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José Luiz Fiorin (org.) Introdu¢do 4 Linguistica ll. Principios de andlise editoracontexto Copyright © 2003 dos autores Tados os direitos desta edigio reservados & Editora Conrexto (Fditora Pinsky Leda.) Revisdo Maité Carvalho Casacchif Texto & Arte Servigos Editoriais Diagramagio Mariana Coan ¢ Wagner Shima Projeto ¢ montagem de capa Antonio Kehl Dados Internacionais de Catalogagio na Publicagio (crn) (Camara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Introdugio 4 linguistica Il: principios de analise/ José Luiz Florin, (org.).~ Sued. 24 reimpressio niexto, 2014, Sio Paulo : C Varios auvores, Bibliografia, ISBN 978-85-7244-221-3 1. Linguistica. 2, Linguistica ~ Estudo ¢ ensino L. Fiorin, José Luiz. 03-0091 cbD-410 Indice para catélogo sistemético: 1. Linguistica: Introdugao 410 Eprrora Contexto ' Diretor editorial: Jaime Pinsky Rua Dr, José Elias, 520 — Alto da Lapa (05083-030~ So Paulo — se vrapx: (11) 3832 5838 contexto@editoracontexto.com.br vwww.editoracontexto.com.br Proibida a reprodugio total ou parcial Os infracores estio sujitos as penas da lei. Fonologia Paulo Chagas de Souza Raquel Santana Santos A proposito, 0 que houve com o bebé? — disse o Galo. ~ Quase ia me esquecendo de perguntar Transformou-se num leitto ~ respondeu Alice tranquilamente, como se © Gato tivesse voltado de modo natural Era o que cu pensava — disse o Gato, ¢ esvaneceu-se outra vez. Alice esperou mais um pouco. na expectativa de vé-lo ainda, mas cle nao apareceu Depois de algum tempo caminhou na ditego onde morava a Lebre de Marco. “a vi chapeleiros antes” ela pensou, ~ A Lebre de Margo deve ser ainda mais interes- sante, ¢ depois, como estamos em mato, talve7 ela ndo esteja delirando ... pelo menos, no estaré to louca quanto em margo.” Enquanto murmurava isso, levantou a vista e Fa estava 0 gato outra vez, sentado num galho de arvore. — Voeé disse “Ieita0” ou “eto”? — Bu disse ™ {2o” — respondeu Alice, acrescentando: ~ Gostaria que voet aparecesse ou sumisse to de repente. Lewis Carroll, Alice no Pais das Maravithas. 1. Aspectos segmentais e suprassegmentais Como vimos no capitulo anterior, os sons podem se distinguir uns dos outros por propriedades que detectamos em cada um deles ou por propriedades que sé podemos detectar sintagmaticamente. Entre as primeiras se encontram o modo de articulacao, os articuladores que 0 produzem (ativo e passivo). Entre as que somente sdo detectadas sintagmaticamente, temos 0 fato de um som ser prolongado ou nao, ser agudo ou grave (correspondentes respectivamente na linguagem cotidiana a sons mais finos ou mais grossos). As primeiras so as propriedades segmentais € as demais sao as propriedades suprassegmentais ou prosédicas. Entre as propriedades suprassegmentais encontramos o acento e os tons. O acento, familiar a nés falantes de portugués, pode ser manifestado por qualquer um dos trés tipos de propriedades aciisticas vistas no capitulo anterior (altura, intensidade e duragiio), ou por uma combinagdo de mais de um tipo dessas pro- priedades. Os tons se relacionam basicamente a altura do som (no sentido de ser um som relativamente agudo ou relativamente grave). Ambos 0s tipos de propriedades suprassegmentais podem ter a importante fungao de distinguir itens lexicais. Numa lingua como o portugués, 0 acento pode ter uma fungao distintiva. Assim, em palavras como stibia, sabia e sabia, a acentuagdo distingue o significado delas, 34 Introdugao & Linguistica tl Em outras linguas, sao os tons que distinguem significado e nao a acentua- ao. E como se caju, pronunciado com entoagiio descendente, ¢ caju?, que tem entoagdo ascendente, em vez de serem a mesma palavra utilizada como assergao e como interrogacdo, pudessem apresentar significados distintos. Se adotarmos a convengao de utilizar o acento agudo para indicar um tom alto ¢ o acento grave para indicar um tom baixo, essas duas formas de pronunciar a palavra caju poderiam ser representadas, respectivamente, por cdjtt e cajui. Como exemplo de lingua que usa os tons distintivamente, temos 0 japonés. Simplificando um pouco ¢ adotando a mesma convengao do pardgrafo anterior, temos em japonés pares de palavras como hashi e hashi, em que o primeiro significa ‘palitinhos usados para comer’ e o outro significa ‘ponte’, Outro exemplo é 0 par ima ‘agora’ e ima ‘quarto’. Embora esses dois tipos de propriedades suprassegmen- tais sejam extremamente importantes no estudo da fonologia das linguas naturai: por questao de espago, eles serao deis introducdo a analise fonolégica. Assim como foi feito no capitulo anterior, portanto, neste também o foco estara nas propriedades segmentais da cadeia sonora dos de lado aqui neste capitulo, que é uma 2. Unidade de estudo: o fonema Uma afirmagao fundamental de Saussure em relagao 4 linguistica e ao seu objeto é a de que “o ponto de vista cria 0 objeto” (CLG 1969: 15). O que isso quer dizer é que maneiras diversas de estudar um mesmo objeto, por conter perguntas diferentes com relagao a ele, nos levardo a obter visdes diversas desse objeto. Po- demos aplicar isso com relagaio aos sons utilizados nas linguas naturais. Mantendo constante 0 nosso objeto do estudo, os sons nas linguas naturais, podemos fazer indagagdes bastante diversas quanto a sua natureza, e assim, 0 quadro que teremos dos sons podera nos revelar propriedades bastante distintas a respeito deles. Embora este capitulo e o anterior tenham em comum 0 tipo de caracteristicas la cadeia sonora que sera enfocado, seus aspectos segmentais, a forma de abordar esses aspectos difere de maneira significativa de um para outro. No capitulo anterior, estudamos os sons de uma perspectiva fonética, ou seja, privilegiando as caracteristicas fisicas e fisioldgicas envolvidas em sua producao. Neste, o ponto de vista sera outro. Como a lingua é um sistema de signos, embora possamos em principio estudar 08 significantes por si s6s (enfocando apenas suas propriedades fisicas, por exemplo), oestudo das relagdes existentes entre o significante ¢ 0 significado, ou entre o plano da expresso e o plano do contetido, apresenta um carater mais marcadamente linguist pois toca na relacao fundamental dos sistemas linguisticos, a fungao semidtica. Assim, $ sons no so vistos apenas como sons em si mesmos, mas em termos das relagdes belecem entre si e das relagdes que os unem ao plano do contetido. 0 Fonologia 35 Essa relagdo esta na base da analise vista no primeiro volume, feita por Martinet, segundo a qual a lingua é caracterizada como sendo dotada da chamada dupla articulacao, isto &, da possibilidade de a sua cadeia sonora ser decomposta de duas maneiras distintas. Como foi visto, a primeira forma de decomposigao de um enunciado chega as suas menores unidades dotadas de significado, os morfemas. Esse tipo de anilise sera feito no capitulo que trata da morfologia. Jé a segunda forma de decomposigao de um enunciado chega aos fonemas, as suas menores unidades linearmente segmentaveis, nao dotadas de significado, mas que permitem a distingdo de significado. Esse tipo de andlise sera feito neste capitulo. Voltando brevemente ao ponto de vista adotado no capitulo anterior, podemos estudar os sons de uma lingua natural de uma forma mais concreta, observando inicialmente apenas quais so os sons ou fones que ocorrem nessa lingua. Digamos que seja feito um levantamento dos sons oclusivos produzidos numa determinada lingua e se observe que essa lingua apresenta os sons [p, b; t, d: k, g]. Podemos afirmar por enquanto que essa lingua apresenta seis fones oclusivos, trés surdos e trés sonoros. O simples fato de apresentar esses sons nas diversas manifestagdes da cadeia sonora, no entanto, nao nos indica como funcionam esses sons no interior da lingua em questio. Qual sera, entio, a rede de relagées existente entre esses sons dentro dessa lingua especifica? Uma possibilidade bastante comum, que ¢ a que se verifica no portugués, é ade que cada um dos fones desses pares separados por ponto e virgula possa ser utilizado para distinguir significado entre si. Comparando pares de palavras como pare har, tom e dom, e cola e gola, verificamos que, em cada um deles, o fato de trocarmos a con- soante oclusiva surda inicial pela sonora com o mesmo ponto de articulagao produz uma alteragdio de significado, Podemos dizer que, numa lingua desse tipo, além de conterem fones diferentes, cada um dos pares [p, b]. [t. d] e [k, g] contém realizacdes de dois fonemas diferentes. A outra possibilidade é a de esses trés pares de sons nao poderem distinguir significado na lingua em questo. Em campa, uma lingua falada no Peru, encontramos cxemplos como os seguintes: a palavra ‘ar’ apresenta as formas ['tampia] ¢ [‘tambia], ¢ a palavra “feijzio” apresenta as formas {ma'tfaki] e [ma'tfagi]. Em ambas as palavras a troca de uma oclusiva surda por uma sonora e vice-versa no provoca alteragao de significado, ou seja, essa variagdo nao é distintiva. Se nao houver nessa lingua nenhum caso em que ela distinga significado, diremos que pares como [p, b], por exemplo, nao sao constituidos de dois fonemas distintos. Vejamos um exemplo que compara a situagao do portugués do Brasil com outra lingua proxima, o italiano. Se observamos as palavras que so grafadas com #i, pereebemos que ha diferenga de pronuncia de certas regides para outras do Brasil. Na cidade de Sao Paulo ¢ no Rio de Janeiro, por exemplo, predomina a promiincia que normalmente grafariamos ichi, mas que em transcrigao fonética seria [t{i} ou [ii]. O som produzido antes de [i] nao é 0 mesmo produzido antes de [a,e, €, 9, 0, u]. Mas regides como o estado de Pernambuco, por exemplo, tém como pronéincia mais comum aquela em que 0 som [t] ocorre antes de qualquer 36 Inirodugao a Linguistica I vogal, inclusive antes de [i]. Ou seja, esse ¢ 0 som que nés transcreveriamos como [t] em todas as situagdes. Se compararmos a situagdo encontrada no portugués com a encontrada em italiano, por exemplo, veremos que elas sao diferentes. Circunscrevendo a nossa observacao aos sons [t, tf, d, d3], a principio pode parecer que o funcionamento desse conjunto de sons é igual nas duas linguas. Todos os quatro ocorrem em portugués e em italiano, como vemos nos exemplos a seguir: Portugués: direto [d3i'retu] dois ['dors} tigre ['tfiget] ator [a'tor] Italiano: cinema ['tfinema] testa ['testa] titolo ['titolo] cielo ['tfeto] dire ['dire] giusto ['dgusto] gente ['d3ente] Apesar dessa semelhanga em termos mais superficiais, a de os sons simples- mente ocorrerem ou nao na lingua em analise, ha uma diferenga importante: em italiano encontramos pares como fintura [tin' ‘tura] ‘tinta’e cintura (fin! ‘tura] ‘cinto’, por um lado, e adire [a'dire] “comparecer’ e agire [a'd3ire] ‘agir’, por outro. Isso nos indica que nos pares [t, t{] e [d, d3] temos distingao de significado, portanto, esses sons sao fonemas diferentes em italiano. Podemos assinalar esse fato nos referindo aos fonemas /t/, /di, /t{/ ¢ /d3/. Observem que distinguimos os fones, que so transcritos entre colchetes [...], dos fonemas, que sao transcritos entre barras /, Assim, em portugués, [t, t{] nao sao fonemas diferentes, sido realizages dis tintas do mesmo fonema. A mesma coisa ocorre com [d, d3]. Em suma: dois sons diferentes mas materialmente semelhantes podem funcionar como se fossem 0 mesmo elemento ou como se fossem elementos dife- rentes. E 0 que Saussure tinha em mente quando elaborou 0 conceito de valor, que é algo relativo a cada sistema linguistico. O mesmo som encontrado em sistemas linguisticos distintos pode apresentar valores diferentes, dependendo de suas relagdes com os demais elementos existentes. Assim, o valor de um elemento nao & apenas aquilo que é, mas também aquilo que ele nao é, ou seja, a quais outros elementos ele é igual e de que outros elementos ele ¢ diferente. 3. Alofones Como vimos na ultima segao, pode acontecer de dois sons pertencerem ao mesmo fonema, ou serem realizacdes do mesmo fonema. As diferentes realizacoes de um determinado fonema sao denominadas seus alofones. O fonema /a/, por exemplo, tem pelo menos trés realizagdes diferentes em portugués. Em silabas s ele € pronunciado como [a], ou seja, com a cavidade oral apresentando Fonologia 37 seu grau maximo de abertura. E 0 que ocorre em pd, caso e dvido. Em silabas dtonas finais, 0 mesmo fonema /a/ se apresenta com um grau um pouco menor de abertura, 0 que é transcrito como [e]. Embora essa diferenga nao seja obvia A primeira vista, basta prestar atengao na prontincia de palavras como gata e casa. A vogal da silaba tonica apresenta um grau de abertura maior do que o da silaba Atona final, Uma Ultima realizagao do mesmo fonema /a/ é a que encontramos quando ele & nasalizado. Tanto em palavras como a, como em palavras como cama, 0 /a ténico é realizado com um grau de abertura menor do que o do [a] tnico oral. Essa realizagao do fonema /a/ pode ser transcrita como [8], embora se encontre na literatura notagdes como [3], [3] ou mesmo [a]. Para chegarmos a uma conclusao sobre o estatuto desses sons dentro do sistema fonoldgico do portugués, € importante observarmos que a troca de um pelo outro nao produziria mudanga de significado. No maximo produziria realizagées estranhas, nao utilizadas pelos falantes, como ['kame], com [a] oral ¢ com abertura maxima em silaba tonica precedendo uma consoante nasal. Cada realizagao distinta de um determinado fonema recebe 0 nome de alofone. Portanto, na discussao do paragrafo anterior, fizemos referéncia a trés alofones distintos do fonema /a/. Todo fonema pode em principio apresentar mais de uma realizagao poss! vel, podendo o numero dessas diferentes realizagGes ser relativamente alto. Como exemplo, temos 0 fonema /t/ em inglés, que pode ser realizado [t"] em inicio de palavra como em top, [t] quando precedido de [s] como em stop, [r] quando entre vogais como em berier, [t'] em uma das realizacdes possiveis quando em final de palavra, como em cat, [t"] quando preceder um [n] silébico, como em button. Ha ai pelo menos cinco realizagdes distintas de um mesmo fonema. Deve ficar claro que o mesmo fone [r] pode fazer parte de um fonema numa lingua e de um fonema diferente em outra. Podemos observar que nao se trata apenas de questiio de orto- grafia, jd que nas diversas formas da mesma palavra ha alternancia, por exemplo, entre [t] ¢ [r], como em wait ['wert] ‘esperar’ ¢ waiting ['weirin] ‘esperando’. 3.1. Par suspeito, par minimo e par andlogo Vejamos agora, quais scriam os procedimentos adotados para classificarmos os sons da lingua que estivermos estudando. Se estamos estudando a fonologia de uma lingua, precisamos fazer um levantamento de todos os sons que ocorrem nela. Cada som que ocorre nessa lingua, independente de seu status dentro do sistema fonoldgico da lingua, é um fone diferente. Se dizemos isso, estamos levando em consideragdo apenas o lado mais concreto do som, sua produgdo em termos ar- ticulatorios, ou sua percepgdo, em termos auditivos. 38 Introdugao & Linguistica Il Dois sons diferentes podem ser utilizados dentro de um sistema linguistico sempre de forma distinta, sempre da mesma forma ou as vezes de forma diferente e as vezes da mesma forma, Para podermos afirmar qual dessas possibilidades é a verdadeira, é preciso mais do que listar es ns € analisar suas caracteristicas materiais. So no interior de um determinado sistema linguistico é que eles operam como a mesma unidade funcional ou nao. Para entendermos o funcionamento do sistema fonolégico de uma lingua. precisamos inicialmente fazer um levantamento dos fones que nela ocorrem e depois passar a examind-los para verificar quais so distintivos ou nao nessa lingua. Como os sons podem ser modificados de acordo com o contexto em que ocorrem, pode ser que dois sons diferentes sejam apenas versdes ligeiramente modificadas de um mesmo elemento. Precisamos entao fazer um levantamento dos sons que sao foneticamente semelhantes na lingua em estudo. Por exemplo, sons como [p] ¢ [b]. ou [t] ¢ {d] sao bastante semelhantes, pois diferem um do outro apenas pelo fato de serem surdos ou sonoros. Cabe aqui uma observagao importante. O funcionamento dos sons dentro dos sistemas fonoldgicos em geral nos indica que a classificagao de ponto de arti- culagdo tradicionalmente feita na analise fonética é minuciosa demais para uma andlise fonolégica, a ponto de colocar no mesmo nivel distingdes que tém peso diferente no funcionamento dos sistemas sonoros das linguas naturais. Se considerarmos os sons [b], [v] e [d] quanto ao seu ponto de articulagao segundo essa classificagao tradicional, o primeiro é bilabial, o segundo é labiodental © 0 terceiro ¢ linguodental ou dental (ou ainda alveolar). Pois bem, o som [Vv], que tem como articuladores 0 labio inferior e os dentes superiores, aparece, portanto, como intermediario entre os sons puramente labiais e os sons dentais, ja que um de seus articuladores coincide com um dos articuladores envolvidos na produgao de [b] ou com um dos articuladores envolvidos na produgdo de [d]. Acontece que embora seja bastante comum encontrar uma lingua em que [b] e [v] se confundem ou alternam entre si, dificilmente encontraremos uma lingua em que 0 mesmo se verifique com relacdo ao par [Vv] ¢ [d]. Isso ocorre porque o fato de dois sons terem o mesmo articulador ativo é mais significativo fonologicamente do que o fato de dois sons terem o mesmo articulador passivo. Dessa forma, na classificagao fonolégica dos sons, é preferivel falarmos em sons labiais (o que abrange tanto [b] quanto [v]) em oposi¢ao, por exemplo, aos sons coronais, que sao produzidos com a ponta da lingua como articulador ativo. Utilizando esse tipo de classificagaio, temos como resultado que [b] ¢ [v] passam a se distinguir apenas pelo fato de o primeiro ser oclusivo e o segundo fricativo, ao passo que [v] e [d] se distinguem, além disso, pelo fato de o primeiro ser labial ¢ o segundo coronal. Retornando entao ao processo de verificagdo de quais sons foneticamente semelhantes de uma lingua sio distintivos entre si, facilmente verificamos que Fonologia 39 ha distingao de significado nos pares suspeitos do portugués em que o Unico fone distinto é 0 [s] ¢ 0 [7]. E 0 que ocorre com pares como roca, com [s], ¢ rosa, com [z]. Outros exemplos seriam: zelo ¢ selo; raga e rasa; ougo e@ ouso. Esse tipo de procedimento é chamado de teste de comutagao: alteramos 0 significante em um unico ponto ¢ verificamos se ha alteragao de significado. Quando confirmamos que ha distingao sistematica de significado entre pares desse tipo, temos que nessa lingua os pares suspeitos formam pares minimos, E importante ter em mente que nao bastaria achar um exemplo isolado, porque poderemos generalizar uma conclusdo que estaria correta apenas para um Pequeno niimero de palavras, alguns empréstimos, por exemplo. Observemos exemplos como os seguintes: derrubar e derribar; assobiar ¢ assoviar. Cada um desses pares pode nos levar a conclusdes equivocadas a respeito de um par de fones do portugués. O par derrubar e derribar pode nos dar a impressio de que [u] ¢ [i] nao distinguem significado em portugués. O mesmo podemos dizer com relagao ao par [b] ¢ [v] em assobiar e assoviar. Isso ocorre porque em ambos os casos, no da troca de [u] por [i], e no da troca de [b] por [Vv], 0 significado das palavras nao se altera. Ocorre que esses dois so casos relativamente isolados O da troca de [b] por [v] sem alteragao de significado nem ¢ tio restrito, ja que poderiamos acrescentar exemplos como herruga e verruga, ou bassoura e va: soura. Jé 0 da troca de [u] por [i] é rarissimo no portugués. Se compararmos esses casos isolados com pares como bucho e bicho, chuta e chita, diivida e divida, muco e mico, fuga e figa, por um lado, ¢ pares como bala e vala, botar e votar, livra e libra, cabo e cavo, Libia e Livia, por outro, veremos que os casos em que esses pares de sons sao distintivos entre si sdo mais numerosos que aqueles em que eles nao distinguem significado. Logo, se ndo houver oposigdo sistematica nos significados, a conclusao é que os fones nao so fonemas da lingua, mas alofones de um mesmo fonema. Um ultimo tipo de par de que podemos langar mao na andlise fonologica de uma lingua & 0 chamado par analogo. Pode acontecer de nao encontrarmos pares minimos em que dois fones especificos sejam substituidos um pelo outro numa lingua. Por exemplo, em inglés, so muito poucos os pares minimos entre [Sle [3]. Entre os pouquissimos existentes estd 0 par allusion [a'lur3an] ‘alusdo’ e Aleutian (a'lu:fan] ‘aleuta, das IIhas Aletitas’. Possivelmente o segundo membro do par nao faz parte do vocabulario comum do inglés. Nesse caso, 0 pesquisador pode recorrer a pares nao minimos, mas que diferem em pontos que se presumem que nao impedem que se conclua que os dois fones pertencem a dois fonemas dis- tintos. No caso do inglés, podemos utilizar exemplos como vision ['vizan] “visio” ¢ fission ['fifon] “fissdo”, presumindo que a ocorréncia de [f] ou [v] na primeira silaba nao afeta a possibilidade de ocorréncia da fricativa surda ou sonora na silaba seguinte. Assim, um par quase perfeito, quase minimo, o qual difere ndo em um mas em dois pontos, pode nos indicar que temos dois fonemas distintos. 40. Introdugdo & Linguistica Il 3.2. DistripuigGo Complementar e Variacdo Livre Retomando 0 que foi dito na segao 2, dois sons diferentes podem funcionar sempre distintamente num sistema linguistico. Nesse caso, nao ha duivida, eles siio realizagdes de fonemas diferentes. HA outros casos em que sido alofones (por exemplo, [t, tf]). Mesmo que eles sejam realizagdes de um tinico fonema, a relagdo entre essas variantes pode ser de mais dois tipos diferentes. Examinemos o primeiro tipo de relagao entre alofones. Em portugués, varias consoantes produzidas com a ponta da lingua como articulador ativo podem ser realizadas de duas maneiras distintas, como alveolares ou como dentais. Vocé pode experimentar pronunciar as palavras tom, dar, ndo e lé com a ponta da lingua encos- tando nos dentes superiores ou na arcada alveolar ao produzir os sons iniciais de cada um dessas palavras. Nao ha qualquer possibilidade de distinguir significado em portugués através dessa oposigdo, Se eu disser que tenho um ['gatu] em casa e meu vizinho tem um ['gatu], com certeza temos 0 mesmo tipo de animal doméstico, embora a pronincia utilizada seja diferente. Podemos dizer que entre 0 [t] alveolar € 0 [f] dental existe variagao livre, porque nao ha nada no contexto linguistico que selecione um ou outro fone, ambos sao produzidos no mesmo contexto. Ao afir- marmos isso, nado estamos excluindo a possibilidade de que algum fator exterior ao sistema linguistico propriamente dito, como, por exemplo, a regiao de origem dos falantes ou sua idade influa em qual realizagao sera preferida. Nesse caso, a variagiio entre essas duas formas ser livre, numa andlise imanente da lingua (ou seja, restringindo nossa andlise aos elementos estritamente linguisticos), mas nao sera, sociolinguisticamente falando. Um outro exemplo de variagao livre é 0 que ocorre com 0 [r] e o [R] em final de silaba. Assim, se cu pronunciar ['gwarde] ou ['gwarde], nao havera qualquer distingdo de significado entre as trés formas. Vejamos, agora, o segundo tipo de relagao entre alofones, Dizemos que ocorre distribuigdo complementar quando um fone ocorre em determinados ambientes e outro fone ocorre nos demais ambientes. Por exemplo, nos falares do portugués do Brasil em que ha palatalizagao diante de [i], 0 /d/ pode ser realizado de duas maneiras: como [d] diante de tepe e diante de qualquer vogal que nao seja 0 [i}: ou como [45] diante de [i]. Diante de qualquer consoante que nao 0 tepe, ocorre a forma [d3]. mas nesse caso ocorre epéntese ou insergdo de um [i] entre o [d] ea consoante seguinte. E 0 que ocorre em admirar, que & pronunciada como se houvesse um [i] entre o [d] € 0 [m}, provocando a aplicagao da regra de palatalizagdo do [d], que passa a [d3] O resultado ¢, portanto, a forma [adgimi'rar]. A principal conclusao a que devemos chegar é que onde ocorre [d] nao ocorre [d3] vice-versa. Podemos dizer entdo que esses dois fones ocorrem em distribuigdo complementar. Se examinamos, entdo, as palavras andar, poder, débito, divida, doce, dose, dtivida, admirar e droga, veti- ficamos que 6 ocorre a variante [d3] diante de [i], quer esse [i] seja grafado quer nao. Por outro lado, em todos os outros contextos somente ocorre a realizagao [d]. Fonologia 41 4, Neutraliza¢do e Arquifonema Na secao anterior, discutimos 0 tipo de relagao que pode ocorrer entre dois fones distintos, concluindo que ha duas possibilidades: ou eles sao realizagdes do mesmo fonema ou nao. Essa conclusao, no entanto, nao recobre todas as relagdes encontradas entre dois fones distintos nas linguas naturais. Isso porque uma obser- vagao mais atenta nos revela que a possibilidade existente de estabelecer contrastes entre dois fonemas diferentes pode nao ser a mesma em todas as posigdes ou em todos os contextos. Examinando as vogais anteriores do portugués, por exemplo, verificamos que embora haja distingao entre [e, i], como em vé-/a e vila, esse contraste nado existe em silaba dtona final. Assim, nao é possivel haver distingao de significado entre ['favi, 'fave] chave. O portugués nao distingue palavras dessa forma. Isso, contudo, nao invalida o fato de que ¢ pelo menos possivel contrastar palavras uni- camente através da distingdo entre as duas vogais anteriores. O estudo das linguas nos mostra que é extremamente comum certas posi¢des privilegiadas como a silaba tonica ou a raiz exibirem um maior niimero de contrastes do que outras posigdes, como silabas atonas e afixos. Voltando as vogais anteriores, podemos nos referir a essa situagao dizendo que a oposicao de abertura das vogais anteriores € neutralizada em portugués em posigao atona final. Ou seja, tanto faz pronunciarmos de uma forma ou de outra, que nao havera distingado de significado. Na verdade, ha uma realizagdo normal dessa vogal neutralizada, que ¢ algo intermediario entre [e] e [i], a vogal transcrita como [1] (semelhante ao i do inglés /ip). A outra forma de nos referirmos a essa situagdo € falarmos em um arqui- fonema. Se em outros contextos, os ténicos, por exemplo, temos dois fonemas distintos (e, i), na silaba pds-ténica esses dois fonemas deixam de ter esse papel distintivo. O arquifonema é o resultado de uma neutralizagao. Ha indmeros tipos de neutralizagao bastante comuns nas linguas naturais. Uma das mais comuns é a neutralizagao da sonoridade das obstruintes (oclusivas, fricativas e africadas). Muitas linguas distinguem obstruintes surdas e sonoras, mas perdem ou neutralizam essa distingao em final de palavra ou em final de silaba. Alguns exemplos do holandés ilustram essa situagao. Observermos as seguintes formas: [dem] ‘dinamarqués’ _[te:n] ‘dedo do pé? [hant] ‘mao’ {hando] ‘maos* [handol] ‘cabo’ {handbwk] ‘manual’ {hantpalm] ‘palma da mao" [vut] ‘pé” [vu'ta] ‘pes? fends] ‘fim, ponta’ [bal] ‘bola’ [vu'teindo] ‘ponta do pe’ [vurdbal] “futebol” {spoxr] ‘marca’ [vutspo:r] *pegada’ 42 Introdugdo & Linguistica It Pelos dados, podemos observar que, embora [t] e [d] distingam significado (vide os dois primeiros exemplos) ¢ exista a possibilidade de ocorrer tanto [d] quanto [t] antes de vogal (vide mdos, cabo, pés, fim, ponta do pe), essa possibili- dade inexiste em final de palavra, onde s6 ocorre [t], antes de oclusiva surda, onde também sé ocorre [t], e antes de oclusiva sonora, onde sé ocorre [d]. Nesses casos, podemos dizer que a oposi¢ao entre os fonemas /t/ e /d/ foi neutralizada e 0 resultado dessa neutralizagao é um arquifonema, o qual é representado pela letra maitiscula de um dos fonemas, indiferentemente, (/T/ ou /D/). 5. Tra¢gos e classes naturais Na andlise de Martinet que vimos no volume anterior ¢ no inicio deste capitulo, os fonemas so apresentados como os menores elementos da cadeia so- nora. Isso estar correto se estivermos nos limitando a segmentar a cadeia sonora em elementos que nao ocorrem simultaneamente. Se abandonarmos essa limitagaio, mesmo um tnico som pode ser percebido como um elemento composto de elementos menores, que seriam efetivamente os menores elementos da cadeia falada. Esses so os chamados tracos distintivos, os quais podem ser tanto articulatérios quanto actisticos. A denominagiio traco dis- tintivo ressalta o fato de que nem todas as caracteristicas que diferenciam os sons sao utilizadas nessa classificagao, mas apenas aquelas que podem ter um papel distintivo no interior dos sistemas fonolégicos das linguas naturais. Normalmente se costuma usar os tra¢os articulatérios, inclusive por apresentarem maior facili- dade de identificagao pelo prdprio linguista, em geral sem necessidade de nenhum tipo de equipamento. Os sons que sofrem alteragdes em cada contexto de uma determinada lingua ndo so sons aleatorios, mas sim grupos homogéneos de sons. Por exemplo, os sons que se palatalizam diante de [i] no portugués do Brasil so 0 [t], 0 [d] e 0 [n], embora este tiltimo nao seja tao perceptivel. Os trés apresentam duas ca- racteristicas em comum que os distinguem de todos os outros sons do Portugués sao sons dentais ou alveolares nao continuos. Da mesma forma, a distingao entre [c] e [e] que é perdida nas silabas dtonas em portugués, ou entre [0] e [3], trata de maneira uniforme as vogais médias. Nas diversas regides do Brasil, ha variagdo entre as que utilizam as vogais médias baixas [e, 9] € as regides que utilizam as vogais médias altas [e, 0] nas silabas dtonas. Nao ha regides que utilizem uma vogal média alta e outra média baixa. Uma caracteristica importante que transparece do inventario vocdlico do portugués ¢ o fato de que hd o mesmo ntimero de alturas nas vogais posteriores e nas anteriores, ou seja, o sistema é simétrico. Embora nao seja necessirio que isso ocorra nas linguas naturais, essa é uma propriedade bastante comum Fonologia = 43. Outras linguas que tém sistemas vocdlicos simétricos, embora de modo distinto, so 0 espanhol ¢ o grego moderno. O espanhol nao tem as vogais médias baixas [e] e [5]. O grego moderno nao tem [e] e [o]. Podemos ver simetria também nos sistemas consonantais. Por exemplo, nas linguas que fazem oposigao entre oclusivas surdas e sonoras, normalmente, encontramos sistemas simétricos como o do portugués, que tém [p, b; t, d: k, g], ou seja, pares de oclusivas em cada ponto de articulagao, sendo uma surda e outra sonora. Linguas com oposigao entre oclusivas surdas e sonoras que apresentam outras oclusivas, normalmente tém um ou mais pares adicionais. O htingaro, além desses pares, possui o par palatal [c, j]. A simetria, contudo, pode nao ser total, como vemos pelo arabe, que possui [k. g, t, d], mas possui apenas [b] e nao [p] O que isso nos indica é que os sistemas fonolégicos funcionam de maneira organizada, de acordo com critérios bem definidos, nao aleatoriamente. Podemos ver bem a diferenga entre grupos uniformes de sons e grupos aleatérios de sons comparando as seguintes listas: fa, b, u, £,k} ¢ {p, bk, g, td}. O primeiro grupo € uma lista aleatoria, um ‘saco de gatos’: contém duas vogais e trés consoantes; das vogais, uma € arredondada e a outra nao; das consoantes, cada uma tem um articulador ativo distinto, nao apresentam um modo de articulagao unifome, e assim por diante. J4 0 segundo pode ser definido facilmente como formado por consoantes oclusivas. Esses grupos uniformes de sons ou segmentos sio chamados de classes naturais. Portanto, a primeira lista nado representa uma classe natural Apenas a segunda. Um dos principais achados da fonologia durante o século XX foi justamente o fato de que os tragos distintivos so utilizados para delimitar as classes naturais, isto é, os elementos de uma classe natural tém um determinado conjunto de tragos distintivos em comum. Podemos, entao, falar do conjunto de fonemas do portugués ip. f, t, s, §, k/ como uma classe natural, a que é formada pelos fonemas que sao surdos, ou que tém o trago [- sonoro]. Quanto maior o nimero de tracos naturais de uma classe, menor tendera a ser o numero de seus membros. Assim, se acres- centarmos o trago [+ labial] ao trago [- sonoro], a classe de que acabamos de falar ficaria reduzida aos fonemas /p, f/. Conforme discutido em 3.1, os tragos utilizados nas andlises fonéticas nao so os mais convenientes para os estudos fonoldgicos. Isto porque, embora descrevam de forma precisa os articuladores envolvidos na | 44 Introdugéo & Linguistica Il producao dos sons, eles nao captam as relacdes entre esses sons, que acabamos de discutir. E por isso que, para discutirmos as classes naturais em que 0s sons se organizam, utilizamos outros tragos Ha uma discussao tedrica, que nao cabe aqui neste capitulo introdutério, a respeito do carater dos tragos distintivos a qual procura determinar se todos os ragos distintivos sao bindrios ou no. Para simplificar a apresentagao dos tragos, abstraire- mos dessa discussao e apresentaremos todos cles como binarios, ou seja, contendo duas possibilidades: a de serem marcados positivamente ¢ a de serem marcados negativamente com relagao a determinado traco. E necessario ficar absolutamente claro que a binaridade e 0 fato de os tragos serem representados com os sinais de + e de ~ nao quer dizer que esses traco: sejam vistos como graduais. A oposicao é categorica ¢ os sinais representam sim ¢ nao, respectivamente. Se dizemos que um Primeiro som tem o trago [+ sonoro] e um segundo som tem 0 traco [- sonoro], em- bora leiamos isso dizendo que ‘o primeiro som tem 0 trago mais sonoro 0s egundo som tem 0 tra¢o menos sonoro’ isso nao significa que o primeiro é mais sonoro e 0 segundo ¢ menos sonoro no sentido de o primeiro ter uma quantidade maior de sonoridade do que 0 primeiro, O que se quer dizer é que o primeiro som é sonoro e 0 segundo nao é sonoro. Eo mesmo que ocorre com os sinais + e—em matemitica. Quando falamos dos niimeros +3 e ~3, isso nao quer dizer que 0 primeiro deles & mais positivo que o segundo. Simplesmente o primeiro é Positivo e o segundo é negativo. Também chamamos a ateng&o de que, como esses tragos procuram capturar cla: naturais linguisticas, existem diferentes propostas na literatura. Tendo deixado isso claro, passemos entao a examinar os tragos distintivos um a um, Primeiramente veremos tragos que so denominados de independentes dos articuladores, pois nao estdo associados a um Unico articulador: * [+ consonantal]: corresponde intuitivamente a divisdo entre vogais e consoantes. Tém o trago [+ consonantal] os sons que apresentam um grande obstaculo a passagem do ar pela parte central da cavidade oral, isto é, se ha neles um fechamento total (como nas oclusivas, nas nasais, laterais e vibrantes) ou quase total (como nas fricativas). Dessa forma, as semivogais ou glides s ‘0 classificadas com 0 trago [- consonantal]. * [+ voealico]: sdo vocdlicos os sons produzidos sem impedimento pas- sagem de ar. Assim, como os sons {I X r ¢ ] so produzidos com relativa desobstrugao do ar, cles podem ser considerados como tendo o trago [+ vocalico]. Por outro lado, como os glides caracterizam-se por terem 0 espago da passagem do ar mais reduzido do que nas outras vogais, eles so caracterizados como [- vociilico]. + soante] ou [+ sonorante]: uma das formas de caracterizar essa oposigao € dizer que tém o tra¢o [+ soante] os sons que no dificultam a producao de vibragao das cordas vocais. E atribuido 0 trago [- soante] aos sons que apresentam uma obstrugdo grande a passagem do ar, dificultando, dessa Fonologia 45 maneira, es: sa vibragdo. Tém o trago [- soante], portanto, as oclusivas, fricativas ¢ africadas. Os demais sons (vogais, semivogais, nasais, laterais e vibrantes) tém o trago [+ soante]. + [+ continuo]: os sons que tém o trago [+ continuo] sao produzidos sem que haja uma interrupedo do fluxo de ar. Se houver essa interrupgao. considera-se que 0 som tem o trago [— continuo], o que abrange as oclu- sivas, as afticadas, as nasais e as vibrantes « [+ tenso]: sdo tensos os sons produzidos com consideravel esforgo mus- cular. A oposigdo entre os chamados r- fraco (0 de era) € 0 r forte (o de erra) pode ser caracterizada por esse trago, tendo eles 0 trago [- tenso] e [+ tenso], respectivamente. Os demais tragos sao dependentes de um articulador, pois estio associados aum articulador ativo especifico. Primeiramente temos os de ponto de articulagao: Em Chomsky & Halle (1968), a distingdo entre os sons coronais e esses outros dois grupos era feita através da combinagao dos tragos [+ coronal] e [£ an- terior]. Assim, os sons labiais eram descritos com 0 conjunto de tragos [- coronal, + anterior] e os dorsais (velares e uvulares) com 0 conjunto de tragos [~ coronal, anterior]. Posteriormente, algumas andlises passaram a utilizar os tragos [+ labial], [+ coronal] ¢ [+ dorsal]. Manteremos aqui esses tragos como bindrios * | coronal: sao coronais os sons produzidos com a ponta da lingua como articulador ativo, 0 que se move em diregao ao articulador passivo. Sao coronais, portanto, sons dentais, alveolares, retroflexos ¢ palatais. Algumas analises também consideram as vogais anteriores como coronais. Todos os demais so nao coronais. * [+ labial]: sao labiais os sons produzidos com o labio inferior como arti- culador ativo. Essa classe abrange os sons bilabiais e labiodentais. * [+ dorsal]: so dorsais os sons produzidos com a parte posterior da lingua como articulador ativo. Inclui as consoantes uvulares e velares, além das vogais posteriores. Algumas anilises, no entanto, incluem todas as vogais entre os sons dorsais. Além desses trés tragos, ha os seguintes: + [+ anterior]: sdo anteriores os sons produzidos com a ponta da lingua na regio anterior do trato vocal (que corresponde, para as consoantes, apro- ximadamente, aos sons que so produzidos utilizando os labios, dentes e/ou alvéolos como articuladores). * [+ posterior]: sao posteriores os sons produzidos com um certo recuo da lingua em relagdo a sua posig&o neutra, As vogais [u] ¢ [o],¢a semivogal [w], por exemplo, sdo posteriores. AG vemos IntrodugGo 4 Linguistica * [+ arredondado|; distingue os sons que sao produzidos com arredondamento dos labios dos que nao o sio. Sao arredondadas as vogais [9, 0, u, y, ce] por exemplo ao nao arredondadas as vogais [a,e, €, wi, A], por exemplo. alto]: possuem o trago [+ alto] os sons que so produzidos com uma grande elevagao da lingua, que se localiza numa posi¢ao bem prdxima ao céu da boca. As vogais [i, u] sio exemplos de vogais com o traco [+ alto}, ao contrario das demais do portugués, que tm o trago [~ alto] * [£ baixo]: as vogais produzidas com abertura maxima da cavidade oral apresentam o trago [+ baixo], jd que a lingua fica em uma posigdo bas- tante baixa em relago ao céu da boca. Em Portugués, as vogais [a, 2, a) apresentam o trago [+ baixo]. As demais tém 0 trago [— baixo] Temos ainda alguns tragos de modo de articulagao: * [£ sonoro]: corresponde A distingdo entre sons sonoros e surdos, ou seja, respectivamente, Os que apresentam e os que nao apresentam vibracdo das cordas vocais quando produzidos, * [+ nasal]: os sons que tém o trago [+ nasal] sao produzidos com o véu palatino abaixado, permitindo a entrada da corrente de ar na cavidade nasal, que age ento como uma cavidade de ressonancia. * [+ lateral]: os sons que tém o trago [+ lateral] so produzidos com fe- chamento da passagem do ar na posigao central da cavidade oral, mas permitindo a passagem do ar pelos lados ou por apenas um deles. Nor- malmente os sons laterais so coronais. HA ainda alguns tragos nao relevantes para 0 portugués: * [+ aspirado]: sdo aspirados os sons produzidos com um retesamento acentuado das pregas vocais, em toda a sua duragdo (como no caso de {h), ou em parte de sua duragdo (como na consoante aspirada [t"]) + glotalizado}: os sons glotalizados apresentam um fechamento total da glote, 0 que interrompe por alguns milissegundos completamente a passagem do ar. Podemos pronuneiar um hiato como 0 de a ilha sem interrupcao nenhuma da vibragdo das cordas vocais, Se entre as vogais ocorrer, no entanto, um breve instante de siléncio, representamos essa interrup¢ao seguida de abertura como uma parada glotal. A sequéncia a itha ficaria nesse caso transcrita como [a "Pike, em que a interrogacao sem ponto é a transcrigao da parada glotal, um som glotalizado. Tendo visto os principais tragos distintivos postulados na teoria fonoldgica, de- aber a respeito deles que o que se afirma é que o conjunto de tragos distintivos ¢ potencialmente o mesmo em todas as linguas. Pode, today ia, ocorrer de determinados a, Fonologia 47 tragos nao serem utilizados distintivamente numa lingua ou noutra, como dissemos com relagdo ao portugués, que nao distingue sons aspirados de nao aspirados. Uma maneira comum de organizar os segmentos de acordo com seus tragos seria através de uma matriz com os tragos ¢ seus valores em colunas e fileiras. Abaixo, apresentamos uma possibilidade de organizacao em classes naturais dos fonemas do portugués brasileiro em forma de arvore (Abaurre, 1992). Ressaltamos que é possivel classificar esses sons em classes naturais utilizando outros tragos. ‘Cais ee +, s, s.Jiviz.3emyacn lL Koear e.£,a,9,0,u) consonantal IPtk boda fs. fv.2.3m nq b h 01) fi. ea, 9, 0, U} ae e x. vocélico kc) Pik bd gis fv 23 mong . . [mtn] [ph Kb. dg. ~ nasal Sf. V. 3] ye Ne continuo 3] [p. tk, b. d, g] ao Fe Ie + : anterior . : UL 4] [ee] 2 |e UI (4) f} fm. n) En) (6s. v, 2) 1S, 31 fp. tb, dl Tk, g} Gi) OY) Li, & ella, 9, 0, u) a ae +o™. coronal [n] [m] Is, 2] [fv [td] [p,b] + /\-+/\-4] Pt NHK A \- sonoridade n He (2JEs}LvIEI (31S) (AINE IEP) LolEk) fenso (be) - baixo alto +1 |. atredondado Observamos na quarta linha da drvore a classe natural composta dos fonemas [m, n, p J, que tém em comum os tragos [+ consonantal], [- vocdlico] e [+ nasal]. Isso se verifica examinando a parte da arvore que esta acima dessa classe natural. Se examinarmos 0 que vem abaixo dela, verificamos que ela se divide em [m, n], que tém o trago [+ anterior] e [n], que tem o trago [- anterior]. A classe [m, n], por sua vez, se divide em [n], que é coronal. e [m], que nao é. 6. Processos Ja vimos que os sons nao sao realizados sempre da mesma maneira. De- pendendo do contexto em que ocorrem, os sons podem sofrer modificagdes. Eles podem se modificar de forma que se tornem mais parecidos com um ou mais sons proximos sintagmaticamente, num processo que recebe o nome de assimilagao, Podem também se modificar de forma que se tornem mais diferentes de um ow 48 Introdu¢ao & Linguistica tI mais sons proximos sintagmaticamente, num processo que recebe o nome de dis- similagdo. Podem ainda adquirir caracteristicas diferentes por estarem num contexto prosdédico especifico. Em muitas linguas, é comum encontrarmos vogais que nao so pronunciadas da mesma maneira num contexto ténico e num contexto atono. A esse tipo de processo de alteragao da proniincia de uma vogal num contexto dtono podemos dar o nome de redugao. Veremos a seguir alguns dos tipos mais comuns de processos fonologicos. 6.1. Assimilag¢aGo Assimilagdo é um termo genérico que se refere a qualquer processo em que um som adquire caracteristicas ou tragos dos sons que o rodeiam. Como exemplo podemos observar o sufixo transitivizador em ainu, lingua falada no norte do Japao (Ité 1984) mak-a ‘abrir’ tas-a ‘cruzar’ ker-e ‘tocar’ per-e ‘rasgar” P pis-i ‘perguntar” nik-j “dobar” pop-o ‘ferver’ tom-o *concentrar” tus-u “agitar’ yup-u ‘apertar’ ig! yup Esse tipo de assimilago é chamado de assimilagao total, em que a vogal do sufixo é uma copia exata da vogal da raiz. Mas além dela, ha também a assimilagao parcial, que pode assumir diversas formas, algumas das quais vém ilustradas nas segdes a seguir. 6.1.1. AssimilagGo de Ponto de Articulacdo Um dos tipos mais comuns de assimilagao é aquele em que um segmento adquire 0 mesmo ponto de articulagao de um outro segmento vizinho. Vejamos um exemplo do portugués. Quando pronunciamos uma palavra que contém uma vogal nasal seguida de uma oclusiva, hd uma certa variacdo entre duas prontncias possiveis. Na primeira delas, pronunciamos apenas a vogal nasal ¢ a consoante oclusiva. Na segunda, entre elas ocorre uma consoante nasal bastante rapida. A palavra samba, por exemplo, pode ser pronunciada ['s8be] ou ['stmbe]. Observem que na segunda transcri¢do nao estamos assinalando duas vezes a mesma nasalidade. O tile a letra ‘m indicam coisas distintas. O til indica que a vogal ¢ nasal. Om indica que se pronuncia uma consoante nasal entre a vogal nasal e a consoante oclusiva. Poderia- Mos representar essa transigdo como se no primeiro caso pronuncidssemos ['sé] e depois [be], e no segundo caso pronuneiassemos ['s#] depois [m] e depois [be]. Fonologia 49 Caso essa consoante nasal seja pronunciada nessa palavra, cla sempre sera um [m]. Mas isso nao acontece sempre. Se tomarmos palavras como janta ¢ longo, poderemos verificar que a consoante nasal que pode surgir em janta é empre um [n] € a que pode surgir em /ongo é sempre um [n]. Dizemos nesse caso que a consoante nasal assimila 0 ponto de articulagao da consoante oclusiva que a segue. samba ['sémbe] — *['sénbe] assimilagdo do trago [labial] janta*['38mte]_—['zénte] _*['38pte] _assimilagdo do traco [coronal] longo *['lémgu] *['longu]—_['léngu] _assimilagdo do trago [dorsal] Observando a diregdio em que se dé a assimilago, podemos classificd-la em progressiva ou regressiva, Coneebendo a assimilagao como a propagagiio de uma deter- minada caracteristica, podemos ver que ela se propaga para a frente, em diregao ao final da palavra, ou para tris, em diregzio ao comego da palavra. A assimilagao do primeiro tipo é denominada progressiva, enquanto a do segundo tipo ¢ denominada regressiva 6.1.2. Nasalizagao Um tipo de processo fonoldgico bastante comum no portugués é 0 da nasali- zagao. Quase toda vogal ténica que precede consoante nasal se nasaliza. Assim, palavras como cama, tema, time, dono e rumo apresentam a vogal da silaba tonica nasalizada. Nas silabas pré-t6nicas ha variagdo, pois algumas pessoas nasalizam a vogal da silaba inicial de panelae outras nao. Isso inclui a nasalizagao nos processos fonoldgicos que tém, além do condicionamento proveniente dos tracos distintivos, também um condicionamento prosédico, ou seja, devido ao acento. Palavras do portugués do Brasil que apresentam consoante nasal apés silaba atona e apos silaba tnica ilustram bem a distingao. E obrigatéria a nasalizagdo regressiva se a silaba anterior for ténica, mas ¢ opcional se for étona: ex. [ba'né.ne}, [be'né.ne] mas nao *[ba'na.ne], nem *[be'na.ne]. Em suma, nao é sé 0 segmento seguinte que influencia a nasalizacao da vogal. A prosodia também influencia 0 processo. 6.1.3. Harmonia Vocdlica Em muitas linguas, ocorre um fendmeno pelo qual as vogais dentro de um determinado dominio concordam com relagao a um ou mais tragos, ou seja, apre- sentam caracteristicas semelhantes. Ea chamada harmonia vocalica. Alguns exemplos tradicionais de linguas com harmonia vocalica entre as linguas europeias sao o finlandés, 0 hungaro e 0 turco. Vejamos alguns exemplos 50 Introdugao & Linguistica I em finlandés em que sao apresentadas trés formas de alguns substantivos: 0 nomi- nativo (forma do sujeito), o inessivo (que indica o lugar em que algo esta, por ex., na casa) ¢ o elativo (que indica o lugar de onde algo provém, por ex., da casa) Nominativo Inessivo __Elativo | Significado talo talossa talosta : | puu puussa puusta “arvore™ rivi rivisse | _riviste “fileira’ [tye tyossee tyosta: ‘trabalho’ | E facil perceber que o inessivo ¢ formado através do acréscimo a0 nominativo de uma terminagao, que pode ser [ssa] ou [ss], ¢ que 0 elativo é formado através do acréscimo ao nominativo de outra terminagao, que pode ser [sta] ou [ste]. O que deve ser observado é que a variagao existente nas formas das terminacdes cor responde ao tipo de vogal presente na palavra. Se ela contém vogais posteriores, como [talo] ¢ [puu], a terminagao também possui uma vogal posterior, no caso, [a]. Se ela contém vogais anteriores, como [rivi] e [tyo], a terminagdo também possui uma vogal anterior, nesse exemplo, [2]. E esse tipo de fenémeno, em que ha uma concordancia de tragos entre vogais que podem nao ser idénticas, que recebe o nome de harmonia vocilica. 6.2. Dissimilacao A dissimilacao, 0 processo pelo qual um som adquire caracteristicas distintas dos sons que o rodeiam, é bem menos frequente do que a assimilagdo. Iustramos seu funcionamento com outro exemplo do ainu. Alguns verbos, em vez de apre- sentarem um sufixo que assimila totalmente a vogal da raiz, apresentam um sufixo com uma vogal alta, a qual pode ser [i] ou [u], ¢ que tem o valor oposto ao da raiz quanto ao trago [+ posterior]. a. hum-i‘picar’ mus-i ‘fazer engasgar” pok-i ‘abaixar” hop-i “levantar’ b. — pir-w‘limpar com um pano” kir-u ‘alterar” ket-u ‘esfregar’ rek-w “tocar, soar” (It6 1984:506) Fonologia 51 6.3. Outros processos Outros processos fonolégicos que podem ocorrer nas linguas naturais podem ser determinados nao s6 por certos tracos distintivos, mas também pela prosédia (tonicidade e atonicidade, estrutura da silaba) e pela morfologia (como a distingao entre raizes e afixos). Um desses processos é a chamada redugdo vocallica, que afeta algumas ou todas as vogais em certos contextos prosodicamente menos privilegiados, como as silabas atonas finais. Jé vimos um exemplo desse tipo, no portugués, na se¢do que tratava dos alofones, com relagao ao fonema /a/, ¢ na seg4io que tratou da neutralizago, com relacdo ao arquifonema vocdlico anterior que podemos transcrever como /E/. Ha também a clisdo, que é nada mais do que 0 apagamento de um som em determinado contexto. Por exemplo, em portugués, em sequéncias como hora er- rada (,9re'rade], em que 0 /a/ final de hora deixa de ser pronunciado, Fenémeno parecido é 0 da degeminagiio, em que uma sequéncia de duas vogais idénticas é pronunciada como se fosse uma s6. Ex.: hora aga, pronunciado (,9ra'ga], Esses tipos de fendmenos sofrem restrigdes prosédicas, j4 que nao ocorrem antes de vogal ténica de enunciado, ou seja, no ocorre em ela compra uva, onde uva teria © acento principal do enunciado, mas sim em ela compra uva rosada, onde esse acento incide na palavra rosada. Outra distingao possivel nos processos fonoldgicos, a qual sera discutida em detalhe no capitulo sobre morfologia, é a que distingue contextos morfolégi- cos. Como exemplo temos a que apontamos no inicio desta segao entre raizes e afixos. No dialeto quéchua de Puyo Pungo, por exemplo, as oclusivas surdas se sonorizam apés consoantes nasais, como vemos no contraste entre sinikpa ‘do porco-espinho’ e kamba ‘teu’, onde o [pa] que marca 0 genitivo (ou possessivo) passa a [ba] depois de [m]. Esse processo, entretanto, s6 ocorre se a oclusiva fizer parte de um afixo. Se ela for parte da raiz, como em pampal ina ‘saia’ ,a oclusiva se mantém surda. Neste iltimo caso, falamos de processos morfofonolégicos. 7. NotacGo das regras Quando formulamos uma regra fonologica, devemos indicar os seguintes elementos: © que muda (0 foco da regra), em que ele se transforma (a mudanga estrutural da regra) e em que situacao isso ocorre (0 contexto ou descrigao estrutural da regra). Podemos ter uma regra como a seguinte: A>B/C__D 52 Introdugao a Linguistica I Essa regra diz que o som A (0 foco) se transforma em B (o que caracteriza uma mudanga estrutural) se estiver entre C e D (0 contexto). Determinadas regras fonoldgicas descrevem processos que ocorrem sem restrigdes na lingua examinada, ou seja, em qualquer contexto (nesse caso, podemos considerar que C e D sao nulos). Outros processos, no entanto, podem ocorter apenas em certos contextos fonoldgicos ou morfoldgicos. Um exemplo de Tegra que normalmente se considera que nao leva em conta fatores prosdicos ou morfoldgicos ¢ a que pode representar as realizagdes possiveis do fonema /t/ nos falares do portugués do Brasil que apresentam a palatalizagao: th [tf] (il G [t] / nos demais contextos Essa regra nos diz, que temos dois alofones [t , t{] em distribuigado comple- mentar. A decisdo de qual deles é o fonema se baseia na quantidade de contextos de ocorréncia. Assim, 0 fonema /t/ é realizado como [tf] diante de [i] e como [t] nos demais contextos. Ha regras que sao restritas a contextos determinados por propriedades es- tritamente fonolégicas, como, por exemplo, no inicio de uma silaba, no final de uma silaba, Podemos indicar isso na regra fonoldgica através do simbolo 6 ou do simbolo $, que indicam fronteira de silaba. Se a regra for restrita a determinados contextos morfoldgicos, poderemos precisar do simbolo #, que indica fronteira de morfema. Se a regra sé se aplica em fronteira de palavra, podemos indicar isso através da notagao #4. Vejamos alguns exemplos de processos ¢ suas respectivas regras. Em bielo-russo, por exemplo, um [v] se transforma em [w] em final de silaba. certo ['pra.vi] regra ['pra.vi.la] verdade ['praw.da] Podemos formalizar esse processo com a seguinte regra [v] > [w]/__$ Nesse exemplo, vimos também que podemos simplesmente indicar qual som se transforma em qual outro, sem explicitar quais os tragos envolvidos no processo. Em campa axininca, falada no Peru, ha a insergdo de [t] entre vogais em fronteira de morfema, como nos seguintes exemplos: /no-N-koma-i/ > [nonkomati] ‘ele remara” /no-N-koma-aa-i/ > [nonkomataati] ‘ele remara novamente” Esse processo pode ser formalizado com a seguinte regra: O>[]/V#__Vv Fonologia = 53 A regra indica que um vazio (Q) precedido por fronteira de morfema (#) se transforma em [1], se antes da fronteira houver uma vogal (V) e apés 0 vazio também houver uma vogal (V). O.tiltimo tipo de regra pode ser ilustrado com o portugués do Brasil, em que obser- vamos variagdo na prontincia das formas verbais terminadas em /r/, como vemosa seguir: quer [ker] [ke] querem['keréi]_*['ke@i] for [for] ['fo] forem —['foréi]*['fodi] sair [salir] [sa'i] sairem — [sa'ir€i]_*[sali@i] Sempre que o /1/ fica em final de palavra, ele pode ser elidido. E importante observarmos que essa elisdo s6 ocorre em final de palavra. Wo Qi ## Um tltimo ponto a respeito de notagao que deve ser mencionado é © que relaciona 0 valor de mais de um trago, ou do mesmo trago em mais de um seg- mento. Exemplificamos com um processo que ocorre em grego moderno, o qual afeta certas palavras como se segue: “ontem” [xOes] > [xtes] “eu chego” [fOano} —> [Fiano] “eu separo’ ['sxiz9] > ['skiza] ‘oito” [ok'to] > [ox'to} *asa’ [pte'ro] — [fie'ro] O que esta sendo alterado nesses exemplos 0 modo de articulagao. Se temos duas obstruintes com trago [+ continuo] com a mesma especificagao, a primeira passard a ser fricativa e a segunda oclusiva, independente do que havia antes da aplicagao da regra. c Ge > Cc [acont] — [a cont} [+ cont] — [- cont] A notagao com a letra grega [a] antes do traco indica um valor qualquer desse traco, positive ou negativo. Havendo mais de uma ocorréncia dessa letra, no entanto, todas as vezes em que ela ocorrer o sinal devera ser 0 mesmo, ou seja, [a] significa numa determinada regra sempre positivo ou sempre negativo. Se tivermos [f cont] [a cont] significa que os segmentos tém valores opostos. A seguir encontramos alguns exercicios que representam os primeiros passos da pratica da andlise fonoldgica das linguas naturais. Exercicios 1) Verifique qual trago ou quais tragos cada um dos processos a seguir afeta, Algu- mas vezes a mudanga pode ser explicada por mais de um trago: 54 Introdu¢do & Linguistica Ii a) [b]>[v] b) foo) °) [gl [k] 4) [s]> Ul 2) fu [y] fy [o] > [u] 8) [)]>[4) bh) [ul > [i] [ [ u] > [w) d] > [In] Il) ALEMAO: Verifique se, de acordo com os dados do corpus a seguir, os sons [u:] ¢ [y:] constituem par minimo efetuando 0 teste da comutagao. Faca 0 mesmo com relago aos sons [¢] [x]. Caso algum dos pares néio seja distintivo, diga em que contextos aparece cada um dos fones e se eles apresentam variagao livre ou distribuigdo complementar. ['maxt] poder ['daig] dique ['rauxan] fumar [bux] livro [‘bregan]} quebrar (‘kusla] frescor [bru:dar] irmao ['bly:ta] (eu) sangro ['mectig] ['raox] [lox] r] [brax] ('kyslo] ['bry:dar] ['blu:to] poderoso fumo buraco livros quebrei, quebrow cova irmaos flor, inflorescéncia II1) TURCO: O turco tem 8 vogais que podem ser distinguidas em termos de 3 tragos fonologicos, como representa o quadro a seguir: nao arredondada arredondada fechada i y u wi nao fechada € o ° a | __anterior posterior | Somente um dos tragos é pertinente para o processo de harmonia vocalica que ocorre nessa lingua. Com base nos seguintes dados, conclua qual é 0 trago perti- nente e explique o processo. 1. [evde] ‘na casa” 2. fankara] ‘Ancara’ 3. [verdim] ‘eu dei” 4, [kopry] ‘ponte’ 7 6. 7 8, [aldum] ‘eu peguei* [odun] ‘madeir . [odastu] ‘sua sala’ . [gostermek] ‘mostrar? Fonologia = 55 IV) Observe as seguintes palavras do japonés. Nelas ocorre um processo de en- surdecimento de vogais, 0 que é notado no alfabeto fonético internacional através do diacritico [,] abaixo da vogal que ocorre como surda. As vogais longas foram transcritas como duas vogais. Assim [00] é um [o] longo. a) Formule uma regra fonoldgica que indique quais vogais sao afetadas pelo pro- cesso € em que contextos. [yfikatetsw] ‘metré’ —_[d3idoofa] ‘automével’ [gikooki] ‘avidio" [take] *bambu’ [taki] *cachoeira” [kitanai] ‘sujo” [tfiisai] ‘pequeno” [kuitsur] *sapato” [gakusee]‘estudante” [swugoi]‘incrivel, terrivel’ [safimi] ‘sashimi’ [sekai] ‘mundo” b) A palavra ‘la’ apresenta variagao entre as formas [asoko] e [astko], Havera ensurdecimento em alguma delas? Ou em ambas? Justifique V) Em espanhol, além dos sons [b]. [d]. [g]. 0s sons {B], [0], [y] ~ sons correspon- dentes fricativos — também sao realizados em palavras da lingua. Baseando-se nos dados apresentados a seguir, conclua se [b] ¢ [], [d] ¢ [0], [2] ¢ [y] so fonemas distintos ou so alofones. Se forem alofones, estabeleca o contexto pertinente para a distribuigdo complementar: 1. [ayusar] ‘apontar (lapis)’ 6. [tiyce] tigre” 1. [ardiga] ‘esquilo* 2. [geingo] ‘estrangeiro” 7. [taBlado] ‘tablado’ 12. [arbol] ‘arvore’ 3. [gordo] “gordo” 8. [taako] ‘tabaco” 13. [burdo] “duro” 4. [payar] ‘pagar’ 9. [prender] ‘prender’ 14. [buskar] ‘buscar’ 5. [tienda] ‘loja’ 10, [bandido] ‘bandido’ 15. [defer] ‘dever” 16, [dedo] ‘dedo’ V1) Nos dados a seguir do grego moderno encontramos dois processos fonoldgicos. Formule as duas regras correspondentes e diga que tipos de assimilag3o ocor- rem. OBS.: as formas nominais estéo no nominativo (forma que o substantivo assume quando € sujeito de uma oracdo, por exemplo) e no acusativo (forma que ele assume quando € objeto direto, por exemplo). Todos os substantivos gregos dos exemplos sio femininos e esto precedidos do artigo definido, que concorda com 0 substantivo, aparecendo a forma [i] no nominativo e uma forma varidvel no acusativo. Nominativo Sg. Acusativo Sg. [i a'lidja} [tin a'li®ja] ‘a verdade’ [i ‘opsi] [tin ‘opsi] ‘o olhar’ [i 'kori] [tin ‘gori] ‘a menina’ 56 Introdugdo & Linguistica I i 'poli} [tim 'boli] ‘a cidade” i 'taksi] [tin 'daksi] ‘a ordem’ Alguns verbos: er'yazome] ‘eu trabalho” [siner'yazome] ‘eu colaboro’ kati'ko] ‘cu moro/habito’ —_[singati’k>]_—_ ‘eu coabito” '‘pleko] ‘eu tego” [sim'bleks] ‘eu entrelago’ 'erxome] ‘eu venho” [si'nerxome] ‘eu me retino* ti'rd] ‘eu mantenho’ [sindi'r9) ‘eu conservo” VII) Elabore uma regra fonolégica que dé conta do proceso verificado nos seguintes dados em hiingaro. Os dois pontos que aparecem apés algumas vogais na transcrigdo indicam que elas so longas. ‘nep] ‘povo’ —_['dal] ‘cangao” ['nerbdal] *cangao folclérica’ 'kez] ‘mao’ [‘kresm] ‘creme’ —_[ke:skre:m] ‘creme para as mao’ ['boyferg] ‘largura’—_['dere:gborferg] ‘medida da cintura’ {gomboits] *bolinha’ ['hu:sgombo:ts] ‘alméndega* ['tamas] ‘apoio’ [! ['galamb] ‘pombo” [hu ['kalap] ‘chapéu’ —_['tiss :ptarmas] ‘apoio para o pé” ‘galamb] *vinte pombos” ‘kalap] ‘dez chapéus’ VIII) Verifique que tipo de processo fonolégico ocorre nos seguintes dados da lingua ainu, falada no norte do Japao. Escreva uma regra fonolégica que corres- ponda ao processo encontrado. a. /kukor rusuy/ — [kukon rusuy] ‘quero ter (algo)” b. /kor rametok/ — [kon rametok] ‘a valentia dele” c. /kor mat/ > [kor mat] ‘a esposa dele” d. /kukor kur/ — [kukor kur] ‘meu marido” (Suzuki 1988: 81) IX) Considere as formas fonéticas das seguintes palavras de hebraico e observe a distribuigao de [v] - [b] [f] - [p] em: I. [bika] ‘lamentado’ 2. [mugbal] ‘limitado” 3. [favar] ‘quebrado* 4. [Javra] ‘quebrada’ 5. [?ikev] ‘atrasado” 6. [bara] *criado” 7. {litef] ‘langado” 8, [fefer] ‘livro” 9. [para] ‘vaca’ 10. [mitpaxat] ‘lengo’ LL, [fia?alpim] “Alpes” Fonologia = 57 a) Escreva a regra ou explique a distribuigao de [v] — [b] e [f] [p] by) Aqui esta uma palavra sem um fone. Uma lacuna aparece no lugar do som que falta: [hid__ik]. Baseado na distribuigdo encontrada no item anterior, qual das seguintes alternativas corresponde a uma afirmagao correta (s6 uma é correta): i) [b] mas nao [v] pode ocorrer no espago vazio ii) [v] mas nao [b] pode preencher 0 espaco iii) tanto [b] como [v] podem preencher 0 espago iv) nem [b] nem [v] podem preencher 0 espago c) Qual das seguintes alternativas é correta para a palavra [word__ana]? i) [f] mas nao [p] pode preencher a lacuna ii) [p] mas nao [f] pode preencher a lacuna iti) tanto [p] quanto [f] podem preencher a lacuna iv) nem [p] nem [f] podem preencher a lacuna Bibliografia avatnni, Maria Bemadete (1992), Anoragdex de curso ‘Fonologia’. Campinas, UNICAMP. cuiomssgy, Noam & Morris Halle (1968). The Sound Pattern of English. Cambridge. MA: MIT Press. 110, Junko (1984), Melodie Dissimulation in Ainu, Linguistic Inquiry 18: 505-513. koa, [egy & Wyn Johnson (1999). Cowse in Phonology: Oxford: Blackwell & Wyn Johnson (1999), 4 Workbook in Phonology. Oxford: Blackwell sausst ane, Ferdinand de (1969). Curso de linguistica geral. $80 Paulo: Cultri, Racal Sugestdes de Leitura nisot, Leda (org.) (1999). Introducdo a estudos de fonologia do portugués brasileiro. Porto Alegre: Editora da PUCRS. Esse livro retine textos especialmente escritos por varios autores para apresentar a teoria fonolégica gerativa. O primeiro capitulo faz um apanhado geral da teoria gerativa na fonologia e os capitulos seguintes tratam de assuntos como a estrutura da silaba, do sistema vocalico e do sistema consonantal do portugués, bem como © acento em portugués. Cada um dos capitulos relaciona a discussao especifica do portugués a teoria fonolégica. Sdo abordadas também anilises de autores estrutura- listas, como Mattoso Camara. CAGLIARI, Luiz Carlos (1997). Andilise fonolégica. Campinas: Ed. do Autor, Livro que apresenta de forma detalhada os procedimentos de analise de sistemas fonolégicos, como a verificagao do status dos sons e suas oposi¢des dentro de uma determinada lingua. 58 Introdugao & Linguistica Il CAGLIARI, Luiz Carlos (1997). Fonologia do portugués: andlise pela geometria de tragos. Campinas: Ed. do Autor. O autor apresenta 0 modelo denominado geometria de tragos, 0 qual foi desen- volvido a partir de meados da década de 1980 e propde que os tracos distintivos sao reunidos em subgrupos, estando alguns mais estreitamente relacionados do que outros. O modelo ¢ utilizado para analisar 0 sistema fonoldgico do portugués. FERREIRA NETTO, Waldemar (2001). Introducdo a fonologia da lingua portuguesa. Sao Paulo: Hedra. Encontramos nesse livro uma discussio detalhada da representacaio grifica dos sons no portugués, bem como da formagio da fonologia do portugués a partir do latim. Ha inimeros exemplos de diversas variedades do portugués, principalmente do Brasil mas também de Portugal, ¢ capitulos que tratam das silabas e do acento na lingua portuguesa, Cada capitulo ¢ complementado por exercicios. GotpsmiTi, John (org.) (1995). The Handbook of Contemporary Phonological Theory. Oxford: Blackwell. Composto de 24 capitulos de cunho predominantemente teérico que cobrem as principais dreas e teorias da fonologia e oito capitulos que focalizam linguas espe- cificas, todos eles redigidos por especialistas de renome internacional, esse é um livro indispensével para quem quiser se aprofundar no estudo da fonologia. kacer, René (1999). Optimality Theory. Cambridge: Cambridge University Press. Esse € um livro bastante didatico que introduz a teoria da otimidade, surgida no inicio da década de 1990, a qual nao foi tratada neste capitulo, mas foi mencionada brevemente no final do capitulo relativo a mudanga linguistica no primeiro volume. A discussao é bastante detalhada e acessivel a quem tiver alguma familiaridade com a fonologia gerativa. kenstowicz, Michael (1994). Phonology in Generative Grammar: Oxford: Blackwell. Esse livro apresenta de forma bastante completa uma discussao dos principais as- pectos da teoria fonolégica gerativa. O autor utiliza exemplos de intimeras linguas € discute em detalhe as implicagdes das principais propostas tedricas, Um livro essencial para quem quiser se aprofundar no estudo da teoria fonolégica. eee ereee yuu

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