contra dez mil da Franga; além disso, a idéia da unidade lingiistica e de sua importincia havia levado a uma preocupacao com a educagao priméria, que fazia com que as ta- xas de analfabetismo fossem aqui das mais baixas da Europa. Cabe aqui fazer um paréntese para destacar a situagdo do in- telectual alemao e 0 papel das universidades nesse processo. Gramsci aponta a “supremacia politico-intelectual dos junkers”” ‘como o elemento singularizador explicativo dessa questo: “Eles foram os intelectuais tradicionais dos industriais alemaes, mas ‘com privilégios especiais e com uma forte consciéncia de ser um grupo social independente, baseada sobre fato de que detinham lum notivel poder econdmico sobre a terra, mais ‘produtiva’ do que na Inglaterra. Os junkers prussianos essemelhavam-se a uma casta sacerdotal-militar, que possui um quase-monopélio das fungdes diretivo-organizativas na sociedade politica, mas que Possui, ao mesmo tempo, uma base econémica propria e n&o de- pende da liberalidade do grupo econdmico dominante”.? Dessa maneira, os quadros intelectuais alemdes foram recrutados basi- camente na aristocracia, 0 que implicava lagos bastante estreitos entre o poder ¢ o saber e uma estrutura académica fortemente elitizada (Gramsci, citando Weber. alerta para a dificuldade, nesse quadro, da formagio de quadros intelectuais democratico- burgueses). Hobsbawn também aponta essa relacdo: “Nos Es- tados alemaes e na Réssia, os intelectuais romantico-reacionérios — bastides da reacdo monarquica, tiveram seu papel na politica como funcionarios civis, redatores de manifestos ¢ programas inclusive como conselheiros pessoais”. Esia proximidade, poder- se-ia dizer pessoal e de classe, entre a vida académica e a gestio da politica, possibilitava que a universidade em si aparecesse como distanciada das questdes priticas. A ela cabia executar seu papel universalizador do pensamento, sem macular-se com os problemas terrenos e cumprindo uma fungdo quase ornamental no que toca a estes. Como foi dito, a idéia da coesio pela lingua e da unidade cul- tural dos alemies, dominante na época da fundagao de varias de suas universidades, justificavam-nas plenamente. O mencionado cardter altamente abstrato das preocupagées filoséficas, predo- 48 Hobsbawn, E. — Las revoluciones burgueras, ob. cit, p. S21 © A era do capital, ob. ct., pp. 113 ¢ 62/3, respectivamente, ® Gramsci, A. — Os intelectuais ¢ a organisacio da cultura, Ci Brasileira, Rio de Janciro, 1979, p. 18. 61 minante na primeira metade do século XIX, tem, em tais insti- tuigdes, seu focus perfeito. Esse distanciamento da instituicao universitaria também é explicativo da possibilidade de germi- nagdo em seu seio (durante os interregnos liberais) de formas ra- dicais do pensamento eritico, como, por exemplo, as formulagdes de Marx e Engels. Tais ebuligdes politicas da universidade aca- bavam, pelo distanciamento existente com a pritica real da so- ciedade. recebendo as limitacdes de um microcosmo, neutrali- zadas enquanto agdes iatramuros (como provam os desdobra- mentos dos movimentos da década de 1820-30). Tal clima de afastamento, entretanto, aliado a condigdes materiais de trabalho altamente benéficas, propiciou um desenvolvimento significativo da pesquisa basica alema, notadamente no dominio das cién naturais. O crescimento industrial de meados do século pasado vem incentivar ainda mais esse proceso. Acentua-se retorica- mente o cardter distaneiado do trabalho académico, ao mesmo tempo que se intensifica a introdugdo de temas politicos no am- bito desses trabalhos.® E nesse processo de transformagao que se encontra a universi. dade alema no momento exatamente anterior & unificagao: uma eqiiidistincia formal dos problemas priticos (que nao impedia sistematicas “cacas as bruxas" entre docentes € discentes), um grande desenvolvimento das ciéncias naturais especializadas, uma tradigao especulativa com grandes tragos romanticos e abs- tratos (portadores de um alto potencial irracionalista), uma li- ‘gacdo umbilical com os detentores do poder do Estado (em vias de se explicitar). A hierarquizacao da estrutura universitaria her- dada fazia com que a propria expansio de seus quadros ocorresse sob rigidos mecanismos de controle e cooptagio. B nesse am- biente que se desenrola o avanco da postura cientificista. Cienti- ficismo que traz em seu bojo 0 projeto de tornar a universidade um claro aparelho de criagao e difusio de teses legitimadoras da proposta imperial prussiana. Para tanto, mantendo a retérica da objetividade © da neutralidade (proprias do cientificismo), esti- mulam-se todos 0s tragos ideoldgices presentes que interessem. Aqueles designios praticos. Nese processo associa-se pragma- tismo e especulacao, cientificismo empirista ¢ irracionalismo, conservadorismo e milenarismo radical. Juntam-se, enfim, tragos 50 4. D. Bernal anslisa com detalhe esta evasio da responsabilidade social do cientista. Ver Historia social de la ciencia, vo. I, Peninsula, Bareelona, 1973, pp. 438/9. 62 antagOnicos que se articulam na apologia do projeto imperial. Da problematica da unificagio (j4 em superaco), o debate passa a centrar-se na questo da expansio e do “espago vital”. A intelec- twalidade progressista capitula, encerrando o pensamento alemao nos limites do pragmatism — aceitagao e engajamento no pro- jeto autoritario — ou do subjetivismo — manifesto, por exemplo, na alienagao romantica — este denominado com sarcasmo por T. Mann de “‘intimismo a sombra do poder". Nas palavras de Lu- ics: “S6 restou o dilema entre a submissio servil ao sistema de Bismarck e uma postura de solitéria e grotesca extravagincia" Esse processo vivenciado pelo pensamento ¢ pela universidade alema — de aproximar-se das questdes praticas e do debate dos ‘temas politicos — vai intensificar-se apés a unificagao nacional, em 1871. O triunfo da prussianizagao consolida-o. A universi- dade alema se torna cada vez mais um aparelho ideologico do Es- tado, ¢ 0 intelectual alemio cada vez mais um apologeta. Fer- menta-se aqui o nacionalismo chauvinista, que vird a tona nas décadas seguintes. Para tanto, importam-se e difundem-se as obras dos prineipais autores reacionarios. Os historiadores deter- ministas e autoritarios como Taine e Buckle conhecem ampla di- fusdo. A assimilagao das teses racistas foi de intensidade impar na ‘Alemanha do final do século. A transformagao dos conflitos fron- teirigos em uma “guerra racial”, realizada pelo discurso oficial prussiano, demonstra cabalmente o que foi afirmado.*! As teses racistas adequavam-se perfeitamente aos principios ¢ intengdes da “Kulturkampf” (Iuta cultural), a aguerrida politica cultural de Bismarck. Esta propunha-se a combater o universalismo da Igreja Catélica, destacando e desenvolvendo os tracos do “ca: riter genuinamente alemao”. A luta com a Igreja justificava-se pela divisdo que mais punha em risco a unidade alema: a entre catdlicos e protestantes, os primeiros representados pelos estados do sul (a maior forga de oposigio a Bismarck). A “Kulturkampf” extrapolou, entretanto, em muito esse seu universo inicial de pro- pésitos, pois encontrava na realidade social alema todos os requi- sitos necessarios sua propagagdo. As mencionadas teorizagoes romanticas de idealizagto da “alma alema” manifestam-se revi- goradas pelos indices do erescimento econdmico e politico-terri- torial, A valorizagao das “caracteristicas genuinamente germénicas” St Ver Mars, K.— La guerra civil en Francia, Progresso, Mascou, 1977, p33. 63 havia sido a argamassa ideoldgica do processo de unificacdo, tais caracteristicas exaltavam os aspectos mais atrasados do qua- dro social alemao. Nas palayras de Lukées: “Um obsticulo de origem ideoldgica com que tropega a formagao de tradigdes de- mocréticas na Alemania foi o falseamento, em grandes pro- porgdes ¢ cada ver mais acentuado, da histdria alema. Tratava-se da idealizagao e da getmanizagao dos aspectos mais retardatarios do desenvolvimento da Alemanha; quer dizer, de uma historio- grafia que se dedicava a exaltar como 0 mais glorioso e 0 que meihor se enquadrava com a alma alema, aquilo que constituia precisamente 0 carater mais atrasado da trajetéria do pais” Assim, a “Kulturkampf” integra-se como veiculo privilegiado dessa ideologia germanista, que tem na universidade um dos seus centros de difusdo. Glorifica-se a comunidade, endeusa-se o Es- tado, concebe-se a histéria como uma luta entre as nagdes (natu- ralizando a guerra): ¢, em meio a esse universo ideolégico, erige- se 0 mito da “superioridade ariana” e seu “destino manifesto”, buscando encobrir a situagao real de atraso politico com uma aura mitica das “qualidades intrinsecas ao espirito do povo ale- mao”. Aqui, racismo, nacionalismo, romantismo e misticismo se unem sob o traco comum do irracionalismo. Autores como Dith- ring e Treitschke pontificam na universidade, produzindo libelos de exaltac&o da guerra e do Estado autoritério, num discurso ao mesmo tempo roméntico e cientificista. Vale a pena elencar al- guns trechos deste ditimo autor; com a palavra Treitschke: “O Estado que nao é capaz de formar ¢ manter uma organi externa de suas atividades civilizadoras merece morrer’ tocracia é uma lei da natureza (...) cada sociedade, por sua natu- reza real, produz uma aristocracia (...). AS massas permanecem sempre as massas. Nao hé cultura sem os seus servos”. “A mo- narquia € natural (...) e faz um apelo ao entendimento popular (...) a idéia de uma patria unida esta incorporada, para nés, na pessoa do venerdvel Imperador (...). Este homem é a Alemanha: nao existe contradicao nisto”. “O judaismo internacional, oculto pelas méscaras de diferentes nacionalidades, é uma influéncia desintegradora”. “O hipécrita povo inglés, com a Biblia numa dias maos ¢ um cachimbo de épio na outra, nao possui qualidades redentoras. Os ingleses tm um espirito comercial, um amor 20 dinheiro que matou qualquer sentimento de honra, ou qualquer distingao entre o que € certo e errado". Os tragos apontados apa recem aqui com uma clareza meridiana. Também poderia ser lembrado o historiador F. L. Jahn, o formulador da tese da supe- 64 rioridade fisiea dos alemaes ¢ incentivador dos “lubes de ginds- tica” (na verdade organizagdes paramilitares, que se propagam muito na Alemanha), que, apesar de eserever no inicio do século, ‘tem nessas derradeiras décadas do século XIX a grande difusio de suas idéias, M. van den Bruck, em O Terceiro Reich veicula eriticas as formas de representagio democraticas, exaltando como elemento redentor os tragos autoritérios da vida social alema. Enfim, esta € a ideologia que acaba por se tornar hege- ménica na Alemanha do final do século pasado. Aos autores que no.se enquadram nesta vertente restou pou- co espago de ago. M. Lowy defende a idéia de que estes refu- giaram-se num “anticapitalismo romantico”; so suas as pa- lavras: "Se o fendmeno da ‘intelligentsia’ anticapitalista é mais ou menos universal na Europa na passagem do século, € na Ale- manha que ele se manifesta com uma acuidade particular. Por que precisamente na Alemanha? Uma das razdes ¢, sem divida, a tradigdo anticapitalista romantica fortemente enraizada entre os intelectuais alemaes a partir do comego do século XIX” Segundo ainda este autor, Schopenhauer e Nietzsche foram os elos de ligagao entre 0 romantismo do inicio do século ¢ o anti capitalismo critico do final, € a universidade foi 0 “foco ideols- sgico anticapitatista”. A producao de Nietzsche, segundo ele, con- teria uma “dupla visto", fornecendo elementos para o pensa mento eritico e conservador. Lawy ndo deixa de mencionar que tal postura anticapitalista nao se opunha a ideologia dominante, antes fornecia-Ihe munig3o como, por exemplo, ao debater a opo- sigao cultura-civilizacdo. Na verdade, para ele, o anticapitalismo criginar-se-ia do “traumatismo dos mandarins académicos ale- ‘maes" (como ja visto uma quase casta) frente ao “desenvolvi- mento industrial que os desaloja”. Assim, este € um movimento basicamente académico, que tem no “espirito de resignacao” sua principal resultante, que se espelhou com clareza na nascente Sociologia alera: no pessimismo de F. Ténnies no ceticismo de M. Weber. A posicao assumida pela social-democracia na guerra de 1914 lusira exemplarmente o alcance atingido pelo nacionalismo chauvinista e agressivo no pensamento alemao do inicio do século XX, pois a sujeigtio a ele por parte da diregao dos sociais-demo- 52 Lowy, M. — Para uma sociologia dos intelectuais revolucionérios, LECH, Sa0 Paulo, 1979, p. 9. 65. cratas revela que tal ideologia penetrou mesmo naqueles movi mentos que se antagonizavam estruturalmente com as forgas so- ciais que a haviam engendrado.® Seria possivel, dessa forma, falar, num sentido absoluto, de uma hegemonia do nacionalismo chauvinista. Nao hé como negar 0 fato de essa ideologia haver obtido apoio de massas. As teses da riqueza nacional e do destino alemao chegam a conquistar o préprio proletariado, aparecendo na eclosio da guerra de 1914 como um verdadeiro consenso na~ cional. Germinam-se aqui as condigdes ideolégicas que propi- ciardo, nas décadas seguintes, o afloramento da proposta nazista. Tal processo transcende, porém, o universo do presente estudo. ‘Aqui tentou-se apenas apresentar alguns tragos gerais da evo- lugdo de pensamento alemao no século XIX, de modo a pro- piciar uma melhor compreensio das condigdes que explicariam o porqué da eclosio do processo de sistematizagao da Geografia ificamente nesse pais. Algumas correntes e alguns autores mnados serdo retomados ao se discutir sua influéncia ou fi- liacdo nas obras de Humboldt e Ritter, que serao analisadas a seguir. ‘A GEOGRAFIA NA HISTORIA DA ALEMANHA, Os nexos entre a particularidade histérica da Alemanha e 0 aflo- ramento do processo de sistematizagao do pensamento geografico nesse pais, ap6s a exposicio efetuada, evidenciam-se com cla- reza, Existem alguns lacos entre o temario dessa disciplina e inte- resses politicos colocados na pratica da sociedade alema, cuja identidade fala por si mesma. Assim, parte-se aqui do principio de que 6a existéncia que determina a consciéncia, e que, de uma forma muito mais mediatizada, 0 pensamento cientifico (e com maior proximidade as ciéncias humanas) tem seus temas e teorias fluindo da prética social. Aceita-se, dessa maneira, a formulaco de Marx de que “as teorias vem da realidade para os livros, e nao © inverso”. Cabe aqui explicitar, entdo, essas mediagdes © esses nexos entre o surgimento da Geografia moderna e a pritica da sociedade alema no periodo em que ocorre essa génese. 53 Ver Hobsbawn, E. — Histéria do marvismo, vols. Ie ML, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1982 66 Como foi visto, a questdo que comanda todo o desenvolvi- mento intelectual da Alemanha no século XIX é a da unidade nacional; tal questo jé estava bem formulada ao iniciar esse sé- culo, e recebeu varias propostas de solugo no seu transcorrer. Na interpretacto aqui defendida, a sistematizagao da Geografia in- tegrar-se-ia no bojo dessas tentativas teOricas de equacionamento € disenssio dessa questo. Tal interpretagio nao , de forma ne- nhuma, original; varios autores ja a expuseram. J. Gottmann, por exemplo, afirma de modo incisivo: “Ena Alemanha que se deve buscar as discussdes mais ardentes sobre as relagoes entre a Geografia e a organizacao politica ao final do século XVIII. Campo de batatha entre os exércitos franceses e as coalizdes mo- narquicas, dividida entre novos ideais e as antigas formulas rei- vindicadas pelos soberanos prussianos do século XVIII, a Ale- manha busca sua via, sua organizagao politica ¢ territorial esta Jonge de satisfazer os espiritos. A filosofia de Kant revelou os fatos locais € os intelectuais alemAes nao negligenciaram a he- ranga dos gedgrafos que o pais produziu na Renascenca. Ao se instalar a doutrina francesa dos limites naturais, a Alemanha procurou na carta complicada da Europa Central os pontos de apoio de uma doutrina nacionel. Fichte reclamou para os povos uum direito natural a certos espagos”.** Vé-se que Gottman deli- mita bem 0 problema da relagao entre a situagdo alemi e 0 te- mirio geogréfico, De fato, muitos dos temas postos por esse pro- cesso de sistematizacao como precipuamente geogrificos so, na verdade, problemas cruciais que se colocavam para a sociedade alema ainda nao unificada, Entre esses temas, que se remetem todos ao problema da realizacdo da unidade nacional, poder-se-ia lembrar: a disparidade e a falta de articulagao entre as varias regides de fala alema, cada uma organizando-se enquanto Estado auténomo e possuindo din&mica social auténoma; a auséncia de uma centralidade geogrdfica organizadora do espago alemio, cujo tinico vinculo € a comunidade lingiistica; a existéncia de disputas fronteirigas com pafses nao germanicos, etc. Todos esses problemas colocavam a questo do espago nacional no centro do debate da sociedade alema; a defini¢ao da identidade, a delimi- ; enfim toda a justificativa da pro- ‘ago assim o demandava. Havia, portanto, um es- St Gottman, J. — La politique des états et leur géographie, Armand Colin, Paris, 1952.» 6. 67 timulo para 0 estudo ¢ a discussao dos temas geogrificos no seio da sociedade alema. Assim, do mesmo modo que a Sociologia aflorou enquanto ciéneia auténoma na Franga, “pais onde, mais do que em qualquer outro lugar, as lutas de classe sempre foram evadas a decisto final”, a Geografia, enquanto ciéncia autd- noma, haveria de surgir na Alemanha, onde a questdo espacial ou territorial se colocava no centro dos problemas da sociedade. As formulagdes de Humboldt e Ritter, produzidas basi mente entre 1800 e 1840, inserem-se no quadro de legitimagao cientifica das primeiras propostas efetivas de constituigao da uni- fieagfo nacional. Dai o apreco dos duis autores por Herder ¢ a proximidade de ambos com 0 movimento “Sturm und Drang”, baluartes da concepgao de identidade cultural dos alemaes pela lingua. Isso nao quer dizer que Humboldt e Ritter tenham sido idedlogos do projeto unificador ou mesmo porta-vozes diretos dessa proposta, O que se quer dizer é que as teorizagdes desses pioneiros da Geografia expressavam questdes e argumentos que trariam luz a essa problematica, que embasavam num plano cien tifico sua discussio pela sociedade, que, enfim, a legitimavam. O fato de os dois autores serem prussianos empresta um vigor ainda maior as determinagdes da situagao alema sobre suas formu. lagdes. Como visto, € na Prissia, nesse periodo, que se mani festam os mais fortes sentimentos de “germanismo”, em oposicao 4 presenga napolednica gestam-se algumas das mais articuladas teorizagdes quanto A problematica da unidade alema (basta pen- sar na obra de Hegel ou de Fichte). Os autores que efetuam essa produgo estao presentes nas avaliagdes de Humboldt ¢ Ritter, alguns privavam de suas relagdes pessoais (0 caso de Hegel com Ritter ou de Goethe com Humboldt, e dos dois com os Forster), outros os influenciam diretamente (0 caso de Schelling, por exemplo). Isso vem reforear a interpretagdo defendida. Entretanto, novamente se frisa a existéncia de mediagdes entre as formulagies destes gedgrafos e uma proposta politica de uni- ficagdio. Tanto € assim que no se encontra em suas obras mais que algumas passagens ripidas sobre a questio alema em si mesma. O que aparece ai é a tematizaco do espaco terrestre, suas caracteristicas, variagdes, acidentes, ocupacdes humanas, etc. E essa tematizagio em si representava alicerces para uma discussdo mais diveta da problemdtica alema, fornecia nao ape- SS Engels, F. — Prefacio & terceira edigdo alema de Dezoito Brumério de Luls Bonaparte, ob. ct, ps 12 68 nas um locus académico para tal discussio, mas também sua consagracdo pela autoridade da ciéncia ¢ ainda munigdes para a argumentac&o (em termos de informagées e teorias). Nesse sen: tido, a figura de Ritter destaca-se da de Humboldt, pela criagio de teses mais diretamente utilizaveis pelo debate politico ¢ pelos interesses legitimadores da estratégia prussiana. De todo modo, também as colocagdes de Humboldt possuiam tais possibilidades, notadamente na questio da identificago da unidade nacional pela lingua. Enquanto o pensamento de Ritter pode ser enqua- Grado na vertente mais autoritéria e conservadora presente no quadro politico alemao (a dos anti-iluministas), 0 de Humboldt apresenta, especificamente na postura politica, uma tonalidade liberal (se bem que um liberalismo de barao prussiano) talvez decorrente de sua influéneia francesa. Assim, mesmo que de forma mais ou menos incisiva, as formulagdes dos iniciadores da sistematizagao da Geografia participam do ambiente cultural e do cireulo de pensadores que propuseram as teorias que emba- saram a proposta unificadora. A propria acolhida das colocagdes de Humboldt e Ritter, na sociedade alema, expressa no prestigio e nas posigdes académicas por eles desfrutadas, revela a ressonancia dos temas af tratados. Ritter foi instrutor da Academia Militar de Berlim, Humboldt, na sua condigdo de nobre, participa mais intimamente da gestao do poder, chegando a ser conselheiro do rei da Prissia. Tais si- tuagdes institucionais revelam o préprio referendum do Estado a seus trabalhos. Tais posig@es ocupadas nao implicaram, porém, um atrelamento de suas perspectivas cientificas as questes pré- ticas ou politicas. Ao contrario, ambos revelam exemplarmente aquele eariter abstrato do pensamento alemao da primeira me- tade do século XIX. O pensamento de Humboldt, que se encontra mais préximo e vinculado ao poder, na verdade possui um cardter ainda mais abstrato do que o de Ritter. Este insere-se numa tra~ digdo teol6gica, aquele possui acentuados tragos roménticos. Mesmo assim, por diferentes vias e sob estilos de marcada iden- tidade regressista ov conservadora, os dois autores sio porta- vozes do movimento progressista no contexto da sociedade alema, qual seja: a afirmagao das condigdes para a expansao ¢ sedimen- tagdo das relagdes capitalists. Esse contetido progressista, que se acentua frente ao quadro social real da Alemanha e da Priissia, expressa-se claramente pela aceitagdo de suas idéias em todo con- tinente europeu P. George aponta com sagacitlade este contetido afirmativo do capitalismo contido na Geografia nascente: “No 69 século XIX, a obra tedrica de Humboldt e Ritter encontra reper- cussdo excepcional, numa época em que iam sendo difundidas em todas as grandes capitais sociedades de geografia, patroci nadas pelos governos e pela burguesia mercantil, que se lancava ‘com empenho apaixonado a colheita de informagdes suscetiveis de guiar a politica de partilha do mundo e de atrair para a aven- ‘tura 0s contingentes imprescindiveis 4 conquista e a exploracio. Buscam os sabios conferir 4 Geografia foros de ciéncia dentro da ‘concepgao racionalista do conhecimento”.* No contexto alemao, onde afirmacao do capitalismo e afir- magao da unificacdo so faces de um mesmo proceso, as formu- lagdes de Humboldt e Ritter adquirem énfase ainda maior. Nova- mente se frisa que esses autores nao eram também arautos do capitalismo, apenas aponta-se que suas obras se inseriam num movimento de afirmacio de idéias que emergiam no bojo da dina- mica ideol6gica gerada pelo avanco dessas relagdes de producio. Tal dindmica trazia jé uma valorizagao da ciéncia, posta como instncia capaz de legitimar os projetos sociais. Esse trago emerge com clareza na producio dos autores analisados, e se constitui, na verdade, no nexo mais expressivo entre suas obras e a pratica politica da Alemanha. Tanto Humboldt quanto Ritter produ- Ziram trabalhos minuciosos de ordenacao cientifica. Ritter rea- liza toda uma padronizacao conceitual que interessa, nao apenas 4 Geografia (cuja primeira formulagdo sistemAtica de objeto e método foi obra sua), mas a qualquer descrigao da Terra. Hum- boldt produz normas, conceitos € classificagdes que interessam a ‘um conjunto bastante vasto de ciéncias; além da Geografia, seu nome ocupa uma posi¢io de destaque na evolugto da Botanica, da Geologia e da Cartografia, entre outras. Assim, vé-se que tais autores trazem j4 0 transito para o cientificismo, porém a tonica abstrata de seus escritos dé a suas produgdes um cardter algo ambiguo (que sera analisado nos capitulos seguintes). De todo modo, no que interessa diretamente a pratica social alema, as formulacdes desses autores servem para dar status de ciéncia a0 debate da unificagio, e principalmente de sua problematica es- pacial. ‘A discussdo dessa problemitica, que se arrasta até o processo final de unificagao, alimenta em grande parte 0 debate geogrifico no decorrer do século XIX. O fato de as solugdes de forca se so- breporem as tentativas de dar supremacia a uma proposta de uni $6 George, P.— Os métodos da geografia, So Paulo, 1972, p. 17, 70 ficagdo, de conduzi-la de forma politica, é, em parte, responsavel pelo relativo ocaso por que passa tal debate em meados desse sé- culo, apés a morte de Humboldt e Ritter. Mesmo sem a vitalidade inicial, a Alemanha continua, porém, sendo a patria do processo de sistematizagao da Geografia, que nessa fase vai vivenciar um momento de ajustes internos: exploragaio de subcampos (¢ um periodo de desenvolvimento da Geomorfologia, da Climatologia, etc.), levantamentos e estudos empiricos (de aplicagao das pro- postas de Humboldt e Ritter), aprofundamento teérico (por exemplo a leitura critica de Ri:ter por Peschel), padronizagio te- matica e conceitual (onde se sobressai a figura de Richthofen), etc. Os estudos regionais sobre a Alemanha se multiplicam, assim como as cétedras de Geogralia e os institutos de pesquisa,” ‘Tambéat no ensing basico a Geogiafia € valorizada, pura nao se falar das academias militares. Na verdade, apesar da lacuna ted- rica deixada por Humboldt e Ritter (e da nao continuidade direta de uma discussiio posta no nivel de amplidio que eles conse- guiram), a Geografia prossegue desenvolvendo-se e sedimen- tando-se na Alemanha. Isso decorre, sem divida, do fato de as condigdes que impulsionaram sua génese permanecerem inalte- radas, no fundamental, até o advento da efetiva unificagao alema. Conforme se vai delineando claramente a solugio desse processo, a problematica espacial vai de novo emergindo com vi- gor central no debate da sociedade alema; agora apetrechada com uma Geografia j4 em avangado processo de sistematizagao. Isso implica a possibilidade do afloramento de novas sinteses. A efetivagao da unidade alema em 1871 ndo redundou na superagio da problematica espacial pela sociedade da nascente nacio; ao contrario, vai reforgé-la e redefini-la pela inclusio de novos elementos. Como foi visto, 0 Estado nacional recém-cons- tituido, apesar da intensificagdo dos fluxos comerciais internos, ainda apresenta uma profunda disparidade regional; algumas de suas regides sdo polarizadas por metrépoles estrangeiras. A au- séncia de um centro nacional também permanece, apesar dos es- forgos de, através da articulagao das estradas de ferro, dotar Ber- lim de tal fungdo centralizadora. Assim, mesmo com a unificacao nacional o localismo ainda se mantém presente na vida da Ale- manha, Além desse traco histérico marcante, que apontava para 57 No final do steulo XIX existram na Alemanha trinta ¢ duas cétedras {de Geografia nas universidades e vinte dois institutos de pesquisa dedicadoe a essa disciplina, Cf. Sodré, N. W. — Ob. cit. p. 86. n problemas postos pela temética da Geografia, emerge agora, com a unificagao, outra classe de problemas que também incidiam no debate dessa disciplina. Trata-se das questdes postas pela men- cionada situagao alema de “elo débil na cadeia imperialista”, isto 6, toda a problematica do expansionismo latente. A Geografia vai ocupar papel destacado na legitimacao da proposta expansio- nista. A importincia dessa disciplina frente ao contexto analisado repousa, diretamente, na potencialidade pratica e ideolégica contida em seu temério. As questdes do dominio do espaco, dos recursos naturais e sua rela¢io com o desenvolvimento econd- mico, das fronteiras, das ragas, entre outras, fluem diretamente da situacdo pritica vivenciada pela sociedade alema. A valori- zagio da Geografia no periodo alimenta-se da preméncia social (na ética e na praxis dos dominantes) da discussio sobre 0 es- pago. Além do mister da justificativa ideoldgica da expansio, propiciada exemplarmente pelo debate dos temas geogritficos, havia ainda necessidades priticas de manipulacao dos conheci- mentos referentes a porgdes do globo terrestre demandadas para a orientagao da conquista militar ¢ da exploracdo econdmica. Assim, colocavam-se novamente na Alemanha um conjunto de condigdes que estimulavam a discusstio dos temas espaciais, pro- piciando a emergéncia de novas sinteses no ambito da Geografia. Essa sintese ampliadora da discussao geogrética vem aflorar com a obra de Ratzel, publicada basicamente entre 1870 ¢ 1960. Como se pode observar, este autor vivencia diretamente 0 period de constituigio do Segundo Reich, a era bismarckiana. Refle- tindo bem o clima ideolégico da época, seus trabalhos vao expli- citar mais a relacao entre o discurso geografico e o poder, a tema- tizacdo direta das questdes politicas aparece com destaque (basta_ ver a elaboracdo explicita de uma Geografia Politica). Isso fica evidenciado no fato de Ratzel introduzir no temério dessa disci- plina a problemitica social, ao se propor, pioneiramente, pro- duzir uma Geografia do Homem. Como foi visto, 0 petiodo bis- marckiano se singulariza por um acirramento do nacionalismo e, associado a este, uma apresentacao clara de um projeto impe- rial. A cooptagao direta da autoridade cientifica, num momento de pleno dominio do cientificismo em toda Europa, para imple- ‘mentar tal projeto foi, como visto, uma tonica do periodo. Nesse proceso foram recuperadas as teorias da tradigdo filoséfica alema que interessavam aos objetivos prussianos, porém tais teorias fo- ram articuladas por uma influéncia dominante do positivismo. O tom roméntico e especulativo foi claramente substitufdo, pelo n menos no que toca A Geogratia, pela linguagem “objetiva e for- malista” do cientificismo positivista. Ratzel traduz exemplar: mente este proceso. O projeto bismarckiano demandava uma cigneia normativa da agdo, pragmética e afirmativa, isto &, posi tiva. As formulagies de Ratzel ohedecem a esse fim. Entretanto, apesar da tematizagio direta das questies politicas, o proprio cientificismo demanda um certo afastamento aparente os inte esses priticos, uma “neutralidade” garantidora do cardter “ob- jetivo” do conhecimento produzido. No caso do pensamento ale- mao, tal distanciamento formal seré menos sutil em fungao mes- mo dos tragos autoritarios da prépria unificagiio e da auséncia de uma tradicao liberal consistente. Mesmo assim, para garantir sua propria eficdcia ideoldgica, as formulagdes de interesse do projeto alemao deveriam cobrir-se com uma aura de universalidade. Assim, Ratzel nao é diretamente um propagandista da politica imperial, poderia talvez ser definido como um idedlogo de tal po: litica (no sentido preciso do termo idedlogo, aquela fungao que Gramsci denomina de “grande intelectual”). A tematizagio do expansionismo é abertamente formulada por Ratzel, porém é discutida num plano universal, onde emerge a artimanha do ar- gumento de sua justificagao: a naturalizagdo, a expanséo posta como caracteristica natural da histria dos povos. A assimilagao do positivismo permitia a utilizagao de tal arti- manha consagrada por esta concepgio. A unificacdo realizada prescindia da busca de uma identidade nacional pela cultura, pela lingua, enfim pelas idéias: tal unidade era dada agora, na pratica, pelo Estado. Assim, das necessidades de uma temati- zagdo especulativa e abstrata sobre 0 espaco transita-se para os imperativos colocados pela dominagio material do espago. Nesse trinsito, 0 discurso filos6fico especulativo eo discurso literdrio ja nao bastam (se bem que permanecam com uma funcao idzologica importante); urge elaborar uma sustentacdo ideol6giea mais inci iva, mais “cientifica”. Na Geografia tal transito poderia ser apontado na passagem da tematizacao do espago para a temati: zagao do territorio, efetuada por Ratzel. Essa diferenga acom- panha a substituigao da dtica da unidade da nacdo pare a tica da unidade do Estado, vivenciada pelo pensamento e, na pratica, pela sociedade alema no periodo. O naturalismo, que justificaré a propria proeminéncia do Estado, surgira como um grande ci- mento da constelagao ideoldgica subjacente ao desenvolvimento da proposta imperial prussiana. Naturalizam-se as caracteristicas do quadro social da Alemanha, fazendo-as passar por decor- 2 réncias de atributos especificos germanicos advindos da raga. Naturalizam-se o autoritarismo € 0 uso institucional da forga no processo, politico, reinante no quadro alemao, ao se justificar a violéncia como componente normal da “natureza humana” (a di- fusao significativa das teses de Spencer é elucidativa dessa ques- to). Naturaliza-se a prépria polftica exterior expansionista, com © uso de uma concepgao evolutiva da histéria, posta como tendo por motor a “Iuta das nagdes”:; nesse particular a Geografia des- ponta com excepcional peso ao discutir, por exemplo, a proble- matica do “espago vital’. Todos esses argumentos se articulam na ideologia nacionalista do “destino alemio", da “glorificagao do Reich”, da “‘superioridade ariana’". Aqui, na finalidade de popularizagio, mistura-se o cientificismo legitimador com o estilo romiintico de elevada penetraco popular. —= A Geografia vai participar de todo esse processo de forjar uma “consciéncia nacional”, constituindo-se em importante instru- mento de criagdo e veiculacdo dessa ideologia dominante, seja ao legitimar seu mével principal — a expansio, seja ao alimentar outros nédulos da mitologia reaciondria. A fungdo da Geografia, porém, no vai ser apenas de justificagao ideolégica; h4 outra fa- ceta, utilitaria, operacional no plano econdmico, que trata de for- necer conhecimentos para a atividade industrial, ou comercial. ‘Temas como 0 da localizacao industrial, 0 da organizacao das redes de cidades ou da articulagdo da estrutura produtiva no campo (que vao aflorar, basicamente, nesse periodo) atuam nesse sentido. Tais discussdes, mesmo que efetuadas sem o rétulo expli- cito de Geografia, vao interessar sobremaneira o desenvolvimento futuro dessa disciplina. Basta pensar nas formulagdes de von ‘Thunen, um aristocrata junker que elabora uma teorizagao, tao cara & Geografia, sobre a organizaco espacial da agricultura, a partir de sua vivéncia de fazendeiro. Também o desenvolvimento de alguns campos especificos da Geografia Fisica se da escoimado dessa relagao direta com a atividade econémica, expressa, por exemplo, na ligagao entre a Geomorfologia e a atividade mine- radora. Seja na faceta mais ideologizante, seja na faceta mais pragmatica ou tecnoldgica, a evolugdo do pensamento geografico avanga caleada nas condigdes estimulantes postas pelo quadro vivenciado pela sociedade alema. _, Sintetizando o que foi apresentado, reafirma-se a idéia de que © afloramento do processo de sistematizagio da Geografia, espe- cificamente na Alemanha, ocorreu em virtude das condigdes par- ticulares de desenvolvimento das relagdes capitalistas nesse pais, 74 que colocavam a questo espacial (logo, o temério dessa disci- plina) no centro do debate politico. Tal importancia advinda da fragmentacao nacional vivenciada pelos alemaes e do carter tar- dio de sua unificagao. A discussio geografica no século XIX avangou, alimentando ¢ sendo alimentada, dentro desse proceso de unificagao, ¢ foi obra de pensadores alemaes. A justificativa dessas afirmagdes pede o concurso de uma anilise mais detalhada dos principais representantes desse movimento genético da Geo- grafia moderna: Humboldt, Ritter ¢ Ratzel. A anélise dos dois primeiros é empreendida nos capitulos seguintes.* 88 Sobre a obra de Ratzel ver Moraes, A. C. R. (introduglo ¢ selegio de textos) — Friedrich Retzel, colego “Grandes Cientistas Sociais", Atica, Sd Paulo, no prelo. 78 Capitulo 2 A Geografia Fisica de Humboldt E auase-undnime, entre os historiadores do pensamento geo. grilico, a aceitagtio do papel pioneiro de Alexandre von Hum- bold, ao lado de Carl Ritter, no processo de sistematizagao dessa disciplina. Para L. Febvre, por exemplo, esses autores sto os “formadores” da Geografia, ou como diz, “pelo esforgo pre- cursor de um A. Humboldt, 0 sutor de Cosmos, ¢ de um C. Rit- ter" essa disciplina “assegurava seus métodos, definia um objeto proprio e tomava consciéncia de sua autonomia”. Para R. Clo- ier, Humboldt e Ritter sdo os “fundadores da Geografia Mo- derna”.* A. Meynier também ccata essa colocagio, assim como P. Claval, que diz: “Estamos de acordo que se busquem as pri- meiras formulagies sistemdticas da Geografia em Humboldt Ritter. Isto foi o que assegurou a gléria duradoura desses dois precursores”.? M. LeLannou sustenta que a concepco explica- tiva e genérica, isto é, a que relaciona os fatos, inicia-se com esses autores. Essa posicao também é defendida por J. Brunhes, que os coloca como iniciadores da Geografia explicativa, diferenciada da 1 Febvre, L. — Ob. cit, p. 26 ¢ Clozier, R. — Etapas da geografia, Eu ropa-América, Lishos, 1987, p, 81. Diz este antor: “Gragas a Homboldt e Ritter ficam estabelecdos os principios da Geografia Moderna: 12) determinar a coor- ddenagdo, as conexdes superliciais entre os tes estados da materia, para explic los tragando de novo o encadeamento dos fatos e precisando 0 poato de sua eve- lugio; 22) localizar es fenémenos, mostrar sua extensie, coloci-los no seu qua- Aro espacial” (p. 82). 2 Ver Meynier, A. — Ob. ct., ep. L¢ Claval P. — Ob. cit.. p. 29. Em cuiro texto este iltimo autor volta & aliemar: "Tode mondo esté de acordo em assinalar 0 papel pioneiro de Humbolet ¢ Ritter” (Claval, F. e Nardy, 1-P. — Pour le cinquantenaire de Ia mort de Paul Vidal de La Blache, Cahier de Géo- sgraphie de Besancan, 16, Annales linéraires de Université de Besancon, 93, Les Belles Lettres, Paris, 1968, p. 31) 1 anterior, puramente descritiva.' Mesmo gedgrafos de concepgdes tie diferenciadas como M. Chisholm e Y. Lacoste, apesar de ava- iagdes distintas, esto de acordo quanto ao papel pioneiro desses autores! Este breve painel ja justifica a afirmacao inicial. E in- questionavel que a obra humboldtiana é um marco na evolugo do pensamento geogritico. Alguns autores dio mesmo a primazia absoluta, nesse pro- cesso de sistematizagao da Geografia, a figura de Humboldt. E 0 caso, por exemplo, de C. Vallaux, que 0 considera a figura cen- tral desse processo. Scbre a abordagem explicativa diz clara- mente: “Talvez nem pensassem os gedgrafos ainda em fa7é-la, se nao tivessem o impulse inicial decisivo dado pelo genial Hum- boldt, do qual todos.os geégrafos, desde hd cem anos, sio mais ou menos 05 continuadores e os herdeiros”S Parece ser também 0 caso, nao com tanta énfase, de M. Sorre F. Schaefer; este tl 2 Le Lannou, M. ~ La géographie humaine, Flammarion, Paris, 1949, pp. 15/6. “Foi necessirio chegar 0 século XIX para se assistir ao verdadeiro renascimento da Geografia na Europa. No principio do itimo século, dois ho- ‘mens expuseram a plena luz as concepgdes diretrizes desta parte da Geografia, ‘que seria a Geografia Fisica ea que seria a Geografia Humana: um foi o grande sibio, observador ¢ inovador Alexandre Humboldt (...)¢ outro, mais um histo- ador e filsofo (...) Karl Ritter” (Brunhes, J. Geografia humana, Juventud, Barcelona, 1948, p. 25 Chisholm afirma ser “indubitivel que aos ge6grafos alemaes do séeulo XIX devemos a formalizacie do trabalho geogritico como uma disciplina que ‘agora chamamos de Geografia". Diz ainda: “E sempre bom registrar com pre isto a localizagic de cabos ¢ baias, rose cidades, mas, pergunta-se, como & que estes lugares se parecem? Nas tentativas sistemdticas de responder a esta questi, dois nomes destacaram-se: Alexandre von Humboldt © Carl Ritter” (Geografia: evolugdo ow revolucdo, Interciéncia, Rio de Janeiro, 1979, pp. 7 ¢ 17 respectivamente. Yves Lacosts afirma: "E na Alemanha do século XIX, onde se propaga o papel unificador e organizador da Prissia, que se forma a Geogratia moderna, enquanto saber cientifico ou diseurso universiirio, Certamente, as preocupagdes de seus fundaderes, Humboldt e Ritter, visam 0 canjunto do globo ‘ numerosas situagtes regions: ees sto os primeires, com efeito, a mostrar que se devem articular as descriies racionais de uma parte do espago com a do com- junto do planeta, unindo assim as duas abordagens que, desde a Antighidade, estavam sepatadas..." (A geogratia, em Chatelet, F. org.) — Historia da filo softa, vol. 7, “A Filosofia das eiéncias humanas”. Zahat, Rio de Janeiro, 1974, . 246) 5 Valiaux, C. — Ob. eit, p. 13. Griffith Taylor diz mesmo que Ritter fot “apenas um discipolo de Humboldt” (citado por Hartshorne, R. — Propésitos & natureza da peografia, Hucitee, Sio Paulo, 1978, p. 67) 8 timo diz: “Alexandre von Humboldt, denominado com justica pai da Geografia Cientifica, foi também o primeiro autor relati vamente moderno a dedicar atenco a légica de seus conceitos"”.” Nao cabe entrar aqui na polémica sobre o peso relativo na compa- ragio entre a influéncia da obra de Humboldt e a de Ritter na sistematizagao da Geografia; Cabe apenas ressaltar 0 papel, em termos absolutos, das formulagées humboldtianas na consti- tuigao dessa Geografia denominada por alguns de Moderna, Ex- plicativa ou mesmo Cientifica. ‘A presenca das formulagdes de Humboldt no desenvolvimento posterior da Geografia ¢ assunto incontroverso. Freqiientemente, © peso de suas colocagtes é lembrado para lesi riadas propostas. Vidal de LaBlarche, por exemplo, vai evocé-lo como inspiracao ao desenvolver 0 “principio da unidade ter- restre”. Também J. Brunhes, quando discute a idéia de ‘‘con- junto terrestre"” ao elaborar 0 seu “principio da conexdo”. C. Vallaux chama a sua autoridade ao afirmar que a previsio € 2 finalidade dltima das ciéncias. Enfim, a influéncia humboldtiana € por demais variada e evidente. Pode ser identificada de ime- diato em Richtofen, Hettner, Sauer e Harstshorne, entre outros. Este iiltimo autor vai assumi-la explicitamente: “Podemos es- capar aos problemas do determinismo, seguindo a ligao de Hum- boldt, e considerar os diversos aspectos e elementos da superiicie da Terra sem procurar separé-los de um e outro lado dessa linha arbitréria e abstrata (a que separa os fendmenos em naturais ¢ humanos)”. Os exemplos poderiam suceder-se, reforgando a afir- ‘magao inicial. ‘A producao humboldtiana é, sem divida, referéncia funda- mental no panorama do pensamento geografico, Antes de pene- trar na anélise de suas propostas, cabe apresentar algumas infor- magées sobre a vida e a obra desse pensador. ® Ver Sorre, M. ~ Ob. cit. ¢ também Schaefer, F. — O excepcionalismo na geografia: um estudo metodolégico, em Boletim Carivea de Gengrafia. ni- mero especial "Metodologia em geografia", Rio de Janeiro, 1976, p. 10. A po- sicdo de Schaefer €, todavia, mais atenuada, pois ele reconhece © papel desem: ‘penhado por Ritter. Emile Levasseur coloca também uma certa primazia, a0 di zer: “Alexandre von Humboldt é 0 primeiro a vislumbrar a Geog: larga visio" (citado em Claval, P. ¢ Nardy, JP. — Ob. cit, p. 68). DADOS BIOGRAFICOS E BIBLIOGRAFICOS DE HUMBOLDT. Alexandre yon Humboldt nasceu no seio de uma familia aristo- critica, em 14 de setembro de 1769, na cidade de Berlim, no reino da Prassia. Seu pai era bardo e oficial do exército prussiano, tendo sido chamberlain de Frederico 1. Sua mae era a baronesa de Hollwede, Em fungaio mesmo de sua origem social, a formacao escolar inicial de Humboldt foi esmerada. Teve na infancia, como tutor, J. H. Campe, pedagogo ilustre que, posteriormente, foi ministro da Educacao da Prissia. Esse tutor era adepto das teo- rias pedagogicas de J.-J Rousseau, bastante progressistas para 0 contexto da época, ¢ tornou-as familiares de seus tutelados.’ Assim, as idéias de observacao direta da natureza e de excursdes como a melhor forma de aprendizado (defendidas por Rousseau em sua obra Emilio) nao foram estranhas a formagio de Hum- boldt. Esse fato talvez explique seu interesse precoce pela Bota- nica e pelas viagens, & medida que essa linha pedagégica foi man- tida por seu segundo tutor, C. Kunth. Esse interesse foi externado pelo préprio Humboldt, no primeiro capitulo do Viagem a Regices Equinociais, Diz ele: “Desde minha primeira juventude me senti ‘com uma viva inclinagao e ardente tlesejo de fazer uma viagem as regides remotas e pouco visitadas pelos europeus(...) Nao era o de- sejo da agitagdo nem da vida errante o que me animava, mas o de ver e observar de perto a natureza selvagem (...) e a esperanga de recolher alguns fatos titeis ao progresso das ciéncias”.* A formacdo universitaria de Humboldt também foi rica e va- da, Em 1787 estuda Economia Politica na Universidade de Frankfurt-am-Oder, curso que freqiienta apenas por alguns me- ses. Transfere-se em seguida para Gotinga, onde estuda Ciéncias Naturais. Nesta cidade trava contato com Blumenbach, Goethe, G. Forster, entre outros pensadores. E aluno de Heyne, o qual desenvolveu seu interesse pela Arqueologia e pela Etnografia. O contato com Forster vem acentuar seu gosto pelas viagens, posto > Humboldt faz apenas breves alusdes &s I6eias de Rousseau em suas ras consultadas. Ver Quadros da natureza, Jackson, Rio de Janeiro, vo. 1, 1952, p. 31 e Casmos, Gide et J. Baudry, Paris, 1846, vel IL, p. 74 Humboldt, citado em Stevens:Middleton, R. L.— La obra de Alexander von Humboldt en México, tnstituto Panamericano de Geografia y Historia, pu blicagio n? 22, México, 1956, p. 12. Ver também uma carta de Humboldt pas. A. Pietet citada nessa obra, p. 80 que este (junto com 0 pai J. R. Forster) havia participado da se- gunda expedigao de Cook. Em 1790 excursiona com Forster pela Europa (Inglaterra, Bélgica, Holanda e Franga), levantando da- dos para um estudo sobre a mineralogia do Reno. E provavel que tenha havido influéncia de Forster sobre Humboldt quanto a metedologia da observagiio de campo, pois esse autor e seu pai foram grandes inovadores nessa matéria. Talvez também haja in- fluéncia de Forster na postura politica liberal de Humboldt, & medida que esse autor foi bastante progressista no contexto poli tico alemao.” De todo modo, Humboldt assume o peso de Forster em sua formacao ao colocé-lo como “o distinto mestre e amigo cujo nome nao pronuncio jamais sem um sentimento de sincera gra- tidao” Nos anos de 1790 ¢ 1791 freqtienta a Academia Comercial de Hamburgo, onde amplia seus conhecimentos econémicos e esta- tisticos. Transfere-se em seguida para a escola de Minas de Fri- burgo, onde estuda Geologia com A. Werner, e trava contato com L. von Buch. Nesse periodo realiza pesquisas sobre a flora sub- terranea, cujos resultados so apresentados num trabalho publi- cado em 1793. Esse estudo, juntamente com outro sobre as for- magoes basélticas do Reno (que fora publicado em 1790), ga- rantem relativo prestigio ao jovem cientista. Em 1792, Humboldt deixa a escola de Friburgo ¢ aceita um cargo oficial no Depar- tamento de Minas da Prissia. Esse emprego Ihe permite realizar viagens pela Alemanha, recolhendo observagdes geolbgicas ¢ bo- tanicas. Permanece nesse trabalho até 1796. Durante esse pe- riodo sdo constantes suas viagens a Jena para visitar o irmao Gui- Iherme, af estabelecido. A Universidade de Jena é entdo um dos centros culturais mais ativos da Alemanha. Nessas estadas Hum- 9 Sobre os Forster, ver Tatham, G. — A geografia do século XIX, em Bo letim Geogréfico, 17, CNG-IBGE, Rio de Janeiro, 1959, pp. 204/5. Sobre a pos: ‘ura politiea diz Leandro Konder, comentando a repercussio da Revolugio Francesa na Alemanha: “Uns poueds intclectuais alemies tentaram pir em pri tica os principios revolucionsrios (por exemplo, George Forster), mas fracas saram” (Hegel e @ praxis, ob. cit..p. 3). 10 Hé alguns dados biogrifieos, principalmente quanto as di versos entre os comentaristas: Jean Tulard, por exemplo, fala em 1797 como 0 ano do desligamento de Humboldt do servigo pablico (ver L’Amérigue espagnole en 1800 vue par un savant alemand, Calman’ Lévy, Patis, 1965), No geral, pro- ‘curamos seguir os dados fornecidos pela biografia citada de Stevens Middleton {que nos parsceu a methor fundamentada), porém sempre cotejando-os com ou: tras obras, 81 voldt vai estreitar suas relagdes com Goethe e com Schiller, publi- cando alguns artigos no jornal Die Horen (As Horas), dirigido por este dltimo. Um desses artigos, “O Génio Rédio” editado em 1798, seré posteriormente incluido com um adendo em seu livro Quadros da Natureza. A relac%o com esses autores, que no caso de Goethe ser mantida por toda a sua vida, reforga em Hum- boldt a preocupagao com a Estética enquanto forma de apreensio do real, ponto de singular importancia em suas concepgdes meto- dologicas, como veremos adiante. E possivel indagar também da influéncia desses contatos no reforgo & concepcae politica liberal de Humboldt, visto ser Goethe um pensador progressista que clogia a Revolugdo Francesa e a obra napolednica! Em 1797, ap6s o falecimento de sua mae e deixando seus bens sob a guarda de Kunth, Humboldt parte para Paris, onde havia estado em misao diplomatica em 1795, Paris nesta época é, sem dtvida, 0 centro do mundo cientifico europeu. Humboldt assiste a.um curso de Ciéncias no Instituto de Franca, e freqienta assi- duamente a Escola Politécnica, 0 Observatério e 0 Museum Trava contato com Berthollet, Fourcroy, Lalande, Cuvier, Gay- Lussac, Vauguelin e Arago, entre outros. Publica varios artigos nos Annales de Chimie no decorrer dos anos de 1797 e 1798. Po- rém, o objetivo de viajar para regides longinquas ja estava estabe- lecido. Na vinda para a Franga, j4 havia excursionado com Bush pelos Alpes (Suica e Austria), testando 0 uso de instrumentos como o sextante ¢ o barémetro. Frustram-se as primeiras tenta- tivas de deixar a Europa: a viagem de circunavegacao que 0 Dire- t6rio desejava realizar, sob 0 comando do capitio Baudin, nao se realizou em funcdo da ndo-liberag4o de verbas; e a viagem av norte da Africa, programada pelo cénsul sueco em Paris, nao se realiza em fungao de acidente com o navio (nessa viagem Hum- boldt se propunha a unir-se ao exército de Napoledo em cam- panha no Egito). Nesses dois epis6dios j4 se faz acompanhar da- quele que sera seu parceiro na viagem & América: 0 botanico Aimé Bonpland. Esta iltima empresa leva-os até Marselha, de onde, uma vez sabendo-a frustrada, partem numa excursio para a Espanha, Em Madri, através do barao de Forrel, ministro da Saxdnia e estudioso da Mineralogia, conseguem permissio para visitar ¢ estudar América espanhola. A carta de permissao expe- dida pelo ministro de Assuntos Estrangeiros da Espanha, dom Mariano Luis de Urquijo, garantia amplas liberdades de pes- 1 Ver Lukics, G. — Goethe su époce, Grijalbo, Barcelona, 1968. 82 quisa e locomogao, colocando 0 aparato piblico colonial a ser- vigo dos viajantes. ‘AS de junho de 1799, Humboldt e Bonpland partem de La Coruta com destino a Havana, a bordo do “Pizarro. Depois de uma escala nas Canarias, onde visitam o pico de Tenerife, desem- barcam nas costas da Venezuela, Durante 0 resto do ano de 1799 no ano seguinte viajam pela Amazénia, percorrendo a bacia do Orinoco e do rio Negro. No final do ano de 1800 chegam & ilha de Cuba, onde permanecem trés meses. Durante os anos de 1801 € 1802, "Humboldt e Bonpland viajam pelos Andes. No inicio do ano seguinte, desembarcam em Acapuleo, viajando pelo México atéo final de mare de 1804. Nesta data, partem para Havana e dai para Filadélfia, Em Washington, hospedam-se com 0 presi- dente Jefferson na Casa Branca, Em agosto de 1804 chegam a Bordéus, finalizando uma estada de cinco anos na América. E na elaboracao dos dados af recolhidos que Humboldt inicia sua pro: dugao propriamente geogritica, pois seus trabalhos anteriores dizem respeito & Fisica, 4 Quimica, & Botanica e 4 Geologia. No agrupamento e na apresentagio das observagies americanas co- mega a se desenvolver aquela concepgao que dari a Humboldt papel destacado na evolugio do pensamento geografico. Hart- shorne fala na ‘de todo importante viagem & América”."? Apenas para finalizar, cabe mencionar que a Coroa portuguesa proibiu a entrada de Humboldt nas terras brasileira, o que explica a ausén- cia desta grande porgio da América do Sul em seu itinerario. De volta a Europa, Humboldt passa alguns meses em Paris, preparando a publicagae de seu relato de viagens, ¢ fazendo con: feréncias que atraem um grande piblico. Em 1805 viaja com Gay-Lussae pela Italia, visitando © Vesivio com Bush e Simon Bolivar. Humboldt havia conhecido este titimo em Paris, onde Bolivar se encontrava estudando, mantendo com ele uma relagao epistolar, quando de sua volta a América. Fica uma temporada em Roma, onde seu irmio Guilherme representa o governo da Prissia junto ao Vaticano. Ao final desse ano, retorna a Berlim, onde trava contato com Ritter. Obtém do rei da Prissia, do qual se torna conselheiro, permissio para residir em Paris, estada que se prolongara por vinte anos. Nesta cidade, torna-se membro da Academia de Ciéncias. Seu companheito Bonpland é nomeado 2 Hartshorne, citado em Stevens-Middleton, R. — Ob. cit., p. 29. Claval firma que “som Humboldt os relatos de viagem se tornam geogriticos”” (La pensce giographique: ixtroduction & son histosre, SEDES, Pacis, 1972, p. 28) 83 por Napoledo diretor do jardim botnico de Malmaison e recebe uma substancial pensto do governo, Tais fatos demonstram o prestigio dos viajantes junto & sociedade cientifica e a0 impe rador. Humboldt e Bonpland fazem doagio de parte de sua co- lego de espécies vegetais catalogadas ao Museu de Paris. Esses anos e os seguintes sao vividos na elaboracio dos dados coletados. A partir mesmo de 1805, comegam a ser divulgados na monu- mental obra Viagem ds Regides Equinociais do Novo Conti- nente.!> Varios autores colaboram nessa tarefa, além de Bonp- land, Deluc, Jacquin, Ingenhousz, Lalande, Delambre, LaPlace, Pictet, Arago, Biot, LaMetterie, Gay-Lussac, Thénard, Berthol- let, Fourcroy, Vauquelin, Lamarck, Cuvier, Dumeril, Saint- Hilaire, Edwards, Jussier, Decandolle, Just, Hauy, Brongiat, Defrance, Beaumont, Guizot e Gerard. Vé-se, dessa forma, que a empresa humboldtiana mobilizou anata dos naturalistas resi- dentes em Paris. Esses autores representavam os mais expressivos nomes de um leque de disciplinas que ia da Fisica 4 Economia Politica. Indiretamente, seja em tarefes especificas (catalogacio das plantas por Wildenow e Kunth, dos animais por Latreille ¢ Valenciennes, céleulos astrondmicos por Oltmanns), seja por orientagoes tedricas (Ritter na Geogratia, Guilherme von Hum boldt em Filologia, Bush em Geologiz ¢ Goethe em Filosofia), varios outros autores se agregam a essa empresa. Dai a afirmacao: de Claval, comentando o inerivel desenvolvimento de varios cam- pos do conhecimento cientifico (e de varias ciéncias conexas & Geografia) nas primeiras décadas do século XIX: "A obra de Humboldt foi uma sintese de todas estas tendéncias””? Além dessa atividade, Humboldt também desenvolvia um tra- balho diplomatico para o governo prussiano, e continuava suas pesquisas em varias ciéncias sistematicas, Em 1818, acompanha o rei da Prissia em viagem a Inglaterra. em 1822, ao congresso de Verona, Em 1810, havia recusado convite para assumir 0 cargo de ministro da Instrucao Publica da Prissia. Dois anos antes pu- ‘ara a primeira de suas sinteses — Quadros da Natureza. As- sim, todo esse periodo na Franga é de intenso trabalho para 1 Aqui surge slguma polémica. Stevens Middleton cita trinta volumes, falando que o éltimo foi editado em 1834; Tulard cita dore, datando o Gliimo de 1869 (editado, assim, postumamente). Penna fala de vinte © quatro volumes, com 9 iiltimo sendo editado em 1837 (ver Pema, O. 5. 0. — Alexandre de Humboldt: nogtes bibliogrificas a ssa obra, em Revisra Brasileira de Geografia, ‘ano 22, 4, CNG-IBGE, Rio de Janeiro, 1958. 84 Humboidt. De 1806 a 1826 publica em médin mais de trés es-\f tudos por ano, abrangendo diversos campos da investigagao cien- tifica. Edita também varios atlas. Em meados de 22, planeja re- tornar ao México, porém o rei da Prissia. do qual Humboidt era pensionista (a essa altura de sua vida as viagens e as edigdes j4 haviam dilapidado todo seu patriménio), negou-ihe permissao para efetuar a viagem, alegando a necessidade de sua presenga como conselheiro. Os chamados do monarea sao crescentes, tanto € que em 1826 Humboldt é chamado de volta a Berlim, onde se tora membro da camara de Frederico Guilherme IV, Em 1828 Fealiza um ciclo de conferéncias nesta cidade, de grande reper- cussio. As anotagdes dessas conferéncias fornecem a base da. quela que seri sua obra definitiva: © Cosmos. Por todo 0 ano seguinte viaja pela Asia em companhia do naturalista Ehremberg edo quimico Gustave Rose, a convite do czar Nicolau I. Visita os Urais e a parte ocidental da Riissia asiética. O objetivo da viagem € realizar estudos sobre o magnetismo terrestre, porém Humboldt realiza também importantes observacdes geolégicas € climatolé . Em 1830, vamos encontra-lo novamente em Paris, em mis- al, como representante da Priissia no reconhecimento do governo de Luis Filipe. De volta & Priissia, Humboldt permanece trabalhando na re- dagao do Cosmos. Participa intensamente da vida cultural euro- 2 péia, Organiza um congresso de Geografia em Berlim, polemiza com Lamartine, e mantém volumosa correspondéncia. Falece em Potsdam a 6 de maio de 1859, aos 89 anos de idade. Estava ter- minando o quinto volume de sua sintese Cosmos. Um exame do conjunto da obra humboldtiana permite en- quadrar este pensador na historia de diferentes disciplinas aca- démicas. O cardter enciclopédico de sua produgao liga-o & evo- luedo dos conceitos, teorias e conhecimentos empiricos da Astro- nomia, da Fisica ¢ da Quimica. Em algumas disciplinas suas for- mulagdes encontram-se mesmo em posicdo destacada: tal € 0 caso da Botanica, da Geologia e, principalmente, da Geografia. Nesta Aisciplina, como jé observamos, a obra de Humboldt é aceita unanimemente como marco de nova etapa do pensamento geogra- fico. No presente trabalho, que no pretende ser um estudo exaustivo, a andlise limitar-se-4 aos escritos precipuamente geo- grificos de Humboldt. A selecdio das obras que preencham esse Tequisito n&io € matéria incontroversa, como sera visto em ouiro ‘pico, Entretanto, a incidéncia de algumas € por demais evi- dente. A obra explicitamente geogrifica de Humboldt esti no 85 centro de toda sua produgao. Isso se da em fungao mesmo de sua concepgio de disciplina de sintese, um elo entre os estudos siste- miticos, ou — na expresso de Schaefer — a postura “‘excepcio- nalista” Publicado em 1808, tendo simultaneamente uma edigao alema © uma francesa, 0 Quadros da Natureza pode ser considerado a primeira formulagéo humboldtiana interessando & Geografia. Seu livro Ensaio sobre a Geografia das Plantas, editado em 180S como volume XXVII do Viagem ds Regides Equinociais, apesat do titulo, é uma obra que interessaria mais ao desenvolvimento da Botinica do que ao da Geografia, dado seu enfoque altamente especializado. 14 0 Quadros da Natureza aborda uma multiplici- dade de elementos, articulando a unidade do estudo nio na visio sistematica, may iia base espacial. Os dois volumes deste livro apresentam um conjunto de ensaios, cada um dotado de auto- nomia.!* Esta é, sem diivida, a primeira sintese da obra hum: boldtiana. ‘A segunda sintese de Humboldt é igualmente uma obra que interessa a Geografia; trata-se daquele trabalho que consumiu os derradeiros anos de sua vida: Cosmos. Ensaio de Descri¢ao Fisica do Mundo. Q primeiro volume do Cosmos, foi publicade em 1845. No ano da morte de Humboldt jé haviam sido editados ‘quatro volumes; 0 quinto veio ao pliblico em 1862. Trata-se, no caso, da edicao original alema; a francesa comeca a sair jé a par- tir de 1848. Este é, claramente, o livro fundamental do pensa- mento humboldtiano. Nele est4o expressas todas as concepsies basilares de seu autor, que 0 considera explicitamente uma conti- nuagaio ampliada do Quadros da Natureza. O Cosmos é uma obra de félego, a expresso maxima da produgao humboldtiana, ‘Além destes livros, um trabalho sobre as idéias geogréficas de Humboldt nao poderia deixar de analisar alguns de seus estudos regionais, pois, afinal, grande parte da sua celebridade advém de seu labor empirico. E, mais, parte substancial de sua influéncia na Geografia posterior efetuar-se-4 através destes estudos empi- ricos. Em 1811, Humboldt editou 0 Ensaio Politico sobre o Reino de Nova Espanha, que saiu como 0s volumes XXV ¢ XXVI do Viagem as Regides Equinociais. Em 1826, € publicado 0 Ensaio 4 Os ensaios sto os seguintes: Estepes e Desertos; Cataratas do Orenoee: Vida Noturna dos Animais nas Florestas do Nove Mundo: Da Fisionomia das Plantas; Estrutura e Modo de Agao dos Valedes nas Diversas Regides da Terra: ‘A Forga Vitel ou o Genio Rédio; A Planicie de Cajamarca, Antiga Residéncia do Thea Ataualpa, 86 Politico sobre a Itha de Cuba. Neste, a exposigao segue os se- _guintes t6picos: 1. Posigio e Aspectos Fisicos da Iha de Cuba. Observagées astrondmicas; 2. Extensao. Clima. Costas. Divisio territorial; 3. Populacao; 4. Agricultura; 5. Comércio; 6. Fi- nangas; 7. Da Eseravidao. A outra obra também obedece, grosso ‘modo, & mesma seqiiéncia de assuntos.'® A seqiiéncia de tépicos desenvolvida por Humboldt firmar-se-4 quase como uma receita para as monografias geogrificas posteriores. Estas so as informagdes sumérias sobre a vida de Humboldt e a diseriminagdo das obras que, a nosso ver, permitirio com- preender seu pensamento e sua proposta de Geografia. OS FUNDAMENTOS FILOSOFICOS DO PENSAMENTO DF HLMROLDT. As formulagées de Humboldt nao apresentam uma filiagao filo- séfica unitaria, passivel de ser enquadrada de forma clara dentro de uma corrente de pensamento, Nota-se nese autor, ao con- trario, uma pluralidade de orientagBes, as vezes mesmo de linhas aparentemente conflitantes. A elucidacao das influéncias filoso- ficas de seu pensamento é matéria das mais controversas. Um primeiro nivel de determinagio do pensamento hum- boldtiano, responsivel em parte por essa pluralidade de influ- éncias, pode ser detectado na época e na sociedade vivenciada por este autor. A passagem do século XVIII para o XIX encerra um| periodo de pleno florescimento de varios campos do conheci- mento cientifico, notadamente da investigacao dos fendmenos naturais. Esses avangos se dio de forma concatenada, com os cientistas de diferentes campos mantendo contatos entre si. E um periodo aureo das academias € dos institutos, onde 0 ideal enci- clopédico domina o panorama cientifico. Além disso, a pesquisa 18 © Ensaio Palitico Sobre o Reino da Nove Espanha apresenta os se- uintes capitulos: Introdugio Geogrifica; Anlise Raciocinada do Atlas da Nova, Espanha; Consideragies Gerais Acerca da Extensio e o Aspecto Fisico do Reino da Nova Espanha; Tnfluéncia da Configuragao do Solo no Clima, Agricultura, Comércio e na Defesa Militar do Pais; Populagio Geral da Nova Espanha: Di visdo dos Habitantes em Castas; Estatistien Particular das Intendncias que CComptem 0 Reino da Nova Espana: Sua Estensto Territorial e Sua Populaglo: Estado da Agricultura da Nova Repiblica; Estado das Manufaturas © do Co- imércio da Nova Espanha; Rendas do Estado: Defess Militar, 87 tifica desenvolvia-se em estreita relagdo com a reflexao tilosé fica, © que ampliava 0 universo do debate e as preocupagdes de \/ cada pesquisador. No plano da Filosofia, as relagies entre os pensadores eram também estreitas. A produgdo humboldtiana ¢ bem uma amostra dessas caracteristicas: uma inerivel diversidade de campos de investigagao e uma preocupacio sintética, uma obra que vai desde descrigdes de campo até reflexdes filoséficas de alto nivel de abstragdo. M. Sorre considera Humboldt um en- ciclopedista, definicao, embora nao errada, que nao dé conta da complexidade da sua filiagao filosdfica. Ainda nesse nivel de determinagdes, hé que se ressaltar os condicionantes especificos da sociedade alema, apontados no ca- pitulo anterior. A vivéncia de uma contemporaneidade européia no plano das idéias com a base social de uma Alemanba ainda feudalizada vai matizar 0 pensamento alemio com um. traco acentuado de abstragdo e uma forte atragao para us questdes 16- gices e metodolégicas. Essa determinagio historica dopensamento alemao da primeira metade do século XIX, se bem que presente, tem sua manifestagio atenuada nas formulagdes de Humboldt, dado seu longo contato com 0 ambiente intelectual francés. Outro condicionante que poderia atuar nos fundamentos filo- séficos do pensamento de Humboldt é a infiuéncia de sua propria experiéncia de vida. Como foi observado, ele foi um viajante, um homem acostumado ao trabalho de campe, cujo prestigio adveio em grande parte de obras de levantamento e catalogacao sistem4- ica de variados fenémenos. Essa sélida vivéncia de viajante natu- ralista poderia atrai-lo para a senda do empirismo. Entretanto, apesar do respaldo empirico de sua produgao intelectual, 0 pen- samento humboldtiano jamais estreita seu horizonte de inda- gagdes, jamais abre mao de ilagdes de nivel bastante abstrato. Ao contriitio, Humboldt critica explicitamente “as pretensdes exage- radas do empirismo”. Isto ndo quer dizer também que ele fosse um apologista da especulagao, Numa passagem do Quadros da Natureza sua posigao transparece com clareza meridiana, quando diz: “A verdadeira ciéncia nao tem ponto de partida tomado. estd to longe de um sensualismo que nada vé atrés dos fatos como de uma metafisica que vive das quimeras”.!” A convivéncia entre a pesquisa empirica e a reflexao filoséfica no pensamento de 16 Humboldt, A. — Cosmas, ob. cit..vol. I. p. 7S ¢ Quadros da natures fob. cit. vol. Hp. 3. 88 Humboldt é um dos elementos nodais para sua caracterizagao. A passagem de um plano a outro de discussao &, sem divida, brusea nas suas formulagoes, bastando observar o fosso existente entre os volumes um e dois do Cosmos, ou de capitulo a capitulo no Quadros da Natureza (voltaremos a esse ponto no item referente proposta humboldtiana para o método da Geografia). De toda forma, o empirismo rigido € absolutamente estranho as formu- lagdes de Humboldt. Apesar de sua tGnica naturalista, estao ai presentes preocupagdes bastante abstratas respaldadas em sdlida erudigao filos6fica. Os principais filésofos desde a Antiguidade Classica sao citados e discutidos (de Platao a Leibniz), e também os historiadores € os literatos (de Homero a Shakespeare). Hé, desse modo, uma substancia que diferencia 0 pensamento hum boldtiano do empirismo que, infelizmente, dominard boa parte da Geografia posterior. Em termos de uma filiagio direta a um autor, muitos ged- grafos vio defender uma continuidade entre as formulagdes de Humboldt e 0 pensamento kantiano. M. Quaini, entre outros, acata essa relagdo ao comentar o alheamento da Geografia em re- lagao & obra de Marx: “Quando nao foram influenciados exclusi- vamente pela escola positivista de Ratzel, das duas tradigdes alemis pré-Ratvel, preferiram a de Kant-Humboldt, deixando quase que totalmente a margem a de Ritter-Hegel, provavelmente porque esta tiltima teria obrigado os gedgrafos a entrar em con- tato com Marx”. Também R. Hartshorne defende a continuidade Kant-Humboldt, colocando-a como formadora da corrente majo- ritdria do pensamento geogrdfico. O estabelecimento, porém, dessa filiagao direta também encontra adversarios. F. Schaefer é um deles, por exemplo. Em seu famoso artigo sobre metodo- logia, contesta essa filiagdo e afirma taxativamente: “Humboldt curiosamente, nem cita Kant nem participa de suas opinides"! Mesmo que nao se aceite a continuidade direta entre os dois pen- sadores, essa afirmagao de Schaefer nem parece vir de um autor com seu prestigio e rigor. Um simples exame das formulagies humboldtianas revela varias mengées as obras de Kant. No vo- lume dois do Quadros da Natureza, discutindo a hereditariedade, Humboldt diz: “Kant tinha dito bem que a formagao de um ser 1 Quaini, M. — Marzinmo e geografia, ob. cit. p. 148; Hartshorne, R. — The Concept of Geography as a Seicnee from Kant and Humboldt to Hettner, fem Annals of Association of American Geographers, 48, A. A. G., Washington, 1958 e Schaeffer, F. — Ob. cits. P19 89 novo 6 uma epigénese; que o produto presente vai tirar todos os seus elementos dos fatores do pasado”. No volume primeiro do Cosmos, ao discutir a classificagao das ciéncias naturais, faz ou- tro elogio explicito: “Emanuel Kant, do pequeno nimero de fil6- sofos que nao foram até aqui acusados de incredulidade, marcou 0s limites das explicagdes fisicas com rara sagacidade, no seu cé lebre Ensaio sobre a Teoria e a Construcdo dos Céus, publicado em Koeninsberg, em 1755". No mesmo livro, ao discutir as dife- rencas entre a Fisica e a Quimica, Humboldt se remete a obra de Kant Fundamentos Metafisicos da Ciéncia da Natureza. Vé-se que a afirmacio schaeferiana é fatualmente incorreta. G. Ta- tham vai levantar outros elementos de contestagio & posigao de Schaeffer, ao colocar que Humboldt foi aluno de Marcus Herz, “ardente discipulo de Kant" em 1785, e que seu irmao Guilherme era conhecedor profundo do pensamento do filésofo. Assim, evidente que Humboldt conhecia as formulagoes kantianas. Se estas so diretamente as bases de seu pensamento, é uma questao dificil (que pediria andlise mais detalhada dos dois autores). No nivel da presente pesquisa & possivel afirmar que a influéncia kantiana nao seria a tinica manifestada na obra de Humboldt. Caberia ainda levantar se tal influéneia viria das formulagdes fi- loséficas ou das eminentemente geogrificas de Kant, visto nao haver unidade absoluta entre elas." A andlise efetuada permite identificar zambém a presenga de Kant na base filos6fica das for- mulagdes humboldtianas. Alguns autores vao relacionar a obra de Kant mais com as for- mulagées de Ritter. Eo caso de M. Santos, que identifica em Humboldt uma influéncia direta de Augusto Comte, apoiado na avaliagtio de Mehedinti. Esta identificagao nao encontra susten- tagio em citacdes de Humboldt. Na andlise efetuada, nao foi en- contrada nenhuma mengao a obra de Comte. Entretanto, Hum- boldt assistiu a um curso ministrado por Comte na escola Poli- 18 Humboldt, A. — Quadras da matureza, ob. cit. vol. I. ps 315; Cas ‘mos, ob. cit., vol 1, p.37€ Hbidem, vol. I, p. 445, nota 22 '® Kant nao relaciona sua obra geogrifica com as discussdes sobre 0 es- ago apresentadas na Critica da Razao Pura. A exposigio do pensamento geo- irilico de Kant pode ser obtida na obra jé citada de Tatham (pp. 205 a 207), Uma eritiea da separagdo entre razio e experincia na obra kantiana pode set encontrada em Quaini, M.— Marxivmo e geografia, ob. eit.. pp. 26 & 28, % Ver Santos, M. — Por uma geografia nova, Hucitec, Sto Paulo, 1978, p. 29, nota 3. Ver também Mehedinti, S. — La géographie compare, em Anna les de Géopraphie 49, Armand Colin, Paris, 1901, p. 9. 90 técnica de Paris, cujas aulas constituiram-se no livro Curso de Filosofia Positiva. Este fato no & mencionado por nenhum dos bidgrafos de Humboldt consultados. Comte, porém, fa7 alusio a0 fato; diz ele no prefiicio do volume I daquela obra: “Alexandre de Humboldt, de Blainville e Poinsot, membros da Academia de Cigncias, que seguiram com interesse a exposigdo de minhas idéias (...)”." Apesar desse fato, que demonstra que Humboldt tinha conhecimento de algumas idéias comtianas, a influéncia desse nao é sensivel na leitura de suas obras. Talvez fosse possivel buscar algum paralelismo na idéia de humanidade destes autores. Entretanto, tal tema est desenvolvido mais nas obras de maturi dade de Comte (a Politica Positiva e 0 Catecismo Positivista) do que ‘no Curso de Filosofia Positiva. De todo modo, é posstvel afirmar que nao ha uma influéncia positivista expressiva no pensamento humboldtiano. A sua posigao, j4 apresentada, quanto ao empi- rismo, tao caro a Comte, reforga esta avaliagao. Se for para identificar uma influéncia filosdfica dominante nas concepgées de Humboldt, esta residira, sem divida, em sua Epoca e em sua propria sociedade. Fo idealismo de Schelling e 0 romantismo de Goethe que afloram com maior vigor na con- cepeao humboldtiana. Em menor grau, € também sensivel a in- fluéncia de Schiller e de Hegel. Ha de se ressaltar que Schaefer identificou claramente essas influéncias dominantes.”” Sao estes 6s autores, que através de uma relacdo constante e direta, mar- cam profundamente o pensamento de Humboldt. Schelling influi principalmente em sua concepgao de natureza, na idéia de har- monia dos seres naturais. E autor que freqiienta assiduamente as paginas de Humboldt, em citagdes afirmativas e elogiosas. Por exemplo, numa passagem do Cosmos, discutindo a relagdo entre as sensaces ¢ 0 intelecto, cita Schelling: “A natureza ndo é uma massa inerte; ela é para aquele que sabe penetrar em sua su- blime grandeza, a forga criadora do universo, forca primitiva e eterna, que se agita sem cessar, engendrando em seu proprio ser tudo que existe, morre e renasce”. Observa ainda, em outro tre- cho: “A natureza, como disse Schelling, é 0 sagrado e primitivo Poder criador que evolui e produz todas as coisas, tirando-as de 4 Comte, A. — Cours de philosophie positive, vl. 1, Anthropos, Paris, 1971, p. XI 22 Diz Schaeffer: "Humboldt era, afinal, um lider do movimento roman ‘ico, um contemporineo de Herder ¢ Schelling, e inha, na juventude, abragado © pantefsmo de Goethe” (Ob. cit, p. 23). 3 1 mesma".® Por estes exemplos, vé-se o quanto Humboldt acata as concepgdes schellinguianas. Sua posigio quanto a uma ontologia da natureza advém basicamente desse autor. Assim, hd um peso considerdvel, pois estes pontos so centrais na proposta hum- boldtiana. Sobre o pensamento de Schelling, Lukécs vai defini-lo como “'o representante mais eminente (...) do irracionalismo ro- mintico do inicio do século XIX" E interessante notar que Humboldt também vai citar Hegel ao discutir © mundo exterior e seu reflexo interior. Diz: “Os fend- menos exteriores, coloca Hegel em sua Filosofia da Histéria, si de alguma forma traduzidos em nossas representagoes internas. © mundo objetivo, pensado por nds, em nés refletido, esta sub- metido as formas eternas e necessarias de nosso ser intelectual. A atividade do espirito se exerce sobre os elementos que the si0 fornecidos pela observacao sensivel”, Na verdade, na historio- grafia do pensamento geogrifico este fildsofo é identificado mais com Ritter (assim avaliam M, Santos e Quaini, apontando inter- influéncias entre eles, notadamente quanto a categoria da (otali- dade). Entretanto, Humboldt também coloca a necessidade de es: tudar o “grande todo”. Enfim, as formulagSes hegelianas esto presentes no pensamento de Humboldt, porém com ineidéncia menor do que a idias de Schelling Outro autor que emerge como uma influéncia significativa (talvez com um peso maior que Schelling) no pensamento de Humboldt é, sem divida, Goethe. Esta influéncia € até assumida explicitamente por Humboldt, como, por exemplo, numa pas- sagem de uma carta para Caroline yon Wolzogem: “De todas minhas peregrinagdes impressionou-me a poderosa influéncia exercida sobre mim pela sociedade de Jena, de como através de minha associacdo com Goethe, minhas consideragdes sobre a na- tureza exaltaram-se, vendo-me possufdo de novas sensagdes per- ceptivas”.® A autoridade do autor do Fausto vai ser evocada com freqiiéncia nos escritos humboldtianos, quase sempre em discus- 2 Schetting, citado por Humboldt, A. — Cosmos. ob. it. vol. 1 p. 46.6 Humbotdt, cide por Ortiz, F. — IntrodugRo, em Humboldt, A. — Ensayo po: lirica sobre ta isla de Cuba, Archivo Nacional de Cuba, Havana, 1960, p. 61 2 Lukes, G, — O irracionalismo: fendmeno internacional do period imperialista, em Estudos Socias, 8, Rio de Janeiro, 1959, p. 63, 3 Humboldt, A. — Cosmos, 0, cit. vol. I, p. 76. Ibidem, vol I, p. 80. 2 Citade por Tatham, G. — Ob. cit, p. 218. Segundo este autor, a idéia de unidade de Humboldt era “muito mais estética do que teleolgice, © mais semtelhante ao conceito de Goethe do que de Ritter e Hegel” (. 218) 92 centrais. Por exemplo, ao tratar da questio da variedade dos seres naturais, fala do “problema da metamorfose, que Goethe tratou com uma sagacidade superior, e que nasce da necessidade que nés experimentamos de reduzir as formas vitais a um pe- queno niimero de tipos fundamentais”. Enfim, as alusdes a for- mulagdes de Goethe sio numerosas nas paginas de Humboldt, principalmente em duas obras citadas com insisténcia: Aforismos sobre as Ciéncias e Aforismos sobre a Natureza. No Quadros da Natureza, elogia-o como um dos autores que “descreveram com verdade inimitavel o cardter das diversas regides”. O pensamento de Goethe esta no centro da concepcao de mundo de Humboidt. E dele que advém sua gnosiologia (que releva a apreensio estética do real), sua idéia de unidde e de movimento, e seu ideal de cigncia, Quanto a este ditimo ponto, cita uma frase de Goethe para iustificar seus cbjetivos tedricos: “Unificar a Filosofia, x Poesia e 1 Fisica”.” Desta influéncia decorre um grande trago romantico, nas formulagdes humboldtianas, mas também uma postura pro- gressista e uma amplitude de perspectiva que o impele para além do utilitarismoe do pragmatismo. Ainda ao nivel dessas influéneias contempordneas, ¢ alemas, resta apontar a figura de Schiller. Esse autor, bastante ligado a Schelling, Hegel e principalmente Goethe, também é mencionado nos eseritos de Humboldt.: Logo no capitulo primeiro do volume dois do Cosmos, faz uma longa citacdo de Schiller sobre a arte grega e sua relagio com o meio natural vivenciado por aquele povo. Numa outra passagem coloca-o (junto com Goethe e Rous- seau) entre os sutores que entenderam o ‘‘sentimento harménico que liga a natureza as emogées humanas”. No primeiro volume, ao discutir o conhecimento, diz, citando Schiller: “*O homem se cesforga para encontrar, como diz em nossa lingua o poeta imor- tal, ‘0 p6lo imutavel na eterna flutuagio das coisas criadas’ Vé-se que Humboldt tinha em alta estima a produgio schilleriana. AS influéncias identificadas, de Schelling, Hegel, Goethe ¢ Schiller, so, a nosso ver, as essenciais na fundamentagao filosé- fica do pensamento de Humboldt. Na verdade, os autores men- cionados, apeser das divergéncias existentes entre eles poclem ser englobados num mesmo movimento filos6fico: o idealismo ale- mio pés-kantiano do final do século XVIII. Existem em suas obras pontos de contato que hes dao unidade. Assim, é possivel falar na influéncia de uma corrente sobre o pensamento de Hum- 2 Humbotd, A. — Cosmos, ob. it, vole I, p. 84 “(quase supra-real) dotada de Tinalidade. Diz ele: _mum a todo 0 idealismo alemao do periodo, Diz Humboldt boldt, englobando todos esses autores. Ao nivel mais de detalhe, as presengas de Goethe e de Schelling seriam as mais sensiveis. Porém, haveria ume determinagao geral, que possibilita localizar 0 pensamento humboldtiano com o idealismo pés-kantiano. Em algumas posigées assumidas por Humboldt isto é por demais evi- dente. Por exemple, em sua valorizagao da Estética, enquanto campo da Filosofia passivel de fornecer uma teoria da intuigao, logo explicativa da relagdo sujeito-objeto, Nas suas palavras: “A jéncia € 0 espirito aplicado a Natureza, mas o mundo exterior s6 passa a existir para nés no momento em que, pela vida da in- tuigdo, se reflete em nosso interior’. Essa teoria do conhecimento faz com que Humboldt, assim como Goethe e os demais citados, valorizem sobremaneira a arte, uma atividade humana que, dada sua caracteristica subjetiva e absirata, estaria mais habilitada para falar das “analogias misteriosas e das harmonias morais que ligam 0 homem ac mundo exterior”. Deve-se lembrar que 08 {quatro filGsofos mencionados escreveram obras versando sobre a estética, e dois devem seu prestigio mais a sua produgio literiiria. Humboldt diz que a arte “familiariza os homens com a variedade do mundo ¢ Ihes faz. sentir mais vivamente © concerto harmo: nioso da Natureza".* Dai sua preocupagao no Cosmos em dis cutir a pintura ea literatura descritivas através da historia. Outro ponto que identifica bem a filiagao de Humboldt é sua concepgdo de natureza, encarada como uma entidade unitiria considerada por meio da ra7io, isto 6, submetida em seu con- junto ao trabatho do pensamento, € a unidade na diversidade dos fendmenos, a harmonia entre as coisas criadas, que diferem se- gundo as formas, « propria constituigao e as forcas que as ani- mam; é um todo animado por um sopro de vida". Essa concep¢ao leva a uma postura quase religiosa, de contemplagdo e adoragio da Natureza. Tal posigio encontrou sua expressao plena na Filo: sofia da Natureza de Schelling, porém é, em grau variado, co- Natureza no perde seu encanto € a atragao de seu poder magico % Idem — Cosms, ob. eit, vol, I, p. 107. Numa outea passayem, diz “Day mesina modo que, nas elevadas esferas do pensamento € do sentimento, na Filosofia, na poesia e nas helas-artes, 0 primeiro fim de todo estudo € um objeto interior, ode empregare fecundar 2 inteligéncia, o termo ao qual devem tender todas as cigncias, € 0 descobrimento das leis, do principio de unidade que se re bidem, vol. 1. p. 68. ela na vida universal” 94 & medida que comegamos a penetrar em seus segredos”. “Quan- do o homem interroga a Natureza com sua penetrante curiosi- dade, ou mede na imaginagdo os vastos espagos da criagdo orga- nica, a mais poderosa e mais profunda de quantas emoges expe- rimenta é 0 sentimento da plenitude da vida espalhada universal- mente” Varias outras manifestagdes da filiagdo de Humboldt ao idea- lismo alemao pos-kantiano poderiam ser apontadas em sua idéia de unidade, em sua concepeao de movimento, em sua definigdo de progresso cientifico, em sua valorizagio da linguagem, etc. Esta filiacao é também explicativa do traco de romantismo con- tido nas formulagdes humboldtianas. Esse trago domina total- ‘mente seu estilo ilustrado exemplarmente na seguinte passagem: “Muitas vezes a impressio que nos causa a vista da natureza, deve-se menos ao proprio carater da regidio do que ao dia em que nos aparecem as montanhas e planuras aclaradas pelo azul trans- parente dos céus, ou veladas pelas nuvens que fluiuam perto da superficie da terra. Do mesmo modo, as descrigdes da natureza impressionam-nos tanto mais vivamente, quanto mais em har- ‘imonia com a nossa sensibilidade; porque o mundo fisico se reflete ‘no mais intimo do nosso ser, em toda a sua verdade. Tudo quanto 4 cardter individual a uma paisagem: o contorno das montanhas gue limitam 0 horizonte num longinquo indeciso, a escuridao dos bosques de pinheiros, a corrente que Se escapa de entre as selvas ¢ bate com estrépito nas rochas suspensas, cada uma dessas coisas tem existido, em todos os tempos, em misteriosas relagdes com a vida intima do homem. Nesta harmonia baseiam-se os mais no- bres gozos que a natureza nos oferece”. Vé-se que 0 trago do romantismo € bastante marcado, reforgando a filiagdo de Hum- boldt ao idealismo alemao pés-kantiano, Ainda ao nivel das influéncias presentes no pensamento hum- boldtiano, cabe mencionar a Filosofia grega da Antiguidade clis- sica. As obras de Humboldt expressam um conhecimento consi- derdvel da matéria. Entre os varios autores citados, destaca-se, sem dtivida, a figura de Aristételes, que aparece em posigao de elevo em suas anélises. Humboldt tem as formulagdes do Esta- girita em alta conta, como demonstra o seguinte trecho: “Du- rante séculos, até a aparigdo memordvel de Aristételes, os fend- ‘menos nao haviam sido objeto de uma obscrvagao penetrante, eles continuavam submetidos ao arbitrio das idéias, ao capricho de adivinhagdes confusas e de hipdteses contraditérias”. Numa outra passagem, coloca 0 método aristotélico como "base mais 95 mana segura da certeza cientifica: 0 método no qual, tendendo sempre a generalizar as idéias, se apresentam a cada passo exemplos para 4 comprovactio, de modo a penetrar nos pormenores mais pati culares dos fendmenos” Outro filésofo grego elogiado por Humboldt foi Platao. Coloca que @ leitura de suas obras “deixa ver um sentimento profundo da grandeza do mundo”. Entretanto, sua incidéncia nae é compa- ravel a da obra aristotélica. Comparavel e talvez até superior a esta é a influéncia pitagérica encontrada nas formulacoes hum: boldtianas. Pitagoras e outros autores de sua escola sao citados com significativa trequéncia. Humboldt credita a essa escola filo- sifica © a esse autor a paternidade preeoce do conceito de Cos- ‘mos, definido pelos pitagéricos como “ordem que reina no uni verso”. Diz claramente: “No simbolismo matematico de Pita- goras ¢ de seus discipulos, nas suas consideragdes sobre o ntimero € a forma, se descobre uma filosofia da medida e da harmonia. Esta escola (...) coloca a base sobre a qual se desenvolvem as cigncias experimentais”. £ em fungio deste aprego que Hum. boldt, ao escrever o trabalho “A Forga Vital ou 0 Génio Rédio", defende suas opinides, colocando-as, num recurso metaférico, nas palavras do filésofo pitagérico Epicarmo.” Esse estudo ¢ todo estruturado em metaforas, podendo mesmo ser entendido como uma fabula de contetido filosGfico, de agradavel leitura. Numa outra passagem, Humboldt clogia o pensamento pitag6- Fico, destacando a ligura de Aristarco que, do mesmo modo que Aristoteles, ter-se-ia aprofundado "com 0 mesmo sucesso no mundo das abstragdes ¢ no mundo das realidades materiais”. Caberia ainda mencionar a presenca do pensamento ilumi- nista na obra de Humboldt. Para alguns autores, como Sorre e Ortiz, sua incidéncia € significativa. Este dltimo afirma que Humboldt “refletiu sempre a idcologia do iluminismo (...) her- deiro da Enciclopédia, divulgador da experiéncia cientifica rigo- rosa, eritico da escolastica e dos preconeeitos doutrinarios © se- ® Neste ensaio Humboldt apresenta uma fébula sobre o significado de um ‘quaciro, vindo de Rodes, pertencente ao Poccilum de Siracusa,

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