You are on page 1of 14
O AUTISMO SERIA UMA RESPOSTA A UM TIPO PARTICULAR DE MELANCOLIA PARENTAL? Eliane Pirard-Van Dieren “Um exemplo nitido de sistema psiquico isolado dos estimulos do mundo extemo e capaz de satisfazer autisti- camente (para empregar a expressdo de Bleuler) mesmo suas exigéncias nutricionais € fornecido por um ovo de PAssaro, com sua provisdo de alimento encerrada na casca; para ele, o cuidado proporcionado pela mie limita-se ao fomecimento de calor". Sigmund Freud, 1911. Esse titulo me ocorreu a partir e depois da redagdo de um texto dado em anexo como documento de trabalho prévio a estas jomadas. Texto publicado com a autorizagio dos pais do bebé. Hoje eu queria colocar a seguinte quest4o: haveria uma relac3o entre autismo e melancolia? Essa ligagao (cuja natureza estaria por definir) nao deveria ser encontrada a partir de um fundamento que lhes seria comum, a saber, esta identificag4o enigmatica dita identificagdo priméria por incorporag4o? Se esta identificagdo esté no centro do mecanismo da melancolia, sera que seu “fracasso” nao produziria a impossibilidade 77 ‘TRATAMENTOS MAE-CRIANCA da instalagdo da estrutura subjetiva? Nao seria esse um efeito do lugar da crianga na subjetividade materna? Esse fracasso primordial denotaria uma impossibilidade de enodamento do real pelo simbélico, tendo como conseqiiéncia a auséncia de construg4o do registro imagindrio. O autismo poderia desde entdo revelar aquilo que do real da estrutura funda o corpo? Com efeito, no encontro com um bebé dito autista,o que vem em primeiro plano, é que ele ndo tem corpo; seu. corpo em sua consisténcia imagindria est4 separado dos sintomas que apresenta. Eu diria que o bebé autista ndo bate papo com o seu corpo como faz a maioria dos bebés. Eis aqui o quadro clinico de Lucie, bebé de 5 meses, que vem a primeira consulta nos bragos de sua mie. Desse bebé, a mae nao diz nada, n4o se queixa, ndo espera nad dele, nao Jhe pede nada. Ela vem nao porque est4 inquieta, mas porque um outro (no caso um pediatra experiente) detectou um quadro clinico suspeito. A mae vem enunciando a demanda de um outro: o pediatra, tendo se perguntado de inicio se a crianga ndo era cega,tinha __decretado, depois de uma investigagio aprofundada, que a’ crianga via.Desde entdo tinha ficado perplexo com o fato de que Lucie nao olhava. A mie dird: “tudo vai bem menos 0 olhar” (0 olhar sendo o enunciado da demanda do pediatra), de fato o enunciado materno se resume a: “tudo vai bem”. Lucie dorme bem, come bem, ndo atrai a atengio de ninguém, nem de suas irm4s, nem de seu pai. Este bebé, Lucie, através do discurso materno aparece como um quadro branco. 78 MELANCOLIA PARENTAL Como se apresenta Lucie ao olhar de um outro? O que ela oferece a ver para quem a olha? £ um bebé hipoténico, curvado sobre si mesmo,um monte nos joelhos de sua mae. Ela desvia ativamente a cabega para o lado oposto do corpo da mie. Nao sorri. Seu olhar € de soslaio, fixo; nao h4 nenhum cruzamento de olhar com o olhar de um outro. Ela nao volta a cabega para responder ao apelo, nem a voz. Ela se obnubila fixamente sobre um objeto que passa em seu campo, mas seu olhar ndo o segue quando o objeto € deslocado. Efetua um movimento estereotipado com a mio, aquela que ndo toca o corpo da mie. Essa estereotipia a obnubila. Bebe passivamente o seio, sem brincar nem com a roupa da mde nem com o proprio seio. Estamos ai diante de um quadro de autismo infantil precoce. A primeira descrig4o do autismo infantil foi a de Kanner, em 1943, € corresponde em meu entender, 4 de um adulto do autismo, isto é, uma crianga com mais de 5 anos. Proponho a seguinte hipdtese: esse bebé nao permanece estacionado no tempo primeiro da constituigdo subjetiva, tempo nao especular? Tempo mitico, € certo, mas légico, que retroativamente a falha das primeiras instauragdes do aparelho Ppsiquico permitir4 verificar. Antes do estigio do espelho, diz Lacan (no Seminario A Angiistia, 1962-1963),.0 que seri i(a) est4 14 na desordem dos pequenos a. Falando do que poderia ser, para uma mie esquizofrénica gravida, uma crianga no momento em que estava em seu ventre, Lacan ‘diz: “nada senZo um corpo diversamente cOmodo ou inc6modo, a saber, a subjetivagdo de um puro real.” 79 ‘TRATAMENTOS MAE-CRIANCA Ser4 que esse bebé nfo seria como a subjetivagio de um Pequeno 4 puro real, na colegio dos pequenos a reais, pedagos do corpo original? Lacan, falando desse tempo da fragmentagio, de antes do estégio do espelho, diz o seguinte: “E a isto que responde o verdadeiro sentido, o sentido mais profundo que se deve dar ao termo de auto-erotismo, 6 que se tem falta de si mesmo, completamente. Nao € do mundo exterior que se tem falta, como se exprime impropriamente, mas de si mesmo’. © termo “autismo” nio foi formado a partir de “auto- erotismo”, do qual foi subtraido “eroto’? Eros ndo teria mais sua palavra a dizer portanto? Eros ndo estaria prematuramente desligado? Mesmo que esse bebé se apresente como uma tela branca sem moldura, tela sobre a qual nem palavra, nem imagem se tracam, hd entretanto nela um sujeito falado desde antes do seu nascimento, “Precisamos, primeiro e primitivamente em sua constituigio de sujeito considerar como anterior a esta constituigdo uma certa incidéncia que é a do significante. O problema é a entrada do significante no real e ver como disto nasce o sujeito” (Seminfrio A Anguistia, Lacan, aula de 09/01/1963). Eu definiria o lugar desse beb@ como o lugar de um vivo percebedor que caminha lado a lado com o Outro sem que 9 significante venha tracar a marca de seu corte sobre o corpo. Minha hipétese € a seguinte: no autismo haveria uma auséncia de marca corporal pelo significante, o que, e isso € uma Proposi¢ao, seria um efeito do fracasso dessa primeira identificagdo Por incorporacdo. Sera que € o lugar da crianca na estrutura subjetiva da mae que provocaria esse “fracasso” ? Ao longo do seu ensino, Lacan nao cessou de elucidar a questio do nascimento do sujeito, considerado como sujeito do desejo inconsciente, nascendo no campo do Outro. 80 MELANCOLIA PARENTAL Qual é o lugar do sujeito-Lucie no campo do Outro? Existe um Outro do bebé autista? Lacan deu preciosas indicagées quanto ao referenciamento do lugar do sintoma da crianga (Carta a J.Aubry) como resposta 20 que h4 de sintomatico na estrutura familiar. O sintoma da crianga é apresentado af como representante da verdade do casal familiar ou entdo é da alcada da subjetividade materna sem a mediagdo assegurada pela fungio do pai; a crianga toma-se entdo 0 objeto da mae e no tem mais outra fungao a nao ser revelar a verdade desse objeto. A crianga realiza a Presenga do objeto @ na fantasia materna. Penso que, no autismo, a crianga ndo estaria no lugar do objeto a, condensador do gozo matemo. Em que lugar estaria ela entio? Voltemos a clinica e escutemos a mae de Lucie a Propésito de sua presenga junto a seu bebé: “Quando Lucie acordava eu nao vivia mais.Com ela era o vazio. Eu me dizia: pra que serve a vida? Eu me ocupava dela nao estando I4, presente.Eu sempre fiz 0 que era preciso. Eram os cuidados e pronto, era tudo; era automitico e agora que penso nisso essa crianga ndo era mesmo nada’. O texto da mae me leva a dizer que este beb@ permanece para ela um pedaco de corpo desligado, pedaco entretanto vivo do qual a mie satisfaz as necessidades fisiolégicas de maneira automdtica, com um imagindrio imobilizado e uma palavra esvaziada, De onde lhe vém essas palavras, sinais de um vazio interior, palavras que me evocaram uma forma de melancolia? No final da primeira entrevista, essa mde diz o seguinte: “Eu nao sabia que estava de luto. Nés éramos um casal em luto’. Esta mie estava portanto de luto mas sem sabé-lo. 81 ‘TRATAMENTOS MAE-CRIANGA Essa mae nfo sabia o que ela tinha perdido. Ela no podia desde entéo reconhecé-lo, e disso nada apreender conscientemente. Ela nao tinha mais interesse pelo mundo, tinha perdido sua capacidade de amar, sua atividade psiquica estava inibida, estava desinvestida de si mesma. Isso ndo € uma r4pida descrigdo da melancolia,mas melancolia da qual falta um trago: aquele da dor ps{quica da depressdo (expressdo direta da perda)? Nela, nfo h4 nenhuma dor psiquica, nenhuma queixa, nem mesmo somitica. “Tudo vai bem’. A mie cuida do funcional, o vivente da vida. A vida vegetativa Diria que essa mie est4 perturbada em sua fungao. Lacan define muito precisamente a fung4o-mie no segundo texto de um manuscrito dirigido a J.Aubry: “A mae é fungao na medida em que seus cuidados trazem a marca de um interesse Particularizado mesmo que seja pela via de suas préprias faltas’. Este estado da melancolia altera a dialética da fungio. © Outro, encarnado pela mie, seria como que um espelho sem estanho, uma presenga cuja falta ndo inscreveria a possibilidade de um movimento de vai-e-vem, o da presenga-auséncia. Nao posso retomar em detalhe a histéria da transmissio inconsciente de uma perda foraclufda na linhagem materna de Lucie. Direi somente que durante a espera de um quarto filho, depois de trés filhas, o casal parental deseja um filho. Com cinco meses de gravidez a imagem ecogrifica revela: ndo era um filho. A mie diz: “Minha esperanga extinguiu-se.Eu estava decepcionada. f meu Ultimo filho.Sabia que ndo queria esse filho e nfo o vivia’.E preciso observar aqui que o pai também estava de luto de um filho “morto”. Durante a espera de Lucie, o casal estava de huto sem saber. Depois do antincio do sexo do bebé que estava por vir, 0 casal parental vai atravessar um momento que chamo melancélico. 82 MELANCOLIA PARENTAL Nao falo de melancolia no sentido estrutural mas sim conjuntural. Na histéria das criangas pode haver um conjunto de acontecimentos (luto, separagao...) que envolve a concepgio, gestagdo, nascimento e que em si nao bastam; sdo os efeitos inconscientes que provocam na mde uma Tegressdo até o narcisismo.Nao h4 uma estrutura especifica da mae do autista. Trata-se antes de tudo de um encontro que pée em jogo elementos estruturais inconscientes e eficazes enquanto tais. O autismo seria essencialmente aleatério! O que é que permite elucidar essa conjuntura “melancélica” que envolveu a gestagdo de Lucie? Desde seus primeiros textos, Freud situa a melancolia como um luto provocado por uma perda de libido (Manuscrito G). Ele situa 0 processo no nivel do psiquismo onde a excitagdo sexual teria se esvaziado como que por um “buraco”. Esse “buraco” impediria toda representagdo nesse nivel da excitacio sexual. Poderiamos falar aqui de rejeigio do psiquismo no que concerne a libido? Em “Lutoe Melancolia’, Freud tenta apreender a esséncia da melancolia a partir do afeto normal do luto. Ele recorre 4 nogio de predisposi¢io mérbida que faz aparecer a melancolia no lugar do luto. Assim Freud no se contenta em distinguf-las pelo grau de intensidade mas vai especificar suas diferencas tanto no plano clinico quanto no plano do proceso e de sua tdpica. A descrigao do luto acrescenta-se, na melancolia, uma perda da estima de si provocando culpabilidade, auto-reprovagées, e mesmo a espera delirante do castigo. O objeto perdido é um ser amado ou uma abstrago colocada em seu lugar mas, na melancolia, a perda do objeto é “subtraida a consciéncia”: 0 sujeito nao sabe qual 0 objeto que perdeu ou o que é que perdeu no objeto. Freud define o processo melancélico por um duplo mecanismo:por um lado uma escolha narcisica do objeto de amor,o que implica uma forte fixagio de amor e uma fraca resisténcia ao 83 ‘TRATAMENTOS MAE-CRIANCA investimento do objeto enquanto ul. £ esse tipo de escolha que explicaria que depois da perda do objeto amado, haja retirada, para © eu, da libido liberada a fim de manter o investimento amoroso; por outro lado, um conflito de ambivaléncia no seio do eu clivando-o em duas instincias, uma chamada instancia critica que julga a outra parte do eu e se separa dela ao ponto de traté-la como um objeto. £ essa parte do eu que Freud chama parte identificada ao objeto abandonado, e isso em decorréncia da escolha narcisica. £ para essa parte do eu que a libido se retira depois da perda do objeto. “A sombra do objeto caiu assim sobre o eu que péde entio ser julgado por uma inst@ncia particular como um objeto abandonado. Dessa maneira a perda do objeto transformou-se numa perda do eu e o conflito entre o eu e a pessoa amada, numa cisdo entre a critica do eu e 0 eu modificado por identificagio’. Identificagao ambivalente desde 0 fnicio sob o modo da organizagio libidinal da fase oral segundo a qual se incorporava, comendo, o objeto desejado e apreciado, e assim fazendo aniquilava-o enquanto tal. . A mie de Lacie sofreu, durante a gravidez, uma perda inconsciente, a de um filho a chegar, que produz um “momento melancélico”: ao antincio do sexo da crianga, h4 uma decepgio que vem como a repetigao de uma dupla perda sofrida pela mie em sua primeira infancia e que tinha desencadeado ndo um luto mas uma identificagdo regressiva com retirada libidinal e conflito de ambivaléncia no eu da mie-crianga. A jovem crianga em situagio de luto estaria talvez “predisposta” 4 melancolia tendo em vista 0 cariter narcisico da escolha de objeto e a forte fixagdo de amor * inerente a essa escolha. O desencadeamento do processo melancélico provém de diversas situagées onde o eu sofreu, no curso da histéria infantil e atual, prejuizo e desilusio. Nao poderfamos avangar aqui que Lucie encamaria a parte do eu de sua mie, identificada narcisicamente ao objeto perdido? O objeto 6 abandonado masa relagdo de amor é mantida. O conflito 84 MELANCOLIA PARENTAL de ambivaléncia transforma o amor em 6dio inconsciente sob a forma de injirias dirigidas 4 parte do eu identificada ao objeto perdido. Esses insultos trazem satisfacio. O retorno desse 6dio para o eu tem efeitos destrutivos, suicidas. Representa a reagdo origindria do eu contra os objetos do mundo exterior. A melancolia visando manter o modo de relag4o com o objeto perdido destréi ao mesmo tempo o eu € 0 objeto. Escutemos a mae de Lucie evocar, no s6 depois, sua auséncia no olhar: “Eu a via mas meu olhar era vazio. Eu estava ausente, meus olhos estavam em outro lugar que ndo Lucie. Lucie era como © reflexo do meu olhar ausente. Eu no tinha foto viva’. Qual é entdo o lugar para o bebé dito autista na estrutura? O de objeto da melancolia ou objeto suicidado do desejo que Lacan descreve no final do Semindrio A Transferencia. O objeto af é menos apreensivel do que no luto, mas certamente presente para desencadear efeitos catastr6ficos (indo até 0 esvaziamento do sentimento mais fundamental, aquele que nos liga 2 vida). O objeto seria como uma decepgio que o melancélico nao pode definir mas que est l4, presente. O sujeito ndo pode atacar nenhum trago desse objeto que nfo se vé. Os tracos ndo serlam aqueles que o melancélico se atribui sob forma de auto-reprovagdes “ndo sou nada,sou apenas uma porcaria”? As reprovacdes do melancélico dirigidas a ele mesmo nao visam jamais a imagem especular: ele nao diz que est4 com péssimo aspecto ou com uma cara horrorosa, segundo Lacan, mas que 6 0 Ultimo dos tiltimos, que provoca cat4strofes por seu Parentesco. Em suas auto-reprovagées, o melancélico est4 inteiramente no simbélico (ndo é a imagem especular que é visada). Lacan indica que na melancolia haveria um remorso desencadeado pelo desatamento que 6, diz ele, da ordem do suicidio do objeto. Uni remorso em relagioa um objeto que entrou no campo do desejo e que desapareceu. 85 TRATAMENTOS MAE-CRIANCA Lacan d4 uma indicagao clinica: sondem esses remorsos e vocés verdo talvez que retorna contra o sujeito uma poténcia de insultos como aqueles que se ouvem na melancolia. . A fonte desses insultos estaria no fato de que 0 objeto, se chegou até a se destruir, ndo valia a pena que tivéssemos nos desviado por ele, de nosso verdadeiro desejo. Ou segundo Freud: no lugar da parte do eu materno, identificado ao objeto perdido, no lugar de objeto incorporado.e submetido as pulsdes de 6dio ou ainda em lugar do “buraco” no psiquismo mateo? Objeto de gozo auto-erético da infincia da mae e do qual ela nao sabe mais nada conscientemente? Isto permite conceber que uma crianga possa nascer autista, que ela seja sem hist6ria, incorporada na histéria da mie, selada no inconsciente materno. O que acontece com o sujeito na crianga autista? Retorna a questdo da entrada do significante no real, momento de funda\4o da estrutura humana.Falar do fundamento da identidade, daquilo que é primordial na instauragao da estrutura, diz respeito ao mito. Freud cria Totem e Tabu. A hipotese do “fracasso” da identificagdo priméria ao pai da pré-hist6ria pessoal como mecanismo em agao no autismo primdrio permanecer4 hoje uma questao para ser trabalhada... Uma ultima questdo antes de concluir a minha fala: qual €.0 lugar, qual € a presenga do analista numa clinica particular da constelag4o familiar? Se a auséncia, como Sartre fala no Ser e o Nada, é o modo particular da presenga, ser4 que o analista nao est4 14 para encamar com sua voz, a presenga da fala? Uma presenga na nomea¢do é necess4ria para por em jogo, em movimento, a dialética da presenga e da auséncia na mae. Se o analista é desde o inicio ausente, seri apenas repeticao de uma falta de presenga e 0 reenvio em espelho dessa falta. No 86 MELANCOLIA PARENTAL lugar de presentificar a auséncia, intensificard 0 vazio, o branco. Pela colocagao em jogo, via transferéncia,da presenga-auséncia do olhar e da voz, abre-se talvez uma possibilidade de passagem de uma falta de presenga para uma presenga faltante da mie para o seu bebé, uma presenga que dé lugar A auséncia. Se ela ndo € tudo, a relagdo simbélica estrutura tudo da relagdo inter-humana. Nao posso descrever o trabalho de luto que consistia em nomear a perda e em situar os “brancos” quanto ao luto na genealogia. Esse trabalho de luto permitiu situar um lugar vazio, um lugar para o sujeito em Lucie. O trabalho do luto no pai e na mae permitiu, me parece, que se inaugurasse um outro tempo: o da colocagdo em movimento do olhar materno e mais globalmente da dialética do amor. f no semindrio A Transferéncia que Lacan se interroga sobre a estrutura do amor a partir do Banquete de Platéo. O amor é dialética entre um amante (erastés) e um amado (erémenos). O amante nao sabe o que lhe falta, o amado nado sabe o que tem de escondido e que constitui seu atrativo. E 0 que falta em um nio é o que hi, escondido, no outro. Lacan eleva o amor a dignidade da metéfora, ao qualific-lo de substituigdo, o que constitui o cerne da dialética do sujeito. A partir do texto de Platao, ele interpreta que o carter sublime do amor, o que € reconhecido pelos deuses como maravilhoso, € quando o amado se comporta como um amante. Lacan propée uma articulagao da fungao do desejo no amor. “O ser do outro no desejo nado é absolutamente um sujeito. O erémenos € erémenon, no neutro, e também ta paidikd, no neutro plural - as coisas da crianca amada, podemos traduzir. O outro, na medida em que & visado no desejo, é visado como objeto amado”. “E na medida em que a fungio do erastés, do amante,uma vez que ele € 0 sujeito da falta, vem no lugar, se substitui a fungao do erémenos, o objeto amado, que se produz a significagio do amor’. 87 TRATAMENTOS MAE-CRIANCA O movimento de preseng¢a-auséncia do analista, via seu olhar € sua voz, ndo seria entdo o suporte do fato de que a mae de Lucie se reconhecesse no amor de seu bebé? Dois contrapontos clinicos a esta questdo: 1. Da demanda de ser olhada ao olhar de amor Quando o lugar de Lucie foi reconhecido livre, chamei Lucie por seu nome, e ela respondeu por movimentos de mios (semelhantes aos de uma crianca que acaba de nascer). A mae a amamentou. Depois da mamada, levantou-a diante do seu rosto e disse: “Ela niio me olha, ndo me sinto olhada por’ ela’. Coloco-me entdo por tras da mie, olho Lucie e lhe dirijo o que diz a mae; Lucie craza meu olhar e eu a convido a olhar sua mie. A mie de Lucie olhard seu beb@ que de maneira lenta e caética, fixari e encontrar4 o olhar materno. 2, Do objeto amado, olhado ao sujeito amante, olhante Lucie se pée a gritar em eco a célera retida em sua mie. Interpreta o grito de Lucie e proponho tom4-la no meu colo. Lucie € mantida olhando sua mae e dando as costas para o analista. A mae nomeia sua célera e eu traduzo para Lucie a palavra materna. Lucie presta aten¢do, intensifica seu t6nus corporal e esboga um gesto com a mdo para sua mde, movimento, olhar, apelo que nomearei colocando-a nos bragos de sua mie. Movimento de encontro cujo terceiro termo permanece ai presente sob o nome do amor. A estrutura do amor € movimento, tal como o jogo do carretel, aquele da substituigio do erastés pelo erémenos que inscreve no interior do sujeito um espago perdido, inexplicdvel. 88 MELANCOLIA PARENTAL BIBLIOGRAFIA. Aulagnier P., “Troubles psychotiques de la personnalité ou psychose?” Topique, n° 47, 1991. Aulagnier P., “Voies d’entrée dans la psychose”, Topique, n°49, 1992. Bick F., “The Experience of the Skin in Early Object Relations”, Int. J. Psychoanal. 1968, Green A., Narcissisme de vie, Narcissisme de mori, Paris, Ed. de Minuit,1983. Green A., La Folie privée, Paris, NRF, Ed.Gallimard, 1990. Haag G., “La psychanalyse des enfants psychotiques’, in “Psychanalyse des psychoses de l’enfant’, Journal de la Psychanalyse de Venfant, n°5, Paidos/Centurion, 1988. Haag G., Corps et Liens, Aix-en-Provence, 3e colloque du GECP, 21 et 22 avril 1990. Kreisler L., L’Enfant du désordre psychosomatique, Toulouse, Privat,1981. Meltzer D., Exploration dans le monde de l'autisme, trad. Genevidve et Michel Haag et coll., Paris, Payot, 1980. Siksou J., Golse B., ‘Ancrage corporel des symbolisations précoces”, Devenir, 1991, vol. 3, n°2. Tustin F., Autisme et Psychoses de Venfant, trad. M.Davidoci, Paris, Seuil, 1977. Tustin F., “Développement de la compréhension. Itinéraire personnel”, trad. fr. in Patio, 3, Paris, Evel, 1984. Tustin F., Le- Trou noir de la psyché, trad. P. Chemla, Paris, Seuil, 1989. Topique, “Voies d’entrée dans la psychose”, n°35/36, 1985. 89 ‘TRATAMENTOS MAE-CRIANGA ‘Tradugao: Telma Queiroz Psicanalista, psiquiatra, C.E.S de Psiquiatria pela Fac. de Medicina Xavier-Bichat, Paris VIL. Professora da Fac. de Medicina da Univ. Fed. da Paratba. Sobre a Autora Psiquiatra de criancas, psicanalista, diretora do Departamento de Criangas e Familia do Centre Chapelle-aux-Champs em Bruxelles, Servico de Psiquiatria da Pac. de Medicina-Universidade Cat6lica de Louvain (Bélgica). Respons4vel por “La lice”: projeto de um “lugar” de acolhimento, escuta e tratamento das dificuldades interativas Precoces do bebé e da crianca pequena com a sua familia e o seu meio (Grupo de psiquiatria infantil UCL).

You might also like