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‘A diversidade dos modos de interpretagdo é um trago marcante do estdgio atual da critica literdria, Estilistica, biografismo, dialética, estruturalismo, psicanilise... Foram tantos os caminhos jé wilhados que correntes até hé pouco tempo divergentes hoje convivem lado a lado na explicagao de um texto. Em Leitura de poesia, vito importantes autores brasileiros — entre cles Joao Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Mario de Andrade e Murilo Mendes — sao interpretados por nomes representativos da critica universitéria, compondo uma amostra significativa das diferentes formas de ler uma obra poética ISBN 85-O8-ObL21-8 (nu Leitura de poesia Alcides Villaca Alfredo Bosi Benedito Nunes Fabio de Souza Andrade Joao Luiz Lafers Jorge Koshiyama José Miguel Wisnik 3 Murilo Marcondes de Moura Alfredo Bosi (org.) “Quisesse alguém mapear as correntes cruzadas ou paralelas dda critica recente, deveria fazer 0 trabalho de um cartégrafo de meandros.” A decliragao ¢ do cetftico € historiador da literacura Alfredo Bosi e espelha com pre- iso a multiplicidade de leituras que caracteriza a interpretagio da obra poética em nossos dias. Estilistica ou estruturalismo? Histéria literdria, psicandlise ou sociologia da literatura? Herme- néutica, semiética, leitura dialé- tica... Foram tantos os caminhos ja trilhados pela critica que a de- cisio sobre a validade deste ou daquele método de abordagem do fendmeno estético tornou-se tuma questo central dos estudos literérios. Leitura de poesia & um bom exemplo desta diversidade dos modos de ler 0 texto poético. Concebido e organizado por Alfredo Bosi, este livro retine ané- lises de oito intérpretes em torno de oito autores, Aqui esto nomes representativos da moderna poe- sia brasileira — Jodo Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Leitura de poesia FRANCA SHOPPNG| ee mae ‘A diversidade dos modos de interpretagdo é um trago marcante do estdgio atual da critica literdria, Estilistica, biografismo, dialética, estruturalismo, psicanilise... Foram tantos os caminhos jé wilhados que correntes até hé pouco tempo divergentes hoje convivem lado a lado na explicagao de um texto. Em Leitura de poesia, vito importantes autores brasileiros — entre cles Joao Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Mario de Andrade e Murilo Mendes — sao interpretados por nomes representativos da critica universitéria, compondo uma amostra significativa das diferentes formas de ler uma obra poética ISBN 85-O8-ObL21-8 (nu Leitura de poesia Alcides Villaca Alfredo Bosi Benedito Nunes Fabio de Souza Andrade Joao Luiz Lafers Jorge Koshiyama José Miguel Wisnik 3 Murilo Marcondes de Moura Alfredo Bosi (org.) Leitura de poesia Alcides Villaga Alfredo Bosi Benedito Nunes Fabio de Souza Andrade Joao Luiz Lafers Jorge Koshiyama José Miguel Wisnik Murilo Marcondes de Moura ta Alfredo Bosi (org.) Série Temas Volume 59 Literatura brasileira Editor Fernando Paixio Editor assitense Ouacilio Nunes Preparagio de texto Carla Moreira Projet grdfica de capa e mialo Homem de Melo & ‘Troia Design ISBN 8508 06121 8 Impressio Grifica Palas Athena 1996 Editora Atica Rua Bardo de Iguape, 110 CEP 01507-900 — Sio Paulo — SP Caixa Postal 8656 ‘Tels PABX (011) 278-9322 Fax (011) 277-4146 ls emia ie Sumario Sobre alguns modos de ler poesia: memorias e reflexdes Alfredo Bost Nota do organizador A tepresentagao do sujeito lirico na Paulietia desvairada Joao Luiz Lafetd O lirismo em si mesmo: leitura de “Poética” de Manuel Bandeira Jorge Koshiyama Os jasmins da palavra jamais Murilo Marcondes de Moura A musa quebradica Fibio de Souza Andrade Expansio ¢ limite da poesia de Joao Cabral Aleides Villaga “fragmento” da juventude Benedito Nunes Cajuina transcendental José Miguel Wisnik A intuigéo da passagem em um soneto de Raimundo Correia Alfredo Bosi 49 SI 79 101 125 141 171 191 221 ‘Traduzindo: “Se nos dispomos a considerar qualquer poe- ma para determinar 0 que nos faca julgé-lo como tal, discerni- mos ao primeiro olhar, constantes ¢ necessérios, dois elementos: um complexo de imagens e um sentimento que o anima”. Tudo o mais pendia dessa visada ao mesmo tempo simples ¢ profunda. O exemplo que ilustrava a doutrina era tirado de Virgilio. Diga-se de passagem, o poeta de Eneida repousa na mesma N4po- les onde viveram e morreram Croce ¢ 0 seu mestre Vico. Croce analisa 0 trecho do Canto 'Terceiro em que Enéias conta como aportara no Epiro onde reinava 0 troiano Heleno com André- maca. Desejoso de ver aqueles seus concidadaos escapos ao de- sastre, Enéias vai ao encontro da rainha fora dos muros da cidade em um bosque sagrado junto as 4guas de um arroio a que tinham dado 0 nome de Simoente em lembranga do rio que banha Tidia. Andrémaca estd celebrando ritos fiinebres diante de um ttimulo vazio onde erguera dois altares, um para Heitor, seu pri- meiro esposo, ¢ 0 outro para o filho Astfanax, Ao vé-lo, é tomada de pasmo e desfalece. Enéias recorda as palavras truncadas com que, retornando a si, Andrémaca o interpelara querendo saber se ele era homem ou sombra. Vem depois a resposta no. menos conturbada de Enéias que, por sua vez, Ihe pede que rememore © passado. E a evocago dolorosa e pudica de Andrémaca que revisita 0 seu destino de sobrevivente ao massacre, de escrava tirada em sorteio e feita concubina de Pirro, que no entanto a rejeitara ¢ a dera como escrava a Heleno; e a morte de Pirro por mio de Orestes ¢ a libertagio de Heleno que se tornow tei. Segue-se ao relato a procissao de Enéias com os seus pela cidade que, pequenina, em tudo imita a Tréia gloriosa e derruida dos antepassados comuns (Canto III, 295-355). Finda a leitura do epissdio, o que temos? Imagens de pes- soas, imagens de coisas, de gestos, de atitudes, nao importa se 8 ALFREDO BOST historicamente reais ou apenas vigentes na fantasia do poeta. ‘Nao imagens soltas nem avulsas, pois “através de todas elas corre © sentimento, um sentimento que nao é mais do poeta que nosso, um humano sentimento de pungentes memérias, de arrepiante horror, de melancolia, de nostalgia, de enternecimento, e até de algo que ¢ pueril e ao mesmo tempo piedoso, como aquela va restauragio das coisas perdidas, aqueles brinquedos forjados por religiosa piedade, da parva Troia: algo de inefivel em termos I6- gicos, e que s6 a poesia, a seu modo, sabe dizer plenamente”!. Feito 0 comentério ao texto virgiliano, Croce entregava-se ao trabalho asséptico de afastar do reino encantado da leitura estética tudo quanto a desviasse para fins considerados estranhos & matureza da arte. E ficdvamos sabendo que poesia nao é discur- so verificavel, quer histérico, quer cientifico; que poesia ndo é dogma nem ensinamento moral; nem, na outra ponta, € “senti- mento na sua imediatidade”. Nem pura idéia, nem pura emocdo, ‘mas expressio de um conhecimento intuitivo cujo sentido é dado pelo pathos que 0 provocou e o sustém. Nada mais, mas nada menos. Direi adiante da forca e dos impasses que essa doutrina continha em si. Entrévamos com outros mestres em outras drbitas: a esti- istica espanhola e a explication de texte. Alguns, mais afoitos, sal- tavam a barreira das I{nguas e se aventuravam pelos atalhos do new criticism anglo-americano tao sagaz na descoberta das ten- sbes ¢ das ambigitidades da linguagem poética. Creio hoje que, se nos tivéssemos debrucado mais atentamente sobre as obras dessa corrente, terfamos alcancado uma viséo mais matizada das relagoes entre a camada sensivel € 0 fio inteligivel do poema. Fora da universidade, scholars consumados como Augusto LEITURA DE POESIA 9 Meyer e Sérgio Buarque de Holanda jé tinham assimilado com inteligéncia as conquistas desse movimento que renovou nos fandamentos a critica literdria ocidental. Dentro da universida- de, porém, 0 prestante manual de René Wellek e Austin Warren, Teoria da literatura, que incorporava conceitos dos new critics ¢ dos formalistas, era lido, aquela altura, de maneira rasa ¢ didéti- ca sem que se discutissem a fundo as implicagées logicas das suas propostas. De resto, na academia nacional nunca houve uma firme tradi¢ao de estudos de teoria do conhecimento que, nos Estados Unidos e na Inglaterra, sempre alimentaram as polémicas entre racionalistas ¢ empiristas. Um livro como The meaning of the meaning de Ogden ¢ Richards, por exemplo, exerceu enorme influéncia nos cursos de literatura inglesa, envolvendo também a ctitica das artes visuais para a qual imagem ¢ idéia, {cone ¢ sim- bolo, concreto e abstrato so conceitos cruciais. No corpo do poema, segundo 0s peritos em close reading, a variedade das metéforas nao impede que um pensamento coeso ordene ¢ aclare as riquezas do fluxo verbal. Alias, é precisamente essa marca de coeréncia intelectual que um Allen Tate admirava na profusio imagistica da Divina Comédia, e que seu mestreT. S. Eliot apontava em Donne e nos metafisicos ingleses. Nesse ponto os new critics contornavam a dréstica oposigéo crociana entre conhecimento intuitive ¢ conhecimento racional. E aco- Ihiam como integrante do universo poético de Dante até mesmo © desenho doutrinal que sustenta a robusta arquitetura do poe- ma. Arquitetura que fora rotulada pelo pensador italiano como 1ndo-poesia, ou seja, estrutura conceitual distinta dos momentos ticos e figurativos que constituiriam a verdadeira poesia de cada episédio. Os new crities encareciam o valor das operagées intelectuais imanentes nos poemas fundadores. E afirmavam, sob a égide ora- cular de Pound e de Eliot, a existéncia de uma alianga tensa de 40 ALFREDO BOS ici fantasia artistica ¢ rigor de pensamento. A combinagio valeria nao s6 para a obra de Dante como para todos os poemas que vém resistindo & usura do tempo. Foi essa inteligéncia moderna da forma — rede de fios sensiveis e cognitivos — que permitiu a critica anglo-americana absorver elementos de andlise simbélica ¢ légica da linguagem. E, de fato, percorrendo a histéria literdria, a presenca crescente de uma poesia auto-reflexiva e metalingiifs- tica a0 longo do século XX parece ter dado razo aos anticrocia- nos, aos quais porém o fildsofo, imperturbavel, sempre respon- deu que 0 erro destes nao consistia em admirar as abstragGes insetidas no poema, mas em admiré-las chamando-as poesia. Poesia-imagem? Poesia-conceito? O problema nao é termi- nolégico. Tem uma dimensio histérica e se formulou com sensi- bilidade ¢ rigor na passagem do Neoclassicismo para o Roman- tismo. Esta a grande clivagem. Schiller na Alemanha e Leopardi na Itdlia testemunharam, entre tantos outros, a crise de uma pritica de poesia que vinha dos antigos e que fora revitalizada pela Renascenga. Chamaram a essa pratica poesia ingénua ou poe- sia da Natureza®, Ambos assistiram 2 mudanga de uma forma solar de arte para outra, dirfamos de segundo grau, em que a andlise do ex, com todos os seus desvaos de tédio e ironia, se dis- punha como tela mediadora e complicadora entre 0 poeta ¢ as forcas e imagens da vida. A nova poesia se dava como interpre- taco do sujeito em vez de figuragao da beleza césmica ou canto dos destinos dos povos; poesia sentimental, isto é, psicolégica, no dizer de Schiller; poesia metafisica, segundo Leopardi. E ambos temiam que o progresso da auto-andlise levasse ao afrouxamento dos lagos milenares entre o homem ¢ o divino, o homem e a na- tureza, o homem e a sua comunidade, e dai formacdo de uma literatura toda voltada para o seu proprio emissor, saturada de in- tengGes psicoldgicas ¢ intrusdes metalingtiisticas. Meio século mais tarde, Nietzsche, que amava os pré-socraticos, pensadores-poetas LEITURA DE POESIA ul da matéria cdsmica, chegaria a sentenciar temerariamente: “O de- senvolvimento do pensar consciente é prejudicial & linguagem”... Ora, foi precisamente o vetor da anilise psicolégica ou ideolégica que norteou parte considerével da produgéo literéria dos séculos XIX ¢ XX, quando, para bem e para mal, se deu o ascenso universal do modo de pensar burgués cada vez mais dis- tante da “ingenuidade” exaltada por Schiller. A sondagem dos mecanismos egéticos ¢ a reflexdo sobre a atividade textual (Flau- bert e Mallarmé ilustrem a afirmagao) obsedaram cada vez mais © sujeito da escrita, que s6 raramente péde langar-se & aventura da intuicéo pré-ldgica, aquele conhecimento auroral definido por Benedetto Croce como o passo primeiro da criacio estética. A lamina da autoconsciéncia fez uma cunha na superficie outrora lisa ¢ inteira da linguagem mitica, que j4 ndo péde mais refazer a simplicidade radiosa de Homero cujos versos semelhavam, na palavra de Schiller, “ordculos divinos na boca de uma crianga”. Os new critics, embora partilhassem 0 gosto poundiano pela poesia-imagem grega, latina, chinesa e provengal, ndo po- diam deixar de ser homens de um tempo penetrado até & medula pelo olhar introspectivo ¢ pela consciéncia critica: tempo em que a poesia virou aquela “coisa anfibia feita metade de imagem, metade de significado abstrato”, conforme constatava Coleridge na sua Biografia literdria?. Dal a alterndncia, nos seus ensaios, de observagées sobre a pujanca metaférica e sobre o nervo légico dos poemas que analisavam. Nos seus estudos j4 reponta, de modo Virtual, a leitura pés-moderna do poema como pluralidade de discursos em tensio. Com a diferenga sabida de que os new oritics ainda faziam critica sob o signo da unidade do eftita esttico, inspi- rados que foram por E. A. Poe e Baudelaire, ao passo que hoje... 12 ALFREDO BOSI Na Estilistica, que se difundiu aqui nos anos de 1940 ¢ 1950, ouviam-se profissées de fé no intuicionismo crociano. Mas 0 gosto era outro, um gosto espanhol. A lirica de Géngora ea sua frondosa descendéncia barroca foram reavaliadas com entusiasmo por Démaso Alonso, mas nao contavam com as sim- patias de Croce, refratério a qualquer complacéncia com 0 ma- neirismo. De todo modo, 0 procedimento pelo qual os mestres espanhéis penetravam 0 texto poético, filiando sempre imagens ¢ ritmos a suas matrizes existenciais, dependia, na raiz, da acei- tagdo da formula idealista intuiggo = expresso, que fora cunha- da pelo fildsofo da Estérica. A diferenca residia na maior atengao que a andlise estilistica dedicava aos fendmenos lingiifsticos, cor- rendo as vezes 0 risco de hipersimbolizar este ou aquele elemento fonético ou gramatical. Esta sobremotivagao do pormenor seria sempre um dos es- colhos da leitura estilistica para a qual a parole do poeta pode concentrar-se e revelar-se no uso de uma figura retérica ou na reiteragao de um determinado timbre vocilico. A relagao das par- tes (ou de uma sé parte) com o todo € um problema renascente para o estudioso do estilo enquanto uso particular de um sistema universalizante como a lingua. Apesar dessas dificuldades de método, os ensaios de Dé- maso Alonso, em Poesia espafiola, de Amado Alonso, em Materia y forma en poesia, ¢ de Carlos Bousofio, em Teorta de la expresién poética, lograram unificar, mediante a identificagio de um “mo- tivo inspirador”, os multiplos tragos de estilo que caracterizam poemas ou obras inteiras de poetas. A busca do sistema expressivo e da unidade tonal (temple animico) contrabalanga 0 efeito de fragmentagao que poderia resultar da andlise fonética ou ritmica mitida, ¢ é responsdvel pelas sondagens certeiras que Démaso Alonso fez nas Soledades de Géngora; e Amado Alonso nas sona- tas de Valle Inclén. A sua releitura parece-me ainda inspiradora LEITURA DE POESIA 13 alguns de seus procedimentos de andlise continuam freqtien- tando os nossos trabalhos académicos, embora nem sempre se dé o;justo reconhecimento as suas matrizes tedricas. Aparentada com a Estilistica, a leitura circular proposta por Leo Spitzer também nos chegava as mios nas sess6es informais de Bettarello com quem um reduzido grupo de fitis discipulos fazia a chamada*“especializacdo” no biénio 1959-60. De Spitzer Kiamos a étima coletinea Critica stlistica e storia del linguaggio cuja edico fora sugerida ao autor pelo préprio Croce, seu dileto mestre ¢ amigos. Spitzer atualizava a idéia do circulo hermenéutico, que Dilthey redescobrira lendo 0 tedlogo romantico Frederico Schleiermacher. Interpretar o sentido de uma passagem biblica significava, para Schleiermacher, fazer um trabalho de ida-e-volta da intui- ao abrangente para a andlise de dados particulares, e vice-versa. A atengo as partes leva & percepgao do todo, mas, como se trata de um conhecimento induzido por olhares parciais, deverd ser confirmado (ou infirmado, em caso de engano) pelo exame de outros aspectos e assim sucessivamente até que a inteligéncia da totalidade venha a iluminar de modo justo cada um dos par- ticulares. A dialética de sentido espiritual uno e formas sensiveis miiltiplas tinha em Schleiermacher uma inequivoca inspiracao platénica. © circulo hermenéutico, reproposto por Dilthey para a leitura compreensiva de textos histéricos, foi aplicado por Leo Spitzer & interpretacéo das produgées simbélicas dentre as quais avulta a poesia. a4 ALFREDO BOS! O exercicio hermenéutico supde que vigore uma coeréncia interna entre as imagens que constituem uma obra poética. Para Schleiermacher toda representacio dispée de leis formais ima- nentes, motivo pelo qual no é um esforco arbitrério do intér- prete rastrear as relagdes que os momentos de um texto ou de uma composicéo musical entretém entre si ou com 0 todo. Essa procura de relagées significativas ¢ a alma da compreensio. Croce louva, no capitulo da Estérica que dedicou a Schleiermacher, a intuigao antecipadora deste fildsofo romantico que jé comparava, no inicio do século XIX, 0 poema ao sonho. Um sonho elabora-se com os mesmos processos simbélicos de um poema ao qual faltasse, porém, a tensao da vontade constru- que s6 se mantém quando a consciéncia esté vigilante. No poema é necessirio que ao momento da inspiragao, andlogo 20 dos fantasmas oniricos, se siga 0 momento da ponderacao, que traz A consciéncia os critérios de expressividade ¢ beleza na esco- Iha ou no descarte desta ou daquela solugéo verbal. A equacio poesia = musica + légica, sugerida por Schleier- macher, é acolhida por Leo Spitzer que a julga uma descrico exata da dialética que o miiltiplo das representagdes ¢ 0 uno do conceito travam na fatura dos discursos simbdlicos. Spitzer trabalhou galhardamente com diversos textos lite- ririos tanto do perfodo cléssico quanto do século XX. Racine estava entre as suas paixdes. E sempre com renovado prazer que leio o seu estudo sobre o famoso “récit de Théramene”. Trata-se da longa fala em que o velho servidor narra, na Phdre, o desastre fatal do seu amo, o jovem principe Hipélito, arrastado até & morte na praia de Trezena por seus préprios corcéis contra os quais investira, de repente, um monstro safdo das ondas do mar. ensajsta parte de uma visio de conjunto, o que é uma das alternativas do método hermenéutico. A histéria de Fedra seria uma tragédia de desengano. Ensinam-se aos grandes deste LEITURA DE POESIA 15 mundo as amargas liges da crueza divina e da humana impo- téncia. Venus ¢ Netuno, o impulso erdtico e a forga do mar, uniram-se para levar & desgraca uma familia real. Essa primeira abordagem, macroscépica, de sentido da obra, que é a intui- géo do seu étimo espiritual, passard depois pelas malhas da leitura microscépica, a qual poderd, ou no, ratificd- tanto, o analista pe em relevo trés aspectos estilistic de Théraméne que lhe pareceram, & primeira vista, intiigantes, logo sintomdticos de um Racine ainda mal compreendido pela critica francesa tradicional: um Racine surpreendentemente barroco? O primeiro trago observado é a duplicidade semantica do verbo voir, empregado nao s6 com a sua denotagao neutra de “enxergar”, como também para exprimir 0 ato de perceber 0 mal que golpeou o rei Teseu e seus entes mais caros. Essa conotagio funesta enturva o olhar de Fedra que, influido por Venus, é peca- minoso (adiiltero e quase incestuoso) desde 0 momento em que a rainha o voltou para o seu belo enteado, Hipélito: Je le vis, je rougis, je palis a sa vue. O segundo trago € 0 uso da atenuacio clissica. O poeta precisa abafar ou sublimar a violéncia origindtia dos conflitos inserindo nos momentos traumdticos certas express6es intelec- tuais ou morais. E um velho sébio este Théramene que comenta 0s fados das personagens. O sangue do principe derramado por obra do monstro marinho é son généreux sang. Do cadéver dilace- rado diz ce héros expiré. O espetdculo da morte cruenta é qualifi- cado como ce désordre affieux, expresso na qual o epiteto emo- tivo (affrewx) é neutralizado pelo termo abstrato, déordre, que snomeia ¢ racionaliza, Por sua vez, o demonstrativo (ce) implica a distancia entre 0 narrador eo fato narrado. Sio todos indices que 16 ALFREDO BOSI remetem a uma vontade-de-estilo cléssica chamada a mediar a matéria trégica. Enfim, terceiro trago, a linguagem antropomérfica com que Racine descreve a natureza. A onda do mar reflui espantada ante a cena fatal. O verso — ‘le flo, qui Vapporta, recule épouvanté” — que jd fora censurado por leitores académicos da tragédia como pre- cioso e retorcido, serve de pista a0 exegeta moderno para sait a0 encalgo de outras imagens estranhas disseminadas na obra (0 sol que enrubesce, a negra flama), reforcando a suspeita da presenga de um veio anticléssico subterraneo mas aqui ¢ ali emergente no mais harmonioso dos dramaturgos. O olhar. A morte. A natureza. O olhar que se abre & luz é trevoso. A morte, com ser terrivel, é exemplar. A natureza, que parece estar fora, est dentro do homem. “Racine é claro, mas a sua clareza é densa de mistétio”. Nessa altura Spitzer jé pode fechar o circulo da sua leitura. ‘Tendo partido de uma percepgio abrangente de Fedra como tra- gédia do desengano dos mortais por obra dos imortais, desceu a tragos particulares de estilo que deram consisténcia & sua hipé- tese para, no fim, remontar & intui¢éo primeira, agora enrique- cida pelas sugestées do percurso analitico. Ir e vir: do todo as partes, das partes ao todo. Note-se que a escolha das pistas néo foi aleatéria. O deteti- ve recortou, de preferéncia, aspectos de algum modo desviantes, que Ihe pareceram sintomas de uma forma interna viva, no caso um complexo de sentimentos ¢ imagens mais rico e original do que 0 j codificado pela fortuna convencional do autor. O orga- nizador da antologia citada, Alfredo Schiaffini, acena, em uma passagem do seu prefécio, para o papel que a doutrina freudiana teria exercido na formago do judeu vienense Leo Spitzer. Embora faltem ao vocabulério da sua hermenéutica mengGes as LEITURA DE POBSIA 17 categorias psicanaliticas, é bem provvel que a leitura do desvio como sintoma aponte para uma afinidade com certas visadas semiol6gicas de Freud. De algumas hipéteses de Spitzer somos tentados a falar em verdadciras intuig6es clinicas. Quando, por exemplo, ele detecta na escrita do militante pacifista Henri Barbusse uma freqiiéncia inesperada de imagens violentas que juntam sangue e sexo. Ou quando topa nos textos vanguardistas de Jules Romains com tuma ficira de palavras “pouco decorosas”, como “tragar”, “expecto- rar”, “cuspir”, “escarrar”, no caso, “cracher” na acepgio de parir — expresses que remetem a uma visio brutalista da sociedade burguesa onde corpos coletivos ¢ anénimos ora absorvem ora expelem os individuos. Certas metéforas nao sé traduziriam esta- dos animicos habituais no autor como dariam forma a correntes ideolégicas supra-individuais e seriam portanto representativas de tenses que ocorrem no interior da sociedade. O circulo in- terpretante é assim alargado pela forca das préprias significagoes encontradas em dados particulares da leitura; ¢ 0 tado a que se refere a leitura circular receberd qualificagées psicossociais. Se uma hermenéutica exige previamente uma heuristica (arte de encontrar), é porque a heuristica é 0 melhor alimento do exercicio de compreensao. Técnica do clinico geral que testa com exames parciais miltiplos o seu primeito e intuitivo diagnéstico. Ou tacteio por ensaio e erro de um criptélogo diante de um hie- réglifo. Ou simplesmente faro de um Sherlock Holmes. Comparada com as sutilezas da Estilistica ou com as argii- cias quase divinatérias do circulo hermenéutico, a explication de texte, que nos eta dada por um professor suico, Alfred Bonzon, Parecia uma técnica estreita saida de uma tradigdo escolar em 18 ALFREDO BOSI que a raison raisonnante levara sempre a melhor sobre a intuigo co sentimento. Cartesiana primeiro, ilustrada em seguida, enfim positivista, a pedagogia liceal francesa seria pouco sensivel & mtisica ondeante e sugestiva do poema Iitico. Havia alguma verdade nesse juizo severo, mas também uma boa dose de preconceito que o idealismo germanico, secun- dado pelo italiano e pelo espanhol, se comprazia em espalhar. Sabe-se que a hegemonia francesa era um fato visivel a olho nu na Faculdade de Filosofia entre os anos 1930 e 1950. Daf a emu- ago com que outras culturas nacionais buscavam conquistar 0 seu lugar ao sol no terreno das Letras e das Ciéncias Humanas. Ea explication de texte com seu didatismo 3s veres rigido era, sem diivida, um alvo bastante fiicil de atingir... ‘Comeso pela justeza, ainda que esquemdtica, daquela apre- ciagao. De fato, na maioria das vezes, 0 que se pedia ao aluno de literatura francesa como objetivo tiltimo da leitura era explicar 0 modo pelo qual o poeta desenvolvera a idéia fundamental do texto. Presumia-se que todo poema devesse conter a apresentacao do tema, o seu desdobramento (em trés partes, de preferéncia) ¢ a conclusio. Salta aos olhos a analogia com o discurso argumen- tativo. Bom poema é 0 que tem comeco, meio ¢ fim. O comeco anuncia o tema, 0 meio 0 enuncia, o fim o remata ou recapitula. ‘A unidade semantica implicaria forte coesio sintética. analista deveria seguis, passo a passo, 0 encadeamento das ora- ges ¢ dos periodos. Ex-plicar quer dizer desdobrar, estirar 0 que esté enrolado, explicitar 0 que parece implicito, Tarefa que te- quer 0 uso de conceitos claros e distintos: “ce qui nist pas clair niest pas francais”. Para tanto, nada no poema deve ficar obscuro, alusivo, lacunoso ou avulso do sistema, As metéforas, por exem- plo, nada mais seriam do que comparagées as quais faltaria o nexo sintético da correlacio: “assim como” ou “tal qual”. Aristo- LEITURA DE POESIA 19 teles dixit. Era preciso aclarar ¢ declarar, com todas as letras, esse procedimento ret6rico mostrando qual termo semelha a qual, como € por que. O plenum inicial seria 0 discurso légico com todos os termos ¢ todas as junturas; faltando estas ou aqueles, cairfamos no metaférico. Note-se que a metéfora ¢ apenas uma entre as varias figu- ras catalogadas pela retorica tradicional. As outras também deve- tiam ser desdobradas e vertidas para a linguagem inequivoca dos conceitos. As figuras fariam parte de uma linguagem que nao é “propria”, pois os seus termos nao se ajustam univocamente aos respectivos referentes: s4o condensagées ou deslocamentos, acrés- cimos ou decréscimos, redundancias ou elipses, em suma, tropos ditados pela forga perturbadora da imaginacao e das paixdes que sempre véem de mais ou de menos. A explication as tratava como efeitos de estilo ou licengas poéticas, pois tais formagGes im- préprias seriam desvios (tese que sobreviveu longamente) de uma suposta norma lingiistica universal que regeria a comunicagio entre os homens. No limite: a linguagem prépria serviria & prosa; a linguagem figurada, 4 poesia. Deixando de lado uma critica de fundo que merece essa concepcao de linguagem (que é exatamente oposta 4 de Vico para quem a polissemia e as redes analégicas precedem e prefor- mam 0 conceito), é razodvel reconhecer que os manuais franceses chamavam a atengéo do aluno para a unidade (ideal) do texto para, em seguida, treiné-lo na andlise mitida das suas articula- ges. Para bem e para mal, a explication era um exercicio de abs- tragio. Igualmente proveitoso era o empenho de identificar 0 significado literal e preciso de cada frase e de cada palavra, recor- rendo com freqiiéncia aos diciondrios, &s artes poéticas e, quando © mestre era erudito, as fontes do texto, que inclufam desde a mitologia ¢ os cléssicos até obras contemporaneas lidas pelo autor do poema analisado. 20 ALFREDO BOS! Em alguns casos operava-se uma combinagio de andlise semantico-sintética do poema (qual a sua idéia principal? como se divide?) com informagées de biografia ou de histéria literdria: em que o autor é parnasiano? em que é simbolista? Esse ecletismo de método, que tamanho desdém provocaria na década de 1960 centre os estruturalistas puros, trafa talvez 0 desejo de compensar © esquematismo retérico de base pela busca de algum tipo de integragio do texto na esfera maior dos significados de valores, isto é, na cultura literdria que viu nascer © poema e com a qual 6 poeta dialogara as vezes dramaticamente. A entio, cdtedra de francés alternava aulas de leitura com exposigdes de histéria literdria com o fito de ministrar-nos elementos para claborar uma posstvel sintese. Na segunda-feira procediamos & andlise dos tro- pos constantes no poema Le lac; na quarta-feira éramos instrul- dos sobre as correntes romanticas de gosto e de pensamento que teriam influido na eclosio da lirica de Lamartine. Mas, forca é convir, para que a imbricacio de texto ¢ con- texto se efetuasse com rigor metodolégico seria necessério que 0 explicador relativizasse primeiro as suas categorias de andlise em ver de assumi-las como critérios de valor. Dada, porém, a filiagao académica do método, essa perspectiva dialética raramente se vislumbrava. Historicizando, pode-se dizer que o tempo da expli- cation era ainda o do Ancien Régime, entre cartesiano e neocléssi- co, a0 passo que o tempo da histéria literdria jé era século XIX... Falamos em critérios de valor. Quais seriam estes para a tradigéo didatica francesa? A integridade necesséria do texto de- pendia da escolha ou invengio (no sentido latino de achamento) de um tema tinico. A disposicéo linear das partes garantia ao poema a virtude indispensdvel da ordem. Enfim, a elocugio exata de cada significado daria & obra 0 mérito imprescindivel da clareza: LEITURA DE POESIA 21 Inventio: Integritas Dispositio: Ordo Elocutio: Claritas. Acontece, porém, que essas partes ¢ artes nao convém a maiotia dos poemas escritos a partir da revolugao romantica. Dai 0 dilema: ou o intérprete enfrentava 0 contraponto tantas vezes assimétrico mas fecundo de tradicéo literdria ¢ criagéo pessoal que enforma o melhor da arte contemporanea; ou, fixando-se no cinon das virtudes neocléssicas, rovulava anacronicamente como “defeitos” de fundo ¢ de forma a pluralidade de motivos, as rup- turas de composicao ou a densidade imagistica dos poemas que submetia ao seu esquadro. Porque unidade, ordem e clareza so apenas equilibsios funcionais, que obedecem as necessidades da representacio e da expressao, e nao atributos ontol6gicos a que © poema deva a priori conformar-se. A tigidez académica na hora do julgamento final néo esca- pava ninguém, nem mesmo 0 cléssico por exceléncia, Jean Racine. Como jé vimos, a narrativa de Théraméne foi afgilida de longa € ornada em demasia nio s6 pelos zoilos dos Setecentos como também pelos comentadores didéticos de Fedra em pleno século XX. Para entender os limites estéticos da explication de texte abra- se a edi¢ao da tragédia preparada para os estiméveis Classiques Larousse, muito difundidos entre nés pelos anos de 1950. Nela se encontram questdes de critica literéria do seguinte teor: “Leitura dos versos 1498-1570. A narragdo de Théraméne: a) & natural em si mesma? b) quais sa0 0s seus defeitos? ©) © que pode explicar esses defeitos? 4) acha-se alguma coisa de louvével nessa narracéo?”5 ALFREDO 8OSI Sugiro que se retome a tiltima pergunta da série acima vol- tando-a para a propria explication de texte: — Acha-se hoje algu- ma coisa de louvével nessa forma de leitura? Que a resposta venha do mesmo Leo Spitzer que, inspira- do em outras fontes culturais, seguia uma diregao aparentemente contréria & dos mestres-escolas franceses. Por duas vezes, entre- tanto, o admirével praticante do cfrculo hermenéutico fez um aberto elogio a explication. Lembro que o ensaio que dedicou & epistola “Les vous et les tu” de Voltaire, em que atribuiu aquela técnica mais, talvez, do que a sua rotina escolar nos dava: a capa- cidade de “buscar, nos particulares lingiifsticos do mais pequeno organismo artistico, 0 espirito ¢ a natureza de um grande escri- tor”. Outra referéncia positiva Ié-se no seu estudo sobre o poema de Keats, “Ode sobre uma urna grega”. Spitzer, cortigindo os “excessos metafisicos” de certo intérprete alemao de Keats, reco- menda aos leitores que adorem com simplicidade “a maneira francesa, pois esta sempre comega pela mais direta das pergun- tas; “de que é que trata todo © poema?”6, Percebo agora, tarde mas em tempo, que onde nés, jovens, acusdvamos drdsticas oposigdes, © amor & poesia trangava secre- tas afinidades. Quando o estruturalismo entrou em cena, nos meados da década de 60, a minha formagio de aluno de Letras jé tinha aca- bado. Restava percorrer 0 caminho das escolhas pessoais com todos os riscos que a liberdade traz. consigo. ‘Uma estada em Florenga no ano letivo de 1961-62 me fize- ra conhecer de perto uma cultura histérica ¢ estética muito densa que estava substituindo o idealismo de Croce, hegeménico du- rante meio século, pelo pensamento marxista de Gramsci e pelos LEITURA DE POBSIA 23 “reins existencialismos de pés-guerra. Em vez de Espitito as cate- fgonias-supremas passaram a set Histéria, Sociedade, Cultura, "Bxisténcia, Pessoa. No terreno da critica literdria, essas correntes, ‘entre'si dispares, postulavam uma integragao do texto na histori. cidade concreta dos seus valores ou na subjetividade criadora que the dera origem. Escolhendo para assunto de tese a narrativa de Luigi Piran- dello, eu me langava precisamente nessas diregées, que me pare- ciam complementares, pois o conflito entre a forma ptiblica do individuo (a sua persona) ¢ a sua vida interior e, dat, 0 processo movido aos constrangimentos da méscara social me pareciam entéo incompreensiveis sem 0 cxame do contexto ideolégico do ethos peculiar ao escritor siciliano. Andlise existencial ¢ hist6- ria cultural cruzavam-se ¢ 0 seu ponto de encontro acendia uma luz reveladora dos significantes produzidos pela escrita na sua busca de representacio ¢ expressio. Foi portanto com perplexidade que, voltando ao Brasil, me dei conta da virada neoformalista que a critica internacional estava dando sob a batuta de mestres franceses ou eslavos sediados em Paris. Entre a publicagéo da engenhosa andlise de Les chats de Baudelaire, feita por Jakobson e Lévi-Strauss em 1963, e edigao da Rhéworique générale do Grupo de Liége em 1970, a teoria lite- raria do ectimeno ficou literalmente tomada pela obsessio de des- cobrir, recortar ¢ classificar as estruturas lingiiisticas ¢ retéricas de todos os textos jamais produzidos pelo homo loquens. Roman Jakobson, Tzvetan Todorov, Gérard Genette, Claude Bremond, um certo Roland Barthes (anterior aos prazeres do texto), Julia Kristeva, A. J. Greimas e algumas revistas prestigiosas como Poétique, Tel Quel e Communications dedicaram um intensissimo labor analitico 20 projeto de identificar 0 cardter préprio da lite- rariedade da literatura, por oposigéo aos outros modos e usos da inguagem que suprem ay necessidades da comunicagio entre os 24 ALFREDO BOSI homens. A poeticidade mesma teve que passar pelas apertadas grades (grilles) de certos paradigmas cuja presenga lhe concedia registro de identidade. Ha paradigma projetado sobre a cadeia sintagmatica? Ha duplicagéo? Hé binarismos e paralelismos? A tima com A, B com B, sendo que AA se opée a BB? Entao, segu- ramente, hd fungio poética. Onde estava o fundamento cientifico dessa busca universal ¢ sistematica de redundancias? Sem duivida, na lingiifstica estru- tural fundada por Saussure e matizada por um lingitista sensivel 4 poesia, Roman Jakobson. A linguagem verbal supde a vigéncia de um cédigo no qual alguns poucos elementos parassemanticos se combinam, logo voltam periodicamente, para formar unidades de significacdo, os morfemas, os lexemas. Na cadeia de unidades significantes os elos iguais acabam repetindo-se necessariamente € com uma freqliéncia cada vez mais visivel e verificdvel. O que alids, o mecanismo de todos os cédigos: os elementos so pou- Cos; os arranjos séo miiltiplos e as repetigées so fatais, E cha- mam-se paradigmas ou padroes os subconjuntos de elementos que se reiteram de modo regular. Até af, 0 abc da lingiifstica estrutural. Ota, essa verificagéo do cardter sistémico da linguagem foi literalmente hipostasiada pela razao estruturalista sobre os retor- os regulares ou mesmo eventuais que ocorrem forgosamente em todos os poemas de todos os povos do mundo, desde os hinos religiosos arcaicos, as cangées de ninar ¢ os provérbios até 0s experimentos cubo-futuristas dos vanguardistas russos. O cédigo poético levaria ao mais alto grau de utilizagao aquela marca inerente a todas as Iinguas naturais ou artificiais, E | essa a base lingiiistica do conceito-chave, generalissimo, da leitura | estruturalista, a fungao potrica: a projecao do eixo das similarida des no eixa das contigitidades. oe A aceitagao da teoria rendeu mirfades de exercicios escola- LEITURA DE POESIA 25 res que botavam de pé com ingénuo espanto 0 ovo de Colombo. De fato, que poema jamais conseguiria subtrair-se aquela cons- tatagdo dbvia das regularidades lingiiisticas? Ritmo é repetigao. Metro & repeticao. Recorrem os morfemas de género, ntimero e grau bem como as flexes pronominais ¢ verbais. A morfologia é um esquema de classes que necessariamente se repropdem e se combinam, O mesmo se dé com a sintaxe: sujeito, predicado e complementos integram todas ou quase todas as frases. Bastava por em realce este ou aquele item, mostrando a sua recorréncia, ¢ © analista provava, as vezes a forca de diagramas ¢ flechas, que o que nio era igualdade (a=a) era diferenca (a#b), dita, para maior rigor do método, oposigao binétia. A parte o tom caricatural que este resumo poderd ter, 0 fato é que o estruturalismo, quando alheado da dimensio antro- poldgica e filosdfica que the dera Lévi-Strauss, entrou por um beco sem safda onde s6 procurava 0 que jé havia de antemao encontrado: a evidéncia dos paradigmas, o binarismo, o circulo do texto que remete a si proprio, do poema que a si préprio se persegue ¢ espelha. A isto chamou-se rigor. A superposigao de padrées da lingua ¢ procedimentos poé- ticos foi um ato de reducionismo Iégico que favoreceu uma pré- tica textual artificiosa e uma critica literdria carente da dimenséo hermenéutica. Mas, como diz 0 povo, de onde menos se espera dai é que vem. Do mesmo estruturalismo que supunha colher a esséncia do poético na ocorréncia de paradigmas, viria, paradoxal e fecunda, a pista para sair do impasse a que 0 constrangiam os seus esque- matismos de base. © mesmo Roman Jakobson, que estimulava ‘uma leitura intralingii(stica do texto, defendia com vigor a idéia da motivagio do signo verbal, pondo em dtivida a tese da sua arbitrariedade tal como fora enunciada por Saussure. ‘A motivacio € a janela pela qual a palavra respira fundo ¢ 26 ALFREDO BOSI se comunica com as energias da imaginacéo e do sentimento, tornando-se expressiva, ou com as formas do mundo, tornando- se representativa. A palavra motivada é pathos. A palavra moti- vada é mimesis. Se assim é, simbolismo e realismo voltam a ter voz no coro das teorias poéticas, ¢ as suas verdades, parciais mas seminais, jé no serdo mais recalcadas em nome de uma visio autotélica, pre- tensamente radical, da escrita artistica. Lembro-me do encantamento com que li, nas paginas da revista Diogéne, um ensaio de Jakobson intitulado “A la recher- che de Pessence du langage”. Nele acha-se a reconstituicio das vias teorias do signo claboradas desde os estdicos e Santo Agos- tinho até Peirce. As visadas do criador da Semiética — como a sua triparti¢fo dos signos em {cones, indices e simbolos — sio retomadas por Jakobson & luz da Lingiifstica moderna. Eas relagdes motivadas, logo nao-arbitrérias, entre significante, signi- ficado e referente so ilustradas com um alto mimero de exem- plos persuasivos que cobrem todos os niveis da linguagem. Fica evidente que a poesia atualiza e leva & maxima poténcia as virtua- lidades todas do signo e sobretudo a sua faculdade de dar nome a aspectos singulares da experiéncia. A palavra poética, assim pen- sada, deixa de ser letrume opaco e intransitivo para tomnar-se feixe de relages que prismatizam (valha a metéfora de Mallarmé) 0 som pelos sentidos e o sentido pelos sons, a imagem pelas idéias © a idéia pelas imagens. E 0 simbolo cumpre a sua vocagio multi- milenar de dar inteligibilidade & relacéo do homem com 0 mundo. Essa vocagio para o sentido ainda esté longe de ter-se esgotado: no por acaso, Roman Jakobson rematava o seu estudo com uma citaggo de Khliébnikov: “Eu compreendi que a patria da ctiagio std situada no futuro; é de ld que sopra o vento que nos enviam os deuses do verbo”7. Pergunto-me agora: de onde teria vindo a Jakobson a ins- LEITURA DE POESIA 27 piragéo para transcender os limites do seu préptio esquema didético das fungées da linguagem? Veio da sua convivéncia inti- ma com o melhor da poesia russa do comego do século, nao excluda a lirica de feicio simbolista. Veio dos tempos herdicos do formalismo de Moscou e de Sao Petersburgo. ‘Como se sabe, uma perseguicéo feroz comandada pela censura stalinista fez calar a voz daqueles pesquisadores que, desde os anos da Primeira Guerta Mundial, vinham dando contri- buiges originais & teoria do poema. Mas, gracas a iniciativas como a de Todorov, que compilou os principais textos dos formalistas russos em Théorie de la littérature (Seuil, 1965), ¢, no Brasil, & dedicacéo e competéncia de um mestre dos estudos russos, Boris Schnaiderman, pudemos enfim conhecer os trabalhos de Chklovski sobre a arte como procedimento; de Tinianov sobre a nogio de construgio e 0 conceito de evolugo literdrias de Ossip Brik sobre as relagbes entre ritmo e sintaxe; ou de Tomachevski sobre a estrutura do verso e a questo da temética. Nao cabe aqui mapear as teses do formalismo que foram amplamente retomadas pelos estudiosos dos anos 60 ¢ 70. O texto de Brik, por exemplo, sempre me pareceu particularmente agudo ¢ tem-me valido muitas vezes nas aulas de andlise rftmica de poemas brasileitos. No terreno especifico da leitura de poesia creio que se de- ‘vam ressaltar alguns aspectos histéricos e tedricos daquele fecundo movimento cultural. Os formalistas eram, acima de tudo, escavadores da pala- vra artistica. As suas primeitas € mais audazes intervengées foram ditadas pelo clima polémico que se difundiu na Rissia no pri- meiro quarto de século envolvendo simbolistas ¢ anti-simbolistas entre os quais avultavam pela militincia os futuristas. Era uma uta nao s6 literdria mas também ideolégica, pois alinhava, de uma parte, os defensores de um passado neo-romantico ¢ espiri- 28 ALFREDO BOSI tualista ¢, de outra, os arautos de um futuro que apostava no fazer técnico e nos moldes de um pensamento materialista, Este cardter futurista de ruptura com as potticas do século XIX seria responsével pelo tom radical irreverente dos manifestos do Circulo de Moscou.e da OPOIAZ, Sociedade para o Estudo da Linguagem Poética (1916), que foram as primeiras agremiages dos formalistas. F hipétese corrente na historiografia sobre o formalismo russo atribuir aquela sua disjungao cortante de linguagem poética versus linguagem de comunicacio ao projeto futurista de criar uma arte inteiramente diversa tanto da tradigao literéria quanto da fala cotidiana, “a arte libertada da vida” ou “a arte como artifi- cio”, no dizer do jovem Chklovski, Em contrapartida, 0 conceito jakobsoniano de motivagio acabou reatando os dois termos, atte e vida, postos em contraste, ao afirmar que entre linguagem cotidiana ¢ linguagem poética no hé fosso intransponivel, apenas uma diferenca de grau ou de intensidade. O cédigo lingiifstico de ambos afinal ¢ o mesmo. A teoria da motivacio, cujos ascendentes estio no Cratilo platénico, na Cabala, nos romanticos ¢ nos simbolistas, insere 0 leitor de poesia em um universo existencial amplo, 0 mundo-da- vida que, em ultima instancia, é 0 mesmo universo do leitor de obras ndo-literdrias. Enquanto o conceito de fungao poética ten- dia a deslocar 0 texto para o pélo da linguagem centrada em si mesma, 0 conceito de motivagao potenciava os procedimentos da fala corrente elevando-os ao plano da expresso estética. O que a hipétese da existéncia de uma fungao poética, em si, isola- va ¢ abstrafa, a idéia de motivacao dinamizava lancando 0 poema. no “gran mar dell’esere” invocado por Dante. A intimidade que os formalistas cultivavam com as fontes vivas da literatura permitiu-lhes transitar de uma posigéo exclu- sivista (“poesia néo € vida”) para uma posigdo integracionista LEITURA DE POESIA 29

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