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pitulo 1 O DESAFIO DA PESQUISA SOCIAL Maria Cecilia de Souza Minayo 1. Ciéncia e cientificidade Do ponto de vista antropolégico, podemos dizer que sempre existiu preocupagaéo do homo sapiens com o conhecimento da rea- lidade. As tribos primitivas, através dos mitos, explicaram e expli- cam os fendmenos que cercam a vida e a morte, o lugar dos indivi- duos na organizagao social, seus mecanismos de poder, controle e ‘eprodug&o. Dentro de dimensées histéricas imemoriais até nos- sos dias, as religides e filosofias tém sido poderosos instrumentos explicativos dos significados da existéncia individual e coletiva. A poesia ea arte continuam a desvendar légicas profundas e insus- peitadas do inconsciente coletivo, da vida cotidiana e do destino humano. A ciéncia é apenas uma forma de expressdo dessa busca, iio exclusiva, nao conclusiva, nao definitiva. Na sociedade ocidental, no entanto, a ciéncia é a forma hege- mdnica de construcdo da realidade, considerada por muitos criti- cos Como uM Novo mito, por sua pretensdo de Unico promotor e crilério de verdade. No entanto, continuamos a fazer perguntas e a buscar solugées. Para problemas essenciais, como a pobreza, a mi- scria, a fome, a violéncia, a ciéncia continua sem respostas e sem Pesquisa social métodos, seus principios e estabelece seus resultados; noutra, in- venta, ratifica seu caminho, abandona certas vias e encaminha-se para certas diregées privilegiadas. E ao fazer tal percurso, os in- vestigadores aceitam os critérios da historicidade, da colaboragao e, sobretudo, revestem-se da humildade de quem sabe que qual- quer conhecimento é aproximado, ¢ construido. Ora, se existe uma idéia de devir no conceito de cientificidade, nao se pode trabalhar, nas ciéncias sociais, apenas com a norma da cientificidade ja construida. A pesquisa social se faz por aproxi- magao, mas, ao progredir, elabora critérios de orientagao cada vez mais precisos. Conforme lembram Bruyne et al. (1995), “na reali- dade histérica de seu devir, o procedimento cientifico ¢, ao mesmo tempo, aquisigao de um saber, aperfeigoamento de uma metodo- logia, elaborac4o de uma norma” (p.16). Obviamente isto se faz dentro da especificidade que as ciéncias sociais representam no campo do conhecimento. Por isso, para falarmos de Ciéncias So- ciais, dentro de sua peculiaridade, retomaremos critérios gerais que a distinguem e que se encontram em autores como Demo (1995) e Minayo (2006) sem, contudo, desvincula-la dos principios da cien- tificidade. O objeto das Ciéncias Sociais ¢ histérico. Isto significa que cada sociedade humana existe e se constréi num determinado es- pago e se organiza de forma particular e diferente de outras. Por sua vez, todas as que vivenciam a mesma €poca histdrica tém al- guns tragos comuns, dado o fato de que vivemos num mundo mar- cado pelo influxo das comunicagées. Igualmente, as sociedades vivem o presente marcado por seu passado e é com tais determina- ¢des que constroem seu futuro, numa dialética constante entre o que esta dado e o que sera fruto de seu protagonismo. Portanto, a provisoriedade, o dinamismo e a especificidade sao caracteristicas de qualquer questo social. Por isso, também, as crises tém reflexo tanto no seu desenvolvimento como na decadéncia das teorias so- ciais que as explicam (pois essas também so histéricas). Pesquisa social Como conseqiiéncia da primeira caracteristica, é importante dizer que 0 objeto de estudo das ciéncias sociais possui conscién- «4d historica, Noutras palavras, nao é apenas o investigador que ‘cn capacidade de dar sentido ao seu trabalho intelectual. Todos res humanos, em geral, assim como grupos e sociedades es- vas do significado a suas acées € a suas construcées, sao ca- 1c explicitar as intengdes de seus atos e projetam e planejam seu futuro, dentro de um nivel de racionalidade sempre presente tas agdes humanas. O nivel de consciéncia histérica das Ciéncias Sociais esta referido ao nivel de consciéncia histérica da socieda- «de de seu tempo, embora essas criagdes humanas nao se confundam. lim terceiro lugar, é preciso ressaltar que nas Ciéncias Sociais existe uma identidade entre sujeito e objeto. A pesquisa nessa area luda com seres humanos que, por razdes culturais de classe, de faixa clin, ou por qualquer outro motivo, tém um substrato comum de ulentidade com o investigador, tornando-os solidariamente imbri- vidos ¢ comprometidos, como lembra Lévy-Strauss (1975): “Numa vicncia, onde o observador é da mesma natureza que o objeto, eo ubservador 6, ele proprio, uma parte de sua observagao” (p.215). Outro aspecto distintivo das Ciéncias Sociais é 0 fato de que cla ¢ intrinseca e extrinsecamente ideoldégica. Na verdade, nao existe uma ciéncia neutra. Toda ciéncia — embora mais intensa- mente as Ciéncias Sociais — passa por interesses e visdes de mun- «lo historicamente criadas, embora suas contribuigées ¢ seus efei- lus (cdricos e técnicos ultrapassem as intengdes de seus proprios autores. No entanto, as ciéncias fisicas e biolégicas participam de lorma diferente da ideologia social (por exemplo, na escolha de te- mas considerados relevantes e noutros que sdo descartados, na es- colha de métodos e técnicas ha influéncias econémicas, culturais cic.), pela natureza mesma do objeto que elas colocam ao investi- pador, Na investigacao social, a relacdo entre o pesquisador e seu campo de estudos se estabelece definitivamente. A visio de mun- do de ambos esta implicada em todo o processo de conhecimento, 13 Pesquisa social desde a concepgao do objeto aos resultados do trabalho e a sua aplicagao. Ou seja, a relagdo, neste caso, entre conhecimento e in- teresse deve ser compreendida como critério de realidade e busca de objetivagao. Por fim, é preciso afirmar que 0 objeto das Ciéncias Sociais é essencialmente qualitativo. A realidade social é a cena eo seio do dinamismo da vida individual e coletiva com toda a riqueza de sig- nificados dela transbordante. Essa mesma realidade é mais rica que qualquer teoria, qualquer pensamento e qualquer discurso que pos- samos elaborar sobre ela. Portanto, os cédigos das ciéncias que por sua natureza sao sempre referidos e recortados sao incapazes de conter a totalidade da vida social. As Ciéncias Sociais, no entan- to, possuem instrumentos e teorias capazes de fazer uma aproxi- macao da suntuosidade da existéncia dos seres humanos em socie- dade, ainda que de forma incompleta, imperfeita e insatisfato- ria. Para isso, elas abordam o conjunto de expressdes humanas cons- tantes nas estruturas, nos processos, nas representagGes sociais, nas express6es da subjetividade, nos simbolos e significados. Este pequeno livro trata do carater especificamente qualitati- vo das Ciéncias Sociais e da metodologia apropriada para recons- truir teoricamente os processos, as relagdes, os simbolos e os sig- nificados da realidade social. 2. Conceito de metodologia de pesquisa Entendemos por metodologia 0 caminho do pensamento ea pratica exercida na abordagem da realidade. Ou seja, a metodolo- gia inclui simultaneamente a teoria da abordagem (0 método), os instrumentos de operacionalizacao do conhecimento (as técnicas) a criatividade do pesquisador (sua experiéncia, sua capacidade pessoal ¢ sua sensibilidade). A metodologia ocupa um lugar cen- tral no interior das teorias e esta referida a elas. Dizia Lenin (1965) 14 Pesquisa social «que “o método é a alma da teoria” (p.148), distinguindo a forma externalizada com que muitas vezes ¢ abordado 0 processo de tra- halho cientifico. Esta externalidade se manifesta quando apenas \sumos técnicas e instrumentos para chegar ao conhecimento sem cntrar no mérito do sentido das indagacgGes ou sem levar em conta os conceitos e hipéteses que as fundamentam. Na verdade a meto- dologia é muito mais que técnicas. Ela inclui as concepg6es tedri- cas da abordagem, articulando-se com a teoria, com a realidade cmpirica e com os pensamentos sobre a realidade. Enquanto abrangéncia de concepgées tedricas de abordagem, it lcoria e a metodologia caminham juntas, intrincavelmente inse- pardveis. Enquanto conjunto de técnicas, a metodologia deve dis- por de um instrumental claro, coerente, elaborado, capaz de enca- minhar os impasses tedricos para o desafio da pratica. O cndeusamento das técnicas produz um formalismo arido ou wostas estereotipadas. Seu desprezo, ao contrario, leva ao em- smo sempre ilusdrio em suas conclusdes, ou a especulagdes utbstratas € estéreis. Nada substitui, no entanto, a criatividade do pesquisador. lcycrabend, num trabalho denominado Contra 0 método (1989) observa que 0 progresso da ciéncia esta associado mais a violaco das regras do que a sua observancia. “Dada uma regra qualquer, por mais fundamental e necessaria que se afigure para a ciéncia, sempre havera circunstancias em que se torna conveniente nao apenas ignora-la como adotar a regra oposta” (p.51). Em Estrutu- ra das revolugées cientificas (1978), Thomas Kuhn reconhece que nos diversos momentos histéricos e nos diferentes ramos da cicncia hd um conjunto de crengas, visdes de mundo e de proces- sos de trabalho em pesquisa consagrados, reconhecidos e¢ legiti- mados pela comunidade cientifica, configurando o que ele chama de paradigma, Para Kuhn (1978), no entanto, o progresso da ciéncia se faz pela quebra dos paradigmas, pela colocagdo em discussao das teo- tias c dos métodos, acontecendo assim uma verdadeira revolugdo. 15 Pesquisa social Ométodo, dizia o historicista Dilthey (1956), é necessdrio por causa de nossa “mediocridade”. Para sermos mais precisos no sen- tido dado por esse autor, como nao somos génios, precisamos de pardmetros para caminhar na producao do conhecimento. No en- tanto e apesar de tudo, a marca da criatividade € nossa “prife” (ou seja, nossa experiencia, intuigao, capacidade de comunicacao ede indagac&o) em qualquer trabalho de investigagao. Pesquisa Entendemos por pesquisa a atividade basica da ciéncia na sua indagag&o e construgao da realidade. Ea pesquisa que alimenta a atividade de ensino e a atualiza frente 4 realidade do mundo. Por- tanto, cmbora seja uma pratica teérica, a pesquisa vincula pensa- mento ¢ aco. Ou seja, nada pode ser intelectualmente um proble- ma se ndio tiver sido, em primeiro lugar, um problema da vida pra- tica. As questdes da investigagao estdo, portanto, relacionadas a interesses e circunstancias socialmente condicionadas. Sao frutos de determinada insergio na vida real, nela encontrando suas razdes e seus objetivos. Toda investigagdo se inicia por uma quest&o, por um proble- ma, por uma pergunta, por uma divida. A resposta a esse movi- mento do pensamento geralmente se vincula a conhecimentos an- teriores ou demanda a criag4o de novos referenciais. Teorias Os conhecimentos que foram construidos cientificamente so- bre determinado assunto, por outros estudiosos que o abordaram antes de nés e langam luz sobre nossa pesquisa, s40 chamados teo- rias. A palavra teoria tem origem no verbo grego “theorein” cujo significado é “ver”. A associagdo entre “ver” ¢ “saber” é uma das bases da ciéncia ocidental. Pesquisa social A teoria é construida para explicar ou para compreender um lcnémeno, um processo ou um conjunto de fendmenos e proces- sos, Este conjunto constitui o dominio empirico da teoria (ou seja, u dinamica da pratica que ela explica ou interpreta). A teoria pro- priamente dita sempre sera um conjunto de proposigdes, um dis- curso abstrato sobre a realidade. Ha grandes teorias — por alguns chamadas de macroteorias — que séo verdadeiras narrativas ou «liscursos escritos por cientistas sociais muito importantes, auto- tes de referéncia, para interpretar a realidade. Com certeza todos 14 ouviram falar em positivismo, marxismo, teoria da agao, com- preensivismo. Essas sao as principais grandes teorias das ciéncias soviais, Mas, ha também teorias menores que, geralmente sob 0 uarda-chuva das grandes narrativas, explicam ou interpretam fe- nomenos especificos, particulares. Im geral, varias teorias competem entre si para’ explicar ou {via ajudar © pesquisador a compreender determinada questio. Muitas vezes também existem problemas novos para os quais nao loram desenvolvidas teorias especificas. Nesse ultimo caso, cos- tumamos falar de pesquisa exploratéria, na qual o investigador vai jropondo um novo discurso interpretativo. Nenhuma teoria, por mais bem elaborada que seja, da conta de csplicar ou interpretar todos os fendmenos e processos. Por varios imotivos. Primeiro porque a realidade nao é transparente e é sem- pre mais rica e mais complexa do que nosso limitado olhar e nosso lumitado saber. Segundo, porque a eficacia da pratica cientifica se estabclece, nado por perguntar sobre tudo, e, sim, quando recor- ti de(erminado aspecto significativo da realidade, o observa, e, a partir dele, busca suas interconexGes sistematicas com 0 contexto «com a realidade. Teorias, portanto, sio explicagdes da realidade. Elas cum- prem fung6es muito importantes: (a) Colaboram para esclarecer melhor 0 objeto de investigagao. 17 Pesquisa social objeto de estudo, a seguir, conceitue, detalhadamente, cada um dos termos que o compéem. Vamos a um exemplo. Vou estudar 0 “‘com- portamento dos adolescentes masculinos, futuros-pais, quando des- cobrem que sua namorada ficou gravida”. Este é 0 objeto. Este é o problema de pesquisa. Conceitua-lo é discutir os seguintes ter- mos: comportamento sexual de adolescentes masculinos; paterni- dade na adolescéncia; relagdes sexuais entre adolescentes; gravi- dez na adolescéncia. O pesquisador que assumir tal objeto de pes- quisa deve partir para uma busca bibliografica sobre cada uma das expressdes citadas ¢ trabalha-las historicamente, com as divergén- cias e convergéncias tedricas, para s6 depois colocar sua posi¢ao e suas hipdteses. Quando delimitado, todo conceito deve ser valorativo, pragma- tico e comunicativo. Valorativos, no sentido de que o pesquisador precisa explicitar a que corrente tedrica os conceitos que adotou es- tao filiados. Pragmaticos, no que se refere a sua capacidade de se- rem operativos para descrever e interpretar a realidade. Comunica- tivos, ou seja, claros, precisos, abrangentes e ao mesmo tempo espe- cificos para serem entendidos pelos interlocutores da pesquisa. Ha varios tipos de conceitos que podem classificar-se em ted- ticos, de observagao direta ou indireta. (a) Conceitos tedricos séo os que compdem e estruturam o dis- curso da pesquisa: eles permanecem no nive] da abstragao. (b) Conceitos de observagao direta — so os que definem os termos com os quais o pesquisador trabalha em campo ou nas andlises documentais. (c) Conceitos de observagao indireta — sao os que fazem a re- lag&o do contexto da pesquisa com os conceitos de observacio direta (KAPLAN, 1972). E muito importante ter em mente que 0 discurso tedrico e con- ceitual néo é um jogo de palavras. Ao contrario, lembram-nos grandes pesquisadores como Malinowski (1984), todo bom pes- 20 Pesquisa social uisador prepara antes e muito bem seus instrumentos tedricos jut compreender e interpretar a realidade. Essa preparagdo é im- )escindivel a qualquer trabalho cientifico. Embora o mesmo au- lor advirta, o investigador deve sempre relativizar seus cuidado- ‘ws marcos tedricos a favor dos achados que a realidade empiri- vu lhe proporcionar. A capacidade de realizar esse balango flexi- velentrea teoria ea realidade 6a medida do éxito dos cientistas so- «uus. Noutras palavras, teorias e conceitos nao s40 camisa-de-for- »camisa sim, de um tecido que adequa o corpo ao ambiente e plolege o pesquisador das intempéries de seus julgamentos solita- tos, embora valorizando sua contribuigio. \. Pesquisa qualitativa A pesquisa qualitativa responde a questdes muito particula- tes Tila se ocupa, nas Ciéncias Sociais, com um nivel de realidade ‘Ine no pode ou nao deveria ser quantificado. Ou seja, ela trabalha ‘onto universo dos significados, dos motivos, das aspiragdes, das «rengas, dos valores e das atitudes. Esse conjunto de fendémenos lumianos é entendido aqui como parte da realidade social, pois o ‘wt humano se distingue no sé por agir, mas por pensar sobre 0 que !4zc por interpretar suas ages dentro ea partir da realidade vivida v partilhada com seus semelhantes. O universo da produg4o huma- ‘ut que pode ser resumido no mundo das relagdes, das representa- yocs ¢ da intencionalidade e é objeto da pesquisa qualitativa di- liculmente pode ser traduzido em nimeros e indicadores quantita- ‘ios. Por isso nao existe um “continuum” entre abordagens quanti- lativas © qualitativas, como muita gente propée, colocando uma hicriquia em que as pesquisas quantitativas ocupariam um pri- meno lugar, sendo “objetivas e cientificas”. E as qualitativas fica- ‘un no final da escala, ocupando um lugar auxiliar e exploraté- ‘1a, sendo “subjetivas e impressionistas”. 21 Pesquisa social A diferenga entre abordagem quantitativa e qualitativa da rea- lidade social ¢ de natureza e nao de escala hierarquica. Enquanto os cientistas sociais que trabalham com estatistica visam a criar modelos abstratos ou a descrever e explicar fenémenos que pro- duzem regularidades, sao recorrentes e exteriores aos sujeitos, a abordagem qualitativa se aprofunda no mundo dos significados. Esse nivel de realidade nao é visivel, precisa ser exposta e inter- pretada, em primeira instancia, pelos préprios pesquisados (MI- NAYO, 2006). Os dois tipos de abordagem e¢ os dados delas advindos, porém, nao sao incompativeis. Entre eles ha uma oposi¢ao complementar que, quando bem trabalhada teérica e praticamente, produz rique- za de informag¢ées, aprofundamento e maior fidedignidade inter- pretativa. Mas essa é uma opiniao nossa, ¢ tal afirmagao tem mui- tas controvérsias entre tedricos ¢ pesquisadores. As divergéncias quase sempre ocorrem no debate entre correntes de pensamento e as principais sero citadas a seguir. Positivismo Aprincipal influéncia do positivismo nas ciéncias sociais con- siste na utilizagao da filosofia e dos conceitos matemAaticos para a explicagao da realidade. Sua conseqiiéncia ¢ a apropriagao da lin- guagem de variaveis para especificar atributos e qualidades do ob- jeto de investigacdo. Os fundamentos da pesquisa quantitativa nas ciéncias sociais so os proprios principios classicos utilizados nas ciéncias da natureza: (a) O mundo social opera de acordo com leis causais. (b) O alicerce da ciéncia é a observagao sensorial. (c) A realidade consiste em estruturas e instituigdes identi- ficaveis “a olho nu” de um lado e crenga e valores de outro. Essas duas ordens de coisas se relacionam para fornecer gene- ralizagGes e regularidades. 22 Pesquisa social (dl) Sao reais para as Ciéncias Sociais positivistas os “dados visiveis ¢ identificdveis”. Valores ¢ crencas s6 podem ser com- preendidos através dos primeiros, por isso devem ser despre- zados como objetos especificos de pesquisa. (c) Os dados recolhidos da realidade empirica das estruturas istiluig6es sao suficientes para explicar a realidade social. Objetividade No cere da defesa do método quantitativo como sendo sufi- ‘wile para explicar a realidade social esta a discussiio da objetivi- ‘ute. Para os positivistas, a andlise social é objetiva quando é rea- lvada sobre uma realidade concreta ou pela criagéo de modelos tatcniticos (altamente abstratos) por instrumentos padronizados " prctensamente “neutros”. Existe uma crenga entre os positivistas ‘le que ¢ pelas técnicas estatisticas cada vez mais sofisticadas que 1imos atingir a objetividade. Nao faz parte da teoria a con- ) de que a constru¢do de técnicas passa pela subjetividade ‘lori pesquisadores € que as proposigdes ¢ construgdes que as cons- ‘luen introjetam interesses dos mais diferentes matizes, Compreensivismo I'm oposigdo ao positivismo, a chamada Sociologia Compre- vusiva responde diferentemente & quest&o qualitativa. Essa cor- iente [vdrica, como o préprio nome indica, coloca como tarefa mais tnportante das Ciéncias Sociais a compreensao da realidade hu- tina vivida socialmente. Em suas diferentes manifestagdes — fe- nomcnologia, etnometodologia, interacionismo simbélico ~ signi- fwado & 0 conceito central da investigacao. Num embate direto com 0 positivismo, a Sociologia Com- ‘iva prop6e a subjetividade como o fundamento do sentido da vida social e defende-a como constitutiva do social e inerente i construgdo da objetividade nas Ciéncias Sociais. pre 23 Pesquisa social Os autores compreensivistas nao se preocupam em quanti- ficar e em explicar, e sim em compreender: este é 0 verbo da pes- quisa qualitativa. Compreender relaces, valores, atitudes, crengas, habitos e representagGes e a partir desse conjunto de fendmenos humanos gerados socialmente, compreender ¢ interpretar a reali- dade. O pesquisador que trabalha com estratégias qualitativas atua com a matéria-prima das vivéncias, das experiéncias, da cotidia- neidade e também analisa as estruturas e as instituigdes, mas en- tendem-nas como agao humana objetivada. Ou seja, para esses pen- sadores e pesquisadores, a linguagem, os simbolos, as praticas, as relagdes e as coisas sdo inseparaveis. Se partirmos de um desses elementos, temos que chegar aos outros, mas todos passam pela subjetividade humana. Marxismo O marxismo enquanto abordagem que considera a historici- dade dos processos sociais e dos conceitos, as condi¢des socioeco- némicas de produg&o dos fendmenos e as contradi¢des sociais é uma outra teoria sociolégica importante. Enquanto método, pro- pde a abordagem dialética que teoricamente faria um desempate entre o positivismo e o compreensivismo, pois junta a proposta de analisar os contextos histéricos, as determinagdes socioeconémi- cas dos fenédmenos, as relagdes sociais de produgao e de domina- cao com a compreens&o das representacdes sociais. A dialética trabalha com a valorizacgao das quantidades e da qualidade, com as contradig6es intrinsecas as agdes e realizacdes humanas, e com o movimento perene entre parte e todo e interiori- dade e exterioridade dos fendmenos. Porém, as analises marxis- tas voltadas para a consideracao dos valores, crengas, significados e subjetividade sao quase inexistentes porque a pratica marxista hegeménica de andlise da realidade tem sido macrossocial ou mes- mo positivista. Por exemplo, um expoente da teoria, Althusser (1965), dizia que a questo do sujeito era uma ilusdo da antropologia. 24 Pesquisa social Vitrias criticas tém sido feitas as teorias acima descritas e, ‘amo ja dissemos, essas criticas tem como base 0 fato de que ne- nhuma delas consegue explicar a realidade que é mais rica que «juulquer discurso construido sobre ela. Por exemplo, criticamos a Inctensa objetividade (sem sujcito) do positivismo ea sua cren- 4wle que devemos restringir 0 conhecimento da realidade ao que cr observado, quantificado ou modelado de forma externa \Jcitos. Ao compreensivismo, as criticas enfatizam sua tendéncia ao ‘ mpirismo (ou seja, a crenga de que o que as pessoas dizem sobre o tel Ca realidade) e ao subjetivismo (que confunde as percepgoes du pesquisador com a verdade cientifica) (MINAYO, 2006). Sobre 0 marxismo, as criticas enfatizam sua dificuldade para ‘tur istrumentos compreensivos, pois a tendéncia dos seus auto- 1c sepuidores é importar respostas prontas baseadas na exegese shi teria, perdendo a riqueza da realidade empirica. Como falava ‘uuttte (1980), eles costumam ver 0 quadro (a teoria) como se ele ‘oustiluisse a totalidade da pintura (a dindmica da realidade so- sil) (MINA YO, 2006). Vessoalmente, advogamos a importancia de trabalhar com a ' omplexidade, a especificidade e as diferenciacdes internas dos nunsos objetos de pesquisa que precisam ser, ao mesmo tempo. « ontextualizados e tratados em sua singularidade. Acreditamos na telayito (6rtil e frutuosa entre abordagens quantitativas e qualitati- \ us que devem ser vistas em oposigao complementar. No entanto, twste pequeno livro trataremos apenas dos instrumentos de pes- oyun (qualitativa. Sobre o campo de investigag4o quantitativa sera wecessirlo outro investimento de igual dedicagao. { Ciclo da pesquisa qualitativa Di !crentemente da arte e da poesia que se baseiam na inspira- ‘10.2. pesquisa ¢ um trabalho artesanal que nao prescinde da cria- 25 Pesquisa social tividade, realiza-se fundamentalmente por uma linguagem basea- da em conceitos, proposigées, hipdteses, métodos e técnicas, lin- guagem esta que se constréi com um ritmo préprio e particular. A esse ritmo denominamos Ciclo de pesquisa, ou seja, um peculiar processo de trabalho em espiral que comega com uma pergunta e termina com uma resposta ou produto que, por sua vez, dé origem a novas interrogagées. Para efeitos bem praticos, dividimos o processo de trabalho cientifico em pesquisa qualitativa em trés etapas: (1) fase explora- toria; (2) trabalho de campo; (3) andlise e tratamento do material empirico e documental. A fase exploratoria consiste na produgao do projeto de pes- quisa ¢ de todos os procedimentos necessdrios para preparar a en- trada em campo. E 0 tempo dedicado — e que merece empenho e investimento — a definir e delimitar 0 objeto, a desenvolvé-lo teé- rica e metodologicamente, a colocar hipdteses ou alguns pressu- postos para seu encaminhamento, a escolher e a descrever os ins- trumentos de operacionalizagao do trabalho, a pensar o cronogra- ma de ago e a fazer os procedimentos exploratorios para escolha do espago e da amostra qualitativa. O trabalho de campo consiste em levar para a pratica empirica aconstrucao teérica elaborada na primeira etapa. Essa fase combi- na instrumentos de observa¢do, entrevistas ou outras modalidades de comunicagao ¢ interlocugéo com os pesquisados, levantamento de material documental e outros. Ela realiza um momento relacio- nal e pratico de fundamental importancia exploratoria, de confir- magio e refutagdo de hipoteses e de construgao de teoria. O traba- lho de campo é uma fase tdo central para o conhecimento da reali- dade que Lévy-Strauss (1975) o denomina “ama de leite” de toda a pesquisa social. A terceira etapa, resumida no titulo Andlise e tratamento do material empirico e documental, diz respeito ao conjunto de pro- 26 Pesquisa social ‘ edimentos para valorizar, compreender, interpretar os dados em- plicas, articula-los com a teoria que fundamentou o projeto ou «ui outtas leituras teéricas e interpretativas cuja necessidade foi lela pelo trabalho de campo. Podemos subdividir esse momento «in (res tipos de procedimento: (1) ordenagio dos dados; (b) classificagao dos dados; (v) andlise propriamente dita. () tratamento do material nos conduz a uma busca da légica pecdiar c interna do grupo que estamos analisando, sendo esta a ‘onsttugio fundamental do pesquisador. Ou seja, andlise qualita- (vu hao ¢ uma mera classificagado de opiniao dos informantes, é muulo mais, Ea descoberta de seus codigos sociais a partir das fa- lu. simbolos @ observacées. A busca da compreensio e da inter- jetay aod luz da teoria aporta uma contribui¢do singular e contex- Nutltzada do pesquisador. ‘1 viclo de pesquisa nfo se fecha, pois toda pesquisa produz onthe nento e gera indagagdes novas. Mas a idéia do ciclo se so- lulitiea nie em tapas estanques, mas em planos que se comple- tenant. Lissa idéia também produz delimitag&o do processo de Habalho cientifico no tempo, por meio de um cronograma. Desta ‘wma, valorizamos cada parte e sua integracdo no todo. E pensa- ‘wo--sempre num produto que tem comego, meio e fim e ao mesmo '-1upo ¢ provisorio, Falamos de uma provisoriedade que éinerente “1. PLOcessOs sOciais e que se refletem nas construgées tedricas. Reteréncias MI THUSSER, L. Pour Marx, Paris: Frangois Maspero, 1965. HEY N SPs HERMAN, J.; SCHOUTHEETE, M. Dinamica da pes- «uisn em Ciéncias Sociais. 6 ed, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995 27 DEMO, P. Metodologia cientifica em Ciéncias Sociais. 3* ed. Sio Pau- lo: Atlas, 1985. DILTHEY, W. Introduccién a las Ciencias del Espiritu, Madri: Revis- ta de Occidente, 1956. FEYERABEND, P. Contra o método. Rio de Janciro: Francisco Alves, 1989. KAPLAN, A. A conduta na pesquisa. Sao Paulo: Herder/Edusp, 1972. KUNH, T. Estrutura das revolugoes cientificas. Sao Paulo: Perspecti- va, 1978. LENIN, W. Cahiers philosophiques. Paris: Sciences Sociales, 1965. LEVY-STRAUSS, C. Aula inaugural. In: ZALUAR, A. (org.). Der vendando mascaras sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975, p.211-244. 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Sao Paulo: Atlas, fous 4 /atttor destes dois livros de referéncia discute questdes fundamentais da «iene enquanto um produto da sociedade e enquanto produgio de co- ulwcimento, na area de Ciéncias Sociais. Ele reflete sobre as principais suitentes de pensamento dominantes e as implicagdes das abordagens de sada uma, O texto abrange temas de relevante interesse como critérios sl’ cwentificidade, campo cientifico, condigdes de produgao do conhecimen- (ve panimetros para verificagao, validade e confiabilidade. MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento. 9° ed. ampliada e apri- aimtada, Siio Paulo: Hucitec, 2006. \ autora fiz uma reflexéo abrangente sobre a filosofia, a sociologia ea tite ila pesquisa social em saide e acompanha toda a orientagao meto- shalapten com propostas tedricas e operacionais. O livro abrange todas as teu de uma pesquisa social qualitativa e além de uma vasta bibliografia, «jue pode ser consultada, apresenta uma forma de abordagem propria, em Anilopo com autores de refer€ncia no campo da pesquisa socioldgica, an- aqotopica c da sade coletiva. Na 9* edigao a autora introduz a aborda- + otatticulada por triangulagao de métodos e inicia uma reflexdo sobre a tearta sistémica e 0 conceito de complexidade em pesquisa. MINAYO, M.C.S.; ASSIS, 8.G.; SOUZA, E.R. (orgs.). Avaliagdo por (slungulagio de métodos: abordagem de programas sociais. 2* ed. Rio le lancwo: Fioeruz, 2005. \jcat de ser um Livro pensado para avaliagao, esta obra traz orientagdo ule inclodos quantitativos e qualitativos ¢ sua articulac4o na pes- «pivatsoctil, Os autores trabalham cada passo (definigao de objeto, cons- lituyito de marco tedrico, definigao de indicadores, técnicas de investi- ruyaia, (Cenicas para trabalho de campo e diversas formas de andlise) das dus abordagens, sempre combinando a sua triangulagao para andlise da tealidade social, 29

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