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I1 © Tempo As muitas linguas da conversao: missiondrios, Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial Cristina Pompa® Desde as reflexdes de O'Gorman sobre a “invengao da América”, a Lireratura de Viagem dos séculus XVI e XVI uo € mais vista como 0 teste- munho de uma descoberta, mas como o produto de um processo de constru- do do “outro”, Essa idéia da construgao intelectual informa, hé varios anos, 08 estudos sobre as imagens dos indios, oferecidas pelos viajantes, onde a definigao do “selvagem” € funcional, principalmente para a identificagao da civilizag&o ocidental, que, discorrendo sobre o “diverso”, fala de si mesma, verificando-se.! Portanto, nao constitui nenhuma novidade dizer que 0 indio, descrito nos relatos de viagem, é « realidade outra (monstruosa, canibal ou barbara), *Doutora em Giéncias Sociais pela UNICAMP. Edmundo O’Gorman, A invengdo da América, Sio Paulo, Unesp, 1992 [1958]; Michel De Certeau, Liriture de histoire, Patis, Gallimard, 1975; Tzvetan Todoroy, La conquéte de Amérique, La question de Vauire, Paris, Seuil, 1982; Gilberto Mazzoleni, O Planeta cultural, Para uma an- ‘ropologia histérica, Sto Paulo, Edusp, 1992 [1986]; Frank Lestringant, Latélier de cosmographe ou Fimage du monde a la Renaissance, Paris, Albin Michel, 1991; Guillermo Giucei, Viafantes do Maravilkoso. O Nove Mundo, S20 Paulo, Companhia das Letras, 1992. Especifieamente sobre Brasil: Laura de Mello Souza, Inferno Adlantico, Demonologia e Cotonisagao, Séculos XVEXVIN, Sao Paulo, Companhia das Letras, 1993; Ronald Raminelli, fmagens da colonizagao. A represen- 1a¢do do Indio de Caminka a Vieira, Rio de Janeiso, Zahar — Si0 Paulo, Edusp-Fapesp, 1996. Tempo, Rio de Janeiro, n® 11, pp. 27-44 27 Dossié que 0 ocidente conhece bem, de toda uma literatura classica ¢ medieval Herddoto a Navegatio Sancti Brandani, do Livro de viagens, de John Mande- ville ao I/Mifione, de Marco Polo. Essa imagem do mundo, sustentada ¢ pro- tegida pelo horizonte teolégico, é necessaria até mesmo para perceber os “fatos”, pois a comparagio analdgica é 0 Gnico instrumento epistemoldgico de compreensio cultural. Como mostra 0 proprio Golombo, o viajante des- reve apenas 0 que ja conhece € que nao precisa submeter a “prova” empirica, porque esté legitimado pelos discursos dos eruditos ¢ dos santos. Por isso, jé que entre os Tupinambé do litoral no se encontrava ne- nhum dos esperados sinais da “idolatria” ou do “paganismo”, que caracteri- zavam outras regides do Novo Mundo (templos, sacrificios, idolos), os mis- sionarios os viajantes da Terra de Santa Cruz resolveram que esses selva- gens nd0 tinham religido: “(...) esta gentilidade nenhuma coisa adora”, dizia Nobrega, “(...) nao tem adorago nenhuma, nem ceremonias, ou culto divi- no”, escrevia Cardim.? Essas primeiras observacées, que se encontram tam- bém em todos os outros cronistas, de Pero Magalhaes de Gandavo a Gabriel Soares de Sousa, parecem seguir o modelo inaugurado pela carta de Amerigo Vespucci a Lorenzo de Medici, datada de 1502: “Nao tém lei nem fé nenhu- ma, vivem segundo a natureza (...) nao tem Rei, nem obedecem a ninguém”.* Vespucci, de fato, foi o primeiro tedrico do “estado de natureza” dos selva- gens, teoria que acabou informando também a Bula Swb/imis Deus, de 1537, que declarava que os americanos nao eram animais mudos (muta animalia), © sim homens (veri omines). Mesmo se “natural”, ou melhor, justamente por isso, nesse homem a Escolastica mandava identificar um minimo sinal da presenga de Deus, pois, conforme Cicero e, depois, Aristételes e Tomas de Aquino, nao existe povo tGo barbaro que nao tenha uma minima nogio de divindade. Eis, entio, que je anogio minima de Deus aparece nas mesmas paginas que declaram sua au- séncia: contradigao ndo apenas interna aos missionarios no Brasil, mas a pr6: pria cultura ocidental do século XVI, frente a necessidade de conceptualizar a humanidade “outra”, que a descoberta colocava como problema. Manuel da Nébrega, “Informagio das terras do Brasil” (Carta aos padres e irmaos de Coim- bra; Bahia, agosto(?) de 1549); Scrafim Leite, Cartas dos Primeiros Jesuitas no Brasil (1538-1553), Sio Paulo, Comissio do IV Centenério da Gidade de Sio Paulo, 1954, vol. I, p. 150; Femio Cardim, Tratados da terra e gente do Brasit, $40 Paulo, Companhia Editora Nacional, 1978 (1625), p. 102. * “Lettera di Amerigo Vespucci a Lorenzo di Piero de’ Medici...”, Nicola Gasbarro, 1492: Apparve la terran, Milano, Giuffré, 1992, pp. 122-126. 28 |As muitas linguas da conversdo: missiondrias, Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial Essa nogio de Deus em baixo-relevo estava, no entender dos missio- nétios, no personagem mitolégico de Tupd, de caréter uranico, ligado ao tro- vio. Na Informagita das terras do Brasil, citada acima, Nobrega revela a peda gogia jesuitica, que construiu o “deus 7ipa” (mas também o diabo Jurupari, a passage de Sao Tomé, o conhecimento do diliivio universal, ¢ assim por diante),* para elaborar, a partir dai, 0 projeto catequético: “(...) apenas cha- mam os trovées Tupana, que € como dizer coisa divina. Entao nao temos outro yoeibulo mais conveniente para trazé-los ao conhecimento de Deus do que chamé-lo Pai Tupana”S A necessidade epistemolégica (teol6gica) de atribuir aos indios umas crengas, mesmo se vagas ou erréneas, obedecia A exigéncia cultural de inter- pretar 0 outro ¢, paralelamente, traduzir o “eu” para o outro. Para essa tradu- (do, era necessirio construir uma linguagem de mediagio, que, no infcio da Tdade Moderna, nfo podia sendo se utilizar do cédigo religioso, pois era sem- pre a partir dele que se dava qualquer interpretagao da realidade. De uma maneira geral, pode-se dizer que foram 0s jesuitas os grandes artifices dessa tradugo cultural, na medida em que foram criando a “lingua geral”, para fim de catequese. Alfredo Bosi identifica em Anchieta o maior desses “tradutores”, procurando transpor a mensagem crista para o interior dos cédigos tupi. Anchieta construiu conceitos que traduziam uma situagdo histérica e cultural especifica: se Tupd era Deus, Nossa Senhora era Tupansy. mie de Deus, oreino de Deus era Tuparetama, igreja era tupavka, casa de Tupé, alma era anga, que valia tanto para toda sombra quanto para o espitito dos antepassados. Anjo era traduzido com o extraordinario termo Aaraibebé, jun- tando o Zebé (v0) ao complexe vocabulo éarar.é Justamente, Bosi frisa que barat (que, diga-se de passagem, é palavra guarani e nao tupi, que usa 0 ter- mo carafba) indica tanto a “santidade”, ou seja, o grande xama, quanto 0 homem branco. Poderfamos perguntar-nos: que sentido poderia adquirir para os Tupi a idéia de vo, associada & de caraba, num universo simbélico onde 0 caraiba Sumé (0 Si0 Tomé dos missiondrios) desaparecera, voando para 0 outro lado do mar, prometendo voltar? Em outros termos, qual foi o peso da £0 mito do diltivio, difundido entre os ‘Tupi, levou a certeza da passagem dos apéstolos em terra americana, como “testemunhavam’” as marcas deixadas por Sio Tomé (o herdi culeural Sumé dos Tupi) em varias pedras encontradas no litoral. 5 Nobrega, op. ait, p. 150. Alftedo Bosi, Dialética da Colonisagao. S40 Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 63-ss. 29 Dossié “mitologia paralela”, construida pelos jesuitas, na revisao do patriménio sim- bélico tradicional? Esse é um exemplo do que Ronaldo Vainfas diz a prop6- sito da Santidade de Jaguaripe, ou seja, da traducio do catolicismo para o tupi e do tupi para o catolicismo, elaborada, por indios ¢ missionarios, nas aldeias jesuiticas.” Esta claro que no apenas o Iéxico tupi foi organizado numa sintaxe crist, mas que se criou uma nova sintaxe, ou melhor, uma nova organizagao de sentidos. A religiio do mundo classico era o referente privilegiado do ho- rizonte simbélico europeu, no encontro com as “religiées” amerindias: a mesma teologia crista que claborara a nogo de “paganismo” foi projetada na leitura da religido nativa, que existia, in nuce, mas que era falsa, fruto da ma- nipulagao diabélica. Esse dominio do deménio sobre os indigenas se manifestava de uma forma bem precisa: através dos xamas, dos pajés ou caraibas, e de suas ceri- ménias. Nos xamis, desde o principio, os missiondrios identificaram os ini- migos mortais da catequese e, portanto, seus “maiores contririos”, para usat as palavras de Nobrega. Suas ceriménias foram logo demonizadas, mas, ao mesmo tempo, a partir dai, se deu a tradugao reefproca entre as duas linguas do encontro colonial, utilizando fragmentos dos dois universos simbdlicos, em busea de uma linguagem comum. A oposigio divino/diabélico foi traduzida pela dicotomia verdade/men- tira: a teoria patristica da contrafagao diabélica da realidade (com que o cris- tianismo das origens explicara teologicamente o “paganismo” cléssico) pro- jetou-se no selvagem da Terra de Santa Cruz, Portanto, a necessidade epis~ temol6gica de atribuir aos “outros” uma religido e a exigéncia pratica de es- tabelecer com esta um didlogo levaram & elaboragio de uma linguagem que pudesse dar conta, a0 mesmo tempo, da realidade falsa, construfda pelo de- ménio ¢ representada pelos caraibas, e da verdadeira, revelada por Deus e veiculada pelos padres, Eis, portanto, que os caraibas se tornaram os “san- tos” ou os “profetas” dos Tupinambé e de seus embustes, traduzidos “como dizer coisa divina”. E no conflito radical entre a realidade falsa dos “feiticei- ros” ¢ a verdadeira dos padres que podemos acompanhar essa confusio de horizontes, devida a utilizagzo de uma linguagem comum. 7 Ronaldo Vainfas, A heresia das Indios. Catolicismo ¢ Rebeldia no Brasil Colonial, Si Paulo, Companhia das Letras, 1995. 30 Is muitas linguas da comversio: missiondrios, Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial “Todas as testemunhas jesuiticas, como notou Vainfas,* frisam a “santi- dade” das ceriménias dos caraibas. O relato de Nébrega, porém, acrescenta 0 outro aspecto dessa tradugao: a do lado dos Tupi. De certos em certos anos vém alguns feiticeiros de terras longinquas, fingin- do trazer santidade (...) estes s40 03 maiores contrérios que aqui temos € fa- zem crer algumas vezes aos doentes que nés metemos em seus corpos facas, tesouras ¢ coisas semelhantes, € com isto os matamos.” Assim como a leitura jesuitica dos caraibas foi feita em termos de distorcao diabélica da santidade, a leitura tupinambé dos padres foi feita em termos de xamanismo. Gomo os xamis, os jesuitas podiam provocar docngas € motte, através da introdugao de objetos no corpo das pessoas. Nesses ter mos também foi entendido o batismo, principalmente o batismo em massa, in articulo mortis, que os jesuitas praticavam em época de epidemias. A construgao de uma nova linguagem, que conseguisse traduzir 0 tupi para o catolicismo ¢ 0 catolicismo para 0 tupi, passou, necessariamente, por- tanto, pela sobreposigao de caraiba a missionério. Essa sobreposigao, ou iden- tificagao, foi procurada, por um lado € por outro, naquela que, como feliz expresso, Ronaldo Vainfas chamaa “batalha pelo monopélio da santidade”. Francisco Pires, em carta de 1552, relata um sermao de Nébrega, numa aldeia indigena: “(...) dizendo o padre que aquela era a verdadeira santidade e dizendo aos principais que se preparassem para as coisas de nosso Senhor, da parte do bispo, que era o verdadeiro Pajé-guacu, que quer dizer ‘Grande pai”! O padre Azpileueta Navarro comegava a despejara torrente da sua elogiléncia, levantando a voz.¢ pre~ gando-lhes os mistérios da f¢, andando em roda deles, batendo o pé, espal- "Idem, p. 62 ¢9s. A partir das observagées de Lausa de Mello ¢ Souza sobre a fluidez das fron- teiras entre Deus ¢ o Diabo, no imaginaio popular, no inicio da época moderna, onde a san- tidade podia ser a falsa aparéneia da natureza demoniaca ¢ onde a necessidade de separar 0 santo do diabdlico cra a verdadeira obsessio de inquisidores € teélogos, Vainfas observa que esse universo simbélico foi rapidamente projetado nos discursos sobre os indios. Nesse con- texto tem que ser enquadrado o uso do terme “santidade”, para indicaras “ceriménias diab6- licas” dos caratbas. * Nébrega, op. cit, p. 150. * Francisco Pires, “Carta dos meninos 6rfios ao Padre Pero Domenech, Lisboa” (Bahia, 5 de agosto de 1552); Serafim Leite, op. cif, p. 386. 3I Dossié mando as mos, fazendo as mesmas pausas, quebras € espantos costumados entre seus pregadores, para mais os agradar e persuadie.!” E a classica pedagogia jesuit nativa como “linguagem” para veicular contetidos da f€ catdlica, na mesma linha do nome Tipd para indicar Deus, ou Jurupari e Anka para 0 Diabo, © assim por diante. Na luta pelo poder espiritual, os jesuitas tentaram apode- rar-se dos instrumentos, dos simbolos ¢ da fala de seus “maiores contratios” Os missionrios nao encontraram crengas e dolos; & por isso que, para eles, os Tupinambé nio tinham religiio. Em compensagio, encontraram ri- tuais © agentes demontacos, ¢ foi nesse terreno que, por um lado, se concentrou a. agio repressora (aquela que, em outras terras americanas, foi chamada de “extirpagio da idolatria”) e, por outro, se tornou possivel a substituiggo dos simbolos tradicionais pelos novos. Foi, portanto, nas prdticas, mais do que nas crengas, que se operarai a leitura, a interpretagio ¢ a tradugao de um univer- so simbélico para 0 outro. E esse processo foi de mao dupla: as “santidades” indigenas também se apoderaram no apenas dos signos exteriores, mas também da fala dos padres catélicos. A Relaeao do jesuita Fern Guerreiro, de 1609, € um exem- plo extraordinario dessa “tradugio” e dese patamar comum, onde, com os nossos critérios, seria bem dificil distinguir o “licito” do “ilicito”, 0 cristéo do “gentilico” : @ utilizagdo de elementos da cultura Chegando as portas da cerca, correu logo pela aldeia uma voz que dizia: ai vem © pai grande, saiam todos a recebé-lo (...) Ele estava como quem ensina a doutrina, misturando mil desbarates, como era dizer Santa Maria, pana, remireco, que quet dizer Santa Maria, mulher de deus, ¢ outros despropésitos semelhantes. Estava posto de joelhos, com os olhos no céu e as maos levanta~ das € abertas como sacerdote que diz missa. (...) Andam estes pobres tao ce- gos com aquela que chamam a sua santidade, que totalmente teem para si que nJo hi outra e que eles s6 so os que acertam, todos os outros e nés imos erra~ dos; pelas noticias que li tem das coisas da igreja por alguns indios que fugi ram dos portugueses, se foram pelo sertdo adentro, batizaram os seus, posto que nZo na forma da igreja e a todos os homens poem o nome de Jesus e as mulheres Maria, Usam da cruz, mas com pouea reveréncia, ¢ teem outras cerimonias a0 modo da igteja. ‘Tem modo de sacerdotes, aos quais obrigam a guardar castidade, na qual si faltam os depdem logo do oficio (...) imio de Vasconcelos, Crénica da Companhia de Jesus, vol. I, Petrépolis, Vozes, 1977 [1663], 221, 3 As muitas linguas da conversdo: missiondrios, Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial Os vocabulos utilizados de um e de outro lado do encontro (pai, santi- dade, tupana) mostram quc o esforgo de tradugio da alteridade chegou acons- truir uma nova sintese cultural. Jé no comego do século XVII, a experiéncia da convivéncia ¢ da tradugao reciproca transformou em tolerincia o que, no comego da evangelizagio, era visto como manifestagao diabélica, por um lado, mortal poder xamanistico, por outro. Essa experiéncia, adquirida em um século de evangelizagao dos Tupi, tornou-se preciosa na atividade missiondria entre os “Tapuia” do sertéo,"* na metade do século XVII. As cartas jesufticas e as relages capuchinhas sobre as aldeias dos Kariri das Jacobinas ¢ do Sao Francisco descrevem suas “su: perstigSes” e, paralelamente, a atividade catequética e repressiva que levou a “extirpa-las”, A documentacao" confirma 0 quanto jé assinalado com respeito aos Tupinamba. Em sua descrigao da mitologia e dos rituais indigenas, a “fonte” missionaria € jd 0 fruto de uma sobreposigao de mediagdes € de tradugées do “eu” para o “outro”, e vice-versa. A cosmologia indigena mostra, ja na déca- da de 1670, ou seja, poucos anos depois do inicio da catequese, o esforgo de absorgao da alteridade dos brancos sua tradugao em termos nativos. Os (pou- cos) relatos sobre “crengas” indigenas j4 apresentam versdes cristas, ou 2A de “tapuia” é uma categoria eriada no proprio contexto colonial. As linguas nao-tupi fo- sam identificadas pelos colonizadores, junto com seus falantes, com o nome genérico — uti- lizado de forma contrastiva pelos mesmos tupi — de “tapuia”. O dos tapuiia, entio, € um universo percebido em oposigo a0 mundo tupi. Nas cronieas, « partir de Gandavo, & extraor- dinaria homogeneidade cultural dos Tupi da costa se apunha a extraordindria diversidade cultural e lingiifstiea dos povos do sertdo: gente “de lingua travada”, segundo a célebre ex- pressio jesuitiea. Outro elemento de caracterizagio da distingZo tupi/tapuia & geografico: estes tiltimos sdo mais afcigoados &s entranbas “das brenhas e centro dos sertoes”. Desde Gabriel Soares de Souza, a nogio de tapuia constrdi-se colada a nogdo de sertao, espago do imaginario em que se desloca, cada vez mais longe, a alteridade barbara, que a conquista ¢ a colonizacao vao incorporando aos poncos, em posigdo subalterna, ao mundo colonial. ® Os documentos sobre as aldeias do sertio, apresentados aqui, so, €m sta maioria, inéditos, conservados no Arquivo Romano da Companhia de Jesus (ARS). Alguns dos textos foram publicados por Serafim Leite (Histéria da Companhia de Jesus no Brasil, Lisboa, Livraria Portugilia — Rio de Janeiro, Civilizagio Brasileira, vol. 5, pp. 311 ¢ ss., 276 € 88. € 298 e 85.) Contudo, o estudioso jesuita operou uma série de “censusas” sobre as eartas, nas partes que nfo transmitiam uma imagem particularmente edificante da missio jesuftica no servao. Lei traduain também muitos termos latinos com veeabulos de origem tupi, hoje consagracios pela cetnologia (“paje” por venefici, “cabana sagrada” por femplum, ¢ assim por diante). Finalmente, em alguns easos as descrigdes das cosmologias indigenas s4o omitidas, justamente por no screm “puras”, € sim jd “sineréticas” (que € justamente 0 que interessa aqui). Por eudo isso, as traduges dos textos em latim s4o minhas. 33 Dossié cristianizadas, de temas mitolégicos; melhor dizendo, j4 expressam aquele processo de “colonizagao do imaginario” (Gruzinski), ou de “hibridismo cul- tural” (Vainfas), ou, enfim, de tradugao, que marca a percepeao e a devolu- Ao, para o outro, da nova realidade colonial ¢ missionaria. ‘Tanto os capuchinhos quanto os jesuitas recuperaram a idéia, construida no século XVI, para os Tupi, da “nogao confusa” de Deus. Podemos obser var que a “confusao” atribufda aos indios é determinada pelo esforgo de per- sonalizagio, de identificagao e de classificacao (ou seja, de “racionalizagio”) do observador missionério, bem como pela sua (fracassada) busca de “crengas”. Anogio de “fé” é um produto histérico, no uma realidade ontoldgica.* Os conceitos de Fé ou de Crenga nascem da escolha crista, onde a “profisstio de fé” € a sua marca insepardvel; pensemos, por exemplo, nos primeiros san- tos, cuja vida herica e cujo martirio foram justamente o “testemunho de fé”, ou no Gredo, que identifica até liturgicamente o catolicismo."* Portanto, foi a religio (a crista, no caso) que construiu historicamente a fé, no € a fé que identifica a religido. Contudo, 0 fidefsmo cristo foi informando toda a cultu- ra ocidental, chegando até as ciéncias contemporaneas da diversidade, a an- tropologia e a historia das religides, onde no dificil encontrar 0 uso actitico desses termos (“Os Tupi acreditavam em...”). Ora, se até nos textos contem- poraincos de antropologia encontramos essa “fé na £6”, € to mais claro que a confusio e a fragmentariedade das crengas dos “Tapuia” dependiam do fato de que entre eles nao havia “crengas”, os tinicos sinais que, juntamente com os altares ¢ os templos, 0s missiondrios podiam reconhecer como elementos de uma barbara “religido”. Um problema analogo é 0 da personificago. Nao apenas os “Tapuia” (bem como os Tupi) deveriam acreditar em algo, mas principalmente em alguém. E, esse um outro aspecto da construgdo categorial que organiza a per- cepgio da realidade. O problema da “religiao” indigena foi sempre resolvi- do, desde 0s missiondrios do século XVI até uma certa etnologia religiosa contemporanea, induzindo o indigena a “personificar” algo que pode nao ser ' Esta discussio é caracteristica da Historia das Religides de marea historicista (no fenome- nolégica). Sobre a questio da “naturalizagao” de categorias histéricas no dominio do religio- 80, cf. Emesto de Martino, Naturalismo e Storicismo nell’ Etuologia, Bari, Laterea, 1941, ¢ Dario Sabbatucci, La prospettioa storico-religiosa, Roma, Il Bagatto, 1990. "© A definicto das diferentes comunidades de “erentes” como “confissées” (~ profissies de £8) € cronologicamente proxima da époea das descobertas (Dieta de Augusta, 1530) e certa- mente determinau o rumo da catequese nas Américas, inclusive a importancia dada ao sacra- mento da “confissio”, 34 As muitas linguas da conversdo: missiondrios, Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial personificével, mas que € a tinica maneira de estabelecer uma comunicagio com 0 campo religioso nativo. Afinal, o que 0 missionério procurava no “outro” era 0 “pai nosso que esté no céu”; 0 que encontrou foi transformado numa “crenga em alguém” para, a partir dai, desenvolver seu projeto evangelizador. Isso aconteceu, como vimos, com Tupd, entre 0s Tupinambé, mas no aconteceu com os “tapuia” Kariri, para os quais, no catecismo do jesuita Luis Mamiani, como no do ca- puchinho Bernardo de Nantes,"*o nome de Deus teve que ser, também, Tupa. Se € de “crenga” que se fala, ela ndo pode deixar de carregar em sia marca do ocidente cristo, que da “crenga” € 0 inventor. Martinho de Nantes intitula significativamente oseguinte trecho “artigo de fé de sua religido”: Eles me contaram varias vezes que 0 grande deus do céu, que cles chaman Touppart (sic) tinha mandado para a terra um grande amigo para morar com eles, ¢ que vivia como eles, e vivia também nu. Parecia velho, mas nao sentia as fraquezas da velhice. Chamavam-no o Grande Pai; recorriam a ele em to- das as afligdes, a que ele sempre dava remédio.” Touppart, Tupan. E muito provavel que Martinho de Nantes tenha lido os relatos de Claude d’Abbeville e de Yves d’Evreux, os capuchinhos france- ses, que, no comego do século XVII, estiveram entre os Tupi (Potiguara) do Maranhao."* O “grande deus” dos Kariri é, portanto, j4 0 produto de varias leituras e tradugdes. Bernardo de Nantes, em sua extraordiniria Relation, de 1702, referida aos anos oitenta € noventa do século XVII, relata: Poder-se-ia dizer, cambém, que os indios chamados Chumimi tiveram antige- mente algum obscuroconhecimento da Missio do Filho de Deus na terra. Eles dizem que Deus tinha dois filhos ¢ que 0 menor, zangado com 0 maior, aban- donou-o ¢ fugiu. Depois de muitos anos 0 maior, sentindo a falta do irmio, falou para seu pai que ia até a cerra procuri-lo. Ele veio € encontrou-o junto com seus descendentes, que 0 maltrataram muito €, depois de ter infligido ™ Luis Vieente Mamiani, Gaiecismo da douirina christia na Lingua brasilica da Nagam kiriri, Lisboa, 1698; Bernardo de Nantes, Catecismo da lingua kiriri, Leipzig, Ied. fac-similar, 1896 (1702). © Martinho de Nantes, Relagdo de uma Missito no Rio Sao Francisco, Sto Paulo, Companhia Editora Nacional, 1979, p. 99. (Rélation succinte er sincbre de la mission di pire Martin de Nantes, Paris, 1706. Ed fac-similar, publicada por F. G. Edelweiss, Salvador, Tipografia Beneditina, 1952.) " Claude D’Abbeville, Histoire de la Mission des Pores Gapucins en VIsle de Maragnon et terres circumevisines, Paris, Huby, 1614; Yves d’ Evreux, Voyage dans le nord du Brésil, Paris, Franek, 1864. 35 Dossié muitos tormentos, amarraram-no a uma drvore onde morreu de sede, do que amie dele ficou muito aflita, Depois da morte, ele aparecia num Ingare nou- tro ¢, finalmente, eles 0 viram subir de novo para o céu, para cima de uma certa montanha, € depois disso no o viram mais.” A busca de Bernardo € andloga 4 dos missiondrios do século XVI entre os Tupinambé, procurando as nogdes do diliivio, da passagem de Tomé, da imortalidade da alma, ou seja, os “rastros” de um percurso de descendéncia, que, ligando os selvagens is tribos perdidas de Israel, & estirpe de Cam ou & prega humano € fundamento a profecia da pregagdo do evangelho entre todos os povos da terra. ‘Também uma carta jesuitica anterior aponta para o conhecimento con- fuso, “natural”, de Deus, entre os “Tapuia”. de S40 Tomé, pudessem conferir consisténcia a unidade do género Na sua natural barbérie, dizem que outrora Deus vivia no are que, querendo fazer a terra, retirou um pedacinho de terra de sen proprio corpo e fez, mistu- rado com saliva, uma massa, na qual assoprou com toda a forea, fazendo gran- de estrondo, e de repente @ terra, com todo seu peso, ficou suspensa. Entio com as mios tirow as rafzes dos montes ¢ provocou inundagées das Aguas, das quais tiveram origem as fontes € 0s rios ¢ 0 mar. Feito isso, acrescentam que de seu corpo emitiu um enorme raio, do qual foram fabricadas as esfecras trans- parentes dos céus, o sol, a lua e as estrelas, ¢ ja que os céus estavam em volta, ai fixou sua morada; mas como enjoou da solidio, voltou para a terra ¢ depois, de penetrar no titero de Maria, nasceu dela ¢, levada a mac ao céu, subiu de nove" Sao os préprios jesuitas que nos fornecem elementos para entender esse “Génese tapuia”: a passagem “dos nossos”, nos tempos passados, que, pos- sivelmente, se refere as entradas jesuiticas do final do século XVI. Assinala~ mos, também, mais um “filtro tupi” na narrativa a respeito da esfera religio~ sa dos “Tapuia”, andlogo a Tupa: € 0 termo abaré, palavra tupi para indicar os padres jesuitas (que volta, nos catecismos kariri, no termo para indicar 0 pa- dre: ware): © O manuscrito da Relagio de Bernardo de Nantes (Relation de la Mission des Indiens Kariris du Brésil citués sur le Grand Fleuve de S. Frangois de costé du Sud a 7 degrés de la ligne equinotiale, Le 12 septembre 1702, pour F. Bernard de Nantes, capucin predicateur missionnaire apligué, sem nu- meragio de pagina), incompreensivelmente ainda néo publicado nem traduzido, encontra-se na biblioteca de José Mindlin, © Sexennium Litterarum 1651-1657. ARSI, Bras. 9, £17. 36 As muitas linguas da conversdo: missiondrios, Tupi e “Tapuia” no Brasit colonial Entre eles h4 noticia nao obscura dos nossos, segundo a qual eles antigamen- te andaram por estas regides e tentaram em vio a converséo destas gentes, © eles os chamam em sua lingua adaré, porque costumam distingni-los dos ou- ., pelo corte da barba.** tros que no so religioso: Foi, portanto, um cristianismo “tupinizado” que os “Tapuia” absorve- ram nas pregagGes volantes dos jesuitas, no final do século XVI, ¢ que devol- veram aos capuchinhos ¢, de novo, aos jesuitas, no século XVII. O Génese biblico, o conto evangélico da morte € da ressurreig&o de Cristo e a assungao de Maria esto aqui absorvides e organizados numa ordem significativa de tipo mitico, entrando a fazer parte da origem do mundo (terra, céu e 4guas). A presenca do Deus cristéo é fundada pelo mito, junto com o mundo. Quase vinte anos depois, em 1673, da aldeia de Santa Teresa (Cana- brava), 0 padre Jacob Cockle fala nas “superstig6es” dos Kariri Além de um Deus tinico, que fica no ar, a quem chamam Menesuru, veneram muitos santos, que chamam Nhisos: assim falou comigo um dos mais velhos: por Meneruru foi criado Cemacuré, cuja mulher de nome Eba, tocada pelo marido ndo de outra maneisa que com uma varinha, pariu virgem Crumnimni, pai de todos os brancos. Chamam um outro filho de deus Ken BaBaré e outro \Varikidzan, que festejam todo ano, ou cada seis meses com um rito ou jogos de oito dias, cobertos variamente ou com 0 corpo nu pintado. Aqui, também, a cosmologia crista é reinterpretada do ponto de vista nativo, ou melhor, a mitologia indigena se “abre” & incorporagio de elemen- tos novos, que possam dar conta da nova realidade dos brancos: uma “mito- logia crist@” (o Deus celeste, uma Nossa Senhora que, virgem, tem um filho) funda a origem dos brancos. Ao lado dela, continua a existéncia das entida- des kariti, a mais importante das quais € Varakidzan. Na festa de Varakidzan (ou, noutras grafias, Varakidran, Vuankidsan, Arachizd, Erackisam) concentrava-se, no tempo das missées, a atividade ri tual dos “Tapia” ¢ seu mais irredutivel apego 3 tradigao: com efeito, essa é acerim@nia descrita com maiores detalhes ¢ € contra cla que os jesuitas apon- taram seus esforgos de extirpagio da idolatria, j4 que nessa festa havia um “{dolo” (uma cabaga, contendo pequenas pedras € oss0s) ¢, sobretudo, apa~ reciam em forga os malefici, os “feiticeiros”, enquanto chefes das cerimdnias e enquanto adivinhos ou profetas. As cartas mostram que qualquer atentado # Ibid. 2 Jacobus Gocleus, “Carta ao P, Geral Oliva”, 20/11/1673, ARST, Bras. 26, f. 32. 37 Dossié por parte dos jesuftas (a destruigao da cabana sagrada, ou das flautas) levava a fuga para outras aldeias ou até a construgio de aldeias novas. A deseri¢ao da festa ¢ muito comprida ¢ nao cabe transcrevé-la aqui. Vale apenas transerever o trecho em que se fala justamente da construgio de uma aldeia nova, onde um grupo “tapuia”, depois da destruigdo de seu templum, pelo padre, resolveu celebrar sua festa: Como nio se atrevem na aldeia, alguns deles construfram a meia légua daqui duas ou trés casas; limparam uma dea para a roda das dangas e colocaram af os partidatios de Vuankidzan as pequenas posses. E como eles tinham ouvide cu falar em Roma, naturalmente sede do pai de todos, assim as partidarios chamaram também Roma o novo povoado, naturalmente sede de Vuankidzan. E ali fizeram ritos pagiios. Aqui também temos um exemplo extraordinario de apropriagao “para si” do que se apresenta como “outro”: 0 termo Roma, centro da cristandade, passa a traduzir o sentido mais profundo da identidade dos “Tapuia”, que, nessas alturas, nao pode mais prescindir da alteridade crista Se.os jesuitas concentraram seus esforgos contra a festa de Varakidean, por outro lado mostraram uma certa tolerancia para com outros ritos, consi- derados menos perigosos, apesar de “barbaros”, ¢ assimilados aos “jogos” (udi), conforme as indicagdes de Inacio e de Anchieta, voltadas para a manu- tengo das tradigdcs “boas” dos indigenas. E foi justamente por ai que “pas- saram” os rituais cristios. Basta pensar nas “disciplinas” (flagelagdes) da se- mana santa, descritas no apenas nas cartas jesuiticas, mas também na Relation, de Martinho de Nantes, a que os indios, e principalmente os jovens, se dedi- cam com tanto afinco, As flagelagdes eram um dos momentos cruciais da fes- ta de Varakidzan. Mas € no batismo, que os missionérios aprenderam logo a usar como objeto de negociagio, que se desdobrou completamente o processo de leitu- rac tradugio da alteridade, pois é nele, ¢ através dele, que se deu a identifi- cagio entre padres ¢ xamis. Com efeito, se 0 batismo passou a ser adminis- trado com maior atengao e menor freqliéncia pelos padres,” comegou a ad- © Annuae lterae provinciae brasiliensis ab anno 1670 usque ad 1679, ARSI, Bras. 9, f. 241. 2 O conterido mademo do conceito de “missio” nasceu da erise do modelo de converstio, baseado no sacramento do batismo, administrado por predicadores fervorosos (como os franciscanos da primeira metade do século XVI). Bsse excessivo entusiasmo ¢ as decepgoes que se seguiram levaram 3 redacdo de documentos pontificios, que, junto com a Bula de 1537, regulavam também, de uma forma menos simplista, a administragio do batismo. O eonceito pés-tridentino de missio, que teve nos jesustas seu maiores realizadores, antepSe o sacramento 38 ‘As muitas linguas da comverstio: missiondrios, Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial quirie, proporcionalmente, um valor terapéutico extraordinario. Iniimeros so os casos de curas “milagrosas”, operadas pelo batismo, sobre deentes a beira da morte. As fontes oferecem abundantes exemplos, onde 0 “milagre” nZo era necessariamente a cura da doenga, mas podia ser também uma morte santa. De qualquer maneira, 0 batismo configura-se como 0 meio mais adequado para afugentar 0 Deménio: nesse sentido, esta mais para um exorcismo do que propriamente para o sacramento que torna o homem membro da comu- nidade crist@; isso j4 langa luz sobre o papel do padre, que, nesse caso, se substitui ao de xama, na cura da doenga provocada pelos “espiritos”. Nos relatos, aparece claramente 0 conflito com os xamés pela gestdo do poder de cura e pela oscilagio dos indfgenas entre uns ¢ outros, para obter asatide: ‘Um Tapuia tinha um filho gravemente doente. Foi 20 padre, para ele impor as mfios sobre o doente e rezar rezas de igreja por ele. Feito isto, o pai chamou outro Tapuiia, para que sarasse o docnte com as cantilenas gentilicas. Sabido isto, o Padre chamou o pai ¢ censurou ele, que ouviu envergonhado a repri- menda ¢ prometeu néo fazer nunca mais algo parecido.”* ‘A procura do batismo como instrumento cerimonial para obter sade, conforme a nogio tradicional de cura xamanistica, esta clara neste trecho: Entrando este ano de 1673, chegando as nossas portas, uma mulher cujo filho eu tinha batizado pouco antes, disse para mim: ‘vejo que aqueles que sao la- vados 4 fonte sagrada gozam de boa saride, eu também quero ser batizada’. Depois de educada entio aos mistérios da fé ¢ sobre o outro fim, de longe mais nobre, pelo qual o batismo é desejével, batizei-a junto com 0 marido. Pouco depois o menino enfraquecen até quase & morte. Esta mae amedronta- da retrocedia frente & nossa vista ¢ como era assidua na igreja, ali mesmo, entre as outras preces li o evangelho de Jodo apdstolo sobre a cabega do menino € a despedi, esperando em Deus, o menino comegoua melhorare esté bem. Neste tempo, embora fizesse o mesmo com a filhinha de outro, trabalhando com grande risco, a mie, sem nenhuma fé em Deus, levou a inocente ao seu curador, distante 3 milhas daqui, ainda viva, ¢ depois de dois dias a tromxe de volta morta.” Ga confissdo, enquanto cura da alma e consciéneia do pecado, ao batismo, considerado init Sem um adequado preparo (cf. Adriano Prospesi, Tribunal delta Cosciewsa. Inquisitor’, Confessori, Missionari, Torino, Einaudi, 1996). Depois dos primeiros anos de catequese entre 0s indios no Brasil, a orientagio para os jesuitas (e também, mais tarde, para os capuchinhos) foi a de no batizar logo adultos, a nio ser in articula mortis (em ponto de moxte). Anmuae litterae provinciae brasiliae ab anno 1665 usque ad 1670, ARSI, Bras. 9, £. 207 v. ® Jacobus Cocleus, “Carta 20 P. Geral Oliva, 20/11/1673”, ARST, Bras. 26, f. 33. 39 Dossié Justamente essa sobreposi¢ao, ou melhor, essas identificagées de pa- péis entre xami ¢ padre, junto com a ambigilidade do proprio batismo, en- quanto ceriménia de cura, fizeram com que o batismo, algumas vezes procu- rado como fonte da satide, noutras ocasides fosse temido, enquanto vefculo de morte: “Acreditavam que o batismo dado aos moribundos fosse uma hor- rivel feitigaria, que levava & morte, por isso os gentios escondiam seus filhos quando estavam doentes, para que os sacerdotes missionérios nao os achas- sem”,?7 Martinho de Nantes, que relata as vérias ocasiées em que foi quase morto por ser “feiticeiro”, escreve: (...) depois de um ano de permanéncia, havendo sobrevindo uma espécie de peste, que marou diversos, batizava os que encontrava em risco de morte, instruindo o melhor que podia e julgando de suas boas intengdes pela assidui- dade das oragdes, Mas, como eles notaram que todos os que eu batizava mor riam, varios deles, pelo temor da morte, néo queriam ser batizados ¢ nem por isso deixaram de morret.2® Veiculo de morte por um lado, instrumento de salvagdo eterna por outro, em muitos relatos jesuiticos, o batismo fechava — com as esperangas de sal- vacio — uma vida de pecado e ofensa a Deus, que mostrava, assim, seu cas- tigo ecu perdao, principalmente para quem nao aceitava a fé cristae a auto- tidade dos padres, cujo poder estava justamente nessa faculdade (xamanistica) de dar, simultaneamente, a vida e a morte. Nos dois catecismos kariri, aparecem longas listas de “abusées gentilicas”, condenadas como pecados mortais. Todas elas envolvem os fei- ticeiros mas, a bem ver, trata-se, na maioria dos casos, dos rituais que 0 pr6- prio missiondrio realizava. Mais uma vez, a distingdo entre um c outros passa pela oposigao verdade/mentira, ou methor, verdade/aparéncia. Os xamas, como instrumentos do Deménio (0 “simio de Deus”), so a imagem diabéli- cae distorcida da realidade de Deus, cujo instrumento € 0 padre. No “Roteiro para a Confissao”, do catecismo de Bernardo de Nantes, ha indicagdes detalhadas sobre as perguntas a fazer a respeito do primeiro mandamento: (...) Fisestethe [a Deus] oragio? Pedistelhe que vos deparasse cacas? Nao vos lembrarieis mais por ventura das abusdes de vossos antepassados? Nao terfeis © Annuae litterae ex Brasilia anno 1693, ARSI, Bras. 9, £. 379. Martinho de Nantes, op. af, p. 10. 40 As muitas linguas da conversto: missiondrios, Tupi ¢ “Tapuia” no Brasil colonial cantado 0 waiwea (que he cito supersticioso), ou outras cantigas de Pagios? Pintaste-vos por v?cura de Junipapo, ou de Urucu? Fostes cantar o Soponhiu? (he cantar dissoluto, & barbaro, quando banquetio). Taldastes vos de vinho nelle? Lembraste-vos de vossos antigos deuses, Badze, Wanaguidze e Polittio? Fostes fazer vossa antiga confisso ao mato? (...) Chamastes por ventura aos feiticeiros, para assoprar ¢ bufar sobre vossos parentes doentes? Consultastes as bruchas para adevinharem? Semeastes cinzas & roda da cama dos doentes para afugentar ao diabo?® Odiscurso dos missionarios, entio, “filtra”, através da oposigiio funda- mental verdade/mentira, uma série de priticas que acabaram passando da jurisdigio xamanistica a cat6lica, permanecendo fundamentalmente as mes- mas: a confissiio (que passa do mato ao padre), a cura (das cantigas pags ao batismo e as rezas catélicas), 0 afastamento do “diabo” (das cinzas & agua benta), 0 uso do vinho (da bebedeira “gentilica” ao vinho da missa), 0 culto a “divindade” (de Badzé, Wanaguidse e Politéo, entidades miticas kariri, & Trindade, onde 0 “pai” é Tupa). ‘Além da cura, da gestio do culto ¢ da confissao, os padres assumiram mais duas prerrogativas fundamentais dos “fet profecia ¢ a capa- cidade de fazer chover. No primeira caso, eles se tornavam profetas de mor- ce para quem nfo se sujeitava a Cristo: ciros ‘Tendo-os eu apanhado em flagrante de noite ¢ suspeitando das vas cerimoni- as, cu predisse a morte da menina se eles nio parassem. Eles teimavam em continuar a festa. E cla, depois de purificada 3 fonte sagrada, foi para o céu depois de dois dias.” Dous outros foram ainda assassinados miseravelmente pouco tempo depois que eu [hes houvesse dito que Deus nio tardaria a castigé-los (...)." Mas € na invocagio da chuva que se desdobra todo o poder dos padres: ‘A grande seca tinha queimado os campos ¢ as sementes negayam 0 frato es- perado. Com grandes preces os indios imploraram ao padre para ele pedir chuvas a Deus, O Padre reuniu uma multid’o em volta dele no meio da al- deja, no inicio da noite, para recitar as ladainhas dos santos. Eis que, no rom- per do dia, juntar-seas nuvens c chover, mas a chuva foi tanta quanto os dese- jos dos indios, ¢ quanto mais eles recitavam ladainhas, mais 0 céu respondia com chuva. ® Bemardo de Nantes, op. cif., pp. 128-30. * Annuae Litterae provinciae brasiliensis ab anno 1670 usque ad 1679, ARST, Bras. 9, . 241. Martinho de Nantes, 09. cit. p. 21 Annuae litterae provinciae brasiliae ab anno 1665 usque ad 1670, ARSI, Bras. 9, £. 208, 4a Dossié A maior preocupagdo do povo do sertio, a falta de chuva, foi, logo no inicio, portanto, canalizada para o interior da liturgia crist@, junto com 0 outro grande flagelo da época, a variola: nos dois casos, era o padre o intermediério entre os indios e Deus, a quem os {ndios impetravam a salvagao. Da festa aos rituais funerarios, os “Tapuia” elaboraram estratégias que oscilavam entre recusa ¢ aceitacao, entre fuga para conservar as tradigdes & escolha de submeter suas existéncias a um poder extra-humano, sentido como maior: 0 do Deus cristo ¢ de seus agentes. Dai as répidas conversdes, as peniténcias publicas, as rezas, principalmente para a seca ¢ a variola. Nao podemos esquecer, de fato, que 0 contexto em que se deu a catequese foi um contexto de conflitos e mortes (que culminaram na chamada “Guerra dos Barbaros”), de fome, de descimentos ¢ de ataques dos curraleiros. Tanto as missdes capuchinhas quanto as jesufticas foram alvo da perseguig&o dos po- derosos senhores da Casa da Torre, nos anos 60 ¢ 90 do século XVII. Por ou- tro lado, os préprios fundamentos simbélicos ¢ sociais do mundo “tapuia” foram os mais afetados pela pregagio jesuitica: a proibigo das cerimonias, a imposigao do casamento monogamico, a invocagio do castigo divino, sob for- ma de morte e doenga, sobre os costumes tradicionais e 0 depositérios do sagrado, definidos como “infames superstigées” e “operadores do mal”, Nesse contexto, junto as estratégias de sobrevivéncia fisica, houve a exigéncia cul- tural de refazer simbolicamente o mundo, Se mitos ¢ ritos davam sentido ao mundo, foi justamente nessas condigées de “fim de mundo” que eles pude- ram e tiveram que ser refeitos, “recontados” com uma nova linguagem, que englobava a dimensao dos brancos ¢ « dos missionarios. Um ultimo aspecto desse processo de leitura e tradugio reside na ques- to terminolégica: no caso das aldeias dos “Tapuia”, as cartas apresentadas podem oferecer algumas indicagdes sobre 0 uso que da lingua foi feito pelos jesuitas e sobre os termos dessa “tradugao”. Nas cartas latinas, a terminolo- gia é de grande interesse para entender a que tipo de universo simbélico re mete a “realidade” registrada pelos padres. Um século depois de sua elabo- ragio, para o caso dos Tupi, ela mostra a radicalizagao de certos temas ¢ 0 desaparecimento de outros. Por exemplo, nao ha mais a ambigiiidade do portugués em definir “santidades” ou “profetas” ou xamés, O termo latino utilizado € inequivoco: malefici ou venefici (conforme 0 Malleus Malleficarum, 1486), enquanto o xamA principal da cerimGnia de Varakidran € archiveneficus. A ambigiiidade, por outro lado, permanece na hora de definir os pré: prios seres cultuados, que sio, alternativamente, daemones ou dei, a0 passo que 2 As muitas linguas da converstio: missiondrios, Tapi ¢ “Tapuia” no Brasil colonial cabana do culto é ‘ugurium ou templum. Ainda, as praticas rituais tradicio~ nais sao definidas, As vezes sem meios-termos, como “idolatria”, mas perma- nece, com toda sua carga de ambigiiidade, o termo sacra, que, além de indi- car as “coisas sagradas” da religido crista, é também o termo usado pelos pa- cristo. dres da Igreja para definir as praticas pagas do ocidente pr: Finalmente, a definigao de alguns rituais “ndo-idolatricos”, como /udi, jogos, aparentemente em obediéncia ao preceito de manter os costumes “sau- daveis” dos indios, oferece um exemplo de negociagao constante do espago que podia e do que nao podia ser ocupado pela catequese. Afinal, o perigo de que os indios abandonassem a aldeia ¢ fugissem para o mato ou para outras aldeias, chefiados por seus malefici, estava sempre presente, como mostram. alguns episddios relatados nas cartas.° Percebe-se, aqui, que, nessas oscilagdes terminoldgicas e conccituais, nao foi estranho o modo de receber ¢ interpretar a mensagem crist pelos proprios “Tapuia” e, por outro lado, sua irredutibilidade no apego a certos “costumes dos antepassados” (mores maiorum). Pensemos, por exemplo, nos dois “Géneses tapuia”, os mitos, que reorganizaram os ensinos cristiios a par tir da cosmogonia nativa, e, também, na interpretacao indigena do batismo, tido como letal, tanto que as criangas doentes eram escondidas, para evitar 0 sacramento in articulo mortis, mas, por outro lado, procurado, como mostra 0 episédio da mulher, narrado por Jacob Cockle. Mas 0 sentido do sacramento € outro: a mulher quer ter mais satide. Juntam-se aqui duas tradug@es. A primeira é a leitura do poder missionario, nos termos do poder xamanistico: os xamis tratavam das doengas nos rituais de cura, assim como faziam os padres com o batismo. A segunda é a propria tradugao missionaria do batismo, necessario, como eles dizer, ad indoram salutem, paraa salvagdo dos indios: na lingua latina, o termo sa/us traduz tanto “salvag&io” quanto “satide”. Poderfamos perguntar-nos quais vocébulos da Ingua kariri foram utilizados para traduzir o latim salus. Para concluir, parece-me que esses exemplos mostram que a lingua- gem religiosa foi o terreno de mediagao, onde cada cultura péde procurar, & Bemardo de Nantes € certamente o mais licido dos evangelizadores com relagio a negocia- cdo permanente: “Para tirar aos poucos deles, sem impedir de se divertir, o costume que ti Sham antigamente, de celebrar festas supersticiosas c diabélicas, nos opomos apenas as que m mas, mudando 0 motivo delas. Assim, os banquetes que faziam em louvor de falsos deuses, Politun ou Cranaguided, eles fazem hoje religiosamente em louvor dos santos de que Jevam 0 nome” (09. it). aB Dossié encontrar, o sentido do “outro” € elaborar estratégias de adaptagao, recusa e resisténcia cultural. Se, por umn lado, no se pode negar & realidade colonial seu carater de “dado” imposto as sociedades indigenas, por outro lado, é ta- refa da antropologia hist6rica a identificagao dos processos ¢ dos instrumen- tos através dos quais se tornou uma construgao cultural negociada. we

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