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"A Nega¢do"'um claro enigma de Freud MARILENE CARONE 1. A Negagao: um claro enigma de Freud “Escrevi alguns ensaios breves, mas nao coisa muito séria. Talvez lhe fale deles mais tarde, se me decidir a reconhecé-los. Vocé pode ter acesso a seus titulos: A negacdo, Inibigdo e sintoma e Algumas conse- quéncias da diferenca sexual anatémica” — diz Freud a Abraham, numa carta de 21 de julho de 1925 (S. Freud, K. Abraham, Briefe Fischer, 1965, p. 362). Nao deixa de ser intrigante 0 desdém com que Freud fala de algumas de suas pequenas obras-primas, entre as quais as densas cinco paginas de A Negacdo, até hoje fecundas e estimulantes para os estudiosos das mais diversas filiagdes pds-freudianas. (1) Contrariando uma certa corrente francesa, em particular a representada por Lacan e seguidores, ndo optamos por traduzir “Verneinung” por “denegagao”” ~ e muito menos por “negativa”, como quer a tradugdo brasileira (S. Freud, Obras Completas, vol. XIX, p. 295, Ed. Imago). A impropriedade de “negativa” parece tao Obvia que mal merece discussdo. “Verneinung” & 0 termo mais genérico possivel Para o ato de dizer ndo; a “negativa” aplica-se a um caso particular e especifico des- te mesmo sentido. Quanto 4 disputa entre “denegagdo” e “negago”, haveria varios argumentos a serem levados em consideragdo. Em primeiro lugar, embora haja mo- mentos no texto em que “denegagdo” poderia ser o termo mais adequado para tra- duzir “Verneinung” (quando o sentido € psicolégico, de desmentido, de recusa de uma suposta afirmag4o), hd outros momentos (quando o sentido é o da gramatica ou da légica) em que seria incorreto nao chamar “‘Verneinung” de “negacdo", pura © simplesmente. Para desdobrar a “Verneinung” em dois outros termos, terfamos que decidir, a cada momento em que ela comparece (sem garantias contra 0 erro e a arbitrariedade), qual o mais adequado. Ha outros argumentos igualmente simples, a favor desta escolha: “Verneinung” & 0 oposto de “Bejahung” (afirmagao) — e isto 125 Poderfamos entender esta desqualificagdo do préprio trabalho como expressdo de um estado de animo depressivo, de um doente (0 cancer eclodira em 1923) que escreve para outro doente (Abraham ja estava gravemente atingido pela doenga pulmonar que o levaria 4 morte cinco meses mais tarde). Mas o fato é que Freud, ao analisar 0 conjunto da sua obra, muitos anos depois, continuava a afirmar que, depois de Para além do principio do prazer (1920) e de O ego eo id (1923), “nao dei mais contribuigdes decisivas 4 psicandlise, e 0 que escrevi depois disso poderia ter sido emitido sem maiores prejuizos ou logo seria apre- sentado por outro” (G.W., XVI, p. 32). Fica claro, portanto, que, a partir de 1923, Freud considera encer- tado © trabalho decisivo de construgdo do edificio tedrico da psicand- lise; entre 1923 e 1925, publica uma série de pequenos ensaios que chamarfamos de trabalhos de acabamento, que visavam completar for- mulag6es anteriores, aplicd-las a questdes novas, rever velhos enigmas. Nao por acaso, s4o deste perfodo os textos: A organizagao genital infan- til (1923); Neurose e psicose, Problema econémico do masoquismo, O declinio do complexo de Edipo (1924); Nota sobre o bloco magico, Complementagdo a interpretagdo dos sonhos, Algumas conseqiiéncias psiquicas da diferenca sexual anatomica e A negag@o (1925). O n&o-reconhecimento inicial, por parte de Freud, da paternidade dos trés trabalhos citados na carta a Abraham parece dever-se nao tanto ao desconhecimento da sua importancia, quanto ao impacto da desco- berta de novos impasses e obstdculos teéricos a suplantar. Em uma carta a Lou-Andreas Salomé, escrita na mesma época (10/05/1925), Freud confidencia: “Penso que descobri algo de impor- tancia fundamental para o nosso trabalho, que guardarei para mim por algum tempo. E uma descoberta de que eu realmente devia me envergo- nhar, pois deveria ter adivinhado estas ligagdes desde 0 comego e nao so depois de trinta anos” (S. Freud, Lou A. Salomé, Correspondéncia completa. Imago, 1975, p. 203), Em Inibigdo, sintoma e angistia (ci- desde sempre na lingua alem@, nao apenas em Freud. Seria, portanto, errado opor a “afirmagdo” a “denegagdo” em vez da “negagdo”. Além disso, na Lingua portuguesa © substantivo “negacdo” abrange perfeitamente as duas acepgées, a ldgico-gramati- cal e a psicolégica. Por tiltimo, um argumento de fidelidade ao modo como Freud encarava as quest6es de terminologia em psicandlise. Em Die Frage der Laienanalyse (A questdo da andlise leiga), um texto de 1926, alids contemporaneo do texto Verneinung (GW, XIV, 222), diz Freud “... wir lieben es in der Psychoanalyse im Kontakt mit der popularen Denkweise zu bleiben, und ziehen es vor, deren Begriffe wissenschaftlich brauchbar zu machen, anstatt sie zu verwerfen” (‘‘... na psicana- lise gostamos de ficar em contato com 0 modo popular de pensar e preferimos tor- nar seus conceitos cientificamente titeis, ao invés de rejeitd-os”). Ora, “negar” e “negacao” so termos correntes da fala cotidiana, ao passo que “denegar" e “dene- ga¢do” so termos intelectualizados, sofisticados, distantes do nosso “modo popu- lar de pensar”. 126 tado na carta a Abraham como Jnibi¢do e sintoma), Freud retoma quase literalmente este pardgrafo: “E quase vergonhoso que, depois de um trabalho tao longo, encontremos dificuldade na compreensio das rela- gdes mais fundamentais, mas nos propusemos nada simplificar e nada ocultar. Se ndo pudermos ver com clareza, vejamos pelo menos com preciso as obscuridades” (G.W., p. 155). E em uma destas tentativas de “ver com precisdo as obscuridades” que nasce 0 texto da Verneinung. Aparentemente simples, é, no entanto, um ensaio extremamente complexo, ndo-linear, ousado e descontinuo do ponto de vista tematico. Incorpora as grandes descobertas mais recentes de Freud (pulsdo de morte e segunda tépica) e realiza um esforco de sintese metapsicologica, trazendo 4 baila questdes como a origem do pensamento e as distingdes subjetivo-objetivo, representa- ¢do-percepcao, interno-externo, real-nao real. ‘Os lacanianos enfatizam nele a representagdo verbal (0 “nao”) co- mo o indice negativo que marca o reconhecimento do inconsciente, ou seja, © ego como o lugar do des-conhecimento; os psicanalistas do ego norte-americanos véem no artigo elementos para uma anilise positiva da estrutura do ego — como o lugar da ldgica, da organizacdo temporal, do controle da agao pelo pensamento, do teste de realidade. Como se vé, escolas psicanaliticas tao radicalmente opostas sao capazes de se apropriar da Verneinung e de tornar seu um pensamento que ainda continua a requerer decifragao, 2. Tradugao comentada do original alemao por Marilene Carone O modo como os nossos pacientes apresentam as idéias que lhes ocorrem? durante o trabalho analitico nos dé a oportunidade de fazer algumas observagGes interessantes. “Agora o Sr. vai pensar que quero dizer algo ofensivo, mas realmente nao tenho esta intengdo.” Enten- demos que isto é uma rejeigao*, por projegdo, de uma idéia emergente naquele momento. Ou entfo: “O Sr. pergunta quem pode ser esta pessoa no sonho. Minha mée nao é”, E nds retificamos: logo, é a mae. Na inter- Pretagdo tomamos a liberdade de desconsiderar a nega¢4o, extraindo © puro contetido da idéia. E como se o paciente tivesse dito: “Na verda- Q) Traduzimos “Einfall”, sempre que possivel, por “idéia que ocorre” respectivamente. Discordamos dos que propdem “eu”, “isso” essupeced™ para idch » SEs’ e “UberIch”, Por serem artificiais em portugués. As formas “ego”, af g superego”, embora sejam latinismos, ji fazem parte do vocabuldrio cultural rrente. (b) Ver a este respeito, as observagdes feitas em Pulsoe ir exon cs e es e seus destinos 130 te. Uma contribuigao ulterior ao distanciamento'? entre subjetivo e obje- tivo provém de uma outra faculdade da capacidade de pensar. A reprodu- gao da percep¢do na representac¢do nem sempre € sua fiel repeti¢do; ela pode ser modificada por omiss6es, alterada por fusao de diversos elemen- tos. A prova de realidade precisa, ento, controlar até onde vao estas deformag6es. Mas se reconhece como condigao para a instalagdo da prova de realidade que tenham sido perdidos os objetos que um dia propor- cionaram uma real satisfagdo. O julgar é a acdo intelectual que decide a escolha da agao motora, poe fim ao adiamento pelo pensamento e faz a passagem do pensar para o agir. Em outro lugar, também ja tratei da questo do adiamento pelo pensamento. Ele deve ser considerado como uma agao experimental, um tatear motor com um minimo dispéndio de descarga. Consideremos agora © seguinte: onde o ego teria exercitado antes este tatear, em que lugar aprendeu esta técnica agora empregada nos processos de pensamento? Isto aconteceu na extremidade sensorial do aparelho psiquico, nas per- cepgdes sensoriais. Segundo nossa hipdtese, a percepgdo nado é de modo algum um processo puramente passivo, mas 0 ego envia periodicamente pequenas quantidades de investimento para o sistema de percepgdo, por meio das quais ele experimenta'? os estimulos extemnos, recolhendo-se novamente apds cada um destes avangos tateantes. O estudo do juizo nos abre, talvez pela primeira vez, a compreen- sao da origem de uma fungdo intelectual, a partir do jogo das mogdes pulsionais primdrias. O julgar é 0 prosseguimento coerente!* daquilo que originariamente € realizado pelo principio do prazer: a inclusdo no ego ou a expulsdo para fora dele. Sua polaridade parece corresponder a opo- sigdo existente entre os dois grupos de pulsdes supostos por nds. A afir- mag4o como substituto da uniao pertence a Eros; a negacdo, sucessora da expulsdo, A pulsdo de destruigao. O prazer de negar em geral, o negati- vismo de muitos psicéticos, deve ser provavelmente entendido como si- nal de defusio'® pulsional, com a retra¢do dos componentes libidinais. Mas o desempenho da fungao do juizo s6 se torna possivel pelo fato de que a criacgdo do simbolo da negag4o permite ao pensamento um primei- (12) “Entfremdung” — literalmente significa estranhamento, ato pelo qual uma coisa se torna estranha, “alienada”, em relagZo a outra. (13) “Verkostet”: Freud emprega, aqui, 0 verbo “verkosten” (provar, expe- timentar) que, nfo por acaso, inclui o verbo “‘kosten”” (degustar, experimentar © sabor). (14) “Zweckmassig” — significa coerente, no sentido de algo que se adapta auma finalidade, que estd de acordo com um objetivo ("“Zweck” = fim, objetivo). (1S) “Entmischung” & 0 contrario de “Mischung” (mistura, fusdo, intrinea- Mento). Em yez de “defuséo", encontramos ds vezes a expresso “desintrincamen- to”, igualmente correta. 131 ro grau de independéncia das conseqiiéncias da repressdo e com isso tam- bém da coagao do principio do prazer. Esta concepcdo da negagdo se ajusta muito bem ao fato de que, na andlise, ndo se descobre um “nao”, vindo do inconsciente, e que 0 reco- nhecimento do inconsciente por parte do ego se expressa numa formula negativa. Ndo ha prova mais forte de que conseguimos descobrir o inconsciente do que quando o analisando reage com a frase: “Isto eu nao tinha pensado”, ou “Nisto eu nao tinha pensado (nunca)”. 132

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