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TA CONCIA ___.. SINTESE DOS FUNDAMENTOS _ HISTORICOS PaO TEOLOGIA CONCISA SINTESE DOS FUNDAMENTOS HISTORICOS _ DA FE CRISTA J.T.PACKER Teologia Ca J.l. Packer servados por Ed Packer, J. [ Teologia Concisa; sintese dos fundamentos historicos da fé crista por J.I. Packer Trad. Rubens Castilho Cai as-SP: Luz Para o Caminho, 1998, 246p. Contetido. Parte 1. Deus revelado como criador, Parte 2. Deus revelado como redentor. Parte 3. Deus revelado cor Senhor da Graga. Parte 4. Deus revelado como Senhor di Destina. 1. Teologia erista. 1. Titulo. al has IMHO 18 Edicao: 1999 -3i000 exemplares Tradutor: Rubens Castilho | Producao: LPC Comunicagées 4 Caixa Postal 130 - Cep 13001-970 — Campinas, €DITORA CULTURA CRISTA Miguel Telles JUnior, 382/394 -Cambuci 40-040 - S40 Paulo - SP — Tal.:(011) 270-705 1} 279-1255 - Ox, Postal 18,136 - CEP O°88¢.970 cep@cep.org.br = Site: wwwacep.org.br a Prefacio ESTE LIVRO EXPOE EM BREVES COMPASSOS © que me parece ser a essencialidade permanente do Cristia- nismo, visto tanto como um sistema de fé quanto uma forma de vida. Outros tém idéias distintas de como deve ser o perfil do Cristianismo, porém esta é a minha. E Reformacional e evangélica e, como tal, assim defendo, a corrente fundamen- tal histérica e classica. Estas porgdes resumidas, que foram ir.’ cialmente planeja- das para um estudo biblico e surgem agora revisadas, tém um molde intencionalmente escrituristico e, como outros escri- tos meus, sao temperados com textos para consulta. Sustento que assim deve ser, porquanto é basico para o Cristianismo 0 ensino biblico como instrugdo do préprio Deus, emanando, como afirma Calvino, dos [4bios santos do Altfssimo e che- gando a nds por mediagao humana. Se a Escritura é, na ver- dade, o proprio Deus pregando e ensinando, como o grande corpo da igreja tem sempre afirmado, segue-se entdo que a primeira marca da boa teologia 6 procurar ecoar a Palavra divina tao fielmente quanto possivel. Teologia 6, primeiramente, a atividade de pensar e falar a respeito de Deus (teologizagiio), e, em segundo lugar, o pro- duto dessa atividade (a teologia de Lutero, ou Wesley, ou Finney, ou Wimber, ou Packer, ou quem quer que seja). Como atividade, a teologia é como um prisma que decompée a luz em distintas disciplinas, embora inter-relacionadas: elucidagao de textos (exegese), sintese do que eles dizem sobre coisas com que tratam (teologia biblica), visfo da fé expressa no passado (teologia hist6rica), sua formulacio para a atualida- de (teologia sistematica), busca de suas implicagdes para a conduta (€tica), recomendacio e defesa de sua verdade e sa- bedoria (apologética), definig&o da tarefa cristé no mundo (misses), absor¢do de recursos para a vida em Cristo (espiritualidade), adoragao em grupo (liturgia) e ministério perquiridor (teologia pratica). Os capitulos seguintes, em for- ma de esbogo, exploram todas essas areas. Recordando que o Senhor Jesus Cristo chamou aqueles que designou como ovelhas apascentadas, em vez de girafas, objetivei manter as coisas téo simples quanto possivel. Al- guém disse certa ocasiao ao arcebispo William Temple que ele havia tornado muito simples um assunto complexo; ele sentiu enorme satisfagdo e disse prontamente: “Senhor, que me fizeste simples, faze-me ainda mais simples.” Meus senti- mentos acompanham os de Temple, e tentei manter minha cabecga ao mesmo nivel da dele. Como digo freqiientemente a meus alunos, a teologia é doxologia e devogio, isto é, louvor a Deus e pratica da pieda- de. Ela deve, pois, ser apresentada de forma que desperte a consciéncia da presenga divina. A teologia alcanga o auge da sua perfeic¢éo quando esta conscientemente sob o olhar de Deus, de quem ela fala, e quando esta cantando ao seu louvor. Tenho também procurado ter isso em mente. Estes breves estudos de grandes assuntos se parecem, agora que ja os escrevi, com os rapidos passeios turfsticos da Ingla- terra, que companhias de 6nibus operam para os visitantes americanos (quinze minutos em Stonehenge, duas horas em Oxford, teatro e pernoite em Stratford, uma hora e meia em York, uma tarde em Lake District — ufa!). Cada capitulo é uma nota esbogada. Nao obstante, espero que meu material comprimido, empacotador-empacotado [Packer-packed] como é, possa expandir-se nas mentes dos leitores para elevar seus coragGes até Deus, do mesmo modo que uma forma diferente de ar aquecido leva os balées e seus passageiros as alturas. Veremos. Minhas freqiientes citagdes da Confissao de Westminster podem levantar algumas sobrancelhas, uma vez que sou anglicano e nao presbiteriano. Entretanto, como a Confissao pretendeu ampliar os Trinta e Nove Artigos, e a maior parte de seus autores era do clero anglicano, e como ela € uma es- pécie de obra-prima, “o fruto mais maduro da elaboragao do credo Reformado”, como B. B. Warfield a chamou, sinto-me autorizado a reputd-la como parte de minha heranga anglicana Reformada, usando-a como principal recurso. Reconhego agradecido a mao oculta de meu muito admi- rado amigo R. C. Sproul, de quem me veio a idéia~-embriao de varios destes esbogos. Embora nossos estilos difiram, pen- samos de maneira muito semelhante, e temos cooperado com sucesso em numerosos projetos. Sei que somos algumas ve- zes chamados de Mafia Reformada, mas palavras duras nao quebram ossos, e vamos prosseguindo. Agradecimentos sao devidos também a Wendell Hawley, meu publicador, e a LaVonne Neff, meu editor, pela assistén- cia e paciéncia demonstradas de muitas maneiras. Trabalhar com eles tem sido um privilégio e um prazer. J. 1. PACKER Indice PARTE UM DEUS REVELADO COMO CRIADOR Revelacao 3 A Escritura é a Palavra de Deus Interpretacéo 6 Os Cristéos Podem Compreender a Palavra de Deus Revelacao Geral 9 A Realidade de Deus é Conhecida de Todos Culpa 11 O Efeito da Revelacao Geral Testemunha Interior 13 A Escritura é Autenticada Pelo Espirito Santo Autoridade 15 Deus Governa Seu Povo Através da Escritura Conhecimento 17 O Verdadeiro Conhecimento de Deus Vem Por Meio da Fé Criacgao 19 Deus é 0 Criador Auto-Revelacao 21 Este € o Meu Nome Auto-Existéncia 24 Deus Tem Sido Sempre Transcedéncia 26 A Natureza de Deus é Espiritual Onisciéncia 29 Deus Vé e Conhece Soberania 31 Deus Reina Onipoténcia 33 Deus é Onipresente e Onipotente Predestinacao 35 Deus Tem Um Propésito Trindade 38 Deus é Um € Sao Trés Santidade 41 Deus é Luz Bondade 43 Deus é Amor Sabedoria 46 A Dupla Vontade de Deus é Uma Mistério 48 Deus é Insuperavelmente Grande Providéncia 51 Deus Governa Este Mundo Milagres 54 Deus Mostra Sua Presenca e Poder Gloria 56 A Gl6ria Manifesta de Deus Requer a Gl6ria Concedida Idolatria 58 Deus Exige Total Devocio Anjos 60 Deus Utiliza Agentes Sobrenaturais Deménios 62 Deus Tem Opositores Sobrenaturais Satanas 64 Os Anjos Cafdos Tém Um Lider Humanidade 66 Deus Fez os Seres Humanos a Sua Imagem A Raca Humana 69 Os Humanos Sao Corpo e Alma em Dois Géneros PARTE DOIS DEUS REVELADO COMO REDENTOR A Queda 75 O Primeiro Casal Humano Pecou Pecado Original 78 A Depravacio Contamina a Todos Incapacidade 81 Os Seres Humanos Decaidos Sao Tanto Livres Como Escravizados Alianca 83 Deus Faz Com os Humanos Pecadores Uma Alianca de Graca ALei 86 Deus Legisla e Exige Obediéncia A Lei em Acao 88 A Lei Moral de Deus Tem Trés Propésitos A Consciéncia 90 Deus Instrui o Coracao ¢ Limpa-o A Adoracao 92 Deus Oferece Um Modelo Littrgico Os Profetas 96 Deus Enviou Mensageiros Para Declararem Sua Vontade Encarnacao 98 Deus Enviou Seu Filho Para Nos Salvar Duas Naturezas 102 Jesus Cristo é Inteiramente Humano Nascimento Virginal 105 Jesus Cristo Nasceu de Um Milagre Mestre 107 Jesus Cristo Proclamou 0 Reino e¢ a Familia de Deus Impecabilidade 110 Jesus Cristo Era Totalmente Isento de Pecado Obediéncia 112 Jesus Cristo Cumpriu a Vontade Redentora de Seu Pai Vocacao 115 A Missao de Jesus Cristo foi Revelada em Seu Batismo Transfiguracao 117 Como Foi Revelada a Gloria de Jesus Cristo Ressurreicao 119 Jesus Cristo Ressuscitou Dentre os Mortos Ascensao 121 Jesus Cristo Foi Elevado ao Céu Entronizado 123 Jesus Reina no Céu Mediacao 125 Jesus Cristo é o Mediador entre Deus e o Homem Sacrificio 128 Jesus Cristo Fez-se Expiacao Por Nosso Pecado Redencao Definitiva 131 Jesus Cristo Morreu Pelos Eleitos de Deus PARTE TRES DEUS REVELADO COMO SENHOR DA GRACA Paraclito 135 O Espirito Santo Ministra aos Crentes Salvacao 138 Jesus Livra Seu Povo do Pecado Eleicao 140 Deus Escolhe os Seus Vocacao Eficaz 143 Deus Atrai Seu Povo a Si Iluminacgao 145 O Espirito Santo Da Entendimento Espiritual Regeneracao 147 O Cristao Nasceu de Novo Obras 149 Boas Obras Sao Uma Expressado de Fé Arrependimento 152 O Cristao Muda Radicalmente Justificacao 154 A Salvacao é Pela Graca Por Meio da Fé Adogao 157 Deus Faz de Seu Povo Seus Filhos Santificacao 159 O Cristao Cresce em Graca Liberdade 162 A Salvacao Traz Liberdade Legalismo 165 As Obras Feitas em Favor de Deus Nao Tém Valor Antinomianismo 168 Nao Somos Livres Para Pecar Amor 171 O Amor € Basico na Conduta Crista Esperanca 173 Esperar é Fundamental na Perspectiva Crista Iniciativa 175 O Cristao Vive Para Agradar a Deus. Oracao 177 Os Cristaos Praticam a Gomunhao Com Deus Juramentos e Votos 180 Os Cristaos Devem Ser Verdadeiros O Reino de Deus 182 Os Cristaos Devem Manifestar a Vida do Reino. Apostolos 184 Os Representantes de Deus Exerceram Autoridade Igreja 186 Deus Estabelece Seu Povo em Uma Nova Comunidade Palavra e Sacramento 190 Como Identificar Uma Igreja Genuina Presbiteros 192 Os Pastores Devem Cuidar da Igreja Sacramentos 194 Deus Instituiu Dois Sinais da Aliancga de Deus Batismo 197 Este Rito Revela Unido Com Cristo A Ceia do Senhor 201 Este Rito Revela Comunhao Com Cristo Disciplina 204 A Igreja Deve Apoiar os Padraes Cristios Missao 207 Cristo Envia a Igreja ao Mundo Dons Espirituais 209 O Espirito Santo Prepara a Igreja Casamento 211 O MatrimGénio Deve Ser um Pacto de Relacao Permanente A Familia 214 O Lar Gristéo é Uma Unidade Espiritual O Mundo 216 Os Cristaos Estao na Sociedade Para Servi-la e Transforma-la O Estado 219 Os Cristaéos Devem Respeitar o Governo Civil PARTE QUATRO DEUS REVELADO GOMO SENHOR DO DESTINO Perseveranca 223 Deus Guarda Seu Povo Pecado Imperdoavel 225 Somente a Impeniténcia Nao Pode Ser Perdoada Mortalidade 227 Os Cristaos Nao Precisam Temer a Morte A Segunda Vinda 230 Jesus Cristo Retornara a Terra em Gloria Ressurreicéo Geral 233 Os Mortos em Gristo Ressuscitarao em Gloria O Tribunal do Juizo 237 Deus Julgara Toda a Humanidade Inferno 240 Os Maus Serado Destinados ao Imforttinio Perpétuo Ceu 243 Deus Acolhera Seu Povo Com fiibilo Perene PARTE UM DEUS REVELADO COMO CRIADOR REVELACAO A ESCRITURA FE. A PALAVRA DE DEUS As tabuas eram obra de Deus; também a escritura era a mesma escritura de Deus, esculpida nas tabuas. EXODO 32.16 verdadeiro Deus, Criador e Redentor da humanidade. FE uma religiao firmada na revelacao: ninguém conheceria a verdade sobre Deus, ou seria capaz de se relacionar com Ele de um modo pessoal, se Ele nao tivesse agido primeiro para sc fazer conhecido. Mas Deus agiu desta maneira, € 0s sessenta e seis livros da Biblia, trinta e nove escritos antes da vinda de Cristo e vinte e sete depois, compreendem 0 registro, inter- pretacao, expressao e incorporagao de sua auto-revelacao. Deus € a religiosidade sao os temas unificados da Biblia. De um ponto de vista, as Escrituras sao 0 testemunho fiel dos piedosos ao Deus a quem amam € servem; de outro ponto de vista, por meio de um exercicio singular da divina supremacia em sua composicao, sao elas o proprio testemu- nho e ensino de Deus em forma humana. A igreja chama a esses escritos Palavra de Deus, porque sua autoria € conteudo sao ambos divinos. A garantia decisiva de que a Escritura, ou Biblia, deriva de Deus ¢ consiste inteiramente de sua sabedoria ¢ verdade vem de Jesus Cristo ¢ seus apdstolos, que ensinaram em seu nome. Jesus, Deus encarnado, viu sua Biblia (nosso Velho Testa- mento) como instrucao escrita de seu Pai celestial, 4 qual Ele, nao menos que outrem, deve obedecer (Mt 4.4,7,10; 5.19.20; 1 O Cristianismo € a verdadeira adoracao e servico do 3 19.4-6; 26.31,52-54; Le 4.16-21; 16.17; 18.31-33; 22.37; 24.25- 27,45-47; Jo 10.35), e a qual Ele tinha vindo cumprir (Mt 5.17,18; 26.24; Jo 5.46). Paulo se refere ao Velho Testamento como inteiramente impregnado pelo “sopro de Deus” — isto é, um produto do Espirito (“sopro”) de Deus, tanto quanto o é o cosmos (SI 33.6; Gn 1.2) — e escrito para ensinar o Cristianismo (2 Tm 3.15-17; Rm 15.4; 1 Co 10.11). Pedro afirma a origem divina do ensino biblico em 2 Pedro 1.21 e 1 Pedro 1.10-12, e assim também o escritor de Hebreus por sua forma de citacao (Hb 1.5-13; 3.7; 4.3; 10.5-7,15-17; cf. At 4.25; 28.25-27). Uma vez que o ensino dos apéstolos sobre Cristo é em si a verdade revelada nas palavras transmitidas por Deus (1 Co 2.12,13), a igreja corretamente considera os escritos autén- ticos dos apéstolos como complemento das Escrituras. Pedro se refere as cartas de Paulo como Escritura (2 Pe 3.15,16), € Paulo, de forma nitida, recorre 4 Escritura do Evangelho de Lucas em 1 Timéteo 5.18, onde menciona as palavras de Lucas 10.7. A idéia de escritos orientativos do préprio Deus como base para a vida piedosa remonta ao ato divino de inscrever o Decdlogo sobre tabuas de pedra e, em seguida, induzir Moisés a escrever suas leis € a hist6ria de suas relagdes com seu povo (Ex 32.15,16; 34.1,27,28; Nm 33.2; Dt 31.9). Meditar e viver com base nesse material foi sempre fundamental para a verdadeira devocao em Israel, tanto para os lideres como para a comunidade (Js 1.7,8; 2 Rs 17.13; 22.8-13; 1 Cr 22.12,13; Ne 8; SI] 119). O principio, segundo o qual todos devem ser governados pelas Escrituras, isto é, pelo Velho e o Novo Testamentos juntos, é igualmente basico para o Cristianismo. O que as Escrituras dizem, Deus diz; porquanto, de modo comparavel somente ao profundo mistério da Encarnacao, a Biblia tanto é plenamente humana como plenamente divina. Assim, todos os seus miultiplos conteidos — histérias, profecias, poesias, cancdes, escritos de sabedoria, sermées, estatisticas, cartas, e 0 que mais houver — devem ser recebidos como vindos de Deus, e tudo 0 que os escritores da Biblia 4 ensinam deve ser reverenciado como instrucao autorizada de Deus. Os cristaos devem ser gratos a Deus pelo dom de sua Palavra escrita, e devem ser cuidadosos em basear sua fé e sua vida total e exclusivamente nela. Caso contrario, nao pode- remos jamais honra-lo ou agradar-the, como Ele nos ordena a fazer. INTERPRETACAO OS CRISTAOS PODEM COMPREENDER A PALAVRA DE DEUS Dé-me entendimento, e guardarei a tua lei; de todo 0 coragdo a cumprirer. SALMO 119.34 Todos os cristaos tém o direito e o dever nao somente de aprender por meio da heranca da fé recebida da igreja, mas também de interpretar a Escritura por si mesmos. A igreja de Roma desconfia disto, alegando que os individuos facilmente interpretam mal as Escrituras. Isto é verdade; porém, as regras seguintes, fielmente observadas, ajudarao a evitar que isso aconteca. Cada livro da Biblia é uma composicéo humana, ¢ embora deva sempre ser acatado como Palavra de Deus, sua inter- pretacao deve comecar a partir do cardter humano. Portanto, a alegorizacao, que desrespeita o sentido expresso do escritor humano, jamais € apropriada. Cada livro foi escrito nao em linguagem cifrada e, sim, de forma que possa ser compreendido pelo leitor, a quem se destina. Isto € verdade mesmo nos livros que empregam simbolismo: Daniel, Zacarias e Apocalipse. O ponto central da mensagem é sempre claro, ainda que os detalhes sejam um tanto obscuros. Assim, quando compreendemos as palavras empregadas, o fundo histérico e a formacaéo cultural do escritor e de seus leitores, estamos aptos a apreender as idéias transmitidas. A compreensao espiritual —,isto €, o discer- nimento da realidade de Deus, seus caminhos para a humanidade, sua vontade presente, e nosso proprio relaciona- 6 mento com Ele agora e para o futuro — nao nos alcancarao, contudo, pelo texto, até que o véu seja removido de nossos coragoes € sejamos capazes de compartilhar © préprio sentimento do escritor para conhecer, agradar e honrar a Deus (2 Co 3.16; 1 Co 2.14). Impde-se aqui a necessidade da oracao, para que o Espirito Santo possa gerar em nés esse sentimento e mostrar-nos Deus no texto. (Ver SI 119.18,19,26, 27,33,34,73,125,144,169; Ef 1.17-19; 3.16-19.) Cada livro teve seu lugar na progressao da revelacao da graca de Deus, iniciada no Eden e atingindo seu climax em Jesus Cristo, no Pentecoste e no Novo Testamento apostélico. Esse lugar deve estar na mente do leitor quando estudar o texto. Os Salmos, por exemplo, moldam o coracao piedoso em cada época, mas expressam suas preces e louvores em termos de realidades tipicas (reis terrestres, reinos, satide, riqueza, guerra, vida longa), que circunscrevem a vida de graca na era pré-crista. Cada livro originou-se da mesma mente divina, por isso 0 ensino dos sessenta e seis livros da Biblia é complementar ¢ autoconsistente. Se, apesar disso, nao pudermos vé-lo assim, a falta esta em nés, nao na Escritura. E certo que a Escritura nunca se contradiz em parte alguma; antes, uma passagem fundamenta a outra. Este solido principio de interpretar a Escritura pela Escritura é, 4s vezes, chamado a analogia da Escritura, ou a analogia da fé. Cada livro demonstra a imutavel verdade acerca de Deus, da humanidade, da piedade e da impiedade, aplicada a situagdes particulares e ilustrada por elas, em que individuos e grupos se encontram. O estdgio final na interpretacdo biblica é reaplicar essas verdades a nossas situacdes pessoais de vida; este € 0 meio para discernir o que Deus na Escritura esta nos dizendo neste momento. Exemplos de tal reaplicacao sao a descoberta feita por Josias da ira de Deus contra Juda pela falha em observar sua lei (2 Rs 22.8-13), o argumento de Jesus sobre Génesis 2.24 (Mt 19.4-6), e o uso de Paulo de Génesis 15.6 e do Salmo 32.1,2 para mostrar a realidade da presente justica pela fé (Rm 4.1-8). Nenhum sentido pode ser lido na Escritura, ou atribuido a ela, que nao possa, com certeza, ser extrafdo dela — demons- trado, ou seja, indubitavelmente expresso por um ou mais de um escritor humano. Cuidadosa ¢ devotada observancia destas regras é a marca de todo cristao “que maneja bem a palavra da verdade” (2'Tm 2.15). REVELACAO GERAL A REALIDADE DE DEUS E CONHECIDA DE TODOS Os céus proclamam a gloria de Deus, ¢ 0 firmamento anuncia as obras das suas méos. SALMO 19.1 O mundo de Déus nao é um escudo que esconde o poder e€ a majestade do Criador. Pela ordem natural, é€ evidente que um potente € majestoso Criador 1a esta. Paulo escreve em Romanos 1.19-21, e em Atos 17.28 cita um poeta grego como testemunha de que os humanos sao divinamente criados. Paulo afirma ainda que a bondade desse Criador é manifesta por meio de suas providéncias generosas (At 14.17; cf. Rm 2.4), e que ao menos algumas das exigéncias de sua santa lei sao conhecidas de todas as consciéncias humanas (Rm 2.14,15), juntamente com a desconfortavel certeza do julgamento final de retribuicdo (Rm 1.32). Essas certezas evidentes constituem o contetido da revelacao geral. A revelacao geral € assim chamada porque todas as pessoas a recebem pelo simples fato de estarem vivas no mundo de Deus. Isto foi assim desde o inicio da histéria humana. Deus revela ativamente esses aspectos de si mesmo a todos os seres humanos, de forma que todos os casos de falha em render gracas e servir ao Criador com justica constituem pecado contra o conhecimento, e negagdes de ter recebido tal conhecimento nao devem ser tomadas seriamente. A revelacao universal de seu poder, seu merecimento de louvor € sua exigéncia moral é a base da acusacao de Paulo a toda raga humana como pecadora e culpada perante Deus por falhar em servi-lo como deve (Rm 1.18-3.19). Deus agora suplementa sua revelacao geral com a revelacao adicional de si mesmo como Salvador dos pecadores, por meio de Jesus Cristo. Esta revelacao, ocorrida na histéria € incorporada a Escritura, e abrindo a porta da salvacdo aos perdidos, € geralmente chamada revelacaéo especial ou especifica. Ela inclui a declaracao verbal explicita de tudo o que a revelacao geral nos fala a respeito de Deus, € nos ensina a reconhecer essa revelacdo na ordem natural, nos eventos da historia, e em figura de seres humanos, de sorte que aprendemos a ver 0 mundo inteiro, na frase de Calvino, como um teatro da gloria de Deus. 10 CULPA O EFEITO DA REVELACAO GERAL O que de Deus se pode conhecer € manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. ROMANOS 1.19 -- A Escritura admite, e a experiéncia confirma, que os seres humanos inclinam-se naturalmente por uma forma de religiao, embora falhem em adorar seu Criador, cuja revelacao geral de si mesmo torna-o conhecido univer-sal- mente. O ateismo te6rico e o monoteismo moral sao opostos naturais: 0 ateismo é sempre uma reacao contra a crenca pré- existente em Deus ou deuses, € 0 monoteismo moral somente surgiu no despertar da revelacao especial. A Escritura explana este estado de coisas dizendo-nos que o pecado do egoismo e da aversdo as prescrigdes de nosso Criador conduz a humanidade 4 idolatria, o que significa transferir a adoracao e reveréncia a outro poder ou objeto que nao o Deus Criador (Is 44.9-20; Rm 1.21-23; Cl 3.5). Desta maneira, os humanos apéstatas “suprimiram a verdade” e “mudaram a gloria do Deus incorruptivel em semelhanca da imagem de homem corruptivel, bem como de aves, quadrupedes e répteis” (Rm 1.23). Eles sufocam e extinguem, tanto quanto podem, a consciéncia que a revelacao geral Ihes da do CriadorJuiz transcendente, e com seu inextirpavel senso de deidade se apegam a objetos indignos. Isto, ao revés, leva a um drastico declinio moral, com a conseqtiente miséria, como primeira manifestacao da ira de Deus contra a apostasia humana (Rm 1.18,24-32). 1 No momento atual, no Ocidente, as pessoas idolatram e, na realidade, adoram objetos seculares, tais como a empresa, a familia, o futebol e sensagdes agradaveis de varias espécies. Mas, o declinio moral persiste como resultado, tal como ocorreu quando os pagaos adoraram jdolos literais nos tempos biblicos. Os seres humanos nao podem suprimir completamente sua percepcao de Deus, bem como de seu julgamento presente e futuro; o préprio Deus nao permitira que o facam. Algum sentido do que é certo e errado, como também de ser subme- tido a um Juiz divino, sempre permanece. Em nosso mundo decaido, todas as mentes que nao estao de algum modo anestesiadas tém uma consciéncia que, em certos pontos, as dirige e, de tempos em tempos, as condena, dizendo-lhes que devem sofrer pelos erros cometidos (Rm 2.14ss.); e quando a consciéncia fala nestes termos é, na verdade, Deus quem esta falando. A humanidade arruinada é, em certo sentido, ignorante de Deus, uma vez que 0 que as pessoas gostam de crer, e de fato créem, com vistas ao objeto de seu culto falseia e distorce a revelacao de Deus, da qual nao podem escapar. Em outro sentido, contudo, todos os seres humanos permanecem cénscios de Deus, de modo culpavel, com desconfortaveis pressentimentos do julgamento vindouro, que esperam nao se cumpra. Somente o evangelho de Cristo pode falar de paz a esse aflitivo aspecto da condicao humana. 12 TESTEMUNHA INTERIOR A ESCRITURA FE AUTENTICADA PELO ESP{RITO SANTO E v6s possuts ungdo que vem do Santo e todos tendes conhecimento. 1JOAO 2.20 Por que os cristaos créem que a Biblia é a Palavra de Deus, sessenta ¢ seis livros formando um unico livro de instrucao, no qual Deus nos revela a realidade da redencgao por meio de Jesus Cristo, o Salvador? A resposta é que o proprio Deus confirmou isto por meio do que chamamos a testemunha interior do Espirito Santo, Nas palavras da Confissao de Westminster (1647): Podemos ser movidos e induzidos pelo testemunho da igreja a uma alta e reverente estima pela Sagrada Escritura. E a sacralidade do assunto, a eficdcia da doutrina, a majestade do estilo, a harmonia de todas as partes, a finalidade do todo (que é dar toda gloria a Deus), a plena descoberta que faz do tinico caminho para salvacdo do homem, as outras muitas incompardveis exceléncias, e a sua total perfeicdo, séo argumentos por meio dos quais ela abundantemente evidencia por si mesma ser a Palavra de Deus: ndo obstante, a plena persuasdo e cerleza que temos da sua infalivel verdade e divina auloridade deve-se a obra interior do Espirito Santo que da testemunho da Palavra em nosso coracdo. (1.5) O testemunho do Espirito sobre a Escritura ¢ como seu testemunho a respeito de Jesus, que encontramos declarado em Joao 15.26 e 1 Joao 5.7 (cf. 1 Jo 2.20,27). Nao é uma questao de dar nova informacao, mas de esclarecer mentes 13 antes obscurecidas, que nao discerniram a divindade por meio da apreensao de seu tinico impacto — 0 impacto, de um lado, do Jesus do evangelho, e, de outro lado, das palavras da Escritura Sagrada. O Espirito ilumina nossos coracgées para dar-nos a luz do conhecimento da gloria de Deus, nao somente na face de Jesus Cristo (2 Co 4.6), mas também no ensino da Sagrada Escritura. O resultado deste testemunho é um estado de espirito em que ambos, Salvador e Escritura, se evidenciam diante de nés como divinos — Jesus, uma pessoa divina; a Escritura, um produto divino — de um modo tao direto, imediato ¢ impressionante como aquele em que gostos € cores se tornam evidentes por se imporem aos nossos sentidos. Em conseqiiéncia disto, nao mais achamos possivel duvidar da divindade, seja de Cristo ou da Biblia. Assim, Deus autentica para nos a Escritura Sagrada como sua Palavra — nao por alguma experiéncia mistica ou informac¢ao secreta sussurrada as escondidas no ouvido interior de alguém, nao por argumento humano isolado (por mais forte que ele seja), nem pelo testemunho isolado da igreja (comoyente como é quando visto ao longo desses dois mil anos). Deus 0 faz, antes, por meio de sua luz perscru- tadora e poder transformador, pelos quais a Escritura atesta por si mesma sua origem divina. O impacto dessa luz e desse poder é 0 préprio testemunho do Espirito “pela Palavra e com ela em nosso coracao”. Argumento, testemunho de outrem, e nossa prépria experiéncia pessoal podem preparar-nos para receber esse testemunho, mas sua concessao, como a concessao da fé na divina obra salvifica de Cristo, € prerroga- tiva exclusiva e soberana do Espirito Santo. A iluminacao do Espirito testemunhando a divindade da Biblia € experiéncia crista universal, ¢ tem sido assim desde o principio, embora muitos cristaos nao tenham sabido verbaliza-la ou manejar a Biblia de modo compativel com cla. 14 AUTORIDADE DEUS GOVERNA SEU POVO ATRAVES DA ESCRITURA Toda a Escritura é inspirada por Deus e util para 0 ensino, para a repreensdo, para a corregao, para a educagao na justica. 2 TIMOTEO 3.16 O principio cristao da autoridade biblica significa, por -- um lado, que é propésito de Deus dirigir a crenca € con- duta de seu povo mediante a verdade revelada que a Escritura Sagrada anuncia; por outro lado, significa que todas as nossas idéias a respeito de Deus devem ser medidas, testadas e, onde necessario, corrigidas e ampliadas, tendo como referéncia o ensino biblico. A autoridade como tal é direito, reivindicacao, aptidao e, por extensdo, poder de controlar. A autoridade no Cristianismo pertence ao Deus Criador, que nos levou a conhecé-lo, ama-lo e servi-lo, e seu modo de exercer sua autoridade sobre nés é por meio da verdade e sabedoria de sua Palavra escrita. Do ponto de vista humano, cada livro biblico foi escrito para promover o servico de Deus com mais consisténcia e dedicacao, ¢, de igual modo, do ponto de vista divino, toda a Biblia tem este proposito. E uma vez que o Pai deu ao Filho plena autoridade para governar 0 cosmos em seu nome (Mt 28.18), a Escritura funciona precisamente como 0 instrumento do senhorio de Cristo sobre seus seguidores. Toda a Escritura €é, neste sentido, como as cartas de Cristo as sete igrejas (Ap 2-3). Onde encontrar hoje a verdade definitiva de Deus? Ha trés respostas, cada qual a seu proprio modo recorrendo a Biblia. 15 As igrejas catélica romana e ortodoxa encontram a verdade de Deus, como créem, nas interpretacdes da Escritura incor- poradas em sua propria tradic4o e consenso. Elas visualizam a Biblia como verdade dada por Deus, porém insistem que a igreja deve interpreta-la, sendo infalivel quando assim procede, Contrastando com essa visio, individuos rotulados de libe- rais, radicais, modernistas, ou subjetivistas, encontram a verdade de Deus nas idéias, impressées, julgamentos, teorias e especulacoes que a Escritura provoca em suas mentes. Enquanto rejeitam o conceito neotestamentario da inspiracao da Escritura, € nao consideram sua Biblia totalmente digna de confianca ou como receptaculo das transcric6es absolutas € peremptérias da mente divina, estéo confiantes de que o Espirito guia-os a pingar e escolher desta forma o que resulta da sabedoria de Deus. O protestantismo historico, entretanto, encontra a verdade de Deus no ensino das Escrituras canénicas como tais. Ele recebe essas Escrituras como inspiradas (isto €é, como sopro de Deus, 2 Tm 3.16), inerrantes (ou seja, totalmente verdadeiras em tudo o que afirmam), suficientes (a saber, dizendo-nos tudo 0 que Deus deseja dizernos e tudo o que precisamos saber para a salvacao e a vida eterna), e claras (isto é, objetivas ¢ auto-interpretativas sobre todos os assuntos de importancia) . As duas primeiras posic6es tratam os julgamentos humanos sobre a Biblia como decisivos para a verdade e a sabedoria; a terceira, enquanto valoriza a heranca de conviccao da igreja e é sensivel 4 exigéncia por coeréncia, que o pensamento racional envolve, submete sistematicamente todos os pensa- mentos a Escritura, que toma seriamente como canon. Cénon significa uma regra ou padrao. As duas primeiras posicdes se referem a Escritura como canon, mas deixam de considera-la com a devida seriedade como regra que funciona para a fé € para a vida. Assim, na pratica, elas nao aceitam plenamente sua autoridade, enquanto sua profissdo crista, embora sincera, é conseqtientemente falha. 16 CONHECIMENTO O VERDADEIRO CONHECIMENTO DE DEUS VEM POR MEIO DA FE “Mas 0 que se gloriar, glori 0. em me conhecer € saber que eu sou 0 SENHOR, e faco misericordia, juizo e justica na tena; porque destas coisas me agrado”, diz o SENHOR. JEREMIAS 9.24 Em 1 Timéteo 6.20,21 Paulo adverte Timéteo contra “os falatérios intiteis e profanos e€ as contradicées do saber (grego gnosis), como falsamente Ihe chamam, pois alguns, professando-o, se desviaram da fé”. Paulo esta atacando as tendéncias teos6fico-religiosas que evoluiram para 0 gnosticis- mo no segundo século desta era. Mestres dessas crencas ¢ praticas aconselharam os crentes a considerar seu compro- misso cristéo como que um confuso primeiro passo na estrada do “conhecimento”, € os incentivaram a tomar novos passos ao longo dessa estrada. Esses mestres, porém, tinham a ordem material como desprezivel e o corpo como uma prisao para a alma, adotando a iluminacao como a resposta completa 4 necessidade espiritual do homem. Negavam que o pecado fosse alguma parte do problema, ¢ o “conhecimento” que ofereciam incluia somente palavras de encantamento, contra- senhas celestiais, disciplinas misticas e concentracao extatica. Eles reclassificaram Jesus como um mestre sobrenatural que parecia homem, embora nao fosse; a Encarnagao e a Reconciliagao eram negadas, e substituiram 0 convite de Cristo para uma vida de amor santificado por prescric6es para © ascetismo ou permissdo para a licenciosidade. As cartas de 17 Paulo a Timéteo (1 Tm 1.3,4; 4.1-7; 6.20,21; 2 Tm 3.1-9); Judas 4,8-19); Pedro (2 Pe 2); ¢ as duas primeiras cartas de Joao (1 Jo 15-10; 2.9-11,18,29; 3.7-10; 4.1-6; 5.1-12; 2 Jo 7-11) se contrapéem explicitamente as crencas € praticas que mais tarde emergiriam como gnosticismo. Em contraste, a Escritura fala de “conhecer” a Deus como a pessoa espiritual ideal: a saber, a plenitude de uma fé rela- cionamento que traz salvacao e vida eterna e gera amor, esperanga, obediéncia e gozo. (Ver, por exemplo, Ex 33.13; Jr 31.34; Hb 8.8-12; Dn 11.32; Jo 17.3; Gl 4.8,9; Ef 1.17-19; 3.19; Fp 2.8-11; 2 Tm 1.12.) As dimensoes deste conhecimento sao intelectuais (conhecer a verdade acerca de Deus: Dt 7.9; Sl 100.3); volitivas (crer em Deus, obedecer-lhe e adord-lo em termos daquela verdade); € morais (praticar a justica € 0 amor: Jr 22.16; 1 Jo 4.7,8). A fé-conhecimento focaliza o Deus encarnado, o homem Cristo Jesus, o mediador entre Deus ¢ nés pecadores, por meio de quem vimos a conhecer seu Pai como nosso Pai (Jo 14.6). A fé procura conhecer a Cristo e seu poder especificamente (Fp 3.8-14). O conhecimento da fé € 0 fruto da regeneracdo, a doacao de um coracao novo (Jr 24.7; 1 Jo 5.20), e da iluminacao pelo Espirito (2 Co 4.6; Ef 1.17). O conhecimento-relacionamento € reciproco, implicando afeicao pactual de ambos os lados: conhecemos a Deus como nosso, porque Ele nos conhece como dele (Jo 10.14; Gl 4.9; 2 Tm 2.19). Toda a Escritura nos foi dada para ajudar-nos a conhecer a Deus deste modo. Trabalhemos para usé-la para seu adequado propésito. 18 CRIACAO DEUS E O CRIADOR Que variedade, SENHOR, nas tuas obras! Todas com sabedoria as fizeste; cheia esta a terra das tuas riquezas. SALMO 104.24 “No principio, criou Deus os céus e a terra” (Gn 1.1). -- Ele os fez por meio do fiat (latim: faca-se), sem qualquer material pré-existente; sua decisao de que as coisas deveriam existir (“Haja...”) fez com que elas surgissem e formou-as em ordem com uma existéncia que dependia de sua vontade, ¢ que era, no entanto, distinta de sua esséncia divina. Pai, Filho e Espirito Santo envolyeram-se juntamente (Gn 1.2; Sl 33.6,9; 148.5; Jo 1.1-3; Cl 1.15,16; Hb 1.2; 11.3). Os seguintes pontos devem ser assinalados: (a) O ato da Criacao é um mistério para nés; ha mais nele do que podemos compreender. Nao podemos criar por fial, e nao sabemos como Deus péde. Dizer que Ele criou “do nada” € confessar 0 mistério e nao explicalo. Em particular, nao podemos conceber como a existéncia dependente pode ser existéncia distinta, nem como anjos e seres humanos em sua existéncia dependente podem nao ser robés, mas criaturas capazes de decisdes livres, pelas quais sao moralmente responsaveis perante Aquele que os fez. Entretanto, a Escritura em todos os lugares ensina que é assim. (b) Espaco € tempo sao dimens6es da ordem criada; Deus nao esta “em” um ou outro; nem esta sujeito a um ou outro, como nos estamos. 19 (c) Como a ordem universal nao foi autocriada, ela tampouco é auto-sustentavel, como Deus é. A estabilidade do universo depende da constante manuten¢ao divina; este é um ministério especifico do Filho de Deus (Cl 1.17; Hb 1.3), sem isso toda criatura de toda espécie, nds inclusive, cessaria de ser. Como Paulo disse aos atenienses, “ele mesmo é quem a todos da vida, respiracao e tudo mais. . . . pois nele vivemos, € nos movemos, e existimos” (At 17.25,28). (d) A possibilidade de intromissGes criativas (p. ex., mila- gres de poder criativo; criacao de novas pessoas mediante a atividade procriativa humana; reorientacdo dos coracées humanos c redirecionamento das vontades e energias huma- nas na regeneracao) é tao velha como o proprio cosmos. Até quando Deus, cm sua atividade mantenedora, realmente continuara a criar novas coisas, que nao podem ser explicadas em termos de qualquer coisa que foi antes, esta além de nosso poder de saber; porém, certamente este mundo permanece aberto ao seu poder criativo em todos os pontos. Saber que Deus criou o mundo a nossa volta, e nés mesmos como parte dele, é basico 4 verdadeira religiao. Deus deve ser louvado como Criador, em razao de sua maravilhosa ordem, variedade e beleza de suas obras. Os salmos, como 0 104, sao modelos desse louvor. Deus deve ser crido como o Senhor soberano, com um plano eterno abrangendo todos os eventos e destinos, sem excecao, e com poder de redimir, recriar € renovar; tal crenca torna-se racional quando nos lembramos de que € no Criador todo-poderoso que estamos crendo. Reconhecer a cada momento nossa dependéncia do Deus Criador para nossa existéncia faz com que se torne apropriado viver vida de devogao, compromisso, gratidao ¢ lealdade para com Ele, sem qualquer impureza. A retidao comega aqui, com Deus, 0 soberano Criador, como o primeiro ponto de convergéncia de nossos pensamentos. 20 AUTO-REVELACAO “ESTE E O MEU NOME” Disse Deus ainda mais a Moisés: “Assim dirds aos filhos de Israel: ‘O SENHOR, 0 Deus de vossos pais, o Deus de Abrado, 0 Deus de Isaque, e 0 Deus de Jaco, me enviou a vos outros’: este 60 meu nome eternamente, e assim serei lembrado de geracdo em geragao.” EXODO 3.15 No mundo moderno, © nome de uma pessoa € + meramente uma etiqueta de identificagado, como um mimero, que pode ser mudado sem prejuizo. Os nomes biblicos, entretanto, tem seu cendrio na ampla tradi¢ao em que os nomes pessoais dao informacoes, revelando, de certa forma, quem sao as pessoas. O Velho Testamento constante- mente celebra o fato de que Deus tornou seu nome conhe- cido a Israel, e os os salmos dirigem louvor ao nome de Deus incessantemente (SI 8.1; 113.1-3; 145.1,2; 148.5,13). “Nome” aqui quer dizer o proprio Deus, tal como Ele se revelou por palavras e atos. No Amago desta auto-revelacao € o nome pelo qual Ele autorizou Israel a invoca-lo — Yahweh, como os eruditos modernos escrevem; jeovd, como se usa traduzi-lo; o SENHOR, como ele € impresso nas versées do Velbo Testa- mento em portugués. Deus declarou este nome a Moisés, quando lhe falou do meio da sarca ardente que nao se consumia pclo fogo. Deus iniciou por identificar-se como o Deus que empenhou a si mesmo em um pacto com os patriarcas (cf. Gn 17.1-14); depois, quando Moisés Ihe perguntou qual ele diria ao povo ser o nome desse Deus (pois a antiga pressuposicao era que a oracdo seria ouvida somente se fosse citado corretamente o ai nome daquele a quem era dirigida), Deus primeiro disse “EU SOU O que SOU” (ou “serei o que serei”), depois o encurtou para “EU SOU”, e finalmente chamou a si mesmo “o SENHOR (hebraico Yahweh, um nome que soa como “EU SOU” em hebraico), o Deus de vossos pais” (Ex 3.6,13-16). O nome, em todas as suas formas, proclama sua realidade sobe- rana eterna, auto-sustentada, autodeterminada — o modo sobrenatural de existéncia que o sinal da sarca ardente tinha significado. A sarca, podemos dizer, foi a ilustracao divina tridimensional de sua vida inexaurivel. “Este € 0 meu nome eternamente”, disse Ele — isto é, 0 povo de Deus deveria sempre pensar nele como o rei vivo, reinante, potente, irrestrito, irreduzivel, que a sarca ardente demonstrou (Ex 3.15). Mais tarde (Ex 33.18-34.7) Moisés pede para ver a “gloria” de Deus, e, em resposta, Deus “proclamou 0 scu nome” assim: “SENHOR, SENHOR Deus compassivo, clemente e longa- nimo, € grande em miseric6rdia e fidelidade; que guarda a misericordia em mil geragdes, que perdoa a iniqtiidade, a transgressao e o pecado, ainda que nao inocenta o culpado...” Na sarca ardente Deus tinha respondido a pergunta: De que forma Deus existe? Aqui Ele responde 4 pergunta: De que forma Deus procede? Esta proclamacao fundamental de seu carater moral € muitas vezes reiterado em passagens poste- riores (Ne 9.17; Sl] 86.15; JI 2.13; Jo 4.2). E tudo parte de seu “nome”, isto é, sua revelacao de sua natureza, pelo qual Ele deve ser adorado para sempre. Deus completa esta revelacao da gl6ria de seu carater moral chamando a si mesmo “zeloso” “pois o nome do Senhor é Zeloso [ciumento]” (Ex 34.14). Isto repete, com énfase, o que Ele disse de si mesmo na sancao do segundo mandamento (Ex 20.5). O zelo afirmado € pactual: é a virtude do amante comprometido, que deseja lealdade total daquele a quem sujeitou a si para honra-lo ¢ servir-lhe. No Novo Testamento, as palavras € atos de Jesus, o Filho encarnado, constituem uma plena revelacao da mente, perspectiva, caminhos, planos e propésitos de Deus Pai (fo 22 14.9-11; cf. 1.18). “Santificado seja o teu nome”, na oracgao do Senhor (Mt 6.9), expressa o desejo de que a primeira pessoa da Divindade seja reverenciada e louvada, como o esplendor de sua auto-revelacéo merece. A Deus deve ser dada gléria por todas as glérias de seu nome, isto é, sua gloriosa auto- revelacao na criacao, providéncia e graca. 23 AUTO-EXISTENCIA DEUS TEM SIDO SEMPRE Antes que os montes nascessem e se formassem a terra eo mundo, de eternidade a eternidade tu és Deus. SALMO 90.2 i Algumas v as criancas perguntam, “Quem fez TP Deus?” A resposta mais clara é que Deus nunca precisou ser feito, porque Ele sempre esteve la. Ele existe de uma maneira diferente de nés: nds, criaturas suas, existimos em forma dependente, derivada, finita e fragil, mas nosso Criador existe em forma eterna, auto-sustentada e necessaria — neces- saria quer dizer no sentido de que Deus nao tem, por sua imanéncia, de sair da cxisténcia, como, inversamente, nao temos em nés a faculdade de viver para sempre. Nos necessariamente envelhecemos e€ morremos, porque € nossa presente natureza fazer isso; Deus necessariamente continua para sempre imutavel, porque é sua natureza eterna fazer isso. Este 6 um dos muitos contrastes entre a criatura e o Criador. A auto-existéncia de Deus é uma verdade basica. No inicio de sua apresentacao do Deus desconhecido aos iddlatras atenienses, Paulo explicou que esse Deus, 0 Criador do mundo, “nem € servido por maos humanas, como se de alguma coisa precisasse; pois cle mesmo é quem a todos da vida, respiracado ¢ tudo mais” (At 17.25). Os. sacrificios oferecidos aos idolos nas religides tribais de hoje, como na antiga Atenas, sao tidos como algo que mantém a idolatria, porém o Criador nao precisa de tal sistema de apoio. A palavra aseidade, significando que Ele tem vida propria e que extrai 24 sua inexaurivel energia de si mesmo (a se significa em latim “de si mesmo”), foi cunhada pelos tedlogos para expressar esta verdade, que a Biblia faz clara (SI 90.1-4; 102.25-27; Is 40.28-31; Jo 5.26; Ap 4.10). Em teologia, equivocos infindaveis resultam de se supor que as condicdes € os limites de nossa propria existéncia finita se aplicam a Deus. A doutrina de sua ascidade permanece como um baluarte contra tais equivocos. Em nossa vida de fé, facilmente nos empobrecemos por abracar uma id¢ia tao pequena c limitada de Deus, e, de novo, a doutrina da ascidade de Deus ergue-se como um baluarte para ce ocorréncia. E vital para a satide espiritual crer que Deus € grande (cf. Sl 95.1-7), © compreender a verdade de sua aseidade é 0 primeiro passo na estrada dessa crenca. 25 TRANSCENDENCIA A NATUREZA DE DEUS E ESPIRITUAL Assim diz o SENHOR: O céu é 0 meu trono, ea terra o estrado dos meus pes; que casa me edificareis vés? E qual é 0 lugar do meu repouso? ISAIAS 66.1 -|- “Deus é espirito”, disse Jesus 4 mulher samaritana junto ao poco (Jo 4.24). Embora plenamente pessoal, Deus nao vive em um corpo e por meio dele, como nés, e, por isso, nao esta ancorado em uma moldura espaco-tempo. Deste fato, além do fato adicional de que Ele é auto-existente e nao marcado, como nés somos, pela desintegracao pessoal (falta de concentracao e controle), que o pecado produziu em nés, varias coisas decorrem. Primeiro, Deus nao é limitado nem pelo espaco (Ele esta continuamente em todo lugar em sua plenitude) nem pelo tempo (nao ha o “momento presente”, no qual Ele esteja contido, como nés estamos). Os tedlogos se referem a liberdade limitativa de Deus como sua infinidade, sua imensidade e sua transcendéncia (1 Rs 8.27; Is 40-12-26; 66.1). Como Ele mantém todas as coisas existentes, assim tem Ele todas as coisas em todos os lugares sempre diante de sua mente, cada qual em sua propria relacao com seu plano € proposito totalmente abrangente para todo item e toda pessoa em seu mundo (Dn 4.34,35; Ef 1.11). Segundo, Deus é imutavel. Isto significa que Ele é totalmente consistente: por ser necessariamente perfeito, Ele nao pode mudar, seja para melhor ou para pior; e porque nao esta limitado no tempo, Ele nao esta sujeito a mudanga, como 26 as criaturas (2 Pe 3.8). Longe de estar afastado e imovel, Ele esta sempre ativo em seu mundo, constantemente fazendo novas coisas surgirem (Is 42.9; 2 Co 5.17; Ap 21.5); mas, em tudo isso, Ele expressa seu perfeito cardter com perfeita consisténcia. E precisamente a imutabilidade de seu carater que garante sua fidelidade as palavras que tem falado e aos planos que tem feito (Nm 23.19; Sl 33.11; MI 3.6; Tg 1.16-18); e € essa imutabilidade que explica porque, quando as pessoas mudam sua atitude para com Ele, Ele muda sua atitude para com elas (Gn 6.5-7; Ex 32.9-14; 1 Sm 15.11; Jn 3.10). A idéia de que a invariabilidade de Deus envolve indiferenca ao que se passa neste mundo € precisamente 0 oposto da verdade. -Terceiro, os sentimentos de Deus nao estao fora de seu controle, como os nossos freqiientemente estao. Os tedlogos expressam isto dizendo que Deus € impassivel € insensivel, porém aquilo que Ele sente, como o que Ele faz, é uma questao de sua prépria escolha deliberada e voluntaria e esta incluida na unidade de seu ser infinito. Deus jamais é nossa vitima no sentido de que o fazemos sofrer naquilo que Ele nao tinha previamente escolhido sofrer. Contudo, sao abundantes as passagens que expressam a realidade das emocées de Deus (alegria, tristeza, ira, deleite, amor, ddio, etc.), sendo um grande equivoco esquecer que Deus sente — embora em forma de necessidade que transcende a experiéncia emocional de um ser finito. “Quarto, todos os pensamentos e acoes de Deus envolvem todo o seu ser. Esta é a sua integracao, as vezes chamada “sua simplicidade”. Ela se coloca em completo contraste com a complexidade e falta de integracao de nossa propria existéncia pessoal, na qual, como resultado do pecado, raramente ou talyez nunca somos capazes de concentrar a totalidade de nosso ser e todos os nossos poderes sobre qualquer coisa. Um aspecto da maravilha de Deus, entretanto, é que Ele simultaneamente da total e indivisa atencao nao apenas a uma coisa de cada vez, mas a todas as coisas € a todas as pessoas em todo lugar em seu mundo passado, presente futuro (cf. Mt 10.29,30). 27

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