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Recordar e comemorar A raiz tanatolégica dos ritos comemorativos To remember and to celebrate The thanatological root of celebration rites Fernando Catroga Resumo ‘Nada é tao individual quanto a morte, por ser intransferivel Todo conhecimento a seu respeito ¢ indireto, pois somente apreen- dido pela morte do outro. A civilizago ocidental, desde seus primérdios, buscou escamoteé-la e os discursos tanatolégicos serao sempre dos (e sobre) os vivos. © horror sobre as conseqiiéncias do estar morto tem gerado ritos, principalmente da pritica libertadora da presenga do cadaver, na busca de um sentido e alivio para essa ruptura, Isso gera, ainda, a exacerbago dos signos tumulares para tomar visivel o ser em detrimento do nada, buscando dar um senti- do de presenga e recordagao eterna ao ausente. Esses sentidos tm gerado no Ocidente, principalmente a partir do século XIX, cemitérios museus, produtos do racionalismo iluminista. A finali- dade ¢ torna-los memérias-construidas, cujo didlogo faz com que essa evocagao busque anular o distanciamento gnosiolégico entre 0 sujeito e o objeto, gerando uma comemoragio. Palayras-chave: morte; tanatologia; cemitérios-museus; ritos; co- memoragio 1 - Recordar e comemorar Sendo um acontecimento individual e indizivel — ningugm pode morrer a morte de outrem nem narrar a sua propria morte — esta nfo é somente um fenémeno biolégico, mas é também, como AB sublinhou Max Scheller,' um saber intuitivo e aprioristico, confir- mado pela experiéncia indireta e intuitivamente apreendido através da morte do outro e dos “tracos” subjetivos ¢ histérico-sociais como € pensada e representada. Porém, em si mesma, ela é um “nada epis- temolégico” um “nada ontolégico”. Pensi-la seri sempre negi-la S6 a partir de um sujeito instalado na certeza do viver’ se poderé interrogar o seu enigma, entendendo-se assim que, no fundo, nao seja a morte, mas o saber da (e sobre) a morte que suscita inquie~ tago ao homem.’ Na cultura ocidental, existe uma velha tradigao que aconselha © seu escamoteamento como problema, Segundo Epicuro, “o mais terrivel dos males nada & para nés, pois, enquanto existimos, a morte nao é, e, quando ela esta li, ja nao existimos nés. A morte no tem, por conseguinte, nenhuma rela¢ao nem com os vivos nem com os mortos, uma vez que ela nada é para os primeiros ¢ os iltimos j4 "4 Posigdes similares foram defendidas por Epiteto, ‘Séneca, Montaigne, Kant, Feuerbach, Marx e, em ultima anilise, por todo pensamento imbuido de otimismo iluminista.* Dir-se-ia que esta atitude se limita a explicitar uma das respostas do homem, a conscigncia e recusa da sua finitude: a interiorizagao do desejo de se sentir imortal (FREUD, Trauer und Melancholie, 1916-1917), tendéncia esta que a sociedade contemporanea levou as iiltimas conseqiiéncias ao desenvolver um processo de civilizagao assente cada vez mais na separagio e estranheza entre a vida e a morte. Hoje, nunca se esta preparado para morrer e a morte chega demasi- adamente cedo, como de um assassinato se tratasse.° Morre-se sem- pre “de” e esquece-se de que, afinal, a causa (das causas) da morte 6 0 incessante morrer da vida Inteligir o sentido da inaceitavel finitude é uma das condigdes necessirias para se tentar entender o tempo, ou melhor, o homem. como tensio entre um futuro que ainda nao é € um passado que ja nio existe, Logo, a morte, nao sendo extrinseca a vida, surge como © problema radical que, em ver, de ser recaleado, pode-nos ensinar a compreender a vida e saber vivé-la.’ E como dela s6 poderemos recomhecer sua semidtica, os discursos tanatolégicos seréo uma fala sempre dos (¢ sobre) os vivos. Se a prossecugio deste objetivo tem uma via teorética privile- giada — as filosofias da existéncia (HEIDEGGER,' LEVINAS’) - nao sto de menor valor gnosiolégico, porém, os caminhos abertos pela antropologia, pela etnologia e pela histéria das mentalidades a0 interrogarem nao s6 as ideagSes, mas principalmente os comporta mentos, os gestos ¢ as atitudes corporizados nos ritos que encenam © morter e a morte nao existem’ CATROGA, Femando, Recordar e comemora Ariz tanatolgica dos filos comemorativos Mimesis Bau, ¥B.n.2.p. 1, 22 1166 SCHBLLER, Max. Mort Soiveiéncia. Lidbox Ege 1993, 22GADAMER,Han-Gootg. La mot eae guestion. I A. A.V Sens Existence, I: Hommage «Pal ‘Ricoeur Pai Sell, 1759.20, ELIAS, Noe La Solitude de ‘Moura. 2 ee Pai: Chinon Boargcois bite, 1998 p15, 4 Segucse a wad de BORGES, “wel, Mote East, Ie Jprojae musi, nie Dezembro 195, p 128 S dem, p22 6 ZIEGLER, fans Pvt Mors Paci: Sui, 195. 9.23. 71 QUENTAL, Antero de. Pros Coimbra: Intend rivera, 1931 p 178 Cf HEIDEGGER, Matin. Breet {i Temp. Pas: Galas, 1972p. 4. 9 CE LEVINAS, Emmanuel. La Mort 11 Temps, Pai ene, 199. Sore ota, vase BERNARDO, Femands, Amore segundo rome Levin: Limite iia do eimeresiade. Revo lassie de Coimbra x6 1, mg, 197, 119-208 CCATROGA, Fernando, Recordar e comemora Ani tanatolégica dos fitos comemorativos Mimesis, Bauru, ¥.B,0.2, p47, 202 10 Cf DEPUTTE, Bean aceon de lamer etd a sopra tion ches prmates. Ts NATHEAN, “obi (4) Riel de Deal Tena ‘hu Daal Panis La Pee Suge, 1995. p18. Defeadeo autor: “ae dei et fin comme a sete, ‘conse a dole rece a perie «Fm proche, on pet alos iil rien eviager une comparison eee Jes pmals on mans. Mais om fmt eu que coma s Nets dete ere, sas deve publ de dent fase ass cells des sings ede es compas celle ds home (p15) Sere & hips eho" nama, vee POLLOCK, George H. Dealt hngetent. i ETUDES our lt Mor. XXIIP* Congés Deal t ‘Acconpagnemest Bullen dea Socedde Thanatloie 107-108, XXX anes 1985, p.-t CE RAGON, Mickel L. Bipace de ls Mort. suas Uanchitectre, a coraton eT whanme francs Pins Alba Mice, (1% p. 1-16 12 CE THOMAS, LowieVient ier de Mort Pow apa dés viva. Pais Far p. 12-16 1B CE THOMAS, Loi Vieeat La Macrt, Una lec eal ‘Buelon:Pids, 1991p. 15 "om, Ries de Mor 118 14 CF THOMAS, Lsis-Vicet. refit Ins BAYARD, ea Pee Sete Oita des Rts Fane. “Morrer€morrer? Sia Pale Pao, 1995 ps 1S GUIOMAR, Mice, Principe ane Bsthngue de la Mort Pais J Cont, 1967p 34. E nesta perspectiva que muitos estudiosos tém defendido que a linha diferenciadora da hominizagio se encontra no fato de o homem ser o tnico animal que cultua os seus mortos. Esto neste caso autores como Edgar Morin, Frangoise Charpentier e Louis- Vincent Thomas. No entanto, outros, como Michel Ragon, susten- tam que tal manifestagdo ja se detecta em alguns primatas" e nao se encontra em todos os povos: alguns houve que denotam indiferenga em relagio aos destinos dos cadaveres."" Seja como for, parece indiscutivel que 0 horror perante a putrefagdo e 0 medo do regresso do “duplo” so constantes antropoligicas que tém gerado ritos vivi- dos pelos sobreviventes numa ordem de tempo que sintomatica- mente tende a coincidir com o periodo da decomposigao do proprio corpo (ROBERT HERTZ) ¢ a ultrapassar a sua realidade biolégica através de uma especifica expressio social e metafisica. ‘Nao ha uma sociedade sem ritos, aqui entendidos como con- dutas corporais mais ou menos estereotipadas, as vezes codificadas ¢ institucionalizadas, que exigem um “tempo”, um “espago cénico” eum certo tipo de atores: Deus (ou os Antepassados), os oficiantes © os figis participantes do espeticulo, Como escreveu Louis- ‘Vincent Thomas, o sentido do rito assenta justamente nas interagSes entre os protagonistas do drama e 0 consenso que os unifica, sendo aquele inconcebivel sem uma “organizagao de signos geradora de eficacia simbolica”. Mas esta somente tera efeito dentro de um hori- zonte de crenga; s6 assim a representagio ritual poderd ser catartica e normativa enquanto expressao libertadora de angastias e modo de resolugao de dramas e de conflitos.* E os ritos funerarios — com- portamentos complexos que espelham os afetos mais profundos ¢ supostamente guiam o defuunto no seu destino post-mortem — tm como objetivo fundamental superar o trauma ¢ 0 caos que toda a morte provoca nos sobreviventes."” No momento caético, “o rito & forma de negociar a alteridade, a fim de inflecti-la em sentido posi- tivo”, e a morte representa a “alteridade por exceléncia, uma vez que ela & a nio-vida”. Como bem lembra Michel Guiomar, “c’est par et dans le Funéraire que s’exprime clairemente une méta- physique de la Mort, aux différentes époques, en divers liewx, dans chaque religion, dans chaque civilisation”. ‘Um dos componentes fortes do rito de ultima passagem & a pritica libertadora da presenga do cadaver. O canibalismo, a imer- so, o embalsamento, passando pelas técnicas mais freqiientes (a cremagio e a inumagio) sao técnicas materiais (e publicas) que se revestem de um simbolismo capaz de Ihes conferir sentido © de tornar mais suportivel a rejeigo da ruptura. Dai os gestos liberta- dores e paradigmiticos, seja o de fazer regressar 0 corpo a terra, & gua ou a gruta maternais, seja o da purificagao pelo fogo, ou o da comunhao canibalista com o principio vital do defunto. E todos visam suprimir a imagem da decomposigao, “destruindo, dissimu- lando ou conservando” 0 cadaver." O que permite dizer que, nos ritos fimerdrios, trata-se de negociar e esconder a corrupgao,” de modo a que se possa regressar 4 ordem, Como se sabe, as esperangas escatologicas semeadas pela religio judaico-crista encontraram na descida do corpo a terra a sua mediagio adequada. Por isso, a inumagio ¢ inseparavel de um ritua- lismo que tem nas priticas de “conservagao”, de “simulagao” e de “dissimulagao” as suas expressdes simbélicas mais significativas, caracteristicas que podem ajudar a compreender o cariz dominante- mente “monumental” dos cemitérios cristios, bem como os elos existentes entre a morte ¢ a meméria. Necrépole e meméria O nosso ponto de partida é dbvio: todo ¢ qualquer cemitério, ¢ particularmente 0 cemitério oitocentista, deve ser entendido como um lugar por exceléncia de reprodug’o simbélica do universo social” e de expectativas m etafisicas. E este simbolismo decorre do fato de, como sublinhou Gaston Bachelard, a morte ser “primeira- mente uma imagem." O que se compreende, pois, segundo o céle- bre aforismo de Roche Foucauld, “nem o sol, nem a morte se podem olhar de frente”. E esta primeira caracteristica determina a existén- cia de uma relagdo estreita entre os mortos ¢ a meméria. Com efeito, esta pode ser definida como um conjunto de recordagdes & de imagens comumente associadas a representagdes, as quais cono- tam valores ¢ normas de comportamento construidas ou “inventa- das” a partir do presente e de acordo com a légica do “prineipio da realidade”, sem que isso implique, no entanto, que a meméria seja espelho ou transparéncia da realidade-passado. Como defende Paul Ricocur ao comparar a meméria com a imaginagao, se esta invoca © ausente como irreal, a meméria representa-o como anterior & evo- cago, sugerindo assim uma dimensio “veritativa” para a meméria, construida por razGes “normativas ¢ pragmiticas”.”” De fato, se ontologicamente a morte remete para 0 ndo-ser, & na memiéria dos vivos, enquanto imagens suscitadas a partir de “tra- 0s” com referente, que os mortos poderdo ter uma existéneia (mné- sica). Ganha desta maneira significado que a necrSpole ocidental te- nha-se estruturado como uma textura de signos ¢ simbolos “dissi- muladores” do sem-sentido da morte e “simuladores” da somatiza- 16 CATROGA, Femando, Recordar e comemora Ariz tanatolgica dos Flos comemorativos, Mimesis Bau, ¥B.n.2.p. 1, 22 IS URBAIN,feat-Didie. Morten LENCICLOPEDIA EINAUDE Lisbon Inpeensa Nacional ~ Cas du Moeds, 36,1007. HL IV THOMAS, Louis-Vincent op. it, a 18 CL URBAIN, Jean ite. La Soc de Conzervtions. Bade sim lpiue ds cimenéres def Occdert Pane Payoh. 1978. 8S 19 BACHELARD, Gaston. La treet lea Resores da Reps. Pas: 3.Core, res 20 CORNEN UTHER Jose. La Mémoie Rois, Pa Hartman, 1994p. 15. RICOEUR, Pal Vila de lk mimi. In: L8 GOFF, aegis tal Patincne et Pasion Henares, Entretiens du Parincine, Titre National de Chalo, Pa 8, 768 “havi, 197; Pui: Fad 1088, Pit CCATROGA, Fernando, Recordar e comemora Ani tanatolégica dos fitos comemorativos Mimesis, Bauru, ¥.B,0.2, p47, 202 21 Sobre o peso do eequermeno aoe ocetos costs das emsiss jet (cole), ejnse CAN. DAU Joel. dnbropolgie dela Mémoire, Pt: PU, 196.6, 22 BTLIN, Richard A. Te Space of bene, ns AAV V Uma Argues pa Ta Must 1 acon interoeionl sobre lot cemlesoseontemporineos. tar. Sevilla 47 Fane 199, Sel, Isa oe Adalci, 1998, 96-600, 2SRICOBUR Palo. it, p23 2ACL DECHAUX, ten Hugs. Le Somers ds Mort Bet sar en de filatone, Pas: PUE, 1997p. 218-24, 25 CL DEBRAY, Ris. Fe et Mort J mage. Ure hor du regard em (ceident Pats: Gallina, 192 p20 26 CE URBAIN, Jean Did op ct p28, 40-15, 27. DEBRAY, Reis. op ct p22 28 CE THOMAS, Lous-Vees Le ‘cadave Dela boogie a anrpolgie Pate Compe, 1960, p.202 29 URBAIN, Jeanie. 4 More, I ENCICL S0REVISTA MONUMENTOS SSEPULCHRAES, vp. 2,186, ‘0s aubintado so nose. io do cadaver, e que o cemitério tenha sido desenhado como uma espécie de campo simbélico que, se convida & anamnesis," encobre © que se pretende esquecer ¢ recusar.* Este processo exige também uma tradugao ritual, ja que “le souvenir ne porte pas seulement sur le temps: il demande ausi du temps ~ un temps de deuil”. E tudo isto explica que a fungao do simbolo funerério seja a de, em iltima anilise, ser metéfora do corpo, trabalho imaginatio exigido pela recusa da morte e pela conseqiiente objetivagio dos desejos com- pensadores de sobrevivéncia nascidos do fato de © homem ser onto- logicamente atravessado por um “desejo de eternidade”, Perante a incompreensibilidade do morrer, a meméria emerge como protesto compensatério, Mas, na “morte do outro”, é a morte de cada um que se antevé; ¢, na recordago do finado, é ainda a propria morte que se pensa ou dissinula: na sua “re-presentificagdo” encontra-se pro- jetada a morte futura do proprio evocador ¢ os anseios de perpetua- cdo na meméria dos vivos.* Todo o signo funerario, explicita ou implicitamente, remete para o timulo (recorde-se que “signo” deriva de “sema”,* pedra tumular). Pode entdo se concluir que, se 0 timulo tem por fungio devorar e digerir o cadaver, por outro lado, ele & constituido por uma sobreposigao de significantes (cadaver vestido, caixao, pedra tumu- lar, epitafio, estatuéria, fotografia, etc.) que induzem metaforica- mente a aceitar-se a incorruptibilidade do corpo, elevando-se a “metonimia real, num prolongamento sublimado, mas real, da sua carne”.” Em suma, cada envelope que enforma o cadaver acresc ta uma mascara ao sem sentido que cle representa ¢ trai o nosso desejo de parar a putrefago e de alimentar a ilusio de que 0 corpo no esti condenado ao desaparccimento.* E os signos “so assim dados em troca do nada segundo uma lei de compensagio iluséria pela qual quanto mais signos temos mais existe o ser € menos 0 nada, Gragas 4 alquimia das palavras, dos gestos, das imagens on monumentos — posto que as sepulturas seguem a mesma légica — da-se a transformagio do nada em algo ou em alguém, de vazio num reino”.* Para isso, o timmulo deve ser lido como uma totalidade signifi- cante que articula dois niveis bem diferenciados: o “invisivel” (situ- ado debaixo da terra) ¢ 0 “visivel”, o que faz com que, como es- creveu Bernardin de Saint-Pierre e relembrava em 1868 a nossa Revista dos Monumentos Sepulcrais, 0 témulo seja “um monumen- to colocado entre os limites de dois mundos”." Se a invisibilidade cumpre na “clandestinidade” a fingao higiénica da corrupgao, a camada semistica tem por papel encobrir 0 cadaver, transmitindo as geragdes vindouras os signos capazes de individuarem e ajudarem a “re-presentagao”, on melhor, a “re-presentificagao” do finado. E é por causa destas caracteristicas que é licito falar, a propésito da lin- guagem cemiterial, de uma “poética da auséncia”." Todo o jogo do simbolismo cemiterial parece apostado em suscitar a edificagao de memeérias ¢ dar uma dimensio “veritativa” a0 ausente. Porém, aquilo que se pretende recordar emerge do imen- so e abscéndito continente do recalcado. Isto é, se toda a memo- rizago, enquanto construto mediado pelo presente (a existéncia de uma “meméria pura” 6 uma ilusio bergsoniana), tem a sua outra face no consciente ou inconscientemente esquecido,” também o cemitério, como “lugar de meméria”, assenta num invisivel fundo de amnésia. Em certo sentido, ele mostra algo que também se detec- ta no campo da consciéncia individual: a meméria ¢ o esquecimen- to mantém a mesma relag&o que une a vida ¢ a morte."* (0 que respeita as novas necrépoles oitocentistas, a projegao da necessidade existencial de se negar a morte ¢ a sua traducdo romantica, expressa na recusa exasperada da “morte do outro” ena crescente colocagao da meméria como instancia supletiva de imor- talizagao, deram origem a uma nova cenografia ¢ a um novo cultos dos mortos, bem como A renovagio das velhas qualificagies da morte como “morte-sono”. Isto explica que a habitagio do morto se tenha arquitetonicamente materializado nao s6 como sucessora e sucedanea do “teto eclesiastico” (0 jazigo-capela), mas também como “casa”, e que a sepultura, tal como a “casa da familia” (dos pais, dos avés), tenha passado a ser centro privilegiado de “identi- ficagio” ¢ de “filiagio” de geragdes. E todas estas necessidades simbélicas fizeram da necrépole um analogon da cidade dos vivos.* Compreende-se. 0 cemitério burgués levou as iltimas conse- giiéncias um desejo de sobrevivéncia individualizada que, embora potenciado pela concepgio judaico-cristi do post-mortem ¢ sobre- tudo pela promessa de ressurreigo final dos corpos, s6 ganhou curso nos alvores da modernidade. © homem medieval ainda nao estava centrado sobre si mesmo, pois sentia-se comparticipante da comunidade santa dos crentes, isto é, sentia-se na posse da ver- dadeira vida." Em tal horizonte, s6 podia brotar uma concepgao dominantemente comunitiria do além. Ao invés, com o crescimen- to da importincia do “sujeito”, teriam de aparecer projetos em que anova dimensao sociabilitaria nao poderia subsumir o direito a indi- vidualizagio, Os sinais que apontam para a emergéncia de atitudes “indi- viduantes”, como os jacentes ¢ os orantes, comegaram no século XII, conquanto ainda circunscritos aos mais dignitarios da 18 CATROGA, Femando, Recordar e comemora Ariz tanatolgica dos Flos comemorativos, Mimesis Bau, ¥B.n.2.p. 1, 22 31 GOMEZ, Ana Ana La sepals, rmoaueto que conte a nema elavide fs A.A. VV Oia Arqecta para Muerte. 288. 52 No mesmo seh, eine ‘TODOROV, Tvetan, Leste de fa Meir Pai Ae 1995p. 14 RICOEUR, Pal opi, p 2828 33 CL AUGE, Mare Let Fores de LO Pacis: aye, 1998920, 34CL-CATROGA,Femando. 4 Milicis Lica ea Desorshanes ‘50d More em Portaga 185 1910), Coin Faldo de Lets, 1988, v2, p. 50. ego policpie a 3S FEVERBACH, Ladwig Peer sr la Morte TIamortalits Pai (Cars 991 p. 2. CCATROGA, Fernando, Recordar e comemora Ani tanatolégica dos fitos comemorativos Mimesis, Bauru, ¥.B,0.2, p47, 202 36Cf URBAIN Jeanie Lée Boulevereemont dca de rt Fanrar ier Sveoppesett dela cremation em Fane et de ot Sepienbu, 1993 ethene cid el tn, sociedade. Com o avango do processo civilizacional, nomeada- mente a partir dos finais do século XVIII, esta tendéncia ir-se-4 “democratizar” ¢ expandir, atingindo a sua maxima expresso nos novos cemitérios do século XIX. Aqui é a prépria lei (ao exigir sepulturas individualizadas) e os proprios valores fundantes da nova sociedade em construgao a acenarem com a promessa de que, nem que fosse através da reatualizago mnésica, possibilitada por um culto dos mortos cada vez mais intersubjetivo ¢ familiar, todos podiam finalmente aspirar & perpetuagio na meméria coletiva. Dir se-ia que as garantias de imortalizago foram passando de priv gio de alguns a direito natural de todos. Neste contexto, a progressio da campa individual, do jazi- 20, do cpitdfio, da estatua c, por fim, da fotografia (relembre-se que a descoberta da fotografia ¢ contemporinea da revolugio cemiterial roméntica) que se detecta nos cemitérios modernos a partir do século XIX deve ser lida como traducao iconografica adequada a rituali-zagao dos novos imaginarios, quer estes apon- tem para fins escato-légicos, quer se cinjam 4 meméria dos vivos E para que o trabalho simbélico do cemitério (a localizagao) cor- respondesse aquelas ex-pectativas, a materializagio dos signos que exigiu a “fixagio” do cadaver (isto é, um monumento), de modo a ser nitida ¢ inequivoca a “evocagio” (a imagem, o sim- bolo on o cpitafio narrativos) ¢ a “identificago” do ausente (a epigrafia onomistica)."* Esta maior acentuago da meméria ocorreu dentro de uma mundividéncia dominantemente religiosa, embora ja minada por in- fluéncias secularizadoras, A nova necrdpole, rompendo com o cit~ culo sacral dos enterramentos nas (ou & volta das) igrejas ¢ ficando subordinada a uma gestio politica, passava também a ter um ambi- ‘guo estudo profano. E as resisténcias dos setores mais tradicionalis- tas, que se detecta em alguns paises catélicos, indiciam uma repul- sa para com os novos espagos. Mas faltar-se-ia verdade se nao se frisasse que, desde o século XVIII, muitos iluministas e eclesiasti- cos ja defendiam o “exilio dos mortos”, e basta atentar nas prerro- gativas que a Igreja continuon a ter em relagdo as novas necrépoles (considerando-as como campos consagrados) ¢ ter em conta a fra- quissima expressio dos enterramentos civis (oficialmente possiveis a partir de finais de 1878) para se confirmar, no caso portugués, a continuidade da sobredeterminacao religiosa do novo culto cemite- rial dos mortos. Todavia, esta dimensio nao pode conduzir & subalternizagio de uma outra realidade que Ihe é coexistente, a saber: a seculariza- go provocada nfo sé pelo modo mais profano de gerir os ce- 19 mitérios (em Portugal, eles foram definidos como “espagos publi- cos” de gestio municipal ou paroquial por leis de 1834), mas tam- bém pelas projegées, no campo tanatolégico, das idéias ¢ dos valo- res de uma época crescentemente polarizada pelos desejos de afir- mao da individualidade e de expectativas terrenas."” Daf que, nos comportamentos e nas atitudes em relago & morte, sejam igual- mente detectiveis as novas necessidades sociabilitarias decorrentes do cariz “contratualista”, “associativista” e “relacional” da socieda- de moderna, ¢ se encontrem projetadas as estratégias de legiti- magio dos varios poderes ¢ as tensdes resultantes da gradual auton- omizagio da meméria histérica em relagio imortalidade tran- scendente, Isto é, © cemitério objetiva esteticamente © proprio inconsciente da sociedade. E esta se da a ler mediante uma trama simbélica estruturada e organizada a volta de certos temas mitos unificados por esta fungao: reforgar, depois do “caos”, 0 “cosmos” dos vivos, ¢ imobili-zar 0 devir, mesmo quando se recorre ao cons traste (ambiguo) com transcurso irreversivel do tempo ¢ da transi- toriedade da vida Isto significa que, neste proceso, facilmente se detectam investimentos simbélicos nio raro antagénicos entre si. Mas a sua condicionalidade de cariz hist6rico e social nao deve fazer esquecer que essa rede de signos se eleva a partir de um impulso de raiz metafisica, o qual impele o homem a separar-se da natureza ¢ da animalidade e a emergir, na escala dos seres, como um cultuador de mortos, logo, como um produtor de cultura e de meméria, Sem a angiistia nascida da tomada de consciéncia da precaridade humana nfo haveria necessidade de se construirem monumentos, pois s6 aquele que se sabe ¢ se recusa a ser transitério pode aspirar & perpe- tuagao.” Pode entio aceitar-se que, na linguagem propria, o monu- mento funerario tanto é exteriorizagio da tomada de consciéncia de que o homem é um “ser-para-a-morte”” (HEIDEGGER) como afir- magao do “direito & meméria”. Na verdade, o signo funerario tem uma significagio monu- mental, dado que s6 0 “monumento” assegura a imortalizagio na terra.” E quando os italianos de Génova, Bari ou Messina chamam, as suas necrépoles modernas Cemiterios Monumentales estio somente a ser figis a uma realidade primordial que os “campos san- tos” oitocentistias, € particularmente os da ares mediterrinica, levaram as tiltimas conseqiiéncias. A palavra latina monumentum deriva da raiz indo-européia men, Esta exprime uma das fungdes nucleares do espirito (mens), a “meméria”. Deste modo, tudo aquilo que pode evocar o pasado, perpetuar a recordagao — incluindo os préprios atos escritos — é um. 20 CATROGA, Femando, Recordar e comemora Ariz tanatolgica dos Flos comemorativos, Mimesis Bau, ¥B.n.2.p. 1, 22 37 Quando agus wa o const de seculatzago ni spree en belo com ode ear. Com fe, como se procuonesclaeet 0 ‘uo ig meio denoto lange rocena de semana em odot ‘eves dad oil defer eo anda sagan. Suse ma lange d- sar foie contin em en Porades drain, a oe pte um rz pasado polos ‘aloes estos. Asim senda pote reer que 0 fsimeco da seelrzagio ‘em serge define opr a ‘grea ito mena hii), pa recendo mit vere om fein es eadetes stl lesmapfia” ou "deelenialo” tocidat, cao ato "eect 21. O cane de amo, set ‘toca no de ela, eee pa 120 propio mitted vais tia eonseglnciae, ai, oil spans 3deecritanzagio™ Por tno, devs fer too ne peas determi eu gue 05 m0 ‘meta aoiclensis anteatieoe dor Tins do steal XIX e pci. do seul XX conjunc gs 5 on soliow a expres ais), bem co ‘mo as suas expresses pltcas (ibe {sd exqenda republicans, soclte sani) roca emcee ma tecidadesecopisdomanantereat ‘ates. Dito, poe eros estar gu, 9 aime € uma expe ‘Ho aaa do seul, noe todas sealaigapi sindnmo de Inicio, CATROGA. op cit, p 634, 38 Cf DEBRAY, Régis op cit, p25 39 KOSELLECK,R.L'fxperene de ‘tht. Pa: Galatea, 1997p 1¥ 40 No memo sete, wees BOTTACIN, Mauro La eatzione CCATROGA, Fernando, Recordar e comemora Ani tanatolégica dos fitos comemorativos Mimesis, Bauru, ¥.B,0.2, p47, 202 ‘Deal. Giardini dela meme por ‘am ero obi. In AAW. Cine Dior Veoeon: Areal, 197.9 S1.CE LE GOFF equ Dessaneni Monuments Moeds, 1984 p85. 42. ARIES, Pipe Bele de Mémoire. Pa: Se 1898. 9346, 44.CL-L8 GOFR Jacque. Orem ‘dela Moméria El Rempo coms Imagini, Bucelons: Pads Bisa, 1991p. 150, 4614, Document Monamente p18 $8 id. p 3738 45 CE NAMER, Gerd Memoirs ot Sovde. Pas Midis Klick, 1967 p 282 “monumento”." [ verdade que, com a Antigiiidade romana, aquele tinha dois significados: denotava uma obra comemorativa de arquitetura ou de escultura (arco do triunfo, coluna, estatua, troféu, portico, etc.) e aplicava-se a edificagdes funerarias destinadas a eternizar a lembranga de alguém. Como sublinhou Ariés, jé na sua origem “o timulo é um memorial” E, mesmo nas sociedades de dominancia sacral, a sobrevivéncia do morto nio se concretizaria somente no plano escatoldgico, mas também dependeria da fama que os tiimulos (com os seus signos, as suas inscrigSes) e os elogios de escritores ajudavam a reativar. Esta fimgio nfo foi negada pela gradual cristianizagao de algumas das tradigdes pags do culto dos mortos, tanto mais que, no seu cerne, © cristianismo se anunciou como a memoria de Jesus transmitida aos apéstolos ¢ aos seus sucessores, isto é como uma religiio comemorativa, cujo culto (a cucaristia) presume o reaviva- mento de um fato real ¢ historico. Por isso, 0 ensino cristio & “meméria” e © seu culto é “comemoragio”. O que explica que a nova religifo tenha facilmente recuperado os ritos tanatolégicos de origem pag que obrigavam os vivos a “fazer meméria”, afirman- do-se como uma “religio da recordagio”. Como toda a meméria é simbélica — isto &, opera por simbolos que exprimem um estado de espirito, uma situag3o, uma relagao, uma pertenga ou mesmo uma esséncia inerente ao grupo — entende- se que 0 cemitério monumental na sua expresso arquiteténica e na sua fungao de “lugar de meméria”, ¢ que as necrépoles modernas patenteiem de um modo ainda mais extenso e claro esse significado, O nexo entre a meméria ¢ o monumento, articulado com o jogo “dissimulador” dos simbolos fimerarios, obriga, porém, a ter-se cautela na qualificagao do cemitério moderno como muscu, uma das expressées privilegiadas da “meméria-saber”. Cenario de “memérias- construidas”, mas também de “memérias-vividas” (principalmente no terreno da gestao familiar do culto), as necrépoles so os “lugares de meméria” por exceléncia do século XIX (e do seu prolongamento no século XX), porque as recordagdes que os seus simbolos sugerem nao privilegiam somente a ordem do saber — como é tipico do racionalismo iluminista e da organizacio museolégica ou bib- liotecaria — mas mais a ordem dos sentimentos ¢ das intengdes civi- co-educativas.* Nas suas ex-pressGes mais afetivas, 0 “didlogo” que a evocagao pressupée quase anula o distanciamento gnosioldgico entre © sujeito e © objeto e faz dela uma “comemoragiio”. E que toda a memiéria se exprime, quaisquer que sejam as variagdes culturais, a partir de uma relagio dialégica em que, de uma certa maneira, a sociedade pde questdes que a meméria procura responder: Por con- a2 seguinte, a comemoragao ser sempre uma partilha. Nela, o recordar, mesmo sendo um didlogo do “sujeito” consigo mesmo, niio se esgo- ta num ato ensimesmado ou meramente subjetivo, mas diz-se na lin- guagem “publica”, “coletiva” e “instituinte” da celebragio ritual, numa teatralizagao que pretende gerar efeitos que ultrapassem o pragmatismo da transmissio dos saberes. Com efeito, se, como sustenta Pierre Nora, os “lugares de me- miéria” sugerem a paragem do tempo’ e, de certa maneira, a “imor- talizagao da morte”, outro nao é valor mnésico do cemitério, pois nele se encontra uma das caracteristicas essenciais daqueles espa- gos: a sua estrufurago como um sistema de significantes que, a par da face “veritativa” que referenciam, também visam gerar “efeitos normativos” e, de certo modo, “afetivos”. Mas, embora os simbolos possuam conteiido ou histéria, eles revelam algo caracteristico de toda a simbélica encobridora da corrupgao do tempo: organizam 0 campo imaginario como um “templo”, cavando uma censura de indeterminagio do “espago” e do “tempo” profanos, ¢ escrevem um. circulo de sacralidade no interior do qual os signos s6 valem no teci- do das suas relagées. Assim, as liturgias desenrolamese num “espa- go-tempo” especifico, distinto do espago e do tempo cotidianos, ¢ 0 cemitério é freqiientado como uma espécie de santuario, Ora “his- toriquement, cela n’a «ailleurs pas toujours été le cas; ce n'est qu’au XVIII siécle et sourtout au XIX siécle, au moment of la sépulture s’affirme comme support du souvenir et oii le culte des morts devient culte des tombeaux, que le cimetiére accéde a la sanc- tuarisation”.* Devido a este estatuto, as necrépoles modernas, a0 contririo dos cemitérios antigos, tinham de ser lugares de excesso, fechados sobre si mesmo, espagos em que © proprio muro fisico funciona como protegao contra as profanagdes ¢ como uma espécie de “simbolo-fronteira”, campo semantico onde mesmo 0 mais secu- lar dos significantes se aura de sacralidade. Nesta perspectiva, ¢ a0 contrario das pegas de um museu, os objetos cemiteriais nao so psicologicamente dissociaveis da estru- ura em que se integram, Isto é, o lugar (fopos) ¢ © signo (sema) estio de tal modo imbricados um no outro, so de tal modo com- preendidos como co-extensivos, que nenhum dos dois é fenomeno- logicamente separavel," parecendo natural a relagao entre o signii- cante, o significado e o referente (ausente). Mas esta naturalidade recobre-se de sacralidade, ja que, como “Iugares de consagragao” ¢ de “comemoragio”, neles se convoca o “invisivel” através do “visi- vel”, suscitando-se simultaneamente atragio ¢ medo, ao contratio do que acontece com o muscu, territério em que os objetos expos- tos aparecem descontextualizados, ou melhor, surgem inseridos a2 CATROGA, Femando, Recordar e comemora Ariz tanatolgica dos Flos comemorativos, Mimesis Bau, ¥B.n.2.p. 1, 22 AT.CE-NORA, Pee. Les Liew de Memoir Ia Republique. Pas (alia, 1948,» XCL 8 DECHAUX, leamogves, opt, pa 49 CL URBAIN, Jeanie. Lt Sood de Conzevaion p 31S2 CCATROGA, Fernando, Recordar e comemora Ani tanatolégica dos fitos comemorativos Mimesis, Bauru, ¥.B,0.2, p47, 202 SOFRANCA Jost Augusto, teem Foran séelo HIE 2 shou Bean 196, 1.20. Nim oxo sentio, \wjese: TEDGIRA, Mule Braz Ds abject ao mua Inpsl 5, 1984.45, 51.CE URBAIN,Jen-Ditir. op. pe SU.CE NAMER Gerd 0. itp. OL, 206205 num conjunto artificial e erudito. Sem duvida, é a consciéneia do defasamento existente entre 0 topos € 0 sema que leva a deplorar-se cariz decepcionante, por estarem separadas da sua arquitetura e do seu ambiente,” das esculturas finerdrias quando isoladamente vis- tas em exposigdes Pretende-se com tudo isto defender que o simbolo funeririo & metifora de vida e apelo, uma periédica ritualizagao revivificadora; ele é para ser vivido e para ajudar a viver," oferecendo-se assim co- ‘mo um texto cuja compreensio mais afetiva (a dos “entes queri- dos”) envolve toda a subjetividade do sobrevivente Com a sua linguagem de recolhimento e do siléncio, o novo rito cemiterial ird ter na “visita” periédica (com maior incidéncia no Dia dos Defuntos — 2 de novembro) a sua expresso publica mais re- levante, atitude que ganhou um incontornével tom comemorativo & de celebragio, como exemplarmente se comprova pela anilise das romagens, sobretudo pelas que foram diretamente animadas por intengdes civicas. E certo que Ihe faltam algumas caracteristicas que Durkheim definiu para 0 “rito comemorativo”, mormente aspecto diretamente representativo, recreativo ¢ estético da manifes- tagdo. Mas a tendéncia para a individualizagao que nela se detecta nao era de pendor narcisico, solitista ou associal; recordagio e comemoragao ainda nao estavam dissociadas: a evocagio, que 0 novo culto fomenta, é um modo de reconhecimento, isto é, uma pritica de legitimagao que retrospectivamente apela para a autori- dade simbélica dos mortos, elevando-os a “antepassados norma- tivos e paradigmiticos” de um grupo. Defende-se assim que, mesmo & escala da “visita ao cemi- tério", & possivel surpreender as caracteristicas que, numa evidente transferéncia analégica, as comemoragées politicas de raiz tana- toldgica explicitavam de uma maneira ainda mais evidente. A idéia de comemoragio é herdeira no s6 da solenidade da ceriménia pa- blica de elogio ¢ de mengao de um nome, como implica a sacraliza- ‘40 do evocado, desenrolando-se, em similitude com a sua matriz— © ato religioso -, num rito eficaz para a meméria dos mortos e para © destino dos vivos. A partir de figuras ou acontecimentos fundadores, a comemo- racio, ou melhor, o espeticulo da comemoragio — que requer um ugar, um teatro, um tempo e a sua ficgao, uma mensagem, a recor- dago e o esquecimento -, 6 uma pratica sociabilitéria apostada em unificar a diversidade e até o antagonismo de memérias coletivas com uma génese mais espontanea.* Dai que, conquanto s6 os indi- viduos possam recordar, 0 rito comemorativo, tal como o rito reli- gioso propriamente dito, prolongue, modernizando-as, as praticas 2B de vocagao holistica, bem como a sua “fungio instituinte de socia- bilidades”. E estas caracteristicas serio tanto mais evidentes quanto menor for a espontaneidade e a forga normativa do rito e maior for a sua sobredeterminagio civica.* A “visita ao cemitério” & um rito de repetigao. E nele se veri- fica esta vertente essencial da comemoragao: esta, depois do ato fundador, sera sempre comemoragao de comemoragao, a qual se transformara em “tradiga0” se a anamnesis deixar de ser uma neces- sidade vital para... os vivos. Com efeito, naquele ato, repetem-se comportamentos-tipo (a deposicao de flores, o recothimento em si- Iencio, por exemplo) e a sua corporizagio é coletiva ¢ publica (as “visitas” individuais sio excegio), incitando-se & recordagio do morto ¢ ao reforgo do cosmos (a comegar pela familia) dos vivos. E que a meméria reavivada pelo rito tem uma “fungio pragmitica e normativa”, consubstanciada no intento de, em nome de um patriménio (espiritual e material) comum, integrar os individuos em cadeias de “filiago identitaria”, distinguindo-os e diferenciando-os em relagio aos “outros”, mas exigindo-lhes igualmente, em nome da perenidade do grupo, deveres ¢ fidelidades. Para isso, o seu efei- to tende a saldar-se numa “mensagem”. E esta, ao unificar recor- dagGes pessoais ou outras memérias coletivas, constréi e conserva uma unidade que domestica a fluidez do tempo num presente que dura O nitcleo forte desta reconstrugio é a familia. E como defen- deu Halbwachs, a este nivel, o trabalho de unificagao sera sobretu- do uma “norma”: recorda-se o espirito de familia porque é necessirio retransmitir e reproduzi-lo. Em graus de sociabilidades mais extensa— como, nas classes e grupos sociais — a memiéria sera aquela feita sob um critério unificante andlogo ao do sistema de avaliagio nobilitiria.* Mas importa ndo esquecer que nos ritos rememorativos (¢ comemorativos) se encontra sempre uma tensio entre afeigéo € conhecimento e entre meméria ¢ normatividade. O que gera esta experiéncia interativa: como a meméria é normativa, ela é oferecida como uma “mensagem”, ¢ esta, a0 criar uma pulsio € uma corrente, inunda os individuos participantes no rito, apela a ser interiorizada e a socializa-se como um dever.* certo que a gestio memorial, quando se cinge ao nicleo familiar, parece fugir as caracteristicas das comemoragdes (ela & mais singela, espontanea, restrita e silenciosa). Porém, tal como em todo o ato comemorativo, também ela se concretiza como um gran- de movimento simbélico através do qual um grupo assegura a sua identidade, voltando-se para a face do passado que, num dado pre- sente, considera definidora da sua unidade e continuidade. E no CATROGA, Femando, Recordar e comemora Ariz tanatolgica dos Flos comemorativos, Mimesis Bau, ¥B.n.2.p. 1, 22 53 Fara uma cicadas eae ene retopecio, celerago © ancora 6 passe nat attudes liga 0 leeao da reload ‘vc, leas ORY, Pel. Une Nation Jour Mémoire, 1849, 138, 195 oe uber evotionne. ais: resis de a Fondation [Nationale ds Sciences Polite, 1992 p 63, SCE NAMER, Ges op. it, pes SS, 226, Sod, 9. 236 CCATROGA, Fernando, Recordar e comemora Ani tanatolégica dos fitos comemorativos Mimesis, Bauru, ¥.B,0.2, p47, 202 ‘57.8 DECHAUX, lenHlagus op it p 7516 SH No eto sabe 4 inn Lata a Deterittantapé da Morte me Portugal 2p. 81-999) cxplctames as eades esis ites ete oct ceil ronnie dor mrt ea feat civics polaizadas ota as cerpemoragescentniie Fatas ass fo posteirment por 26s reo ms Ritual es d uti: TORGAL, Ls Reis MENDES, Joe Mass Ando CCATROGA, Femado, ita da Hstriaem Portage. Sees XIX XX. Laos Cielo de Lets, 1996p SHT-TL Par cao fants, pode ers os etadas ‘todo Phere Nora, de Pete Ory de Gerad Name Pats us pos (Estados Unidos, Inghier, age, Fan, sae, Alena), lees or todos GILLI, bn R (ed) Commemoration Prneton-New Jee: Pneeton ‘Unies Pes, 184, 59 CL DECHAU, fetus. op. petra’ caso das comemoragdes de finalidade civica, a celebrago enforma- se de componentes estéticos, dindimicos (0 desfile) e orais (os dis- cursos), de modo a realizar programadamente suas intengdes pai- déticas e 0 seu trabalho sociabilitario. Pode mesmo afirmar-se que, quanto maior ¢ mais massificada for a escala sociabilitiria mais aumenta a “estranheza” entre os individuos e se requer um mais constante investimento simbélico na construcio e reprodugio da meméria unificadora. Por conseguinte, se no rito de centragao exclusivamente familiar 0 culto é mais “quente” e espontineo, as romagens ¢ as comemoragées, movidas por uma mais marcante intengio coletiva e publica, implicario, regra geral, a existéncia de uma coordenagao (isto &, uma organizagao), de um desfile, de sig- nos com significado social (bandciras), ¢ contarao amitide com a presenga de oficiantes (oradores), tendo em vista sublimar o esque- cido com o significado de palavras que relembrem ¢ enaltegam.” No entanto, também, nestas liturgias civicas se encontram, por extensdo e imitagao, os propésitos de “filiagao”, “integragio” ¢ de “jdentificagdo” caracteristicos do culto familiar dos mortos.* Outra nao é a fungdo das liturgias da recordacao: criar senti- do e perpetuar o sentimento da pertenca e de continuidade. O imagi- nirio da meméria sociabiliza, dado que recordar liga os individu- 08 nao s6 verticalmente, isto é, a grupos ou entidades que holistica- mente se impdem, mas também a uma vivéncia horizontal ¢ longa do tempo social. Por conseguinte, a meméria socializa a “identifi- cagio” ea “filiagio” e, simultaneamente, ajuda a esconjurar a an- gustia da irreversibilidade do tempo ¢ da morte, inserindo a finali- dade da existéncia finita numa “filiagio escatoligica”. Neste hori- zonte, 0s individuos séo integrados na cadeia das geragdes © em um. ideal de sobrevivéncia na meméria dos vindouros.” O que pres supe uma experiéncia continuista do tempo — a memiéria, vinda do passado, poderd perdurar num futuro aberto - e implica que se es- quega que, tarde ou cedo (duas ou trés geragdes?), os mortos aca- barao por ficar érga0 de seus proprios filhos. Por tudo isto, defende-se que as liturgias da recordagao tém por finalidade federar atomismos ¢ diferengas sociais e recalcar (pelo menos no tempo curto do rito) as tensdes que atravessam os grupos. Portanto, nao sera descabido dizer-se que, em certa medida, a necrépole desempenha um papel anilogo ao dos velhos Libri memoralis (também chamados “necréfagos” ou “obituarios” a par- tir do século XVII). Estes continham o nome de pessoas, geral- mente ja mortas, de quem se pretendia guardar meméria através do recurso a formulas como estas: “aqueles ou aquelas cuja memoria Jembramos”; “aqueles de quem escrevemos os nomes para guardar- mos na meméria”. A escrita (a leitura) é elevada a garante memori- al da meméria, nao deixando de sen sintomatico que, desde o sécu- lo VIII, a excommnhio tenha passado a ser sinénimo de damnatio memoria (Concilio de Reisbach, 798; de Elne, 1027), numa evi- dente cristianizagao de uma atitude antiga: j4 na velha Grécia, os que desapareciam no esquecimento do Hades tornavam-se nénum- noi, isto 6, “andnimos”, “sem nome”. Recentemente, Jean-Didier Urbain caracterizou os cemitérios como “bibliotecas” e os timulos como livros que se abrem, é certo, mas que se consultam como tabuas mesopotmicas ou sumérias, pois a sua significagio nfo é imediata ¢ transparente."' Se esta imagem é acertada na perspectiva do investigador, ela nao chega para apreender a intencionalidade simbélica da necrépole. Esta nao se esgota na escrita. J no século XIX, 0 célebre Monsenhor Gaume, em obra publicada no periodo da Comuna contra os enterramentos civis ~ e logo traduzida para portugués em 1874 — definia explicita- mente 0 cemitério como “o livro mais elogiiente que pode haver”, porque “fala simultaneamente aos olhos, ao espirito e ao coragio”. ‘A necrépole & um livro escrito em linguagem metaférica. Entao isto quer dizer que culto dos mortos, como todo ato consti- tutivo de memérias, também é um didlogo imaginario do “sujeito” consigo mesmo, feito com os olhos, o espirito e 0 coragao, a fim de “re-presentificar” 0 evocado. Logo, se, enquanto vivéncia ritualista, a sua leitura, como todo o rito, denota algo da esfera das intengdes, © seu significado 6, porém, irredutivel 4 pura racionalidade. Como nao se procura construir uma “memoria-saber”, evocar sera “recor- dar” © “comemorar”, pelo que o territério dos mortos funciona simultancamente como um texto objetivador de sonhos escatologi- cos (transcendentes e/ou memoriais) e como um “espago piiblico” e de “comunhio”, cenario “miniaturizado” do mundo dos vivos ¢ teatro exemplar de afetividades e de produgio e reprodugio de memiérias, de imaginirios e de sociabilidades. E s6 depois de um adequado e extrovertido tempo de Iuto ganhard forga o distancia- mento racional, que cura e normaliza, porque “sé a razfio é que pode distinguir um antes e um depois da morte, ao passo que o imagi- nario se recusa a aceitar a ruptura ¢ continua a ver naquele que acaba de morrer alguém que ainda nfo deixow a vida”.** A reproduco da(s) meméria(s) Pelas razées aduzidas, entende-se que, no cemitério oito- centista, a assungao da irreversibilidade do tempo surja sobrede- = 26 CATROGA, Femando, Recordar e comemora Ariz tanatolgica dos Flos comemorativos, Mimesis Bau, ¥B.n.2.p. 1, 22 60 CL. VERNANT, lean Pier. indi dane ate, SUR avd, Pai Sel, 1987, p2 ‘CANDAU, Joe. opt 3 51 CE URBAIN, leader LArchipl de Morte 18 etme de uno ts dees de a toe din seme @Oeridet. Pai Past 1958p 10 ‘S2CE MONS. GAUM O Comite no Scale XK ov as siumaspalavras solide Poco Charron, 1574, 9.106, {5 Cf THOMAS, Losi-Vincent Pitas, I: BAYARD, lea Pet, ope pI CCATROGA, Fernando, Recordar e comemora Ani tanatolégica dos fitos comemorativos Mimesis, Bauru, ¥.B,0.2, p47, 202 (64 DECHAUS,far-agus, opal al terminada por uma idealizagao “utdpica” e “ucrdnica” , cuja ex- pressio cénica devia traduzir simbilica ¢ esteticamente 0 acesso de todos a sobrevivéncia individualizada. Isto nao surpreende, porque a necropole romantica é uma criagio cultural tipica de uma “sociedade-meméria” (PIERRE NORA), portanto, de um sociedade que procura no passado a legitimagao (ou a critica) do presente. O que explica que, no culto cemiterial dos mortos, a recordagdo & uma “meméria-vivida” seja sentida e interiorizada por muitos como sendo natural, espontinea, eterna ¢ vocaciona- da para instituir e reforgar a coesio e identidade dos evocadores e vocacionada (individuo, familia, associagio profissional ou politica, grupo de amigos, Nagao, ete.). E se a sua matriz foi a linhagem e a continuidade da familia, cada vez mais nucleariza- da, esta concepgao horizontal do tempo casava-se bem com o his- toricismo subjacente & vis4o roméntica da historia: o passado, ou melhor, uma certa leitura idealizada dele, ¢ clevado, numa explo- rag&o do papel pragmatico da meméria, a ligdo do presente ¢ (ou) do futuro Com efeito, depois das propostas iluministas para a expulsio dos mortos do territério dos vivos, nasceu um novo afeigoamento caracterizado pela crescente personalizagao do funeral e dramatiza- io da perda. A sensibilidade romantica ira explicitar 0 sofrimento causado pela “morte do outro”, ¢ a sepultura — tal como outrora na velha Roma — impés-se como a pega central do culto. Como tem sido assinalado (ARIES, VOVELLE, JEAN- HUGUES DECHAUX), serao os espiritos mais imbuidos de ideais iluministas ¢ se-cularizadores a atacarem a Igreja por esta ter negli- genciado o destino dos corpos ¢ dos timulos ¢ a impulsionarem este novo culto, Os cemitérios sio pensados em termos higiénicos ¢ como lugares a serem visitados. E novo culto, de base dominante- mente familiar, animado pelo propésito de se também reforgar a perenidade da propria polis. Esta fungao social, bem patente nas homenagens aos “grandes homens”, fez com que no decurso do século XIX a mediagao religiosa ¢ as expectativas transcendentes viessem a coexistir com uma espécie de “religiio civica” (ROUSSEAU), dimensio que, a partir de meados de Oitocentos, 0 positivismo de Comte ajudara a sistematizar, Tal caldeamento foi possivel porque ele estava “en consonance avec les nouvelles atti- tudes fortement teintées de romantisme face 4 la mort et le regain de esprit commemorative qui a caracterisé le fétes révolutio- naires”, anunciando assim “une nouvelle ére du culte des morts”.“* A sobrevivéncia memorial do “grande homem” era tio-sé a tuadugo maior desta crescente reivindicagio: 0 direito a sobre- vivéncia individualizada e igualitiria, aspirag4o assente na men- sagem evangélica ¢ confirmada pelos direitos naturais do homem, que a modernidade estava a acentuar. No entanto, a sua concretizago, tal como acontecia entre os vivos, saldou-se numa flagrante desigualdade. E certo que, em algu- mas propostas avangadas ainda no século XVII no contexto do otimismo iluminista, os desejos de igualdade politica e social inspi- ram projetos de cemitérios monumentais ¢ coletivistas (projetos de Ledoux e Boullé)," e que a Convengao chegou a impor a vala co- ‘mum para todos, ou quase todos, embora rapidamente tenha quebra- do esta regra com a criagio do Pantedo Nacional em Sainte Gene- viéve.** Porém, os valores em processo na nova sociedade iam em sentido contrario: uma sociedade alicercada na afirmaciio do indi- viduos tinha de exigir timulos diferenciados e de prometer que to- dos podiam sonhar com uma inequivoca sobrevivéncia memorial, basta analisar 0 modo como os novos cemitérios, principalmente os das grandes metrépoles dos paises mediterranicos, foram se wba- nizando e decorando para se verificar como as hierarquias sociais enetre os vivos ditaram uma anéloga desigualdade no acesso efeti- vo as condigdes semidticas necessarias 4 construgao ¢ 4 duragio da memiéria, Nos nossos cemitérios do século XIX, © mausoléu, © jazigo- capela, a concessao perpétua passaram a constituir bens iméveis, privados e transmissiveis por heranga como quaisquer outros. Dit- se-ia que funcionavam como uma espécie de prova iiltima segundo a qual a eternizagao da meméria do proprietario (logo, de toda a lin- hagem familiar) ficava dependente da capacidade que os seus des- cendentes teriam para perpetuar a totalidade do patriménio (mate- ial e espiritual) herdado; em certo sentido, o cemitério passou a ser uma espécie de “familistério” de mortos. O que se entende: em pri- meira instancia, 0 culto, na sua incidéncia mais profana, sobretu- do um rito familiar; ele nao s6 se celebra em familia, como esta investido de uma carga simbolica especificamente familiar, ao reite- rar e reforgar os elos de parentesco. Com isto, reaviva o sentimento de pertenga. Fio invisivel que a meméria partilhada e ligada a uma heranca ¢ a uma tradig’o enraiza.” Deste modo, 0 monumento fimeririo dos novos cemitérios tem de ser entendido & luz das estratégias de “transmissio”, comumente carismadas por uma “fi- gura-fundadora”’. Pode assim concluir-se que, se a sepultura, o mausoléu, 0 jazi- £0 ¢ os respectivos signos pretendiam preservar a meméria dos defuntos oriundos das classes abastadas (ou de artesios remedia- dos), a sua fungao também era a de materializar uma exemplaridade = 28 = CATROGA, Femando, Recordar e comemora Ariz tanatolgica dos Flos comemorativos, Mimesis Bau, ¥B.n.2.p. 1, 22 (S ETLIN Rhus A. The Archer of Death. The Traformaton ofthe comet in Highteeh-Ceatay Pas Cambridge, the Martachuets Instat of Technolog, 198, Para a uta ene ogeometame ‘uate dea deans rcrépoes opisno amin, Isise BACZKO, Bona Lamia de! Up Pais: Pas, 1978. p 325 \GERAGON, Mice, op. p-2st-268 67 DECHAUX, Jeanugus, pct 98 CCATROGA, Fernando, Recordar e comemora Ani tanatolégica dos fitos comemorativos Mimesis, Bauru, ¥.B,0.2, p47, 202 6 Bid,» 276 9 Bid,» 280 normativa — nesta vertente, o cemitério é igualmente um lugar de esquecimento de tudo 0 que possa diminuir a depurada recordagio do finado — que educasse ¢ reforgasse a crenga na perenidade das respectivas familias ou grupos. E esta ilagdo leva a concluir que 0 culto nao almejava salvar somente a alma do evocado, mas também. a ratificagao sacralizada das posigdes historicas ¢ sociais dos evo- cadores. Afinal, a diferenca entre, num extremo, mausoléu, o jazi- do, e no outro, a vala comum, acabava por assinalar a distancia que continuou a existir entre 0 direito virtual de todos a sobrevivéncia individualizada e a efetiva possibilidade de acesso aos suportes sim- bélicos necessérios 4 sobrevivéncia na meméria coletiva Em suma, as atitudes perante a morte, que a modernidade foi gerando, acentuaram a monumentalidade funeraria ao postu- Jarem a meméria como um “segundo além imortalizador”. Este horizonte foi-se impondo em coexisténcia ou em sineretismo com acrenga na ressurreigao final, afirmando-se como uma espécie de compensagio paligenésica e/ou historicista derivada do aumento da incerteza na imortalidade transcendente. E embora a valoriza- io ana-mnésica ndo tenha substituido as escatologias transcen- dentes, sera igualmente correto atribuir-he um papel terapéutico a sua liturgia também contribuia para atenuar a angistia da morte, oferecendo a possibilidade da manutengao de uma continuidade virtual; ¢ 0 rito, ao pér em cena uma troca simbélica entre os vivos ¢ os mortos, alimentava e reatualizava essa crenga,"* dando assim um contributo decisivo, tal como o ultimo rito de pas- sagem, para a superago do luto ¢ para o regresso ¢ reprodugiio da normalidade. Entre nés, alids, é significativa a forte presenga de simbolos da vit6ria da imortalidade sobre a morte na iconografia dos cemi- té-rios oitocentistas e o aparecimento de expectativas diretas e exclusi-vamente colocados sob os auspicios do culto da meméria, ‘ou me-lhor, do culto “a meméria de...”. E mesmo as represen- tagdes escatolégicas nao dispensavam, conquanto de um modo supletivo e complementar, a sobrevivéncia memorial, consubstan- ciando-a, em primeiro lugar, no desejo de filiagao do individuo numa memoria familiar, ou em grupos portadores de tradi¢ao, & luz das quais a vida individual e coletiva pudesse adquirir um sentido prospectivo ¢ terreno. Como concluiu (recentemente) Jean-Hugues Déchaux “la symbolique de I’ancrage lignager (appartenir & quelque chose) vient consolider celle de la réssurrection des morts. Elle est croyence en la permanence d'un groupe qui dote le sujet dun soutien existenticl permettant de contenir les vestiges de Pin dividuation”. Ora, se a romagem passou a constituir a manifes- tagdo por exceléncia desta produgo memorial, deve sublinhar-se que, numa repetigio mais cuidada e significativa do anincio funerario, também ganhou particular relevo a publicitago, na imprensa, da passagem dos aniversarios da morte de quem se pre- tendia recordar.” E verdade que existia a consciéncia de que a eternizagao garantida por todos estes meios seria sempre precaria, pois, na evo- cago, o que se “re-presentifica” & a imagem idealizada do evoca- do, e 0 que se confirma é a vida do vivo. E neste reino de ilusto ucrénica, 0 dilatamento da sobrevivéncia dos “tragos” do morto, mas mais de um julgamento péstumo baseado numa escala de méritos decorrentes da construgio de sua exemplaridade como “antepassado”, ou seja, do presumivel contributo que o finado tera dado para a consolidagio de uma familia, para o prestigio de um lugar, para o progresso de uma associagao, de uma classe, de um ideario, de uma Nagao ou da humanidade. Todavia, como a duragao da lembranga, que a conscigncia ingénua acredita ser eterna, sera determinada pelo investimento mnésico dos vivos, os juizos sobre © defunto, feitos no presente de sua morte, também nao sio condigdo suficiente, j@ que a continuidade da sobrevivencia depende igualmente das necessidades futuras de comemoragio (ou de desmemorizagio). E como a meméria & um construto seletivo, relativo e histérico, isso conduz a que os sonhos de uma eternidade atualizada pelos vivos estejam sempre ameagados pela queda da “amnésia”, permanente direito de portagem que a anamnesis tem de pagar ao esquecimento. ‘A partir destes pressupostos, compreende-se que a encenagio do cemitério oitocentista tenha plasmado as atitudes tipicas da “so- ciedade de conservagio”” — a “retengo, acumulagdo ¢ reprodugao” dos vestigios do morto (nfo sero os “tragos” dos mortos os primeiros documentos da histéria?) ~ em ordem a acreditar-se tanto nas expectativas salvificas como na continuidade histérica. O que se entende, porque, se 0 século XIX foi o “século do culto dos mor- tos”, foi também o “século da histéria”, ou melhor, do historicismo ¢ do apogeu das “ideologias da meméria” derivadas da necessidade que os individuos, as familias, as novas associagdes e Estados- Nagao tiveram de reinventar as suas raizes histéricas e de legitimar os seus sonhos de futuro, Recordar os finados possibilitava a insti- tuigéo e o reconhecimento de identidades, bem como o delinea- mento de esperangas escatologicas (transcendentes e terrenas), pois a anamnesis oferece a0 evocador uma histéria com um “passado” ¢ um “futuro”, num encadeamento continuo de geragdes que, como num outro registro afirmavam as filosofias da historia da moder = 30 = CATROGA, Femando, Recordar e comemora Ariz tanatolgica dos Flos comemorativos, Mimesis Bau, ¥B.n.2.p. 1, 22 WCE RINGLET, Gabriel, Cex Chre Dispos Esai sur es annonces dcrolgigues dans la prese rancophone. Pais Albin Mich 192, p17 ‘1 URBAIN, Jair, La Suet Conservation, usin CCATROGA, Fernando, Recordar e comemora Ani tanatolégica dos fitos comemorativos Mimesis, Bauru, ¥.B,0.2, p47, 202 ‘72.CE DECHAUX far Hugues, op cit, 238 BCL NAMER, Gerd. op. it 210211 {4 BAUDRILLARD, tsa. A ta Sbia ea Morte Liss lies 70,1997. 2 pI Pans Gama, 1990 p. 61 TO DECHAUX.femetuge, op itp 285 17 AUGE, Mac op et pieha2, Tabi, 75.96 nidade (CONDORCET, KANT, HEGEL, MARX, COMTE), ultra- passa o tempo da existéncia individual.” Deste modo, é licito con- cluir que, apesar do rito implicar repetigao, recordar ¢ sobretudo comemorar sera sempre twatralizar uma pratica de reescrita da(s) histéria(s); serd, em sintese, praticar coletivamente uma meméria que veicula mensagens num tempo ficticio em que o passado-pre- sente e o futuro coabitam.” ‘Nao foi assim por acaso que a hegemonizagao de uma idéia tridimensional e irreversivel do tempo, fomentada pelo Tuminismo, consolidou, numa evidente secularizagao da escatolo- gia judaico-crista, o papel da meméria no culto dos mortos. Como bem escreven Baudrillard, “a imortalidade é somente uma espécie de equivalente geral ligado & abstragao do tempo linear”. E s6 0 desconhecimento dos mecanismos de legitimagao por enraizamen- to” podera conduzir a que se confunda a invocagao do passado com uma utilidade passadista ou nostilgica. Como a meméria é ativa, a recordacio nunca é resultante da oposic¢ao entre 0 passado, o pre- sente € 0 futuro. Ao contririo, toda a retrospectiva & sempre uma “protensio”, podendo mesmo defender-se que, em certa medida, “Lavenir n’est pas une création ex nihilo: le passé collabore a l’éd- ification du futur”. © que ajuda a compreender a dialética entre meméria e esquecimento, em certo sentido, se este & a abscOndita presenga do inconsciente ou conscientemente recalcado, ele é tam- bém fonte que, através da recordagao, possibilita a existéncia de futuros para o presente e de futuros para o passado. A meméria eo esquecimento sio, portanto, irmios siameses necessérios ao tran- scurso do tempo, ensinando que, para se conhecer uma vida ou uma sociedade, é tio importante recordar como nao se esquecer do esquecido.” Ja Santo Agostinho (CONFISSOES, XI) tinha elevado a me- miéria a garante da continuidade irreversivel do tempo subjetivo, intuindo-a como ponto de tensdo entre a recordagdo do passado e as, saudades do futuro. Ea experiéncia do rito comemorativo moderno nao contradiz esta intuigo agostiniana, Nenbuma dimensio do tempo pode ser pensada fazendo abstrago das outras, ¢ 0 rito exem- plifica a dinamica e coletivamente a tensio, no presente, entre a meméria ¢ a expectativa, organizando a passagem de um antes a um depois, dos quais o presente é simultaneamente 0 intérprete ¢ a referéncia.* Embora se deva ser cauteloso na transposigao das analogias entre a meméria dos individuos e da sociedade, importa sublinhar que nunca como no século XIX essa comparagio foi tio acredi- 31 tada.” Essa também foi a época em que se assistiu & gradual entificagao da “idéias coletivas” (DURKHEIM), processo que conduziu 4 objetivagao do proprio conceito de “meméria coleti- va" (HALBWACHS)" e a definigio de sociedade como um organismo evolutivo."' Este pressuposto, de fundo holistico, explica que “I’hommage ritualisé aux defunts est, du transcen- dence de la colletivité qui, pardela les individus qui la composent, se pérpetue”,” funcionando como uma espécie de clo visivel que visava compatibilizar a tendéncia ato-mizada da modemnidade com novas totalidades sociabilitarias de raiz contratual e associa- tiva. E se o desenvolvimento contemporineo do direito 4 subje- tividade veio a pér em causa a excessiva on-tologizagio do “par- adigma dos fatos sociais” ¢ 0 seu cariz. holistico ¢ coa-tive em relagao aos individuos (BURDHON, SCHUTZ, PETER BER‘ ER, LUCKMANN JOSETTE COENEN-HUTHER), © certo é que a construgio da anamnesis tem o seu himus nos “quadros sociais” e na historicidade do proprio evocador, situago que, embora nao seja determinante, condiciona os individuos a man- terem uma relagao dialética, dentro de um processo socializador, entre os valo-res da(s) sociedade(s) em que se “situam” e o seu proprio passado.” Tal como acontecia no seio das familias, as novas praticas co- memorativas também pretendiam evitar que o crescimento do indi- vidualismo ¢ do contratualismo sociais degenerasse em anomia: 0 culto dos mortos, tal como a festa civica, enraiza a “filiagio” e 0 “evolucionismo” histéricos (dos grupos e da humanidade) e ajuda- va a reforcar © novo consenso social (COMTE). E mesmo nos meios em que, por razes ideologicas ou devido as condigdes mate- riais de existéncia ¢ & diluigo das formas tradicionais da sociabil- idade, a sccularizagio foi maior, se encontra a mesma atrac’o, socialmente mimética, pela “visita ao cemitério”. Ora, se esta car- acteristica é uma conseqiiéncia da sobrevalorizagao civica do culto, importa salientar que ela s6 se radicaré com forga na segunda metade do século XIX (sobretudo nos paises dominantemente catélicos), com a consolidagdo de liturgias da recordagdo fomen- tadas pelas novas familias burguesas em ascensio e posteriormente alargadas a0 imaginério de todos os grupos sociais. Como jé salicntamos em outro lugar, ¢ Jean-Hugues Déchaux confirmou em estudo recente, “la sépulture est aussi un symbole famillial. Ce nest pas par hasard si le culte des morts est devenu culte des tombeaux au moment méme ot se diffusait dan toute la bour- CATROCA,Femando Recordar ecomemora Arai anatolgica dos files comemorativos Mimesis Bau, ¥B.n.2.p. 1, 22 “0 Fazenda una ere tee sobre erindacn de um imide ene a ‘memiriaindidal ea imma coe fi, Gera Naser salou qu « ciao dese posta kv a= oer as dices xt iia ‘hs errs ua soioade 2 wifcagin das records mama me ‘mica Dice ease pecan uma cazespondEcia iia do muttoco tho edo macocomm, sgtado sql {mesa de Lebuiz, a memésa ind ‘vi wel do sistema dos itera de méaadon, i 6 if cago thin das memes coletvas ‘uma meri sociedad aba (CE NAMER, Ger op. cit, p. 25. HOCEHALBWASCHS, Maus. Cane Soci a Mémoire, Pas ‘Albin Miche 1928; La Minne Colic. Pais PUR, 1950 (ego stuns. Pate una bib orafia sb a deers dn entice doen cole, vee ite fines ems CONNERTON, Pal Com a Sociedaes Record (rire Ce 1993p I, aot 1 Sobre as eaves er om ago 1s amps ete a memstia se ‘wea chumada medi cle, ‘jase CANDAL, fot opt. 62 2 DECHAUX, Jemtagesop i, CCATROGA, Fernando, Recordar e comemora Ani tanatolégica dos fitos comemorativos Mimesis, Bauru, ¥.B,0.2, p47, 202 {A DECHAUN, Jean ees, op. it 7% 15 Sobre esta questi, eine ‘COENEN-HUTIER, Jost, pci, SUSI geoisie le caveau de famille, Dans l’argumentaire laique et posi- tiviste de ses promoteurs, le rite doit étre 4 la fois famillial et civique. Bien plus, il n’acquiert une dimension civique que si chaque famillic a déja le souci d’honnorer ses propres morts. La continuité de la cité, de 'humanité, commence avec la continuité de chaque famille et s’achéve, avec le Panthéon, par le culte des grands hommes”.** Sabe-se que a meméria das linhagens desempenhou, nas classes superiores do Ocidente, um papel de “distingao” decisive, A ordem de Antigo Regime estribava-se numa forte transmissao de posigdes ¢ de privilégios, realidade que obrigava a invocagdes do passado como pritica legitimadora dessas situagdes, Por isso, nio raro, se a memoria aristocratica remontava a centenarios antepassa- dos findadores, a burguesia, ao contrario, nao podia ir tao longe. No entanto, a extensdo da sua meméria, ainda que curta, é maior do que a existente nas familias mais pobres, talvez.em conseqiiéncia de as capacidades de retrospeccao dos individuos (¢ dos grupos) depen- derem do uso e importincia da anamnesis na justificagao dos res- pectivos status, pritica que é bem menos nas camadas mais desfa- vorecidas da populagio."* Se estas diferengas parecem indiscutiveis, a verdade & que 0 horizonte historicista do século XIX “democratizou” um pouco mais as recorréncias de fundo genealégico, ja que, ao impulsionar a construgo ou a redefinigao de memérias e ao ultrapassar a escala dos individuos e das familias, alargou os seus propésitos: a partir da evocagio de “antepassados fundadores” procurow-se radicar uma historia evolutiva e continua para as familias, para os grupos, para as associagdes, para as classes, para a Nagao ¢ até para a propria humanidade. Pode mesmo sustentar-se que este trabalho se tornou tanto mais necessario quanto mais baixa e massificada era a base social que se visava identificar e consensualizar, Tal preocupagao explica que os meios mais interessados na mediagio paidética do novo culto dos mortos, logo na recriago da memiéria, tenham postos os olhos no que a Revolugo Francesa en- sinou sobre educagao civica, nomeadamente no terreno das festas civicas ¢ dos novos cultos (incluindo 0 culto pantednico), bem como na releitura que Comte e seus discipulos fizeram dessas novas priticas sociabilitérias. Nao admira, sobretudo quando se sabe que as necessidades simbélicas das novas familias e dos novos Estados-Nagao exigiam a reinvengio de memérias, ao mesmo tempo que o positivismo (tanto ortodoxo como hetero- doxo) se esforgara, a partir de meados de Oitocentos, para dar cobertura tedrica a essas ritualizagSes, apresentando-as como sucessoras (¢ sucedineas) dos ritos catélicos. E a conviegao desta necessidade tocow alguns liberais de esquerda e sobretudo muitos republicanos, socialistas e livres-pensadores. Estes. setores, descontando rarissimas excegdes, nao irdo contestar o valor educa- tivo do culto dos mortos ¢ a estrutura formal do rito de passagem gerada pelas novas necrdpoles oitocentistas. Pelo contrario, limi- tar-se-do a descristianizé-la e a dar-Ihe um significado de home- nagem e de celebragio comemorativa, enfatizando pragmatica- mente a sua importancia civiea Relembre-se que, para o positivismo, explicitando e levando as suas tiltimas conseqiiéncias as atitudes que animavam o culto romantico dos mortos, sé um segundo enterramento possibilitaria um ritualismo propicio 4 imortalizagio da individuo na meméria coletiva, garantindo a sua “eternidade subjetiva” (com os cortejos, as sepulturas, as inscrigdes, os bustos, as estatuas)," forma mitiga- da de dar continuidade ao ritual da passagem do “morto” a “an- tepassado”, isto 6, a “figura exemplar” finalmente depurada para a “comemoragao”. Em certo sentido, também a “visita ao cemi- tério”, em um eco degradado e secularizado de velhos ritos aqui- etadores da ameaga do “duplo”, garantiria a transformagio do “culto dos mortos” em “culto dos antepassados”. Para isso, a sobredeterminagao luminosa, que os cultuadores civicos faziam da morte, necessitava “‘conservar” os vestigios do corpo, dissimulan- do a inevitabilidade do seu aniquilamento, de modo a dar credibil- idade a revivescéncia ritual do defunto e 4 sua evocagio e cele- bragao paradigmiticas. De fato, se este trabalho simbélico atravessou todas as expressdes sacrais do iiltimo rito de passagem, ele ganhou um maior relevo nos funerais civis e nas romangens e comemoragdes civicas. E certo que estas manifestagées se afirmaram como uma espécie de ritos profanos."” Mas, ao seculizarem o religioso, nao estariam a prolongar as caracteristicas essenciais do rito (sagra- do)? Fomentadas por individuos ou grupos que perfilhavam visdes agnésticas ou materialistas da vida, dir-se-ia que a sua descrenga escatol6gica era compensada por um forte investimento nas litur- gias da recordagao © pela elevagio da meméria (e do futuro histérico) a uma espécie de versio terrena ¢ secularizada da escat- ologia crista. Nesta perspectiva, é igualmente compreensivel que tenham sido eles os que mais empenhadamente sublinharam o valor do culto dos mortos para formagao da cidadania, ideal que, como palco, exigiu © reconhecimento dos cemitérios como “espagos piiblicos” “34 = CATROGA, Femando, Recordar e comemora Ariz tanatolgica dos Flos comemorativos, Mimesis Bau, ¥B.n.2.p. 1, 22 $6COMTE..A. Catchiome Poatinite Pts: Garr Flamin, 196. p 182, Son erat formal (esucedinna) desta maniesagbes, Iwse RIVIERE, Cane, Lis Ries Profane. Das: PUR, 198 CCATROGA, Fernando, Recordar e comemora Ani tanatolégica dos fitos comemorativos Mimesis, Bauru, ¥.B,0.2, p47, 202 88 CE AUGE, Mare. Ce gue nous sone pent, sot svat, pit Bsmt ns AUGE, Mave (it). La ‘Mort set Nous Pais Tete 1995 9.2. $9.6 ELIAS, Nb op. et, p.7L 99 CE VERDI, Mine Eaux I AUG, Mare (i) opp 91.C£ THOMAS. V Mor, Saciipe Thang I: BULLETIN DELA SOCTETE de Thaatlogi 9.12, Novembre, 1987, 2127; BARRAU: Ane. Quelle Mort Pour Dain? Pasi inmatan, 199, p 120, LCE BARRAL) Amik Hiamanior I Mert Estee ani ue es hommes ewe? Pi: Haran 1963p. 98 Ades eens pazeem apetar ara cotestagi desta eldade Com ete, surge movanesos exe dendeno tattoo donucio ome ales hota ite aoa rants eo cuiddoe pb tive no sei fala do meron CI. BASCIEET, Chane BATAILLE, Fegus (i) La mor ‘Vise Mattos, 0 87, 0. 1994, 16.19, 9 Anda existe ie eens ‘eo mode anieneano 0 por ‘uyuis de era. CE SARATVA, lars La mor! mall, Fars recor: micas eases por ‘aga. TERRAIN, 220, Mar, 1993, 97.108 No etal, so nio significa que, em Portpal io est ama aparece situa de us er cente mereantliasio da more. Re foxdase ques vata de un seta aseezamente spetelel pois 2 oo dade ener (eerie de 1999), a "eopemia da mat” mov reson sects das 2 - Esquecer a morte e a memoria Hoje, parece evidente que a crise dos varios historicismos (conservadores ou progressistas) coincide sintomaticamente com o recaleamento ¢ a quase desclandestinizagao da morte — esta ter-se- 4 tomado “pornogrifica” — e com o crescimento dos sinais de aban- dono no proprio culto dos mortos. Numa certa medida, existe um maior distanciamento em relagao ao cadaver e aos seus “vestigios”, talvez. em conseqiiéncia do enfraquecimento ¢ subalternizagao das velhas formas que permitiram tecer as solidariedades sociais. E a razio de tudo isto parece radicar no fato de estar a desaparecer 0 mundo que lhes deu origem," substituido por um outro mais cen- trado na individualidade” (no homo clausus) € na sua resultante coletiva: a massificacao. A solidio na vida conduz 4 morte isolada.” Historiadores, socidlogos, antropélogos e filésofos tém assinalado alguns dos motivos que, a seu ver, explicam a passagem da velha “morte solidaria” 4 “morte solitaria” hodierna. A desertificac¢do do mundo rural, o desenvolvimento das cidades com as suas novas exigéncias, de espago e de tempo, a redugao e maior precariedade das familias, as novas condigdes de habitabilidade, as emigragdes (externas ¢ internas), a crenga no poder da ciéncia ¢ da técnica — que leva a morte a ser definida como uma doenga, anormalidade que a medici- na acabara por vencer -, 0 crescimento do individualismo ¢ do anonimato, bem como a simultinea crise das Igrejas e dos medi- adores do culto memorial e respectiva ideologia (associagdes, par- tidos, sindicatos) tém sido algumas das razSes apresentadas para justificar a emergéncia dos sinais de degradagao do culto romanti- co dos mortos e das liturgias da recordagao,”" Sintoma de tudo isto é a medicalizagao da morte. Na Franga (1986), duas em cada trés mortes jé ocorriam no hospital, embora a grande maioria dos franceses (75%) declare preferir falecer em casa e somente 6% em centros de saitde.” E em Portugal, aquela porcen- tagem situa-se atualmente entre os 50 e 60%.” Por sua vez, assiste- se a estandartizagao, mercantilizagio e profissionalizagao do iltimo rito de passagem. A azéfama da vida moderna faz diminuir a du- ragio deste processo (diminuigao dos sinais exteriores de Into, re- dugdo de missas a0 7.° dia, 30.° dia e 1.° ano; aceleragao ¢ clandesti- nizagio dos cortejos; redugao da visita aos cemitérios ao Dia dos Fi- nados, etc.). Por outro lado, na Europa (e, em certa escala, em Por- tugal),"* sem se chegar ainda a plena vitoria da “morte-mercadoria” (como nos Estados Unidos),”* as necrépoles, j4 definitivamente integradas nas malhas das grandes cidades, sofrem o choque da explosio (e exploragio) urbana, bem como dos custos da sua gestio, realidade que, segundo os ditames mais tecnocraticos, s6 serd solucionada com um novo “exilio dos mortos”. Uns propdem a verticalizacao das sepulturas (j4 praticadas na zona mediterranica); outros estudam o regresso a novos cemitérios-jardim a edificar nos arredores das cidades; outros voltam a fazer apologia da cremagio. No entanto, como conclui Michel Vovelle, em toda a parte a con- cesses perpétuas de sepultura regridem ou so mesmo proibidas, 0 que provoca uma crescente precarizagao dos signos de “localiza- 40”, de “identificagao” e de “perpetuagao” que os sonhos de amor- talidade memorial tinham criado."* O empobrecimento escatolégico contemporaneo Segundo alguns diagnésticos, todas estas mutagdes tém subja- cente uma alteragao das mentalidades, mormente no que toca as crengas escatologicas. Estas terdo diminuido com 0 proceso de se- cularizagao que atravessa as sociedades contemporaneas. Por exem- plo, na Gra-Bretanha, um inquérito recente revelou que cerca de 50% dos interrogados niio acreditava numa vida post-mortem,” e, na Franga, um outro, efetuado em 1993, indicou que, se cerca de 45% dos franceses entendem a morte como uma “passagem para outra coisa”, 42% consideram-na como o “fim de toda a vida” (os 13% restantes nio se pronunciaram). No entanto, a crenga no além ainda que muito defendida — s6 parcialmente coincide com a ressurreigio final dos corpos, porque, segundo o mesmo estudo de opiniao, somente 8%, isto é menos de um quarto dos que acreditam numa vida post-mortem, admite a expectativa tradicional; esta posicio & extensivel a alguns catélicos praticantes: entre estes, s6 445 pensam que “os homens ressuscitam em corpo e em espirito com Deus ¢ tém aumentado os que aceitam que existe “qualquer coisa”, embora nio saibam o qué. Ora, tais atitudes parecem revelar um claro reforgo da imprecisio no desenho da escatologia tradicional. Em Portugal, um inquérito de opinido publicado pelo Didrio de Noticias em maio de 1985 forneceu indicadores interessantes: 90% dos interrogados consideravam-se religiosos (98% catélicos); porém, a pergunta “Deus existe?”, 81% responderam sim, 7% nao ¢ 11% talvez; ¢, quanto A crenga na existéncia do céu, os mimeros baixaram, pois 59% opinaram afirmativamente, 17% negativamente = 36 = CATROGA, Femando, Recordar e comemora Ariz tanatolgica dos Flos comemorativos, Mimesis Bau, ¥B.n.2.p. 1, 22 agai fnerisia as armors © (ie Hoists ~ cna de 30 muh be ‘eto. ito ler expe por que & ‘lamin nee ator o ate + postam ma aera de nas eee ‘ho para fanerais more agorae| page depois) ee asst poe. ‘ego de muinaconaisieressadas ‘ta pita de concentra ede asi dt sp aii ofertas itis” copiados da he- tag fserinn ameniaso. Po uo lade est vest sta er cea aha com props endnts a esti agosto dos po os cemitis. CE 0 CORREIO DAMANHA, XIX an, 86, 21-1994 p13. 95a stun encontase pion rwenecarcatrade no omance de [WAUGH,Evehm The Loved One as41950, ‘95 VOVELLE, Mahal. ewe de Grand Pastage Chronique dea Mon Pac Gallia. 1993, pO; acts dst 1s Gnetres das mend conte. oman, toa mpat sures ‘netics Ie AA. Una Argaectaa para a Muerte, S86 ‘97 DAVIES, Douglas, Cremation research projet In A. AWN Ce Argaectua para a Muerte, 9.53% 98 Sob ste das, eae esa de DECHAUX, lean Hugs, opi, p- 82-53; NOVELLE, Mice Lés Nowvear Riel de a Mort Lé pra tiger rile et ews poo me approcharanacaltuells Pai ESE 107. p 214 CCATROGA, Fernando, Recordar e comemora Ani tanatolégica dos fitos comemorativos Mimesis, Bauru, ¥.B,0.2, p47, 202 9 DIARIO DE NOTICIAS, CXXE, 90,4242, VANS, p10 100 Sore toda estas uses, lease THOMAS, Loui Vincent Une esratbologc em maton ie BULLETIN DE LA SOCIETE de ‘hanson 81-82, XXIV ano, 1990, p 274, 101 CE THOMAS, Loui-Vinoat.Lé eouvean de a rt fn: CORNILLOT, P; HANUS, Me ‘Pavions d a Mert et Del. Pcie rion-Roce, 1997, p 10, 102 BARRAU, Annie, Quelle mort Pour Demain?p 118115, 103 URBAIN, fan Diet A Most [ne ENCICLOPEDIA Fina 36, Pus © 21% talvez, enquanto s6 50% declararam acreditar na existéncia de uma outra vida depois da morte.” E uma sondagem televisiva recente (abril de 1998) parece confirmar esta tendéncia. Com efeito, se 63% dos inquiridos responderam que acreditavam que © mundo foi criado por Deus, 53% manifestaram-se a favor da existéncia do céu, 49% da existéncia de uma alma imortal, 44,5% na existéncia de uma vida depois da morte, e sé 32% disse crer no inferno (Didrio das Beiras, 13-IV-1998), Devido ao peso da tradigao, tudo isto no tem invalidado, porém, que a grande maioria dos funerais continue a ter acompanhamento religioso. Em conelusio, parece indiscutivel que se assiste a uma desvalorizagao do modo tradicional de representar 0 post-mortem.' E se as reagdes dos nossos dias contra o “desencadeamento do mundo” provocado pela secularizagio estio a dar origem a irrupgio de novas formas de religido (scitas ¢ comunidades apocalipticas teoséficas), o certo ¢ que a esperanca na ressurrei¢io continua a diminuir, em detrimento de outras escatologias, como é 0 caso das varias crengas na reencarnagao. (Um em cada trés franceses diz ter aderido a esta idéia)." E convém lembrar que a reencarnagio, pela sua espiritualidade, tende a desvalorizar o “corpo” e a conservagio dos “tragos”."" ‘Num outro registro, o culto contemporaneo da ciéneia perfi- Ihado pelos setores mais secularizados nao deixa de alimentar, & sua maneira, sonhos de amortalidade, atitude que nao sé reforga a pres- suposigao do dualismo entre a vida e a morte (esta é reduzida A escala de uma causa externa ¢ acidental), como se traduz na denegag’o do cadaver mediante promessas de ressurreigio, anelo que tem no uso da criogenizacio a sua técnica mais espetacular e sintomatica, De qualquer modo, tudo isto contribuin para o empobreci- mento das expectativas transcendentes ¢, conseqientemente, para a queda e “morte” dos anjos da meméria, parecendo estar-se em vés- peras de se confirmar o que jé ha alguns anos Jean-Didier Urbain prognosticava: “hoje, a excego dos cemitérios, extremos refiigios de uma moribunda civilizagao, as representagdes antropomérficas do além, outrora tio titeis, estio ultrapassadas. Nada mais resta, pois, além da esperanga técnico-cientifica da imortalidade, renova- do terreno de cultura de novas ilusées?”."* A cremacao com um “nada semiético” A cremagio ressurge como um bom exemplo da nadificagio semistica. Mas qual é a sua distribuicao geografica? Os nimeros mostram que as regides cremacionistas sio dominantemente de in- fluéncia protestante, Na verdade, na maior parte dos paises do norte da Europa, assim esta a acontecer, na Gri-Bretanha, a cremagio, entre 1960 e 1995, passou de 34,71% para 70,60%; na Dinamarca, de 30% para 69,38%; na Suécia, de 26,60% para 64,74%; na Suiga, de 24,79% para 65,26%; ¢ na Holanda, de 4% para 48,21%. Nos paises catélicos, podia esperar-se que o levantamento do andtema, feito pela Igreja em 1963, desaguasse num fendmeno and- Jogo. Contudo, a excecao da Bélgica — que, em 1995, tinha uma taxa de 27,48% — as ades6es continuam a ser fracas. Na Franga, em 1956- 60, a porcentagem de cadaveres incinerados foi somente de 0,20%, em 1977-78, de 0,78% (1,3% seguindo outros), e, em 1988-89, de 5% aproximando-se dos 12% em 1995; mas prevé-se entre 15 ¢ 20% no ano 2000, pois, segundo inquérito efetuado em 1996, 37% das francesas jé declaravam preferir a incineragao, contra 20% em 1979 ¢ 32% em 1994. Para a Itlia, Espanha Portugal, a porcentagem é ainda menor: em Italia, foi de 0,27% em 1975, 0,50% em 1985 & de 2,12% em 1995 ; em Espanha, em 1995, teré sido de 4,80%."" Em Portugal, a efetivagao do ato tem estado confinada ao for- no do cemitério do Alto do So Joao — sé nos ultimos meses entrou em fincionamento um outro, localizado no Porto — cuja primeira fase de funcionamento ocorrew entre 1925 ¢ 1936, periodo em que somen- te se procederam 22 cremagées; na sua fase recente, atividade tem sido maior e revela uma tendéncia de crescimento, talvez devido ao alargamento da comunidade hindu, embora nos itimos anos tenha aumentado a opgao portuguesa (em 1996, 693 nacionais contra 99 estrangeiros; em 1986, a situagao era inversa : 41 contra 26). Todavia, os quantitativos, embora em progressio, sio reduzidos: 1985 (18 cre- mages); 1986 (67); 1987 (119); 1988 (124); 1989 (166); 1990 (169); 1991 (291) ¢ 1992 (321); 1993 (510); 1994 (598); 1995 (744) e 1996 (792). Isso perfaz. um total de 3919 corpos, ¢ os dados de 1996 repre- sentam somente 7, 9% dos enterramentos em Lisboa." © apego a inundagao nos paises catdlicos tem a sua razao de ser. A tradigio judaico-crista socializou a pritica inumista e ins- creveu-a num quadro escatolégico que tinha na ressurrei¢ao final dos corpos 0 seu momento apotestico. Por outro lado, embora na tradigao biblica seja dada ao fogo uma fungi purificadora, no uni- verso simbélico do catolicismo ele também se revestiu de cono- tagdes infernais. De qualquer modo, 0 atual regresso da cremago pouco tem a ver com qualquer assumida reconversio religiosa na mentalidade oci- dental contempordnea. As novas priticas nio pressupdem os funda- mentos ¢ os objetivos que norteavam a fase militante. Propagandeada CATROGA, Femando, Recordar e comemora Ariz tanatolgica dos Flos comemorativos, Mimesis Bau, ¥B.n.2.p. 1, 22 104 DECHAUX, Jeans, pct p. 315,04 105 URBAIN, Jan Die. LArchipe! es mors,» 326 106 Eaters rr tomente a corps nko cua CE COSTA, Fein Fogo © Imoraiade Lisbon Casa Miniipl de isos, 1997 (hoexef,Anero¥) sta ob, see ia a asia o ue te {ido ei oe aia apreenta Aigo taiados repeats 20 ‘movie rcete do foto ‘ceatri da Alo d Sio Too, CCATROGA, Fernando, Recordar e comemora Ani tanatolégica dos fitos comemorativos Mimesis, Bauru, ¥.B,0.2, p47, 202 OT CE URBAIN, feasts. ‘Sci de Conservation, p 2 108 Bid, pa 109 CE THOMAS, Louie Vie ite de Mort Pas Se, 1997 pam 10 ARES, Philippe. Homme deat Ia Mort Pai Seu, 197-p. 57 no século XIX ~ por higienistas e livres pensadores ~ a sua defesa su- gia, na maior parte dos casos (excetuando algumas ages cheias de espectacularidade romantica), como 0 unico desfecho cocrente com ‘as concepgdes panteistas ou materialistas do universo. Por conse- guinte, a ja entio propalada superioridade higiénica da cremagio sobre a inundagZo, bem como seus menores custos, devem ser perce- bidos dentro de um propésito mais extenso: o de fazer recalear 0 medo da morte e o de se minar a base em que, aos olhos dos crema- cionistas militares, assentava a forga do catolicismo: o seu monopélio sobre os ritos de passagem e particularmente sobre o da morte." Mas a evolugao recente é ainda correlata da desideologizagao do debate ¢ é um sintoma de alteragSes mentais a que a propria Igreja nao pode ficar indiferente. Por isso, a desanatematizacio de 1963 & uma das respostas do catolicismo aos desafios da secula- rizagio, outro modo de ele se afirmar, nao como “religio ¢ morte” (como acusavam os seus adversarios do século XIX), mas como uma “religiio da vida”. E uma outra face desta modificagio encon- tra-se na sua reforma do rito (1973), 4 luz da qual o oficiante pas- sou a dar um maior relevo ao sacramento dos doentes. Esta viragem, segundo alguns autores, esta a implicar “a morte da extrema ungio” como “passaporte tradicional para a eternidade”,* a0 substituir a tradicional relago “confissio — vidtico — extrema ungao” pela “confissio — comunha’o — ungao dos enfermos’ Significa isto que, para fazer face & gradual secularizagao das ati- tudes © comportamentos contemporineos, a Igreja procuron responder em varias frentes: “desdramatizou” os ritos funerarios tradicionais, procurou “democratizar” os enterramentos, “rela xou” o rigorismo candnino, e, em matéria de sepultamento ecle- sidstico, mostrou-se mais compreensivel em relago aos nio bati- zados, suicidas, magons, divorciados que voltaram a se casar, pros- titutas, homossexuais, ete.” Por outro lado, com a aceleragio do processo secularizador ¢ com o conseqiiente empobrecimento escatoldgico, tem crescido o recurso A cremagao. Dir-se-ia que esta se adequa bem & nova men- talidade gerada pelo aumento do individualismo e de sua outra face: a massificagao. Assim sendo, tal como acontece no hodierno esmorecimento da “visita ao cemitério”, também a adesio A pratica cremacionista é inequivocamente um efeito de cultura urbana, ca- racteristica facilmente verificével quer na Franga (na regiiio parisiense a incinerago é cinco vezes superior 4 média nacional francesa," apesar de estarem em fincionamento 41 fornos espalha- dos pelas principais cidades), que nos paises do norte da Europa Por exemplo, na Suécia, na década de 60, as diferengas de atitudes 139 entre as grandes cidades ¢ os campos sio significativas, ja que em Estocolmo, Gotenburg ¢ Malmo, a incineragao atinge os 90, 5%. Estes niimeros cram idénticos aos de Copenhaga, embora no resto da Dinamarca, excluida a capital, a taxa de cadiveres inumados fosse de 80% (nimero idéntico ao da Suécia, excluidas as cidades indicadas).""* Que razées poderao explicar o forte apego dos paises da Europa do Sul a imunagio? Sem ditvida que o peso do catolicismo e de um culto dos mortos metaforizador do corpo sdo razSes nio despiciendas para se compreender esta atitude, No entanto, é um fato que a cremagao também esta em crescimento nos paises cat6li- cos. Segundo inquéritos realizados na Franga (1979, 1994, 1996) acerca das razdes que ditam esta evolugio, registraram-se respostas que apontam num sentido que julgamos valido para os demais pai- ses catdlicos. Assim, sobre as preferéncias entre incineragao ¢ cre- magao, as respostas foram as seguintes:"” 1979 | 1994 | 1996 Ser enterrado 53% | 50% | 50% Ser incinerado 20% | 32% | 37% Indiferente 25% | 10% | 5% ‘Sem resposta 2% | 8% | 8% Eas raz6es que estariam a ditar a escolha da cremagio seriam: 1979 | 1994 | 1996 Filosofica 41% A6% | 43% Ecoldgica (pohicio, fata de ger os cemitiros) | 28% | 21% | 35% Econémica (menos cara) ™% | 11% | 20% Outras razdes 14% | 21% | 2% Sem resposta 13% 12% 8% Como se vé, a par da progressio da propria pratica crema- cionista, & significativo que tenham aumentado as possibilidades de ‘uma preferéncia futura, sintomaticamente justificada com argumen- tos de cariz econdmico € ecolégico, valores-tipo da sociedade con- temporanea CATROCA,Femando Recordar ecomemora Arai anatolgica dos files comemorativos Mimesis Bau, ¥B.n.2.p. 1, 22 111 CE GORE, Grote. Daath Gre and Mourning i Contemporary Bri, New York Donledsy, 1965. ae op teem rcete io em fants con ota Pleas Caroner, recede & Pornographic (lo ort Peace de Michel wove, Patt EE, 199, 12 Exe dado foram tetrad de HANUS, Michel, Dell trenton, Ie ETUDES Sut La ‘Mort a mort ee, Revue dela Societe de Tanai, ‘8 II-1D2,300Ktanafe, 1997 sondaens fram fos po LF OP CCATROGA, Fernando, Recordar e comemora Ani tanatolégica dos fitos comemorativos Mimesis, Bauru, ¥.B,0.2, p47, 202 11S CF DAVIBS, Douglas. op. per ACE URBAIN, fan Dider chip des Mort, p32. S-Cf, COSTA, Faia op ct (Amex 1D, Entre o esquecimento e a recordacgao A associagio entre revolugao urbana, secularizagio ¢ crema- ao no deve ser mecanica. A incineragao pode receber uma sacrali- dade ritualista © nfo ser incompativel com expectativas escatolé- gicas. Por outro lado, o fato de a legislag’o de alguns paises consen- tir que as familias fiquem depositirias das cinzas parece facilitar o reavivamento do “culto do lar”, ¢ levar as ultimas conseqiiéncias a gestio familiar da veneragao dos mortos, privatizando-o ainda mais. Mas isto gera condigées que provocam a depreciagaio da necropole como “espago piiblico”, dado que se recusa simultancamente a ma- terializagao do lugar, o seu elo com corpo (que gera repugnincia) € 0 carater piiblico do cemitério, admitindo-se tio s6 a natureza absolutamente pessoal ¢ privada da recordagio. Sera assim pertinente perguntar se estes desejos de privaci- dade, apesar de serem adequados a uma sociedade em que a massi- ficagdo ¢ irma da atomizacao ¢ do anonimato, nao correm o risco de extinguir as representagdes simbélicas necessarias & reprodugio da meméria, Ora, existem indicadores que patenteiam uma cres- cente escolha do esquecimento. Com efeito, na Gra-Bretanha, cerca de 75% das cinzas sao enterradas ou espalhadas nos terrenos dos crematérios on dos cemitérios (s6 15%, nas cidades, so entregues as familias). O iinico registro é um Livro Comemorativo, junto do qual, em alguns casos, costuma-se colocar flores." No entanto, nos liltimos anos, tem aumentado as iiltimas vontades que exigem a aboligdo dos nomes nesse registro. E o que passa na Franga é ainda mais radical: 66% das cinzas sio entregues as familias, 25% sio dispersas ou imersas, 6% sao depositadas em cinerarios, e sé 9% so integradas no cemitério, isto 6, na ordem funeraria tradicional."* Em Portugal, o destino das cinzas pode ser 0 cendrario (campo ajardinado anénimo), columbirio (depésitos individualizados de cinzas), 0 jazigo ou outros, tudo locais situados dentro do cemitério. E se, em 1985, 7 cremados foram para o cendratio, 2 para o columbi- rio € 9 para 0 jazigo; em 1996, a situagao tinha-se alterado, revelando uma evidente diminnigao de depésito em jazigo e 0 crescimento de uma localizagao mais discreta: 503 foram para cendririo, 79 para 0 columbario e s6 28 para jazigos; 182 tiveram outros destinos."* Sera isto o sintoma de uma mudanga de atitudes? Se se tiver presente que o tempo do Iuto tradicional era sincromo come o ritmo da propria decomposigao do cadaver, tem de se reconhecer que a cremagio, ao acelerar este ‘iltimo processo, instala um desfasamen- to que necessariamente tem de suscitar problemas psicologicos. Eo fato da queima sugerir violéncia em relagio a0 corpo (simulado a4 como incorruptivel) tem provocado, nos paises catdlicos, sentimen- tos de estranheza ¢ de repulsa. Dir-se-ia que, diferentemente do “anonimato sofrido” carac- teristico dos enterramentos coletivos nas igrejas ¢ na vala comum, estio a surgir sinais de uma opgao voluntiria pelo anonimato, espé- cie de “solugdo final” em que a redugdo a cinzas, sendo um quase nada ontoldgico, transforma-se num quase nada semidtico, pois os suportes necessirios & produgio e reprodugio da meméria (0 depés- ito do cadaver ¢ as expresses monumentais) so suprimidos. Por tanto, sera correto afirmar que nestes casos a cremagao, em vez de ser um rito mediatizador dos desejos de vencer a morte e de salvar 0 morto (escatolégica ou mnemonicamente), pode se converter numa técnica expeditiva a que se recorre para se libertar os vivos das inco- modidades provocadas pela gestio da meméria dos defntos. A auséncia de ritos pablicos em lugares de memsria suscita 0 ensimesmamento, aumenta a culpabilizagao ¢ é um fator que pode desencadear o luto patol6gico. Nesta perspectiva, a cremagio s6 sera popularizada nos paises com um ainda forte apego a simbélica inumista ¢ as liturgias da salvagao ¢ da recordagio se for revestida por um ritualismo que mimetize, tanto quanto possivel, da inu- mago, de modo a ela se tomar menos traumitica e menos radical em relagao 4 mentalidade popular. £ que ¢ importante nao esquecer que as expressdes e os ritmos da desvalorizagio do culto romantico dos mortos no sio uniformes, pois estio condicionados pelas tradigdes cultuais e culturais dos povos: numa sociedade conereta, 0 cultualismo dos mortos esta atravessado por tempos sociais diferen- tes e no sincrénicos. Por conseguinte, no deve surpreender que, nos paises catdlicos, s6 recentemente se detecte algum desafeigoa- mente das populagdes, sem ainda se romper, contudo, com a tradi- 40 oitocentista, como o caso francés bem atesta. Segundo um inquérito feito em 1994, 57% dos franceses de- clararam ir todos os anos ao cemitério no Dia de Finados. Somando este niimero com os que declararam ir de dois em dois ou de trés em trés anos (10%) e com os que afirmaram que s6 raramente 0 fazem, encontra-se © significativo valor de 75%. E 0 mais surpreendente decorre da comparacao destes dados com os de um estudo anterior (realizado em 1979), cujos resultados foram 61% e 77% respectiva- mente. Assim se verifica que a baixa da visita tem sido muito lenta, ilagdo que comprova esta outra conclusio: entre 1948 (data do primeiro estudo) e 1979, a freqiiéncia dos que declararam ir “bas- tante regularmente” ao cemitério passou somente de 72% a 66%." Estas respostas sio tanto mais significativas quanto somente 35% afirmam que acreditam na vida post-mortem.” Quer isto dizer = 42 = CATROGA, Femando, Recordar e comemora Ariz tanatolgica dos Flos comemorativos, Mimesis Bau, ¥B.n.2.p. 1, 22 16Cf STOCTZEL, fam Lis francis ee mrt I: BULLETIN DeLA SOCIETE de Thangs, 1 $7, Octobe, 1980p. 610 TCE DECHAU, Jette, op ct, 9.8, CCATROGA, Fernando, Recordar e comemora Ani tanatolégica dos fitos comemorativos Mimesis, Bauru, ¥.B,0.2, p47, 202 HS CE hop p. 78 19 THOMAS, Loui-Vincen, ope p28, que a motivagio maior da visita é mais “comemorativa” do que intercessora ¢ escatolégica, ilagao que parece ser comprovada pelo teor de outras respostas dadas em 1979: 55% afirmaram que vao a0 cemitério sobretudo para levar flores; 35% visitam-no com 0 propésito dominante de cuidar do timulo; mas sé 25% ai se deslo- cam com a intengao especifica de rezar, enquanto 8% o fazem por mera fidelidade aos costumes. F, em 1994, 49% dos inquiridos franceses declararam que se deslocam aos cemitérios para recor- darem os seus mortos, 48% para levarem flores e somente 20% para rezarem, dados que parecem indiciar, por um lado, a natureza do- minantemente secular ¢ familiar deste rito de repetigao, ¢, por outro lado, o peso da recordagio e da homenagem (com flores). E tudo isto revela, apesar do proceso de erosdo em curso, a forga do culto da meméria, atitude que se prolonga na preservacio de signos do defunto no proprio domicilio: mais de 95% dos interrogados disse ram que guardam as fotografias dos finados, 38% que as seleciona- ram e s6 3% que as destruiram. No entanto, este prolongamento das caracteristicas da “so- ciedade-meméria” exige que fagam algumas particularizagdes de indole sociolégica: a adesio ao culto cemiterial dos mortos varia conforme a idade (38% para os de idade inferior a 35 anos; 57% para os entre 35 ¢ 49 anos; 72% para os de 50 a 64 anos; 84% para ‘os que tém mais de 65 anos), o “estatuto social” (70% para os mi- cleos familiares com um rendimento inferior a 5000 Fr., 48% para os de rendimento superior a 5000 Fr.), a “insergo urbana” (55% nas cidades de provincia; 37% na regiao de Paris), 0 “sexo” (61% refe~ re-se a mulheres), ¢ a “religiZo” (71% entre os praticantes; 46% nos no praticantes). Perante todas estas respostas, 0 antropélogo Louis-Vincent ‘Thomas concluiu que existem, na populagdo francesa, trés atitudes distintas: um grupo importante (cerca de 40%) esta fortemente empenhado na relagdo com os mortos ¢ deseja exprimi-la de acor- do com a tradi¢i0; um outro, cerca de 40% e bastante representati- vo do francés médio, nutre uma fidelidade aos defuntos que se quer sem ostentagdo; um terceiro (20%) parece revelar um relativo dis- tanciamento, enquanto somente cerca de 8% declara recusar limi- narmente a sacralidade dos mortos.* O ensimesmamento do luto E indiscutivel que estes indicadores denotam a existéncia de ‘uma continuidade das praticas comemorativas. Simultaneamente, a 43 proliferagio de estudos ¢ debates sobre a morte, bem como o impacto nuclear, a entropia césmica ¢ das ameagas epidémicas re- centes (como a sida), ¢, num outro registro, as criticas & hospitali- zago e as campanhas a favor da eutanasia,"® parecem indicar o “re- gresso” dos mortos ao centro das preocupagdes dos vivos (Jean- Didier Urbain pergunta mesmo se o fim do século nao assistira 4 fase da “mort réapprivoisée” ¢ um socidlogo inglés, Tony Walter, fa- la de um “relagamento” da morte opinifo)." Todavia, dados recen- tes mostram que a fidelidade ao culto oitocentista dos mortos con- tinua em regressio, realidade que, conjugada com o crescimento da “tniniaturizagao e simplificagao” dos signos fimerdrios, com a ace- leragdo do rito © com a degradagao da gestio de meméria (expressa na diminuigao das concessdes perpétuas ¢ no crescimento dos aban- donos de jazigos ¢ de sepulturas), confirma, na Area inumista da Europa, a justeza da ilago geral a que esto a chegar os que tém estudado o fenémeno nas iltimas décadas do século XX: nas socie- dades industrializadas, a morte tornou-se um “tabu”, que substituin o velho “tabu” sobre o sexo, ¢ impds uma nova categoria de obsceno € de recaleado; ou, talvez, melhor, 0 modelo de civilizagéo atual impde a denegagio da morte ¢ das necessidades culturais de soli- dariedade e de ritualizagGes, evitando assim situar-se perante o limi- tee a finitude que funda a condigao humana.” E é esta atitude que conduz a considerar-se os ritos como iniiteis e o luto como assunto exclusivamente privado. Poder-se-A afirmar que 0 desapego ao cultualismo piblico responde ao aumento das tecnologias de memorializagao (foto- grafia, video, cinema), téenicas que levam as tiltimas conseqiiéncias (banalizando-a, domiciliando-a ¢ privatizando-a) a “imortalidade virtual”. Estas auténticas “mnemotecas” tém contribuido para a aceleragio da crise do culto cemiterial dos mortos, crise que no entanto, nos deve interrogar “comme témoignage d’une époque qui est celle de notre temps”. Numa sociedade massificada, em que a familia se restringiu, dessacralizou e precarizou, sujeita a mobili- dades migrantes muito fortes, atraida cada vez mais por valores pragmiticos e utilitaristas, no deve espantar a crescente dessociali- zagao das liturgias da recordagao ¢ 0 concomitante aumento da inte- riorizagao do luto. E existe alguma unanimidade neste diagnéstico: a recordagio tende a perder a sua faceta comemorativa e piblica, isto é, de celebragao do proprio corpo social, dando vez, a um culto dos mortos cada vez mais privado. A simbolica da contimuidade restringe-se & familia ¢ abandona a “polis”."* Com isto, dilui-se a consciéneia de que os individuos pertencem a totalidades holisticas, que thes dio identidade e sentido futuramente dentro de uma com- “44 = CATROCA,Femando Recordar ecomemora Arai anatolgica dos files comemorativos Mimesis Bau, ¥B.n.2.p. 1, 22 120 Ds en a mumsren bibliog, pase o recente dose sche {eta Choi as ort? De la tolictade miele droit Indie Tet pres soins lai, iid tut, In: ESPRIT 12243 In 1958p 536 121 CE URBAIN,Jos-Disher LArcipel dea Mors, p38. 122 BAUDRY, Paik 8 del ene sgpaeilage socal! Is ETUDES SURLAMORT 20Gdime Congres eal et ecompegrement Bullets a Soret de Tasso, XXXeme année, 1996p 48 128 VOVELLE, Michel La crite des rive ol mot contemporaine, Son impact srs emetes a A AV. Une drptectra de a Maer p 586 124 CE DECHAUX, Sean ttgus opacity 16 CCATROGA, Fernando, Recordar e comemora Ani tanatolégica dos fitos comemorativos Mimesis, Bauru, ¥.B,0.2, p47, 202 125 CE LASCH, Ch The Care of arin American Life 00 of diminish expectations New Yous "WW. Navn & Conpy, 179. 2 126 BAUDRY, Paik at it. participagdo grupal, ao mesmo tempo que cresce a assungio interio- rizada do Iuto, Serdo estas as mudangas fruto de alteragdes ocorridas no modo como 0 homem contemporaneo experiencia o tempo, vivido cada vez mais como um mero ¢ infinito somatério de instantes sem a horizontalidade delineada pela simultanea presenga da meméria e das expectativas? O investimento comemorativo do século XIX ¢ boa parte de Novecentos constitufa uma atitude adequada a uma concep¢ao acumulativa, evolutiva ¢ constituida da histéria dos gru- pos e da sociedade. Hoje, a situag’o modificou-se. Dir-se-ia que a aceleragio das mudangas sociais e a emergéncia de criticas contra a crenga na perfeitabilidade ¢ no progresso — postulados da moderni- dade — instalaram o sentimento do nao sentido e da descontinuida- de c pluralidade do tempo psicol6gico e histérico, como se o passa- do nao mais pudesse esclarecer o presente ¢ o futuro passasse a ser completamente imprevisivel.* Dai que, numa certa perspectiva, se possa também sugerir que as novas atitudes em relagio 4 morte esto geminadas coma crise do historicismo. Em termos concretos, os sinais desta desafetagdo refletem-se tanto na simbologia inumista como na cremagao, o que leva a que se pergunte se um luto nao patolégico e as necessidades de repro- dugdo sociabilitéria podem prescindir da dimensdo pilica e sim= bélica exigida pela inevitavel sacralidade da morte ¢ dos mortos pelo desejo de sobrevivencia. Em certo sentido, as sociedades de hoje podem fingir ter encontrado uma solugo para o problema da morte ao encararem a vida nao ja através de uma distanciagao ritu- alizada com os defuntos, mas mediante uma separagio vigiada dos individuos com a sua propria existéncia." Este comportamento ajusta-se a uma sociedade alicergada na entificagao do “sujeito” Embora também seja possivel surpreender reagdes recentes contra a negagio da morte, as novas expressdes piiblicas da morte, do Into & da meméria jé nao poderdo subsumir, porém, a sua componente per sonalizada. Do mesmo modo que a morte “ideal” & a que faz do individuo 0 ator licido da sua propria morte, também a homenagem a0 defunto tende a centrar-se no “ego”. Os ritos sociais, conven- cionais ¢ estercotipados por natureza, esto desvalorizados, sendo substituidos pelo verbo (falar para exprimir os sentimentos) ou por rituais fabricados que evocam a univocidade do finado, logo, do que somente terd significado para os proximos (DECHAUX), Ora, se & certo que, ao contrario das sociedades mais tradi- cionais, hoje nao é rito que cria o social, continua no entanto a ser valida a tese segundo a qual “le deuil n’est pas interindividuel, ni une affaire intrapsychique. Il n’a jamais été et n’est jamais autre chose que l'affaire de la vie sociale”. Caso contrario, a centrali- dade do “ego” tornar-se- cultura narcisica ¢ “egdide”, quebrando 0 horizonte de alteridade (¢ de socialidade) que possibilita a realiza- 0 do individuo como pessoa. E como experiéncia indireta da “morte do outro” é raiz dessa assungao, pensam bem os que defen- dem que nunca existiré luto sem um ritual que saiba eruzar, de acordo com os diferentes contextos culturais, a dimensao privada com a necessiria expressio piblica do rito. E se se aceita que novas realidades podem gerar novos cultos,"” qualquer que seja a respos- ta que o futuro reserve para essas recriagdes," temos como certo de que uma sociedade sem meméria sera necessariamente uma sociedade neurdtica.” Como é légico, esta posigo nao pode levar ao escamotea- mento desta outra face do problema: os efeitos patolégicos tanto podem derivar do abuso do esquecimento como do abuso da memé- ria. No entanto, como, relendo Freud, conclui Paul Ricoeur, “si le travail de deuil est le cov du travail du souvanier, le travail du sou- venir, le travail du souvenir est le bénéfice du travail du deuil”.* B a rememoragio, & escala dos individuos ¢ da coletividade, s6 geraré um luto bem feito, e no degenerari em melancolia (Freud), se a sua re-presentificagdo nao anular o distanciamento temporal ¢ objectal entre o presente ¢ o passado, possibilitando assim o regresso & nor malidade.* De qualquer maneira, é incontroverso que, hoje, a degradacao do culto romantico dos mortos atinge mesmo o seu mediador privi- legiado (a familia), pelo que também nfo espanta que estejam em crise as liturgias da recordagio e, sobretudo, as de vocagio mais ci- vica ¢ politica, Mas como estas pressupunham uma visio historicis- ta do tempo, nao serd licito associar a crise das ideologias ¢ dos ima- ginarios sociais clandestinago da morte e a do culto memorial dos mortos, como se, para os vivos, nfo mais houvesse futuro para © passado e presente para o futuro? E nao tera tudo isto levado a que modo comemorativo como as sociedades oitocentistas reliam, ritua- lizavam ¢ reinventavam o seu passado tena lugar ao atual desejo de conservagio museolégica ¢ arquivista, exemplarmente expresso na nova sensibilidade para com a preservagao do patriménio (arquite- tonico, natural, ete.), tendéncia que, na opinizo de Jean-Didier Urbain, tem subjacente uma camuflada transferéncia do trabalho do Iuto. Compensando a sua clandestinizagao social, 0 culto do passa do mataforiza-se ¢, a0 contririo do que acontecia no culto cemite- rial, desloca-se “du corps au décor, du sujet aux objects ou encore du cadavre & Kénvironnement”, movimento que provoca um ainda maior resfriamento dos ritos comemorativos ao valorizar opgdes 46 CATROCA,Femando Recordar ecomemora Arai anatolgica dos files comemorativos Mimesis Bau, ¥B.n.2.p. 1, 22 127 his, p.54;__ Conceptions sr oct ex Oorde as CORNIL- LOT, B, HANUS, M (de) 9. 16, 128 Cf BACQUE, Mase Fides Desi Ve, owe dion, Pai (dle us, 1995, 2 129 Soba einen de ovos ‘allo, lems THOMAS, Lovie Vient Lat ort m Ouest WALTER, M. The Revival of Death, London a New York Routledge, 194, 120 Soba occas dee ia ‘an novo ina, sean imag, sj nace, oe teenie ames eo thi to pasagem,vejtse THOMAS, vie Vincen Le Renowens del ‘Mort Is; CORNILLOT,P. THANAUS, Mz) opi, p 31-78 ‘VOVELLE, Mice). Le nove sls do I ort ca Oecien, In PERUCHON, Maton i), Rites Se, Rate de Mort Pai 8.5, F ates, 1997, p. 211-236 131 BACQUE, Mare Fede. Dell Sant Pais Ole Jab, 1997, pi 12 RICOEUR, Paul, op. PE 133 hi, p25, CCATROGA, Fernando, Recordar e comemora Ani tanatolégica dos fitos comemorativos Mimesis, Bauru, ¥.B,0.2, p47, 202 {M4 URBAIN, Jeanie. Du dell collet nels em desi n BULLETIN DE La SOCIETE de ‘Thansologe op cit, p58 13S CATROGA. F Rtaizaree ds isi I TORGAL, LR etal op ‘itp 6 lugares que remetem para uma ordem menos afetiva e mais erudita e racionalizada de se celebrar e de se fixar a fluidez do tempo." E certo que as transformagées sociais e politicas (a crise das memérias grupais ¢ nacionais) condicionaram estas mutagdes. Mas a erosio do culto cemiterial e das comemoragées civicas tem ainda uma outra razo fundamental, quase metafisica, inscrita na sua pr pria natureza. A evocagio memorial pretende incentivar os vivos a0 devotamento e & abnegacio, acenando-lhes como recompensa com um ideal de imortalidade garantido pela meméria dos vindouros. Mas ha que se, mesmo no calor das antigas solidariedades, esta promessa nao teve sempre algo de “frio”, nomeadamente quando as, comparamos com a crenga no papel salvifico das obras ¢ da inter- cessfio, ou mesmo com os ritos que “naturalizam” afiliagio histori- ca a partir da procriagio e fixam a rememoragao como uma pratica necessaria 20 renovamento da continuidade dos elos familiares. Ora, a “anamnesis” ditada por razdes civicas nao deixa de apontar para uma escatologia excessivamente despersonalizada ¢ universal, assegurando tdo-s6 a sobrevivéncia da imagem do morto na memé- ria dos vivos." De onde resulta a sua indiscutivel pobreza apelati- va: a imortalizagao prometida nao s6 é abstrata e virtual como es- tard sempre suspensa das necessidades mnésicas do futuro e, por- tanto, da contraditéria degradagao da eternidade. ABSTRACT The knowledge about death is indirect in the sense that death is lived by the dying person alone in his individuality. The Western civilization from its beginnings created a thanatological discourse made by (and for) the living. The awe-inspiring death has given birth to rites, among which the getting rid of the corpse, in order to find solace for this rupture, Tomb inscriptions and other signs are built to preserve the sense of being present against nothingness, and this has given rise to museum-cemeteries, especially from the 19th century on, consequence of the racionalistic Illustration. Such material memories are meant to break the gnoseological distance between subject and object, creating a celebration. Key words: death; thanatology; museum-cemeteries; rites; celebra- tion.=3 047

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